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Laís Mota Sena – 4º semestre – MedFTC Epidemiologia A epidemiologia como campo da ciência propriamente dita emerge no final do século XIX e se consolida em meados do século XX. Contudo, sua história é muito mais longa datando desde os primórdios da história. Segundo a mitologia grega, Asclépio (deus da saúde) possuía duas filhas: Higeia e Panaceia. A primeira era a padroeira da medicina individual curativa, enquanto a segunda seria a padroeira da medicina preventiva. Nesse contexto cultural encontra-se Hipócrates de Cós, o qual é tido como o precursor da epidemiologia, pois foi quem criou o termo “epidemia” e pelo conteúdo de suas obras. “A doença chamada sagrada não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada que qualquer outra doença; tem causa natural e sua origem supostamente divina reflete a ignorância humana”. O trecho acima foi tirado da obra “A doença sagrada” de Hipócrates e deixa claro que o Corpo Hippocraticus (conjunto de obras que são atribuídas a Hipócrates – mas pode ter obras de outros autores também) traz uma visão mais racional da medicina em detrimento da visão mágico-religiosa predominante nessa época. Hipócrates postulou acerca da existência de 4 fluidos (humores) no corpo humano: bile amarela, fleuma (linfa), bile negra e sangue onde cada um corresponde a um elemento fundamental: terra, água, fogo e ar. Nesse sentido, a doença seria uma desarmonia entres esses humores ou elementos. As observações hipocráticas não se limitavam ao paciente em si. O texto “Ares, águas e lugares” discute os fatores ambientais ligados à doença, defendendo um conceito ecológico de saúde- enfermidade. Daí emergirá a ideia do miasma: emanações de regiões insalubres seriam capazes de causar doenças como malária (“maus ares”). A Grécia foi tomada pelo império romano posteriormente. Com relação ao governo romano, é sabido que ele realizava censos periódicos e o Imperador Marco Aurélio introduziu um registro compulsório de nascimentos e óbitos. Tais censos e registros, medidas originalmente de cunho político e administrativo, antecipam o que mais tarde viria a ser conhecido como estatística vital. No início da Idade Média, o domínio do cristianismo e as invasões bárbaras determinaram um retorno a práticas de saúde de caráter mágico-religioso que incluíam amuletos, orações e o culto a santos protetores da saúde. Nesse contexto, não havia lugar para ações coletivas no campo da saúde, exceto em momentos críticos (não infrequentes) de pragas e epidemias. Contudo, mesmo nessa época a medicina árabe já se diferenciava da ocidental por ter um caráter mais coletivo. Preservando os textos hipocráticos originais, médicos muçulmanos adotaram os princípios de uma prática precursora da higiene e da saúde pública com alto grau de organização social, estabelecendo registros de informações demográficas e sanitárias e até sistemas de vigilância epidemiológica. O livro “Cânon de Medicina” do importante filósofo islâmico Avicena pregava registro sistemático e abordagem numérica da ocorrência de doenças, dessa forma antecipando a epidemiologia. Depois veio o Renascimento, que foi um período de resgate aos elementos filosóficos, científicos e estéticos da cultura greco-romana. Nesse período foi bastante priorizado o saber científico de forma racional. Desse entendimento do mundo como efeito de processos naturais e históricos, superando a metafísica religiosa medieval, desencadeou-se, entre os séculos XVI e XVIII, gigantesco e complexo esforço de produção de dados, informações e conhecimento em todos os saberes e lugares ao alcance da expansiva civilização ocidental. John Graunt (1620-1674) era comerciante de profissão, mas, também, era membro da Royal Society. Em 1662, publicou em Londres, um trabalho sobre as observações acerca das estatísticas de mortalidade no qual analisou nascimentos e óbitos semanais, quantificou o padrão de doença na população londrina e apontou características importantes nesses eventos, tais como: diferenças entre os sexos, diferenças na distribuição urbano-rural; elevada mortalidade infantil; variações sazonais. Graunt também é considerado um dos precursores da epidemiologia e da demografia como disciplinas, já que criou as bases para a observação da distribuição de frequência de dados populacionais de mortalidade coletados Laís Mota Sena – 4º semestre – MedFTC rotineiramente. A tabela desenvolvida por Graunt era semanal e esse conceito é usado até hoje (semana epidemiológica). Com relação aos óbitos, Graunt diferenciava a morte pela peste na sua tabela, de forma que podia-se ver, por exemplo, que na semana 42 houve um pico de mortalidade pela peste enquanto na semana 37 houveram menos mortos por essa doença. Em 1848, ocorreu uma violenta epidemia de cólera, doença que era muito comum e que se manifesta por vômitos e diarreia profusa e capaz de levar à morte por desidratação. A bactéria causadora, o vibrião colérico (Vibrio cholerae), ainda não tinha sido identificada; a enfermidade era, como outras, atribuída a miasmas. É importante lembrar que embora Londres já fosse uma megalópole, tinha péssimas condições de higiene. Os dejetos se acumulavam por toda parte e eram jogados no Tâmisa, cuja água era utilizada no abastecimento. Completava-se assim o ciclo oral-fecal, responsável pela transmissão da doença. O médico anestesiologista John Snow (1813-1858) não acreditava que o miasma fosse o responsável pela doença visto que, quando enfrentou essa mesma epidemia anos antes (1831-1832) anotou que os mineiros, que trabalhavam no interior do solo e, portanto, longe de áreas pantanosas ou “miasmáticas”, tinham adoecido também. Em 1854, a cólera chegou ao distrito londrino que ele trabalhava, mas a distribuição era desigual. Os casos eram mais frequentes entre pessoas que, diante da inexistência de rede pública de abastecimento, usavam a água fornecida pela empresa Southwark and Vauxhall Water Company, colhida em um poço de Broad Street. Duas mulheres que tinham tomado água desse poço estavam entre as primeiras vítimas da doença; mas os operários de uma cervejaria dos arredores, que dispunha de abastecimento próprio de água (porque a água para fazer cerveja não pode ser de má qualidade), não adoeceram. Snow colheu uma amostra da água do poço e levou-a ao microscopista Dr. Arthur Hill Hassall, que reportou um excesso de matéria orgânica na água, acrescentando que tal não era inusitado. Foi então que Snow decidiu reunir evidências estatísticas sobre a doença. Preparou um mapa mostrando onde as vítimas viviam e de quem recebiam a água. Constatou então que, na região abastecida pela Southwark and Vauxhall, o número de casos era cerca de 14 vezes maior do que em uma região abastecida por outra companhia. E ele encontrou a maneira perfeita de demonstrar isso, quando descobriu uma área no sul de Londres que recebia água de dois fornecedores diferentes. Um deles retirou a água de uma parte do Rio Tâmisa contaminada com esgoto; o outro de uma fonte pura. Ele descobriu que aqueles que bebiam água da primeira fonte eram mais propensos a morrer de cólera do que os outros e, como eram vizinhos, a teoria miasmática não se aplicava nesses casos. Propôs, então, ao conselho administrativo da região remover o braço da bomba do poço de Broad Street, o que foi feito - e os casos de cólera começaram a diminuir. Infelizmente Snow morreu em 1858 sem ver sua teoria reconhecida porque o miasma ainda era considerado a causa da cólera. O Brasil foi um dos países atingidos pela 3ª pandemia de cólera que teve início na Índia em 1846 e percorreu vários continentes matando milhares de pessoas por onde passou, até 1863. Foi a primeira epidemia no país e matou cerca de200.000 pessoas entre 1855 e 1856. Em 21 de julho de 1855 os primeiros casos de cólera foram confirmados em Salvador pelo médico John Ligertwood Paterson 1, que indicou a iminência da epidemia. Os casos ocorreram na região do porto, exatamente no dia seguinte (20 de julho) em que aportou o vapor “Imperatriz” vindo de Belém, província do Pará, quatro meses depois que se iniciaram os casos de cólera no Pará. Embora a epidemia tenha sido admitida e divulgada oficialmente em Salvador em 21 de julho, existem registros da doença desde março. Há relatos de suspeitas de doentes de cólera a bordo do navio cargueiro inglês “Mercury” vindo de Hamburgo (Alemanha), cidade onde a cólera já estava estabelecida. Devido à falta de evidências concretas da entrada da doença pelos navios “Mercury” e “Imperatriz” a “Comissão de Hygiene Pública” negou que a doença tivesse sido trazida pelos navios e culparam a falta de higiene de toda a capital da província. Esse foi um dos motivos para não adotar o procedimento da quarentena. Mas, outro motivo, e talvez o principal, é que a obrigatoriedade da quarentena afastaria os navios sem suspeita da doença, o que prejudicaria o comércio da cidade. Imundícies e Laís Mota Sena – 4º semestre – MedFTC águas pútridas estagnadas espalhadas por toda a cidade, reconhecidamente nocivas, deveriam ser eliminadas. Foram medidas que não impediram o avanço da epidemia. A partir dos casos na Freguezia de Santo Antonio junto ao convento das Carmelitas e na freguezia de Santana na rua dos Castanhedas, a doença se espalhou para a povoação do Rio Vermelho, onde foi relatada a morte de dois pescadores de baleia, passando posteriormente a ocorrer oito a dez casos fatais por dia. A cólera permaneceu em Salvador até meados de 1856. Da Bahia a epidemia irradiou-se para Alagoas e para quase todo o Nordeste, exceto o Piaui e Ceará. Alastrou-se também para o Espírito Santo e Rio de Janeiro e seguiu para o sul do país. Foram criados hospitais e enfermarias provisórias nas regiões mais necessitadas e atingidas e o governo enviou ambulâncias com medicamentos, mantimentos, médicos e estudantes de medicina, além de distribuir dinheiro às famílias pobres e mais necessitadas, vítimas da epidemia. A mortalidade total em Salvador foi de 9.849 mortes, e 35.981 na Bahia A epidemia de cólera trouxe uma importante mudança de costumes relativa ao sepultamento, originalmente realizado nas igrejas para as pessoas de projeção social, enquanto os escravos, prisioneiros, suicidas, indigentes e leprosos eram sepultados em cemitérios leigos. A partir da epidemia todos passaram a ser sepultados em cemitérios, independente de sua condição social. É interessante observar que como a teoria miasmática era muito forte nessa época, os médicos recomendaram aos ricos (que era quem podia pagar) que fosse para lugares mais altos visto que moravam onde hoje é o centro histórico. Daí esse pessoal, se mandou tudo para os bairros hoje chamados de Corredor da Vitória, Graça etc. Inclusive as arquiteturas dessas casas mudaram, passando a ser casas com espaços mais abertos ao seu redor e com grandes portas e janelas para o ar circular mais. No século XVIII um dos grandes problemas enfrentados nas grandes viagens marítimas era o escorbuto. Algum tempo depois que estavam em alto mar vários marinheiros começavam a apresentar edema e hemorragia das gengivas, dores intensas, equimoses e prostração. A evolução fatal era frequente. Sabemos hoje que o escorbuto é causado pela deficiência de vitamina C, mas na época não se tinha ideia do que a causava. James Lind, um cirurgião escocês que servia na marinha britânica, acreditando que o escorbuto não era uma doença contagiosa, realizou em 1747 o que é considerado o primeiro ensaio clínico da história da epidemiologia. Numa dessas viagens, ele identificou 12 doentes com escorbuto e os separou em grupos de 2. Manteve entre eles as mesmas condições, variando apenas em aspectos da dieta. Todos eles receberam a mesma dieta, composta por caldos de carne, biscoitos cozidos, açúcar, passas, cevada, arroz, água de aveia. Só que Lind modificou uma variável da dieta. Grupo I: ¼ de galão de cidra por dia Grupo 2: 2 colheres de vinagre 3x ao dia Grupo 3: Receberam água do mar Grupo 4: 2 laranjas e 1 limão Grupo 5: elixir de vitríolo (uma combinação de sulfatos) Grupo 6: Sementes de noz moscada e uma mistura de alho, mostarda, balsamo do Peru e mirra. Seis dias depois, o grupo 6 não conseguiu continuar mais o tratamento, uma vez que já não havia mais fruta disponível. Contudo, um dos marinheiros já estava apto a trabalhar e o segundo tinha também evoluído o suficiente ao ponto de regressar ao seu posto. A vitamina C não era sequer conhecida pela comunidade científica nessa época e a inclusão de citrinos na dieta da Royal Navy só foi iniciada quase cinquenta anos mais tarde. Ainda assim, James Lind continua a ser lembrado como o responsável pela realização do primeiro ensaio clínico com grupos comparativos em condições experimentais de ambiente e tempo controladas. Ignaz Semelweis (1818-1865) era um húngaro que aos 19 anos foi enviado, pelo pai, para estudar direito em Viena, mas após assistir a uma aula de anatomia, acompanhado de um amigo estudante de medicina, decidiu mudar de curso e estudar medicina. Quando ele se formou, tentou trabalhar com médicos importantes da capital austríaca, mas não conseguiu trabalhar com nenhum deles. Frustrado, encaminhou-se para a obstetrícia que era então uma especialidade de importância secundária, na qual médicos disputavam espaço com parteiras. 4 Laís Mota Sena – 4º semestre – MedFTC Semmelweis foi trabalhar na maternidade do Allgemeine Krankenhaus, o hospital geral de Viena, cujo chefe era Johann Klein, autoritário sucessor do não menos autoritário Johann Boer. A relevância desses dois chefes é que o primeiro (Boer) proibia que os corpos das parturientes mortas fossem necropsiados para fins educacionais, enquanto o seu sucessor, Klein, tornou essa prática obrigatória e aí começa o rolê. Nessa época havia uma doença que estava dizimando as parturientes (hoje ainda existe, mas é mais raro de acontecer): a febre puerperal, uma infecção que na época tinha causa desconhecida (hoje sabemos que é causada pelo estreptococo). É importante saber que nesse tempo a maternidade era dividida em dois setores: o primeiro só com médicos e estudantes de medicina, o segundo com as parteiras. Os óbitos por febre puerperal eram dez vezes mais frequentes no primeiro setor. E isto só acontecia ali. Não havia nenhuma epidemia da doença em Viena; as parturientes que davam à luz em casa aparentemente não corriam um risco superior ao habitual. Por quê? Esta era a pergunta que intrigava Semmelweis. Em 1847, um dos ídolos de Semmelweis, o médico patologista forense Jacob Kolletschka (que inclusive ele tentou trabalhar junto no início da carreira e não conseguiu) morreu de uma infecção maciça, após ferir-se acidentalmente em uma necropsia. Quando examinaram o corpo dele percebeu-se que ele tinha as mesmas lesões e pus que as parturientes mortas pela febre puerperal. Daí Semmelweis concluiu que a doença que matou o patologista forense era a mesma que acometia as mulheres mortas pela febre e também que o médico tinha contraído através da “inoculação de partículas cadavéricas”. A pergunta que fica é: como? A resposta se dá pela distribuição nos dois setores. Os médicos iam fazer necropsia de manhã e de tarde iam fazer os partos, tudo isso sem luvas e sem lavar as mãos. Nesse sentido eles iam transmitindo a doença para as mulheres. Semmelweis determinou que antes de fazer os partos, os profissionais deviam lavar as mãos com uma soluçãode cloro. No ano seguinte (pasmem) a mortalidade era a mesma nos dois setores. O administrador do hospital (aquele que obrigou a necropsia) no entanto, achava que não tinha nada a ver esse argumento que Semmelweis estava falando e que a mortalidade se equiparou nos dois setores porque ele tinha mandado instalar um novo sistema de ventilação que “removia o miasma”. Hoje a gente sabe que o que não tinha nada ver era o pensamento do administrador, mas na época Semmelweis ficou conhecido por essa ideia e como ele não tinha feito nenhum teste em laboratório com animais ou publicado algum trabalho científico sobre isso, as pessoas não acreditavam nele. Resumindo, depois de uma série de frustações, ele começou a mostrar sinais de perturbação mental e foi internado num hospício, onde veio a morrer de uma infecção (que foi agravada pelos espancamentos que costumavam acontecer nesses locais).
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