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Pensando a Sociedade Brasileira antes da Sociologia Cientí�ca AUTORIA Ma. Solange Santos de Araujo Me. Josimar Priori Esp. Fúlvio Branco Godinho de Castro Ma. Daiany Cris Silva Interessados em realizar um estudo histórico sobre a realidade do Brasil, literatos criaram obras que retratam a sociedade brasileira de maneira signi�cativa, e, embora não houvesse, como grande objetivo, o desenvolvimento de uma ciência sociológica propriamente dita nesse momento, suas leituras são importantes para o pensamento social do nosso país. Os autores considerados como referências desse processo de criação literária são: Joaquim Nabuco, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e autor de “O abolicionismo” (1883); o autor Euclides da Cunha, criador da obra pré-modernista “Os sertões” (1902); o político e escritor Rui Barbosa, responsável por colaborar na redação de documentos importantes para a sociedade brasileira, como a Constituição de 1891. No entanto, destacamos aqui, como principal representante desse movimento de pensamento social brasileiro, apenas o engenheiro militar Euclides da Cunha (1866- 1909), que produziu a obra que retrata a sociedade de maneira mais relevante. Na função de jornalista, Euclides da Cunha foi enviado para o interior da Bahia para relatar a Guerra de Canudos, e, por meio dessa experiência, surgiu a sua maior contribuição à Sociologia brasileira da época, o livro “Os sertões”. Em “Os sertões”, o escritor narra os acontecimentos da sangrenta Guerra de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro (1830-1897), que ocorreu no interior da Bahia, durante os anos de 1896 e 1897. Com base em seus conhecimentos de ciência e física naturais, Euclides da Cunha faz relatos sobre a terra e a paisagem de Canudos e, principalmente, descreve a população resistente do sertão nordestino. A obra refere-se a esse povo da seguinte forma: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” (CUNHA, 2010, p. 94). Em sua escrita, Euclides da Cunha fazia revelações a respeito da organização da República, que se consolidava naquele período no Brasil e que, segundo o autor, mostrava-se incapaz de suprir as necessidades básicas de seu povo, feito que Antônio Conselheiro buscava atingir em sua comunidade de Canudos, assim como Cunha descreve: [...] abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, es�apados sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, rememorado pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna (CUNHA, 2010, p. 132). O governo federal republicano buscou destruir a comunidade de Canudos por acreditar que aquele seria um movimento de rebelião ao estado. Após dois fracassos em tombar Canudos, na terceira tentativa, reuniu exércitos de vários estados do Brasil, promoveu um grande massacre em prol da República e destruiu a comunidade de Canudos. Embora seja considerada uma obra literária, “Os sertões” de Euclides da Cunha, ao fazer grandes revelações sobre a sociedade brasileira, colocou-se como uma obra referencial, um marco do início da consolidação de um pensamento social brasileiro. A obra de Euclides da Cunha e as suas contribuições para a Sociologia brasileira evidenciam que a literatura é um elemento importante para a análise da formação cultural e da conjuntura política do Brasil. Muitos outros movimentos intelectuais de literatos brasileiros cumpriram um papel parecido ao de Euclides da Cunha, segundo Florestan Fernandes, “[...] a contribuição de Mário de Andrade ao folclore brasileiro até hoje não foi convenientemente estudada” (FERNANDES, 1958, p. 309). A obra “Macunaíma”, publicada em 1928, por exemplo, conta a história de um herói sem nenhum caráter, como diria a sinopse do livro, e reúne elementos folclóricos e questões emergentes da sociedade brasileira da época. Obras literárias como “Macunaíma” e “Os sertões” cooperam para o entendimento dos movimentos populares da sociedade brasileira e demonstram as características políticas e estruturais de poder, os condicionantes de formação cultural e os elementos de desigualdade social. Seguida do movimento de literatos que buscavam pensar a sociedade brasileira, a segunda fase de implantação da Sociologia no Brasil se caracterizou por aderir a uma das principais perspectivas metodológicas da Sociologia, a pesquisa de campo. Segundo Ianni (2000), os intelectuais desse período estavam preocupados com a questão nacional e se empenharam em descrever detalhadamente o processo de formação da sociedade brasileira, a constituição de estado e a construção cultural. Para os intelectuais desse período: “[...] o Brasil é um país marcado pela ‘vocação’ agrária, cuja economia, política, sociedade e cultura enraízam-se na agropecuária e mineração” (IANNI, 2000, p. 70). Dentre os vários autores que compõem esse período, podemos destacar Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Elegemos esses dois pensadores, porque estes desenvolveram dois conceitos importantes para a formação da Sociologia brasileira: o primeiro formula o conceito de democracia racial, e o segundo, o conceito da cordialidade, como uma característica da população brasileira. Gilberto Freyre (1900-1987) foi um dos principais autores pós-1930, precursor do pensamento social brasileiro com seu livro “Casa-grande & senzala”, escrito em 1933. Nessa obra, Freyre busca demonstrar as características da colonização portuguesa, a formação da sociedade agrária, o uso da mão de obra escravizada e a miscigenação, como a mistura de três raças (portugueses, indígenas e negros) colaborou para compor a sociedade brasileira, ou seja, as relações entre casa-grande, senhores de engenho/colonizadores e senzala (pessoas escravizadas). O conceito de democracia racial é desenvolvido por Freyre (1975) em “Casa-grande & senzala”. Segundo o autor, havia, no Brasil, uma convivência harmônica entre essas três raças, motivada pela miscigenação, que, sob sua perspectiva, ocorreu de maneira pací�ca. Claramente, caro(a) estudante, na atualidade, com o desenvolvimento dos estudos das relações étnico-raciais, sabemos que o processo de miscigenação não foi tão pací�co e harmonioso, mas devemos considerar o contexto em que Freyre escreveu e as suas perspectivas teóricas, pois o conceito de democracia racial seria um contraponto à teoria evolucionista que hierarquizava, de forma inferiorizada, a população negra. Freyre (1975) concebeu sua obra na década de 1930, período de transição entre a sociedade escravocrata para a capitalista, momento em que o Brasil iniciava o seu processo de industrialização. Além disso, deve-se considerar que Freyre foi �lho de uma família escravocrata, ele pertencia à casa-grande, e é sob essa perspectiva que ele escreve a contribuição do negro na cultura brasileira: Foi o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro de sua melhor alegria. O português, já em si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se fala: calado, descon�ado, quase um doente em sua tristeza. Seu contato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada do negro é que quebrou toda essa “apagada e vil tristeza” em que foi abafando a vida nas casas- grandes. Ele deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, os cavalos marinhos, os carnavais, as festas de Reis. [...] Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro da casa, nos tanques de bater roupas, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá de ioiôs brancos – os negros trabalhavam cantando: seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira (FREYRE, 1975, p. 462-463).Percebe-se a visão um tanto romantizada das relações entre a casa-grande e a senzala concebida por Freyre, no entanto, essa perspectiva contribuiu para que sua obra constituísse um posicionamento combativo à ideia de que a miscigenação seria a causa da formação de uma população pouco desenvolvida. Nesse sentido, o autor contrapunha os ideais teóricos evolucionistas à produção dos antropólogos brasileiros Oliveira Vianna (1883-1951), autor de “Populações meridionais do Brasil” de 1922, e Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), responsável pela obra “Os africanos no Brasil”, escrita entre 1890 e 1905. Ambos os autores foram entusiastas de teorias eugenistas, que visavam à puri�cação das raças no branqueamento da população, por acreditar na inferioridade dos povos africanos. Portanto, na obra de Freyre (1975), valorizam-se as características dos povos negro, indígena e miscigenado. O autor atribui à mistura de raças uma característica positiva para cultura brasileira. Sobre isso, ele diz: “[...] todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.” (FREYRE, 1975, p. 283). O fato de todo e qualquer brasileiro possuir um traço miscigenado, para o autor, faria com que houvesse uma maior identi�cação entre pessoas de diferentes características de cor, não precedida de preconceito racial. Freyre (1975) considera, ainda, que, em razão dos �lhos dos senhores de engenho terem sido amamentados e cuidados por mulheres escravizadas, constituiria-se, assim, uma lembrança carinhosa sobre o povo da África. Sob essa perspectiva, Gilberto Freyre buscou elaborar uma nova percepção sobre a construção da sociedade brasileira. O intuito do autor foi demonstrar a construção harmoniosa e pací�ca na união entre os portugueses, os negros e os índios, fortalecendo a ideia de que a miscigenação atribuiu riqueza para formação da cultura brasileira. No que se refere ao outro autor referencial desse período, o historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), sua colaboração também foi signi�cativa para a consolidação do pensamento sociológico brasileiro. Sob a in�uência da teoria de Max Weber, o autor publica, em 1936, o livro “Raízes do Brasil”. Nessa obra, aspectos centrais da história da cultura brasileira são abordados. No capítulo principal, o capítulo 5, intitulado “O homem cordial”, em que o autor conceitua a cordialidade brasileira, retrata-se o papel que o brasileiro exerce na esfera, por meio da cordialidade, pautando suas ações na afetividade. O conceito de homem cordial é uma mobilização da construção metodológica de um tipo ideal, desenvolvida por Weber. De acordo com a teoria de Sérgio Buarque de Holanda (1995), o brasileiro, à mesma medida que possui uma generosidade genuína, possui perversão, fazendo com que ele seja passional e tome decisões à luz da emoção. Diante disso, Holanda a�rma que: A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. Em particular nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus (HOLANDA, 1995, p. 182). A presença de valores religiosos, como a generosidade e a ajuda ao próximo, pode explicar essa cordialidade do brasileiro. No entanto, segundo Holanda (1995), a cordialidade endossa os equívocos que a sociedade brasileira instituiu entre as esferas pública e privada, o que deu origem ao que conhecemos popularmente como “jeitinho brasileiro”, ato de buscar vantagens individuais em âmbito público por meio do tratamento pessoalizado. As negociações e os atalhos determinados pelas relações interpessoais que in�uenciam as decisões públicas são entendidos, em termos sociológicos, como patrimonialismo. Compreender as in�uências do patrimonialismo nas relações sociais da população brasileira expressa mais uma marca do pensamento weberiano na obra de Holanda (1995), dado que esse conceito é uma criação de Weber para explicar os mecanismos de poder e de dominação econômica, baseados na concepção de patrimônio, em que o público e o privado se confundem ou, até mesmo, tornam-se indistintos. O patrimonialismo se expressa em relações de trabalho nas quais os trabalhadores são expostos a situações de senhorio e nepotismo nas indicações políticas, ao clientelismo, ao “voto de cabresto” durante períodos eleitorais, entre outras problemáticas ainda muito presentes na sociedade brasileira da atualidade. “Raízes do Brasil” é uma obra em que Sérgio Buarque de Holanda (1995) denuncia as problemáticas da formação cultural do brasileiro, por meio de uma sistematização metodológica clássica das ciências sociais. A análise de Gilberto Freyre possui, também, uma boa orientação metodológica, principalmente, no que se refere a correntes de pensamento como o culturalismo antropológico.
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