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HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 350 of 487 O ENIAC Existe algo que é mais poderoso que todas as armas do mundo, uma idéia cujo tempo tenha chegado. Victor Hugo, 1848 Quase um século depois das inovações e conceitos introduzidos por Babbage e George Boole, encontramos um cenário no qual a análise lógica está muito mais desenvolvida; relés eletromagnéticos poderiam ser utilizados no lugar das engrenagens e rodas dentadas, mas ninguém ainda conseguira evoluir além dos princípios de Babbage. Os construtores de grandes máquinas de cálculo, nas décadas de 1930 e 1940, passaram a utilizar fitas de papel perfurado ao invés de cartões perfurados, mas a idéia continuava a mesma: programas com as instruções de operação, e dados a serem processados, codificados de modo diferente e armazenados em dispositivos completamente distintos. Hoje é inquestionável que para executar, copiar, transmitir ou compilar um programa não existem diferenças em relação a trabalhar com dados propriamente ditos. Tudo isto não passa de uma sequência de estados “ligado” ou “desligado”, 0’s e 1’s, armazenados no disco rígido ou na memória do computador. Mas, naquela época, este conceito ainda não estava estabelecido e, mesmo quando a eletrônica substituiu os dispositivos eletromecânicos anteriores, os programas continuavam a ser pensados e implementados em um formato inteiramente diferente de números. A invenção é quase sempre um processo de continuidade, com esforços paralelos e descobertas simultâneas. Certamente, nos é familiar o fato de uma mesma idéia despontar, por vezes, quase que ao mesmo tempo em partes diversas do mundo, surgindo de diferentes centros de pesquisa sem que necessariamente tenha havido alguma forma de colaboração ou troca de informações entre seus pesquisadores. Isto tem sido mais regra que exceção, e temos inúmeros exemplos deste fato, como a invenção do avião, da lâmpada elétrica, da descoberta da estrutura do DNA. No caso dos primeiros computadores eletrônicos digitais, também existem várias histórias paralelas, ocorridas na Europa e nos Estados Unidos da América, mas uma, em especial, destacou-se na preferência dos historiadores, que é a história do ENIAC, onde mais uma vez se confirmou esta criativa tradição no surgimento de invenções, baseadas na realimentação dos esforços e idéias de uma cadeia de contribuições, ainda que seus autores não tivessem conscientemente esta intenção de trabalho em equipe. Para que o leitor não seja involuntariamente induzido a cometer injustiças históricas, é necessário que se esclareça que o desenvolvimento do ENIAC sempre HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 351 of 487 esteve acessível ao público e pôde ser acompanhado abertamente, enquanto o mesmo não se pode dizer em relação à construção do Colossus, projeto liderado pelo brilhante matemático inglês Alan Turing, e que divide com o ENIAC o título de primeiro computador eletrônico digital. Desenvolvido na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, o Colossus teve a sua concepção e construção cercadas por rígida restrição de informações, imposta pelo governo britânico, e que perduraria até meados da década de 1970. A motivação por trás deste cuidadoso silêncio, visando que tal iniciativa não fosse exposta para além do pessoal técnico envolvido em seu projeto e dos agentes do Serviço de Inteligência Britânico, o MI6, responsável por toda a operação que motivaria seu financiamento, construção e operação, pode ser explicada pelo fato de ter sido o Colossus o produto da evolução direta de outros equipamentos, também projetados por Turing naquela mesma época e utilizados na decifração de mensagens militares alemãs, atividade esta que viria resultar em uma vantagem estratégica e fundamental para o desfecho final naquele conflito, favorável aos aliados. Outra questão que eu também gostaria de compartilhar com o leitor, reside na clara percepção de um marco histórico, representado justamente pelo surgimento dos primeiros computadores eletrônicos digitais e que divide a abrangência histórica desta nossa jornada em dois períodos distintos. Temos encontrado significativas diferenças em termos da quantidade e riqueza de informações disponíveis, da complexidade técnica e da forma como influências sociais e políticas impactaram o desdobramento histórico da ciência da computação, estando todas estas características presentes mais fortemente no segundo período estudado e em sintonia com o relativamente recente aumento exponencial da quantidade total de informações geradas pela humanidade, e que, segundo algumas estimativas, estaria sendo dobrada a cada poucos anos. O esforço necessário para mantermos o mesmo nível de acuracidade, dentro dos moldes de contextualização previstos para nortear esta obra, tornou-se maior após ultrapassarmos este ponto de transição. Podemos situar este marco histórico por volta de 1938, coincidindo com o início da aventura que resultaria no desenvolvimento dos primeiros computadores eletrônicos. Neste cenário, toda a Europa sentia-se ameaçada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos, ainda se recuperando da Grande Depressão, tentavam se manter distantes do conflito iminente. Para aqueles que se encontravam em solo americano, seus próprios problemas domésticos tinham um apelo maior que as questões internacionais. Entretanto, após o início da Guerra, e à medida que um país após outro foi sendo arrastado para o conflito, que alastrou-se pela Europa, África e Ásia, a possibilidade de envolvimento direto dos Estados Unidos tornava-se cada vez mais evidente e a preocupação com o despreparo de suas forças armadas para enfrentar uma campanha de tal HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 352 of 487 envergadura ganharia força. Logo, haveria o início do esforço para aumentar sua capacidade bélica.* O ENIAC (Electronic Numerical Integrator Analyzer and Computer), eventualmente considerado o primeiro computador eletrônico digital†, foi desenvolvido com o objetivo de calcular o ângulo que uma determinada peça de artilharia deveria ser apontada para atingir um alvo específico. Seu principal patrocinador foi o Departamento de Artilharia, instituição responsável pelos testes de armas militares realizados no Campo de Provas de Aberdeen, situado em Maryland, EUA. Para conseguir a precisão de pontaria desejada, eram confeccionadas tabelas de trajetória para as armas de grosso calibre que eram testadas no Campo de Provas de Aberdeen. Estas tabelas indicavam a distância que uma ogiva poderia alcançar a partir de determinada inclinação de tiro, precisando a sua confecção levar em consideração muitos fatores que influenciam a trajetória do projétil, a começar pelo tipo de arma e projétil, ângulo de posicionamento, velocidade e direção do vento, temperatura, umidade e pressão atmosférica. Para cobrir todas estas variáveis era necessário o preparo de várias tabelas para cada tipo de arma, e a construção de cada tabela envolvia a resolução trabalhosa de equações diferenciais de segunda ordem para movimentos tridimensionais, que consumia várias horas de trabalho manual. Tal tarefa ficava sob a responsabilidade de uma equipe de profissionais qualificados, formada normalmente por jovens mulheres graduadas em matemática, recrutadas pela “U.S. Army's Women's Auxiliary Corps” (Corpo Auxiliar Feminino das Forças Armadas dos Estados Unidos), após receberem um treinamento apropriado.(19) O Ballistic Research Laboratory (Laboratório de Pesquisas em Balística), em Aberdeen, tinha a responsabilidade de produzir as tabelasde trajetórias, mas mal conseguia atender à demanda existente antes da guerra. Com o recrudescimento do conflito na Europa, a procura por estas tabelas aumentou e o tempo necessário para produzi-las, assim como o fato de que nem sempre tinham a precisão exigida, tornou-se inaceitável. Desde 1935, o Laboratório de Pesquisas em Balística já dispunha de um dispositivo matemático, chamado de “Bush Differential Analyzer” (Analisador * A Segunda Guerra Mundial, como relatado nos capítulos anteriores, teve seu início em 01/09/1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha e terminou com a capitulação germânica em 07/05/1945 e, mais tarde, após os bombardeios nucleares de Hiroshima, em 06/08/1945, e de Nagasaki, dois dias depois, com a capitulação japonesa em 02/09/1945. (248) (Nota do Autor) † Existem controvérsias sobre esta questão, que se tornou motivo para longas disputas judiciais. Algumas fontes, após a decisão oficial da corte norte-americana em 1973, consideram o ABC (Atanasoff-Berry Computer) como sendo o primeiro computador eletrônico digital, enquanto outras creditam este feito ao Colossus inglês, ou mesmo ao Z3 alemão. Alguns autores consideram o crédito concedido ao ENIAC, como sendo devido a uma ampla campanha promocional que o tornou conhecido popularmente como o primeiro computador digital. (Nota do Autor) HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 353 of 487 Diferencial Bush), para ajudar na resolução de cálculos de engenharia bélica. Este equipamento, uma calculadora mecânica e analógica, concebida em 1925 por Vannevar Bush*, do Massachusetts Institute of Technology (Instituto de Tecnologia de Massachusetts - MIT), para solucionar problemas computacionais genéricos, era constituído por uma série de hastes e engrenagens que giravam impulsionadas por motores elétricos. Apesar deste dispositivo reduzir significativamente o tempo necessário ao cálculo das tabelas de trajetória, existiam dois grandes inconvenientes: para cada tipo de problema a ser resolvido era preciso substituir manualmente vários componentes mecânicos, o que implicava em grande desperdício de tempo, e, o mais importante, eram os defeitos, que frequentemente ocorriam já próximos ao final de um longo processo de cálculo, causados pela baixa confiabilidade de um de seus componentes, o amplificador de torque, responsável pela velocidade do equipamento. Esta falha elevava o tempo médio de cálculo, acrescentando àquele já empregado na preparação do equipamento e na resolução do problema, o tempo despendido na execução do reparo. Deste, modo tornou-se prioritário encontrar um método que acelerasse o processo de computação e garantisse a exatidão de seus resultados. O ENIAC, concebido e construído na Escola Moore de Engenharia Elétrica da Universidade da Pensilvânia, segundo artigo publicado por ocasião de seu 50o aniversário de criação, por Dilys Winegrad e Atsushi Akera(20), não foi o primeiro dispositivo eletrônico de cálculo. No início da década de 1930, físicos já dispunham de contadores de radiação que utilizavam válvulas eletrônicas a vácuo, como no caso do ENIAC, e diversos laboratórios de pesquisa produziram dispositivos capazes de contar de um a dez. Já no final da década de 1930 e início da década de 1940, existiam pelo menos outras três iniciativas independentes, tratando de problemas de computação com o uso de circuitos eletrônicos: John Atanasoff (1903 - 1995), o Serviço de Inteligência Britânico e a IBM (International Business Machines). Entre 1937 e 1941, John Atanasoff, professor de física na Universidade Estadual de Iowa, que interessava-se pela construção de máquinas de alta velocidade para a resolução de problemas genéricos de computação, decidiu projetar um equipamento para solucionar sistemas complexos de equações lineares. Com a ajuda de Clifford Berry, ex-aluno de graduação da Universidade de Iowa, desenvolveu um dispositivo que ficou conhecido como Computador Atanasoff-Berry (ABC), mas que até o final de 1941 não estava totalmente operacional. * Vannevar Bush (1890–1974), cientista e educador norte-americano com formação em engenharia elétrica e física, reinventou o “Diference Engine” de Babbage, seguindo sua concepção mecanicista analógica e de base decimal. Em 1935, desenvolveu uma nova versão do Analisador Diferencial, no qual suas engrenagens eram movidas eletricamente e suas instruções eram transmitidas por fita de papel perfurado.(49 e 50) (Nota do Autor) HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 354 of 487 Com o início da campanha norte-americana na Segunda Guerra Mundial, Atanasoff foi impelido a interromper seus trabalhos com o ABC e assumir, em dezembro daquele ano, um posto no Laboratório de Artilharia Naval, em Washington, D.C. Embora o ABC fosse um computador de uso específico, ele teve como mérito o fato de todas as suas operações de adição e multiplicação serem executadas por circuitos totalmente eletrônicos. No entanto, o uso de um dispositivo eletromecânico para armazenar dados e resultados intermediários, impunha um gargalo no sistema, limitando sua velocidade de processamento. Neste mesmo ano de 1941, a IBM, cuja experiência anterior era em equipamentos de leitura e perfuração de cartões, projetou um dispositivo eletrônico de multiplicação, em colaboração com a Universidade de Columbia, onde pesquisava-se mecanismos para acelerar a execução de aplicações científicas na área de matemática. Neste contexto, somente o Colossus, computador construído por volta de 1942 em Bletchley Park, na Inglaterra, patrocinado pelo MI6, o Serviço de Inteligência Britânico, poderia ser considerado uma máquina eletrônica de grande porte. Enquanto Atanasoff e a IBM, foram limitados pela disponibilidade de recursos financeiros, Bletchley Park e a Escola Moore, beneficiados pelo esforço de guerra, foram agraciados com enormes recursos para pesquisa e desenvolvimento. Em 1940, quando parecia cada vez mais provável a entrada dos Estados Unidos na Guerra, o interesse pelas técnicas computacionais atingiu seu auge, movido, principalmente, pela grande quantidade de projetos de armas de artilharia e também pela evolução e conseqüente mudança de padrões militares. Neste cenário, onde a capacidade computacional disponível apresentava-se insuficiente frente à demanda, e o analisador diferencial representava o estado da arte em equipamentos para este propósito, a pesquisa e o desenvolvimento necessários à produção da tecnologia que atendesse às necessidades da nação encontrou solo fértil na Escola Moore. No final de 1941, quando por fim os Estados Unidos entraram na Guerra*, muitos professores e pesquisadores da Escola Moore foram requisitados para o serviço militar ou para projetos militares secretos. Para substituir alguns dos professores engajados no esforço de guerra, a Universidade da Pensilvânia contrataria os PhD’s John W. Mauchly e Arthur Burks. * Devido ao ataque japonês à Pearl Habour em 07 de dezembro de 1941, os Estados Unidos declararam guerra ao Japão em 8 de dezembro e, em apoio ao seu aliado, a Alemanha e a Itália declararam guerra aos Estados Unidos, em 11 de dezembro. (Nota do Autor) HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 355 of 487 Mauchly, Eckert e a Válvula Eletrônica (44) Por esta mesma época, J. Presper Eckert Jr, jovem professor, considerado o mais brilhante estudante e o melhor engenheiro da Escola Moore, uniria-se a John Mauchly, para pesquisarem o assunto de maior interessede ambos: como aplicar a eletrônica para construir computadores de alta velocidade. Em meados de 1941, Mauchly esteve na Universidade Estadual de Iowa com Vincent Atanasoff e Clifford Berry, que lhe apresentaram suas pesquisas sobre o uso de dispositivos eletrônicos para a realização de cálculos numéricos e, a criação de ambos, o ABC. Inspirados, talvez, pela pesquisa de Atanasoff, Mauchly e Eckert projetaram um computador eletrônico para resolver as equações diferenciais para o Departamento de Artilharia, publicando, já em 1942, um ensaio intitulado “The use of vacuum tube devices in calculating” (O uso de válvulas eletrônicas a vácuo na computação), que se tornaria a base do relatório submetido pela Escola Moore ao Laboratório de Pesquisas em Balística, com o objetivo de conseguir um contrato para a sua efetiva construção. Em outras circunstâncias, provavelmente, as idéias de John Mauchly e J. Presper Eckert seriam rejeitadas como impraticáveis, simplesmente devido ao custo extremamente elevado para a construção do ENIAC. As válvulas eletrônicas a vácuo, inventadas em 1906 pelo físico norte- americano Lee De Forest (1873 – 1961), foram usadas até o início da guerra, quase que exclusivamente como amplificadores, quando então se percebeu seu grande potencial como chaveadores eletrônicos ultra-rápidos, podendo alcançar um milhão de operações liga-desliga por segundo. Assim, transformado em dispositivo de chaveamento binário, representava o “0” pela ausência de corrente na placa e o “1” por sua presença. As válvulas, sob uma perspectiva atual, eram altamente ineficientes: consumiam grande quantidade de energia para incandescer um filamento interno produzindo calor como efeito residual, ocupavam espaço demasiado e precisavam ser substituídas frequentemente. Ainda assim, o seu uso em substituição a componentes de chaveamento mecânico, como aqueles empregados no Analisador Diferencial de Vannevar Bush, foi um grande avanço, resultando em enorme ganho de velocidade. Em junho de 1942, o Departamento de Artilharia assinou um contrato com a Escola Moore de Engenharia Elétrica da Universidade da Pensilvânia, para o uso HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 356 of 487 exclusivo de seu Analisador Diferencial, maior e mais rápido que o do Laboratório de Pesquisas em Balística, para a produção de tabelas de trajetória. A equipe da Universidade da Pensilvânia encarregada deste contrato incluía os professores Weygand, John W. Mauchly e J. Presper Eckert que, visualizando a oportunidade de desenvolverem pesquisas em sua área de interesse, iniciaram um trabalho com o objetivo de encontrar novas soluções para resolver os problemas computacionais daquele órgão. Primeiramente providenciaram uma série de melhoramentos no Analisador Diferencial da Escola Moore para torná-lo mais rápido, substituindo o inseguro amplificador de torque por um dispositivo eletrônico mais confiável. Tais modificações, introduzindo dispositivos eletrônicos no lugar de mecânicos, tornaram o equipamento da Escola Moore mais rápido e confiável, mas ainda assim isto não foi suficiente para conseguir atender a demanda por novas tabelas de trajetória do Departamento de Artilharia, que continuavam a chegar em quantidades cada vez mais elevadas. Mulheres trabalhando nas máquinas de calcular da Escola Moore Com a crescente pressão, a necessidade de encontrar-se meios mais rápidos para executar os cálculos das tabelas de trajetória tornava-se cada vez mais urgente. O cálculo de uma trajetória poderia levar até 40 horas com o uso de uma calculadora de mesa e cerca de 30 minutos com o único Analisador Diferencial da Escola Moore. Como cada tabela continha centenas de trajetórias, o cálculo de uma única delas podia levar vários dias. Sob estas circunstâncias, Mauchly preparou um relatório no qual apresentava suas idéias para a construção de um computador eletrônico digital, argumentando que este equipamento poderia efetuar 1000 operações de multiplicação por segundo, tornando possível o cálculo das tabelas de trajetórias em questão de minutos ao invés de dias. Herman H. Goldstine (1913 – 2004), doutor em matemática pela Universidade de Chicago e tenente do Laboratório de Pesquisas em Balística, encarregado de supervisionar o contrato inicial com a Universidade da Pensilvânia, animou-se com as previsões de Mauchly e Eckert e com a perspectiva de ter uma máquina que pudesse eliminar as constantes pendências no cálculo das tabelas de balística. Uma vez convencido, assumiu a tarefa de viabilizar um novo contrato entre a Escola Moore e o Departamento de Artilharia com o objetivo de financiar o projeto de um computador eletrônico, mil vezes mais rápido que qualquer outra máquina existente. Entretanto, de posse do relatório de Mauchly, Goldstine considerou que tal projeto mais se aproximava de uma história de ficção científica HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 357 of 487 e, para tornar sua posição de patrocinador ainda mais desconfortável, ele tinha a exata noção de que seria necessário gastar centenas de milhares de dólares para provar que aquelas idéias, dos dois engenheiros de respectivamente 35 e 23 anos de idade, estavam corretas. Aquele empreendimento, certamente iria consumir várias dezenas de vezes o orçamento de US$ 6.500 utilizado para o desenvolvimento do ABC de Atanasoff e Berry. Além de todos os fatores de risco e da elevada pressão a que estavam submetidos, somava-se ainda a opinião contrária da maioria dos engenheiros elétricos da época, que acreditavam que tais idéias nunca funcionariam. Apesar do cenário hostil, os dois jovens engenheiros da Escola Moore, aspirantes a inventores do computador, e o matemático tenente, investido no papel de defensor e patrocinador do projeto, resolveram levar suas idéias a diante. Em 09 de abril de 1943, em reunião na qual participaram o superior de Goldstine, Coronel Leslie Simon, diretor do Laboratório de Pesquisas em Balística, e Oswald Veblen, presidente do Instituto de Estudos Avançados de Princeton e um dos principais encorajadores da pesquisa matemática com fins militares, Goldstine, Mauchly e Eckert apresentaram um audacioso plano para a construção da máquina mais complexa do mundo. Segundo Goldstine, era enorme o risco associado ao projeto do computador eletrônico, mas o momento vivido pelo Departamento de Guerra dos Estados Unidos apresentava-se como uma oportunidade que tornaria inevitável o desfecho da questão, como registrado por suas próprias palavras: (35) […] nós devemos perceber que a máquina em questão conterá mais de 17.000 válvulas de 16 tipos diferentes, operando a uma frequência básica de 100.000 pulsos por segundo… a cada 10 microssegundos poderá ocorrer um erro se apenas uma das 17.000 válvulas funcionar incorretamente; isto significa que em um simples segundo existem 1,7 bilhões de chances de ocorrer uma falha… O homem jamais construiu um instrumento capaz de operar com este grau de precisão e confiabilidade, e este é o motivo pelo qual este empreendimento apresenta, ao mesmo tempo, tão elevado risco e tamanha realização. […] Após estar ouvindo por pouco tempo a minha apresentação, enquanto balançava sua cadeira apoiada apenas nas pernas traseiras, Veblen derrubou-‐a barulhentamente, levantou-‐se e disse: -‐ Simon, dê o dinheiroa Goldstine. Assim, em 05 de junho de 1943, foi assinado um novo contrato, sob o codinome de Projeto PX, no valor de aproximadamente US$500 mil, em valores históricos, para que fosse realizado o desenvolvimento e a construção de um computador e integrador numérico eletrônico – o ENIAC. HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 358 of 487 A equipe formada para esta empreitada seria supervisionada pelo Professor Brainard, com Eckert como engenheiro chefe e Mauchly como principal consultor. Mais tarde, em 1944, John von Neumann (1903-1957) integrou-se à equipe que já estava construindo o ENIAC. Curiosamente, esta nova adesão deveu-se à casualidade de von Neumann ter conhecido Herman Goldstine numa plataforma de trens no verão daquele ano, iniciando assim uma amizade que perduraria até o final de sua vida. Sob o ponto de vista de Goldstine, este matemático notável e uma das personalidades mais respeitadas e solicitadas de sua época, seria um apoio providencial para reduzir os riscos inerentes ao projeto de tamanha envergadura. Por seu lado, após obter algumas informações de seu novo amigo, von Neumann interessou-se em participar do projeto, no que foi prontamente atendido. A contrução do ENIAC O ENIAC (Eletronic Numerical Integrator Analyzer and Computer), equipamento projetado por Eckert e Mauchly era, literalmente, uma máquina de grande porte. Quando totalmente pronto, ocupava uma sala inteira na Universidade da Pensilvânia, medindo cerca de 3 metros de altura e 30 toneladas de peso, consumia em torno de 200 kilowatts de potência, e, em função do calor gerado, exigia para sua operação uma sala especialmente dotada com um sistema de ventilação forçada. Conta-se que a primeira vez que foi ligado, o ENIAC consumiu tanta energia que as luzes da cidade da Filadélfia piscaram. Composto por quase 18.000 válvulas eletrônicas a vácuo, 6.000 chaves elétricas, 1.500 relés, 10.000 capacitores, 70.000 resistores, milhares de indutores e cerca de 88 quilômetros de fio, usados em aproximadamente 500.000 conexões, o ENIAC tinha todos estes seus componentes acondicionados em 42 painéis montados sobre estruturas metálicas com 2,75m de altura, 60 cm de largura e 30cm de profundidade cada um. Arrumados na disposição de um “U”, estes painéis ocupavam 25 m de comprimento e uma área construída de 180 m². O ENIAC possuía ainda três gabinetes de controle sobre rodas que podiam ser movidos pela sala e, para a entrada e saída de dados, utilizava uma leitora de cartões perfurados e uma perfuradora, fornecidos pela IBM (International Business Machines). HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 359 of 487 O ENIAC na Universidade da Pensilvânia, em 1946. O ENIAC, capaz de realizar 5.000 adições por segundo, era constituído por oito circuitos que implementavam suas funções básicas: acumuladores, circuito de inicialização, circuito para programação mestra, circuito de multiplicação, circuito de divisão e raiz quadrada, dois circuitos lógicos nomeados de “gate” e “buffer”, e por último, um circuito para armazenamento das tabelas de funções. O acumulador tinha a função de uma unidade aritmética básica, sendo constituído por vinte registradores de dez dígitos cada. Sua função consistia na realização das operações de adição, subtração e armazenamento temporário. Um acumulador poderia ser comparado aos registradores das atuais Unidades Centrais de Processamento (CPU – Central Processing Unit). As informações trafegavam pelo ENIAC, indo de um acumulador ao outro e, à medida que cada acumulador terminava seus cálculos, o resultado obtido era comunicado ao acumulador seguinte, manualmente, através da conexão de cabos pelos técnicos que o operavam. Os circuitos de inicialização executavam algumas tarefas especiais, incluindo ligar e desligar o equipamento, apagar todos os seus registradores (reset) e iniciar os processos de cálculo. Os circuitos de programação mestra controlavam a execução dos programas e permitia alterá-los. Os circuitos de multiplicação e de divisão e raiz quadrada, para executarem estas operações específicas, trabalhavam em conjunto com as funções de adição, subtração e armazenamento temporário do circuito acumulador. O circuito lógico gate implementava o operador lógico “AND” (saída positiva se todas as entradas fossem positivas) e o circuito lógico buffer implementava o operador lógico “OR” (saída positiva se alguma das entradas fosse positiva). As tabelas de funções eram usadas como auxílio à programação, armazenando variáveis e funções, mas não podiam ser alteradas durante a execução de um programa.(20) A preparação de um novo programa. A tarefa de programar o ENIAC, que não possuía um sistema operacional, era quase que inteiramente realizada por meio da comutação de mil chaves elétricas e da conexão de inúmeros cabos, como nas antigas centrais telefônicas. A falta de flexibilidade para a execução de tarefas diferentes representava o gargalo operacional do ENIAC e, de certa forma, podemos atribuir em parte a origem deste problema ao próprio contrato da Escola Moore com o Departamento HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 360 of 487 de Artilharia, que claramente previa a construção de um dispositivo específico para o cálculo de trajetórias, e não uma máquina de uso genérico. Apesar de toda a dificuldade operacional presente no esforço necessário à alteração de sua programação, para cada problema específico a ser tratado, o que tornava seu uso tedioso e comprometia seu aproveitamento, o ENIAC, uma vez preparado, podia computar as trajetórias balísticas em trinta segundos, enquanto os mesmos cálculos precisavam de 15 a 30 minutos para serem executados pelo Analisador Diferencial, e de vinte a quarenta horas por um matemático equipado apenas com uma calculadora de mesa. Outro inconveniente era motivado pela inexistência de mecanismos eficientes para a depuração de erros de programação que, quando detectados, deviam ser seguidos passo-a-passo, executando-se uma instrução de cada vez. Para permitir este tipo de procedimento, criou-se um painel com uma chave que interrompia ou habilitava a execução da próxima instrução, comparando-se então o resultado de cada passo do programa com o resultado obtido manualmente. Este artifício foi utilizado em diversos equipamentos até meados da década de 1980. Por último, existia ainda o efeito colateral da baixa confiabilidade das válvulas eletrônicas, que queimavam com elevada frequência. Este problema determinava a completa paralisação do equipamento, ou pelo menos um ritmo mais lento de processamento, para que os reparos pudessem ser efetivados. O ENIAC em manutenção A construção do ENIAC foi completada somente após o término da Segunda Guerra Mundial, em novembro de 1945, e oficialmente inaugurado em 15 de fevereiro de 1946, data que para muitos historiadores corresponde ao marco do início da Era da Informação. Uma de suas primeiras aplicações foi na resolução de problemas ligados ao controle da energia nuclear para o Projeto Manhattan. Durante cerca de um ano, ainda na Universidade da Pensilvânia, foi empregado no cálculo de trajetórias balísticas para o Departamento de Artilharia, na solução de problemas ligados à previsão de condições atmosféricas, no estudo de raios cósmicos para a astronomia e em projetos de túneis de vento. Em janeiro de 1947, o ENIAC começou a ser desmontado sendo então enviado para Aberdeen, onde reiniciou sua operação sete meses mais tarde, no Laboratório de Pesquisas em Balística. A grande quantidade de componentes e, principalmente, a dificuldade de programação tornaram bastante árduoo trabalho da equipe técnica encarregada de remontá-lo. HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 361 of 487 Em 1948, sob a supervisão de John von Neumann, foram implementadas algumas modificações em seu projeto para torná-lo um computador com programas armazenados internamente. Esta alteração reduziu significativamente a quantidade de trabalho manual com a religação de cabos, necessário à execução de cada novo programa. Outras melhorias foram sendo introduzidas gradualmente nos anos seguintes e, com o uso de novos dispositivos eletrônicos, já em 1952, sua velocidade de processamento chegou à marca de oitenta por cento superior à sua performance inicial. No ano seguinte, em 1953, foi instalada pela empresa Burroughs uma unidade de memória magnética, formada por núcleos de ferrite, com capacidade de armazenamento de 100 dígitos, permitindo o processamento de uma maior quantidade de informações e de forma centralizada. Anteriormente, o único dispositivo de armazenamento temporário do ENIAC residia no acumulador, limitando, devido ao seu diminuto porte, os tipos de problemas em que o ENIAC poderia ser empregado. Entretanto, o conceito de memória indexada e de acesso aleatório, diretamente associado à capacidade de armazenamento interno dos programas, não chegou a ser implementado, nem tampouco em seu sucessor – o EDVAC (Electronic Discrete Variable Computer), o segundo computador de grande porte construído na Escola Moore, em 1951. Somente no projeto do EDSAC (Electronic Delay Storage Automatic Calculator), desenvolvido pelo físico e matemático inglês Maurice Wilkes (1913 - ) da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, este conceito tornou-se realidade. (309) Após o término da Segunda Grande Guerra, o ENIAC foi utilizado por inúmeros físicos e matemáticos de todas as partes dos Estados Unidos. Como este era o único computador de grande porte disponível nos Estados Unidos, sendo em sua época o maior computador de todo o mundo, capaz de calcular muito rapidamente as equações apresentadas por cada usuário, depois da adequada programação, travava-se uma verdadeira disputa pelo seu tempo de uso. Mas, conforme já mencionado, reprogramá-lo para tarefas diferentes, em geral, levava dias. Isto somado às constantes paradas para substituição das válvulas queimadas e outros tipos de reparos, faziam com que sua disponibilidade de uso fosse de apenas 50%, o que na prática, dobrava o seu custo de operação. O avanço da tecnologia logo resolveria os problemas técnicos do ENIAC, tornando-o obsoleto e economicamente e inviável, sendo por fim desativado no dia 2 de outubro de 1955, após de quase dez anos de operação. Desmontado, suas peças foram distribuídas por vários museus, incluindo o Smithsonian, em Washington D.C., e a Escola Moore, local de sua construção na Universidade da Pensilvânia, onde encontram-se em exposição. HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 21/01/2014 Page 362 of 487 A herança proporcionada pelo ENIAC propagou-se muito além da linhagem de equipamentos experimentais surgidos a partir de sua concepção (EDVAC, EDSAC, SEAC, ILLIAC, Whirlwind e MANIAC) e do UNIVAC, o computador comercial construído mais tarde por Mauchly e Eckert, em sua própria empresa, a Electronic Controls Company (ECC). Podemos considerar também como influência dessa herança, o interesse despertado em outras empresas privadas norte- americanas pelo mercado de computadores eletrônicos digitais, como a IBM, que lançaria o modelo 701 em 1952, e pela Engineering Research Associates (ERA), que um ano antes havia introduzido o modelo ERA 1103.
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