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90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012) A o completar noventa anos de existência, o Museu Histórico Nacional (MHN) se vê inserido na dinâmica do mundo moderno, afinado com as demandas do seu tempo. O desafio da produção e divulgação do passado em diferentes suportes, como as exposições e as publicações, nos impulsiona a estabelecer diálogos cada vez mais amplos e constantes com a sociedade, de um modo geral, e as instituições de cultura, ensino e pesquisa, mais especificamente. O Seminário Internacional é um dos principais espaços de realização desses diálogos. Com edição anual, sempre em outubro, momento em que o MHN comemora seu aniversário de inauguração, reúne professores, pesquisadores, técnicos, profissionais das mais diversas áreas do conhecimento, estudantes e público geral para apresentação de trabalhos, debates e reflexões sobre diversos assuntos, desde os ligados à história e à museologia até os mais específicos, relacionados a alguma data comemorativa. O evento de 2012 não poderia deixar de ser dedicado aos noventa anos de criação do MHN, por um longo tempo também chamado Casa do Brasil. Realizado entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, o Seminário Internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012) não se dedicou apenas à análise da trajetória institucional do museu. Conforme mostra a organização do livro e o programa do evento a que o leitor terá acesso nesta publicação, houve a preocupação em abordar o momento histórico no qual o MHN foi criado, as iniciativas que antecederam e sucederam à sua criação em ações pioneiras, como a preservação do patrimônio – com a Inspetoria de Monumentos Nacionais, entre 1934 e 1937 –, bem como as que significaram uma continuidade de iniciativas pioneiras do MHN – como a Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), oriunda do Curso de Museus criado no MHN em 1932.” 90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012) Organizadores: ALINE MONTENEGRO MAGALHÃES RAFAEL ZAMORANO BEZERRA Colaboradores: ANGELA DE CASTRO GOMES RUTH LEVY CESAR ORNELLAS JOSÉ NEVES BITTENCOURT VERA LÚCIA BOTTREL TOSTES ADLER HOMERO FONSECA DE CASTRO SUELY MORAES CERAVOLO RODRIGO CANTARELLI ALINE MONTENEGRO LETÍCIA JULIÃO LEILA BIANCHI AGUIAR MÁRCIA CHUVA CÊÇA GUIMARAENS IVAN COELHO DE SÁ BRUNO BRULON LUCIANA MENEZES DE CARVALHO HENRIQUE DE VASCONCELOS CRUZ A marca “Livros do Museu His- tórico Nacional” surgiu na oca- sião das comemorações dos 80 anos de fundação do MHN. A produção editorial da Instituição sempre foi elevada e referên- cia nos estudos sobre História, Museologia e Patrimônio. Nes- te sentido, a edição anual dos Anais do Museu Histórico Na- cional, o lançamento dos Livros dos Seminários Internacionais e a intensificação da publicação de catálogos e obras sobre o acervo, bem como o livro que ora apresentamos ao público leitor, vêm manter a tradição editorial do MHN como local de produção e divulgação do conhecimento científico. Sem alterar a tradição de qualidade de conteúdo dos livros e peri- ódicos lançados pela Institui- ção, a marca “Livros do Museu Histórico Nacional” representa uma interface de comunicação da Instituição com a sociedade. Vera Lúcia Bottrel Tostes Diretora do MHN 9 0 A N O S D O M U S EU H IS TÓ R IC O N A C IO N A L em debate (1 9 2 2 -2 0 1 2 ) 90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012) MUSEU HISTÓRICO NACIONAL RIO DE JANEIRO | 2014 90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012) Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministra da Cultura Marta Suplicy Instituto Brasileiro de Museus Presidente Angelo Oswaldo de Araújo Santos Museu Histórico Nacional Diretora Vera Lúcia Bottrel Tostes Livros do Museu Histórico Nacional Editor Vera Lúcia Bottrel Tostes 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012) Organização Aline Montenegro Magalhães Rafael Zamorano Bezerra Revisão Fernanda Maria Santos Silveira e Cristina Loureiro de Sá Diagramação Avellar e Duarte Serviços Culturais Produção Editorial Avellar e Duarte Serviços Culturais M188 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate / organização: Aline Montenegro Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra – Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2014. 272 p. : il.; 22,5 cm. – (Livros do Museu Histórico Nacional) Livro baseado no Seminário Internacional: 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012), de 01 a 03 de outubro de 2012. ISBN: 978-85-85822-20-0 1. Museus. 2. Memória. 3. Patrimônio. 4. Coleções. 5. Museologia. I. Título. II. Magalhães, Aline Montenegro. III. Bezerra, Rafael Zamorano. IV. Série. CDD 069 As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico Nacional. É permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins não comerciais. 90 ANOS DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL em debate (1922-2012) Sumário APRESENTAÇÃO Apresentação Vera Lúcia Bottrel Tostes página 7 Os museus e a modernização: o lugar dos seminários internacionais do MHN Aline Montenegro Magalhães e Rafael Zamorano Bezerra página 10 VISÕES SOBRE 1922 O contexto historiográfico de criação do Museu Histórico Nacional: cientificidade e patriotismo na narrativa da história nacional Angela de Castro Gomes página 14 O Rio e a Exposição do Centenário Ruth Levy página 31 Evocações sobre o Morro do Castelo: de berço da cidade a obstáculo ao progresso Cesar Augusto Ornellas Ramos página 49 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL – HISTÓRIA, ACERVO Fazendo história em um museu de história – Noventa anos de aquisição e interpretação no Museu Histórico Nacional José Neves Bittencourt página 72 O Museu Histórico Nacional e seu conjunto arquitetônico: preservação e resgate Vera Lúcia Bottrel Tostes página 95 O poder político vem do cano de uma arma Adler Homero Fonseca de Castro página 109 MUSEUS E PATRIMÔNIO A Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais do estado da Bahia: do discurso à ação (1927- 1938) Suely Moares Ceravolo página 122 Um prelúdio pernambucano: a inspetoria de monumentos entre 1928 e 1930 Rodrigo Cantarelli página 143 De objetos de notável valor a monumentos históricos: a letra e a ação preservacionista da Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934-1937) Aline Montenegro Magalhães página 157 Museus e a preservação do patrimônio no Brasil Letícia Julião página 173 Projetos nacionais de preservação do patrimônio: promoção, divulgação e turismo nos sítios urbanos patrimonializados durante a gestão de Rodrigo Mello Franco de Andrade Leila Bianchi Aguiar página 187 Para descolonizar museus e patrimônio: refletindo sobre a preservação cultural no Brasil Márcia Chuva página 195 DO CURSO DE MUSEUS À ESCOLA DE MUSEOLOGIA – 80 ANOS Institucionalização das práticas museológicas: oitenta anos do Curso de Museus Ivan Coelho de Sá página 221 ANEXO Programa do Seminário Internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922- 2012) página 262 Cultura e diversidade: patrimônio e museus na urbs contemporânea Cêça Guimaraens página 209 O nascimento da Museologia: confluências e tendências do campo museológico no Brasil Bruno Brulon Soares, Luciana Menezes de Carvalho e Henrique de Vasconcelos Cruz página 242 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 99 APRESENTAÇÃO Apresentação Vera Lúcia Bottrel Tostes* Ao completar noventa anos de existência, o Museu Histórico Nacional (MHN) se vê inserido na dinâmica do mundo moderno, afinado com as demandas do seu tempo. O desafio da produção e divulgação do passado em diferentes suportes, como as exposições e as publicações, nos impulsiona a estabelecer diálogos cada vez mais amplos e constantes com a sociedade, de um modo geral, e as instituições de cultura, ensino epesquisa, mais especificamente. O Seminário Internacional é um dos principais espaços de realização desses diálogos. Com edição anual, sempre em outubro, momento em que o MHN comemora seu aniversário de inauguração, reúne professores, pesquisadores, técnicos, profissionais das mais diversas áreas do conhecimento, estudantes e público geral para apresentação de trabalhos, debates e reflexões sobre diversos assuntos, desde os ligados à história e à museologia até os mais específicos, relacionados a alguma data comemorativa. O evento de 2012 não poderia deixar de ser dedicado aos noventa anos de criação do MHN, por um longo tempo também chamado Casa do Brasil. Realizado entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, o Seminário Internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012) não se dedicou apenas à análise da trajetória institucional do museu. Conforme mostra a organização do livro e o programa do evento a que o leitor terá acesso nesta publicação, houve a preocupação em abordar o momento histórico no qual * Museóloga. Diretora do Museu Histórico Nacional. Professora da Escola de Museolgia da Unirio. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL1010 o MHN foi criado, as iniciativas que antecederam e sucederam à sua criação em ações pioneiras, como a preservação do patrimônio – com a Inspetoria de Monumentos Nacionais, entre 1934 e 1937 –, bem como as que significaram uma continuidade de iniciativas pioneiras do MHN – como a Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), oriunda do Curso de Museus criado no MHN em 1932. Nessa perspectiva, o presente livro foi organizado em dossiês temáticos que procuraram acompanhar o curso de realização do seminário. Em Visões sobre o ano de 1922 apresentamos o artigo da conferência de abertura proferida por Angela de Castro Gomes sobre o contexto historiográfico desse momento. Sendo o MHN um lugar de escrita de história, nada mais enriquecedor do que contrapor Gustavo Barroso, seu primeiro diretor, com os autores e as concepções de história do tempo de sua criação. Em seguida, Ruth Levy assina um estudo sobre a Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, cujo conjunto arquitetônico sob o qual o MHN foi criado figurou entre os pavilhões, o das Grandes Indústrias. Cesar Augusto Ornellas Ramos, nas suas Evocações do Morro do Castelo..., analisa a história deste que, considerado o berço da cidade do Rio de Janeiro, após uma grande polêmica que teve lugar na imprensa, veio abaixo justamente em 1922. O dossiê Museu Histórico Nacional – história, acervo apresenta os artigos de José Neves Bittencourt, uma análise sobre os noventa anos de trajetória institucional, um texto de minha autoria sobre a preservação do conjunto arquitetônico que abriga o MHN, um estudo de Adler Homero Fonseca de Castro sobre nossa coleção de canhões. O seguinte trata do assunto Museus e patrimônio. Contém trabalhos de Suely Ceravolo sobre a Inspetoria de Monumentos da Bahia, e de Rodrigo Cantarelli a respeito da Inspetoria de Monumentos de Pernambuco – ambas criadas na década de 1920, em âmbito estadual, que só agora têm recebido atenção devida dos estudiosos. Em seguida, Aline Montenegro escreve sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais, analisando o descompasso entre sua legislação e sua ação. Letícia Julião aborda o papel dos museus na história da preservação do patrimônio nacional. Já no âmbito do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Leila Bianchi Aguiar analisa a relação entre a preservação do patrimônio cultural das cidades ditas “históricas” e o desenvolvimento do turismo, e Márcia Chuva propõe uma reflexão sobre a atribuição de valor aos objetos de museus, focando o Museu das Missões no Rio Grande do Sul como um estudo de caso. Fechando este dossiê temos o artigo de Cêça Guimaraens, uma análise sobre o papel dos museus no espaço urbano. Do Curso de Museus à Escola de Museologia é dedicado à análise do ensino da museologia no Brasil, iniciativa pioneira na América Latina, levada a cabo no Museu Histórico Nacional com MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 11 a criação do Curso de Museus em 1932. Voltado para formar profissionais especializados para o trabalho nos museus, os então chamados conservadores, o curso funcionou no MHN até 1979, quando foi transferido para a Universidade do Rio de Janeiro (Unirio),2 onde, até hoje, como Escola de Museologia, forma museólogos que atuam em diversas instituições no Brasil e no exterior. Neste último dossiê contamos com dois artigos que analisam a trajetória do Curso de Museus e suas transformações. Um de autoria do professor Ivan Coelho de Sá e outro dos autores Bruno Brulon, Luciana Menezes de Carvalho e Henrique de Vasconcelos Cruz. A todos que colaboraram com esta edição, em especial aos autores, o nosso agradecimento por enviarem generosamente seus estudos. Graças a essa contribuição é possível a leitura crítica dos noventa anos da trajetória do Museu Histórico Nacional e da história dos museus e da preservação do patrimônio no Brasil. Parabéns à Escola de Museologia pelos oitenta anos existência! Parabéns ao Museu Histórico Nacional pelos noventa anos de atividades ininterruptas. Que o dinamismo e a troca continuem sendo as marcas dessas duas instituições exemplares. A todos que nos leem, desejamos boas reflexões! 2 Atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL1212 Os museus e a modernização: o lugar dos seminários internacionais do MHN Aline Montenegro Magalhães* Rafael Zamorano Bezerra** Em uma época em que diversos museus tornaram-se centenários, ou próximos disso, fala-se muito sobre o papel a ser ocupado por essas instituições em um futuro próximo, marcado pelo advento das tecnologias de informação e pelas crescentes demandas por uma democracia mais participativa e plural, em termos sociais e étnicos. Comenta-se, especialmente, sobre a necessidade de modernização das instituições museológicas, a fim de adaptarem-se à realidade contemporânea. Nesse aspecto, duas imagens de modernização são recorrentes no campo museológico e vamos chamá-las aqui, improvisadamente, de “modernização tecnológica” e de “modernização política”. A “modernização tecnológica” pode ser pensada em dois aspectos. O primeiro diz respeito ao acesso à informação, que se torna mais eficiente na medida em que a tecnologia melhora e agiliza a produção e a recuperação de dados sobre o acervo museológico, a partir da indexação de temas e de periodizações, das catalogações, dos inventários e dos demais dispositivos de controle da ciência da informação. O segundo aspecto é o expográfico, em que exposições virtuais, recursos multimídia, aplicativos para smartphones, monitores touch screen nos circuitos expositivos e todas as inovações das primeiras décadas do século XXI são incorporados como recurso didático e interativo a fim de atrair público e aproximar a linguagem museográfica às novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). A sociedade contemporânea é marcada pela proliferação de dispositivos digitais, como jogos, tablets, mobiles, entre outros. Neste contexto, os museus poderiam ser um contraponto a esse modelo de sociedade: um lugar onde crianças e jovens pudessem desenvolver uma melhor noção do tempo * Historiadora e coordenadora da pesquisa no Museu Histórico Nacional. Doutora em História Social (PPGHIS/UFRJ). Professora na Universidade Estácio de Sá e pesquisadora associada do PROARQ/UFRJ. ** Historiador no Museu Histórico Nacional (MHN/Ibram). Doutor em História Social (PPGHIS/UFRJ). MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 13 OS MUSEUS E A MODERNIZAÇÃO: O LUGAR DOS SEMINÁRIOS INTERNACIONAIS DO MHN ao conhecer objetos estranhos ao seu cotidiano, outrora tão úteis como os dispositivos digitais atuais. O objeto antigo, nessa perspectiva, pode se tornar uma novidade, e os museus não devem ter receio de serem locais decoisas velhas. É conhecida, no meio museológico, a história de um jovem que, ao ver uma máquina de escrever, exclamou: “Nossa! Um computador que imprime ao mesmo tempo em que digitamos!” O contato com artefatos de outros tempos suscita curiosidade, instiga a imaginação e provoca questionamentos inocentes, como o do filho pequeno do historiador Marc Bloch que arguiu o pai sobre a utilidade da História, questão que foi o mote para suas clássicas reflexões sobre o ofício do historiador,1 ou as inquietações do personagem do filme do aclamado diretor alemão Werner Herzog, sobre a história de Kaspar Hauser, um adolescente do século XIX que cresceu num porão escuro sem nunca ter tido contato com outros homens, mas que ao ser “civilizado” fazia questionamentos inocentes e inquietantes, improváveis de serem elaborados por alguém enquadrado nos padrões de sociabilidade de sua época.2 Tais perguntas, passíveis de serem provocadas por meio dos objetos nas exposições, levam a crer que o espetáculo da tecnologia por si mesma não traz grandes avanços aos museus em termos expográficos. A “modernização tecnológica” nos parece ser mais útil quando é usada como ferramenta para a formulação de novas perguntas e para a ampliação do acesso à informação sobre o acervo, sua divulgação pública e gratuita para pesquisa, assim como para a melhora da qualidade e da agilidade nas consultas. Outra imagem é a “modernização política” e diz respeito às transformações no uso político dos museus, como espaços de consagração da memória e de produção de esquecimento. Trata-se de discursos museográficos visando ao “resgate”, à celebração ou à rememoração das memórias que foram oprimidas, esquecidas ou apagadas no jogo político da dominação, no qual a produção de memórias é uma das principais estratégias de poder. Os museus sempre tiveram um papel fundamental nas ideologias políticas, na construção das identidades nacionais e no sentimento de pertencimento a uma história, sociedade, comunidade ou nação. Os tradicionais museus nacionais, como o MHN, serviram durante anos como templo da história-memória3 nacional, onde os grandes homens e suas realizações eram celebrados. A história-memória construída nesses museus vincula-se às elites nacionais e aos seus interesses, deixando grande parte da população e suas manifestações culturais fora do cânone estabelecido pelas elites. É claramente um museu suscetível ao uso político e ideológico. 1 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. 2 O ENIGMA de Kaspar Hauser [título em alemão: Jeder für sich und Gott gegen alle]. Direção Werner Herzog. Produção: Henning Von Gierke. Intérpretes: Bruno Schleinstein, Walter Ladengast e outros. Roteiro: Werner Herzog, Jakob Wassermann. Alemanha: 1974. DVD. 3 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto história. Revista do programa de estudos de Pós-graduação em História e do Departamento de História. São Paulo, n.10, p. 7-29, 1981. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL14 ALINE MONTENEGRO MAGALHÃES E RAFAEL ZAMORANO BEZERRA A contraproposta a esse museu, que se revela em algumas ocasiões em processos que estamos chamando aqui de “modernização política”, inverte o jogo, porém usa a mesma estratégia. Nele, o elemento minoritário e historicamente excluído do cânone é representado em objetos díspares e ordinários, que remetem ao homem comum, o chamado “povo”. Embora essas propostas apresentem um caráter democratizante da memória, uma vez que incorporam segmentos marginalizados da memória nacional, estão sujeitas às oscilações políticas, características do revezamento de poder das democracias. A construção de qualquer identidade pressupõe um processo de exclusão e inclusão. Os espaços ideais para tais construções são as festas e feiras populares, práticas musicais e esportivas, rituais religiosos etc., em suma, as manifestações culturais mais espontâneas e orgânicas e, portanto, menos suscetíveis às influências políticas dos grupos de poder, como ocorre nas instituições públicas de memória. Por isso, consideramos que os museus, principalmente os museus nacionais, como o Museu Histórico Nacional ou o Museu Nacional de Belas Artes, deveriam se distanciar das responsabilidades de serem os “representantes da diversidade cultural brasileira”, “guardiães da memória nacional” ou os “representantes da nossa identidade”, como se afirma enfaticamente. Em outras palavras, os museus devem se distanciar do papel de serem lugares de construção de memória e identidade, para se tornarem espaços privilegiados para o estudo da construção e transformação dos “lugares de memória” e das identidades nacionais. Assim, as funções básicas de um museu (preservação, comunicação e pesquisa) , deveriam ser orientadas por objetivos muito claros, baseadas em linhas de pesquisa, com suas escolhas divulgadas e problematizadas em ações educativas, artigos acadêmicos publicados em periódicos etc. Assim, os museus atuariam na promoção de um pensamento crítico sobre os processos de construção de identidade, memória e esquecimento, cujo caminho seria orientado, de acordo com seu acervo, historicidade e público- alvo, assumindo assim o caráter de laboratório da história,4 constituindo-se em locais de produção e reflexão crítica, e não somente espaços de celebração e afirmação de identidades. Claramente, o trabalho de pesquisa seria primordial. Não somente a pesquisa aplicada, voltada ao levantamento de dados e à autenticação de acervo. Essa pesquisa é fundamental e necessária. Porém, acreditamos que a pesquisa científica e acadêmica deveria ter um espaço estratégico na atividade museológica. Apesar de várias ciências terem se desenvolvido nos museus, como a mineralogia, a botânica, a antropologia, a arqueologia e a própria museologia, ao longo dos anos as pesquisas científica e acadêmica foram esvaziadas da grande maioria dos museus, que aos poucos foram sendo deslegitimados como lugares de produção de conhecimento, papel assumido atualmente por universidades, centros de 4 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 2, n. 1, p. 9-42, 1994 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101- 47141994000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19. mar. 2014. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 15 OS MUSEUS E A MODERNIZAÇÃO: O LUGAR DOS SEMINÁRIOS INTERNACIONAIS DO MHN pesquisa e museus ligados à área de ciência, tecnologia e inovação. Isso se estrutura no próprio planejamento da gestão pública de vários museus federais, que, vinculados ao Ministério da Cultura, não são enquadrados, tampouco reconhecidos, como instituições de ciência e tecnologia. Ao se posicionarem apenas como instituições de representação de identidades, entretenimento e turismo, os museus acabam por se tornar instituições mais políticas do que científicas, portanto mais suscetíveis às disputas e às pressões por representação e memória, que se tornam aspectos limitadores nas políticas de aquisição de acervo, nas pesquisas e nos projetos educativos e de exposição. Assim, consideramos que o que chamamos aqui de “modernização tecnológica” e de “modernização política” deveriam ser baseadas no fortalecimento da pesquisa aplicada, científica e acadêmica, promovendo uma rede entre as atividades do chamado “tripé museológico”. Ou seja, os museus deveriam ter linhas de pesquisa vinculadas às políticas de aquisição de acervos e aos programas educativos e de exposições, tornando a instituição museológica uma interface entre o conhecimento técnico, científico e escolar e a sociedade. Um museu nacional, por exemplo, poderia, em vez, de se propor a representar o nacional, ser um espaço de reflexão e pesquisa sobre as representações da nação ao longo dos anos, não pensando nelas como algo essencial, mas sim como algo negociado, inventado, disputado e construídodia após dia. Linhas de pesquisa também poderiam ser criadas a partir das características tipológicas e semânticas dos objetos em coleções, atualizando os tradicionais estudos de cultura material, como a heráldica, a numismática e a ourivesaria, disciplinas fundamentais à classificação e identificação de determinados artefatos. Isso não implica o retorno à museologia tradicional, voltada ao estudo das coleções e dos objetos, mas uma retomada de tais conhecimentos, buscando neles as técnicas necessárias a um trabalho mais objetivo e mais bem embasado das coleções. Esses processos de modernização deveriam incluir publicações científicas e de divulgação, no formato de anais, revistas ou jornais, com avaliação científica baseadas em sistemas de arbitragem por pares e indexadas nas bases nacionais e internacionais de divulgação científica. Esse trabalho de produção e divulgação daria lastro ao caráter científico dos museus e aos estudos de suas coleções, sendo as publicações umas das interfaces entre os museus, as universidades e os centros de pesquisa. Portanto, o seminário internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922- 2012), e a publicação dos artigos relativos aos temas apresentados no evento, constituem espaços nos quais as propostas de modernização baseadas em pesquisas científicas e acadêmicas se mostram viáveis por possibilitarem a reunião de trabalhos especializados sobre as práticas preservacionistas e museológicas a partir da celebração dos 90 anos de existência do MHN. Ou seja, a experiência desse seminário mostra a viabilidade de se usar uma data comemorativa para promover a produção, a troca e a divulgação do conhecimento. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL16 VISÕES SOBRE 1922 O contexto historiográfico de criação do Museu Histórico Nacional: cientificidade e patriotismo na narrativa da história nacional Angela de Castro Gomes* Inicio agradecendo o honroso convite a mim dirigido pelo Museu Histórico Nacional (MHN), em data tão significativa, atribuindo-o à admiração e ao carinho que tenho pela instituição, o que espero ter demonstrado em eventos anteriores, sempre enriquecedores. Certamente, contrariando as expectativas do público, inicio declarando que as reflexões que se seguirão querem ser modestas, mas honestas. Por isso, não pretendo trazer nada de propriamente novo, e muito menos fazer qualquer incursão sobre a história desse prestigioso museu, uma vez que estaria ensinando missa ao vigário. Dessa forma, é bom começar explicando que tais considerações têm como ponto de partida uma preliminar que precisa ficar clara para resguardar as escolhas da conferencista. Essa preliminar diz respeito ao desafio contido em um convite para se falar sobre o ano de 1922, uma vez que ele é considerado o momento de “início” da história do MHN. De fato, tal ano já se consolidou em nossa memória histórica como uma data simbólica dos processos de transformação pelos quais passava o Brasil, após três décadas de República. O ano de 1922 é, antes de tudo, lembrado como o das comemorações do Centenário da Independência, que, para ser devidamente assinalado, envolveu mais uma das grandes reformas urbanas que a capital federal vivenciou no século XX. Desenhado o cenário, a grandiosidade do evento repercutiu em todo o país e também no exterior como um marco da nacionalidade que afirmava sua grandeza econômica e cultural, e não apenas suas belezas naturais. É a esse monumental acontecimento, e não por acaso, que estão ligadas diversas iniciativas políticas – públicas e privadas – de teor memorial, como o retorno dos restos mortais do imperador Pedro II, ainda em 1921; as grandes festas promovidas em São Paulo em torno do Museu Paulista ou do Ypiranga, que assume sua face histórica; a própria criação do * Professora Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre e doutora pelo Iuperj. Pesquisadora 1A do CNPq. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 17 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL Museu Histórico Nacional; e também a abertura do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, outra instituição voltada para a história pátria. Tudo isso, além de outras festividades ocorridas nos estados, ainda pouco contempladas pelas pesquisas acadêmicas, ao contrário das aqui citadas. Mas 1922 foi igualmente o ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, cujos desdobramentos são duradouros e decisivos para a cultura brasileira, embora não tenham sido tão imediatos. O movimento modernista, que foi plural e não só paulista, articulava-se a uma série experimentações culturais, em especial vivenciadas no Rio de Janeiro, ainda que com outros formatos e diapasão. Unindo essa multiplicidade de propostas modernizadoras e como uma questão comum o desejo de transformar a sociedade e a cultura brasileiras mediante estratégias que podiam ser: ou mais nacionalistas ou mais internacionalistas; ou mais ligadas às vanguardas estéticas da época ou mais inclinadas a um diálogo com a tradição do país, o que evidenciava a variedade de projetos modernistas existentes e sua competição por espaço no campo político e cultural. Se não bastasse, 1922 foi também o ano da fundação do Partido Comunista do Brasil, o PCB, que não tinha então nem organização nem condição de produzir maior impacto na vida política, sendo lembrado, nessa enumeração, muito mais em função de uma visão teleológica de sua própria história, ou talvez da história do anticomunismo no Brasil, ambas responsáveis por profundas marcas na cultura política republicana do século XX. Ainda no campo político, o ano de 1922 e os seguintes assinalaram a irrupção de inúmeros movimentos de propaganda nacionalista, bem como de rebeldia política, civil e militar, entre os quais o maior destaque é o chamando movimento tenentista, que teve papel central na eclosão da Revolução de 1930 e nos acontecimentos do imediato pós-1930. Nesse caso, de modo amplo e geral, essas são mobilizações que criticam duramente a face política da experiência Primeira República, cada vez mais considerada fracassada, não só em sua prática (a violência nas eleições, o voto de cabresto, as fraudes no reconhecimento dos eleitos), como principalmente em seus princípios, já que o liberalismo, cada vez mais identificado com o federalismo, via-se atacado e desacreditado. Além disso, a década de 1920 é assinalada pela organização da Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1924, que deu suporte institucional às ideias da Escola Nova, outro movimento de caráter político-cultural que queria modernizar o país por meio de um instrumental sólido e seguro: a educação de seu povo, a começar pela da “infância”. Os anos 1920 são igualmente os da menos lembrada, porém não menos importante, reforma da Constituição, ocorrida em 1926, que apontava para uma tendência de fortalecimento da União perante os estados, já que evidenciava a realização de ajustes ao modelo de liberalismo e federalismo adotado pela Constituição de 1891. A essa altura está absolutamente claro que seria uma temeridade e quase inutilidade insistir em um tipo de exposição com tal objetivo, pela dimensão e pela profundidade que exigiria. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL18 ANGELA DE CASTRO GOMES Assim, tal percurso foi realizado como preliminar para se chegar a uma observação de fundo. A de que é no contexto dos anos 1920 – marcado por esse grande conjunto de eventos que luta pela modernização do país e, ao mesmo tempo, vai realizando efetivamente essa modernização –, que a Primeira República começa a “envelhecer”. Ou seja, quero destacar essa dupla direção do processo de mudança político-social que se vivia, combinando projetos de modernização em vários campos – política constitucional, movimentos sociais, artes plásticas, literatura, educação, ciência etc. – e, não paradoxalmente, pela mesma razão, fortalecendo o diagnóstico de que a Primeira República estava não só comprometida, precisandose reformar ou “se republicanizar”, como estava igualmente ultrapassada em seus princípios e arquitetura. Por essa última avaliação, tornava-se uma república indesejada, e, por tal motivo, outro modelo devia ser articulado e experimentado como seu reverso. No caso, um modelo antiliberal e de teor crescentemente autoritário. Quer dizer, o que os anos 1920 trazem de distinto, considerando-se as críticas que a Primeira República vinha recebendo há décadas, é que, para boa parte dos políticos e intelectuais, não se tratava mais de pensá-la na ótica de um “horizonte de expectativas” liberal, capaz de se aperfeiçoar; mas sim de um novo horizonte que se devia abrir, segundo os novos parâmetros que circulavam internacionalmente, dando a ver outro tipo de futuro para os projetos de modernização do Brasil. Como se sabe, nesses momentos da história, dependendo do futuro imaginado, os atores do presente que por ele lutam olham para o passado com lentes diferentes, dependendo dos objetivos que querem alcançar, ou seja, do grau e do tipo de mudanças que desejam implementar. Por isso, podem colocar-se como herdeiros de suas tradições, respeitando e valorando seu legado; ou podem apresentar-se como uma ruptura, como um ponto zero, que precisa se separar desse passado, até mesmo negando-o radicalmente, em qualquer dimensão de positividade. Foi nesse tempo de extrema riqueza de produção de ideias e da crença em sua realização, foi nessa ambiência sociocultural que abrigava novas iniciativas de construção de futuros e de passados que o MHN foi criado. Um tempo de possibilidades e de incertezas políticas, evidenciado pelos embates que passam a recorrer às armas e não apenas às palavras. É certamente devido aos avanços dessa perspectiva historiográfica, que acentua a ebulição e indeterminação dessa década, valorando a experiência dos atores políticos, que os anos da Primeira República vêm passando por uma espécie de revival. Dessa forma multiplicam-se o número de historiadores e cientistas sociais que se dedicam a estudar seus diferentes aspectos, assinalando a riqueza do período. Nesse amplo e novo conjunto de trabalhos, observa-se que a Primeira República tem sido retomada em uma chave distinta daquela que a consagrou como uma república “velha”. Cada vez mais procura- se desnaturalizar esse “adjetivo”, que data justamente dos anos 1920, consagrando-se no Estado Novo. Nomear fatos, personagens etc. nada tem de ingênuo, comportando classificações repletas MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 19 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL de juízos de valor, como a antropologia de Levi Strauss e a história dos conceitos de Koselleck nos advertem. Por isso, essa nova literatura destaca a historicidade desse vocabulário, as batalhas de memória que ele evidencia, refletindo sobre as razões de sua duração e de seu deslizamento do campo da luta político-ideológica dos anos 1920/1940 para os livros acadêmicos e escolares das décadas de 1950 e seguintes. Para além do enfrentamento dessa questão, tais estudos investem no universo de debates e de movimentos políticos, sociais e culturais então ocorridos para demonstrar a riqueza de possibilidades que se abria aos múltiplos projetos existentes, apontando para a dimensão da participação política e não mais se atendo apenas ao espaço da representação política, mesmo considerando-se seus limites. Enfim, a Primeira República, com destaque os anos 1920, é um campo fértil e aberto a pesquisas, não podendo ficar aprisionada pela expressão República Velha. O que os trabalhos mais recentes também ressaltam é que havia entre eles, ao menos, um ponto em comum. As circunstâncias eram as do pós-Primeira Guerra Mundial e Revolução Russa, como fatos conhecidos e consumados. Naquela época, nenhum intelectual duvidava de que o mundo se transformara radicalmente, e que nunca mais seria o mesmo. Os modelos políticos conhecidos estavam abalados; os nacionalismos, alguns radicais e xenófobos, na ordem do dia; e as demandas pela extensão de direitos políticos e sociais crescendo, e anunciando a realidade do que então se chamava sociedade de massas. Os tempos eram de crise, e categorias como decadência e atraso passavam a circular no vocabulário político internacional e nacional de modo intenso. Tempos de crise são tempos de modernização nos quadros mentais e políticos de um país, praticamente impelidos a imaginar projetos de futuro. Pelo mesmo motivo, tempos de crise são tempos de incursões ao passado. No caso do Brasil, vale lembrar que a virada do século XIX para o XX fora marcada pela abolição da escravatura e pela instalação do regime republicano, que exigiram a criação (ou recriação) de uma história e memória nacionais, segundo os parâmetros de uma cultura política republicana, que tinha de investir em novos símbolos, rituais, festas e heróis nacionais para sua legitimação. A Primeira República e os anos 1920, com as comemorações do Centenário da Independência, são, assim, um período estratégico para a conformação de uma escrita da história no e do Brasil, bem como para a delimitação do perfil do historiador, o que só poderia acontecer por meio de debates e disputas sobre o que é e para que “serve” a História, como modo de conhecimento das sociedades. Foi em razão dessa longa preliminar e das duas questões anteriormente mencionadas, que minha opção foi fugir dos anos 1920 e me deslocar para as décadas anteriores, situando alguns debates que demarcam uma história da história do Brasil e que, a meu ver, conectam-se diretamente com o clima cultural e historiográfico de criação do MHN. Um museu que devia ser, por definição, uma instituição cultural destinada a narrar a história da nação brasileira, e só poderia fazê-lo em MUSEU HISTÓRICO NACIONAL20 ANGELA DE CASTRO GOMES articulação com os parâmetros do que se entendia e praticava como saber disciplinar de sua época. Assim, escolhi autores e textos que me propiciassem situar o que se dizia nesse campo de fronteiras ainda tão fluidas sobre o status e o valor do conhecimento histórico, relacionando-o com a temática da educação, em especial por meio de uma literatura voltada para um público mais amplo, no qual se destacam as crianças. Começo, portanto, com uma questão central para os historiadores do fim do século XIX e da primeira metade do XX: a da cientificidade e “utilidade” da História.1 * Considerando o caráter disciplinar da História, arduamente construído a partir do século XVIII (para alguns estudiosos) e vitorioso no século XIX (para todos os historiadores), a primeira parte de meu percurso ressalta alguns parâmetros no interior dos quais a cientificidade dessa disciplina foi sendo pensada no Brasil republicano, no contexto de suas primeiras décadas. Para isso recorro aos discursos ocorridos à sombra da instituição de consagração dos historiadores desde meados do século XIX: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Mais precisamente, à contribuição apresentada pelo jurista e historiador Pedro Lessa, quando aceito como sócio, pois ela tem algumas características preciosas para os fins de minha reflexão. O trabalho que Lessa apresentou tinha como título “Reflexões sobre o conceito da História” e, segundo nota que o precedeu no número da Revista do IHGB que o publicou em 1908, já aparecera “alhures”. A intenção da Comissão de Redação que o examinara era permitir sua leitura “aos que não puderam ainda apreciar as esclarecidas considerações sobre o conceito de História e aos que desejarem de pronto relê-las.”2 Na verdade, esse ensaio fora produzido para outra situação. Na capa do folheto que o divulgara isoladamente tinha outro título – “É a História uma ciência?” –, seguido do esclarecimento: “O estudo reproduzido nesse opúsculo foi escrito e publicado como introdução à História da civilização na Inglaterra, de Buckle, traduzida para o vernáculo pelo Sr. AdolfoJ. A. Melchert.”3 Quer dizer, por motivos pessoais, embora membro do IHGB desde 1901, só foi possível a Pedro Lessa tomar posse em 10 de junho de 1907. Na oportunidade, o mineiro, 1 Esse texto foi escrito para ser lido como uma conferência, beneficiando-se, em especial nessa parte, do livro: GOMES, A. C. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009 (segunda impressão). 2 O texto está publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 69, v. 114, 1906, p. 193-285 (publicado em 1908). O discurso de posse de Pedro Lessa está na RHIGB, t. 70, v. 116, 1907, p. 716-22 (publicado em 1908). 3 Trata-se de uma edição de 108 páginas, feita pela Tipografia da Casa Eclética, situada na Rua Direita, n. 6, em São Paulo, no ano de 1900, o mesmo das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento. O opúsculo consultado por mim está na Biblioteca Nacional, e foi dedicado, pelo autor, ao Dr. José Carlos Rodrigues, proprietário da coleção comprada por Benedito Ottoni. Contudo, não consegui consultar o livro traduzido de Henry Thomas Buckle. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 21 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL nascido na cidade do Serro em 1859, encontrava-se em plena fase de consagração intelectual e política. Naquele mesmo ano, fora nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e três anos depois entraria para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Algo que chama a atenção nesse texto é a sugestiva alteração de seu título, realizada pelo IHGB, naturalmente com conhecimento do autor. Em lugar de uma pergunta direta sobre a cientificidade da história, algumas reflexões sobre seu conceito. Para mim, a razão para tal mudança, que certamente foi bem pensada, está no tipo de resposta dada por Lessa à questão título. Ela também explicaria o tipo de leitura do famoso livro de Buckle, recém-traduzido para o português, o que certamente lhe deu muito mais visibilidade, retirando-o de um circuito de iniciados na língua inglesa.4 O ensaio publicado na Revista do IHGB tem 90 páginas e foi muito elogiado por sua erudição. Possui 162 notas de rodapé e muitos são os autores e livros citados. Entre os autores, figuram nomes de historiadores como Langlois e Seignobos, do Introduction aux études historiques,5 Michelet, Fustel de Coulanges, Mommsen e Oliveira Martins (mas não Ranke); e também nomes de “filósofos e pensadores” como Schopenhauer, Maquiavel, Montesquieu, Stuart Mill, Taine, entre outros.6 Como o texto foi escrito por volta de 1900, ano de sua primeira publicação, o discurso realizado no IHGB em 1907 reafirma suas ideias principais sobre o que era a história e qual deveria ser o trabalho do historiador “moderno”. Começando pelo fim e antecipando a resposta de Pedro Lessa à questão-chave - “É a história uma ciência?”-, verifica-se que ela é negativa: a história não era, e talvez nunca se tornasse uma ciência. Portanto, o autor discordava das intenções e das respostas de Buckle, que acreditava ser possível tornar a história uma ciência, considerando-a fundada em uma doutrina na qual a natureza tinha grande centralidade. A resposta negativa de Lessa, que o leitor encontra apenas no final do texto, só ganha sentido quando se entende o que o autor “define” por ciência e por história, naturalmente em diálogo com as concepções de seu tempo. 4 Sobre Buckle e também sobre a recepção da Introdução de Pedro Lessa ao livro traduzido para o português, ver ALVES, João Luiz. O conceito de história para Pedro Lessa, A Manhã, suplemento Autores e Livros, Ano IV, 23/07/1944, p. 56. Trata-se de um texto “resenha”, no qual o autor acompanha cada parte da monografia de Lessa. O jornal também indica que foi pronunciado como Discurso Acadêmico na ABL, v. 5. 5 Chales-Victor Langlois era um medievalista e Charles Seignobos um modernista, sendo que ambos escreveram para a famosa coleção, coordenada por Ernest Lavisse, Histoire de France. Essa coleção, bem como o livro mencionado, são marcos reconhecidos da chamada Escola metódica ou histórica, de forma frequente e equivocada, conhecida também como “positivista”. No livro Introduction aux études historiques, Hachette, cuja primeira edição é de 1898, os autores procuram definir o método da disciplina histórica, conforme a Escola metódica ou histórica. Essa escola dominou a historiografia francesa e influenciou a historiografia, internacionalmente, até os anos 1930, quando da emergência da Escola dos Annales. Uma de suas características foi o reconhecimento da contribuição dos historiadores alemães, entre os quais Mommsen, citado e elogiado por Pedro Lessa em seu ensaio, escrito logo depois do lançamento dos Études. 6 Em quase todos os casos, Pedro Lessa menciona o nome do autor e do livro sem qualquer outra referência; algumas vezes, contudo, indica a página de uma citação. No caso das citações de Buckle, ele as faz de uma tradução de Baillot, sobre a qual não fornece maiores indicações. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL22 ANGELA DE CASTRO GOMES O século XIX era considerado, já no início do XX, como de grande importância intelectual, tanto pelos avanços das ciências naturais como pelos avanços das ciências sociais e da história. Essas últimas, inclusive, não mais poderiam ignorar os conhecimentos estabelecidos pelas primeiras nem se abster de trabalhar com os métodos científicos da “observação e da comparação”, dessa feita voltados para os “acontecimentos humanos”. Fica assim explícita a importância da contribuição das ciências naturais, bem como seu impacto no compartilhamento de uma concepção de ciência vigente no mundo europeu dos séculos XVI ao XIX, aproximadamente, que postula que o mundo físico e também o social são regulados por leis ou, como aparece na nomenclatura de Pedro Lessa, por “relações constantes”. Uma concepção de ciência, vale lembrar, presente em diversos “cientificismos” que circulavam internacionalmente, e com os quais o “pensamento social brasileiro”, ao menos até as décadas de 1920/1930, precisou dialogar continuamente, quer aderindo a eles em alguns aspectos quer negando-os, mais ou menos radicalmente. Posto isso, é interessante examinar os tipos de reflexões que Lessa tece sobre o que entende serem as relações da história com as ciências sociais e, em especial, com a sociologia, considerada “a ciência social geral”, capaz de construir “relações constantes”.7 Vê-se então que, para ele, a história deveria concentrar sua aspiração na tarefa de “conhecer a sociedade”, o que só era possível trabalhando-se com duas séries de processos lógicos (os indutivos e os dedutivos), examinando-se e comparando-se “fatos singulares”, mediante o uso de “documentos”. Essa era, por excelência, a missão da história. O modo pelo qual se conectava com as ciências sociais, também voltadas para o conhecimento das sociedades, era muito particular, pois o ideal das ciências sociais era outro e bem distinto: produzir generalizações, investigando o presente, não o passado. Buscando definir o que era a história, distinguindo-a da sociologia, Lessa igualmente ressaltava que ela não devia ser confundida com a “filosofia da história”, já que esta também buscava – embora de maneira distinta – estabelecer princípios gerais sobre as sociedades no tempo. Ou seja, Pedro Lessa, desejando identificar e delimitar o que fazia a história, segundo os “modernos parâmetros” científicos de seu tempo, que eram os da nascente escola metódica francesa, nega cientificidade a esse tipo de “conhecimento do social”, na medida em que não lhe seria possível estabelecer “leis” ou mesmo “relações constantes”. Dito de outra maneira, para Lessa, como a história trabalhava com acontecimentos que não se repetiam, que eram complexos e possuíam causas múltiplas, ela não permitia o traçado de generalizações e, nesse sentido preciso, justamente para afirmar a necessidade de um método específico para a história, ele optava pornegar sua cientificidade, segundo o paradigma da época. 7 A sociologia se relacionaria com as ciências sociais especiais, como a antropologia e a economia, por exemplo, do mesmo modo que a biologia se relacionava com a botânica e a zoologia, no caso das ciências naturais, segundo Pedro Lessa. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 23 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL Certamente com tal conclusão, o ensaio de Pedro Lessa suscitou aplausos e discordâncias, dentro e fora do IHGB, que perduraram durante a década de 1900. É o que se constata pelo discurso de recepção, proferido por Clóvis Beviláqua, outro grande nome do Direito brasileiro, quando da entrada de Lessa na ABL, exatamente em 1910.8 Nesse sentido, é importante remarcar que Beviláqua também era sócio do IHGB, desde 1906, portanto quando Pedro Lessa foi aceito pela sociedade de discurso que então reconhecia e consagrava aqueles que eram identificados como historiadores. Nela, inclusive, ele percorre uma trajetória – sócio correspondente, honorário, benemérito –, até se tornar, em 1943, grande sócio benemérito. Quem recebe Pedro Lessa, por conseguinte, é alguém com atributos de mesmo tipo e de mesma e pública qualidade. Fazendo o elogio ao jornalista, político e magistrado, caracterizado como possuidor de uma posição “empirista” em relação ao Direito, Beviláqua reserva uma parte de sua saudação para comentar as concepções de Lessa sobre a questão da cientificidade da história. Considerando duas variáveis – o passar do tempo e o que entende como um “tom dubitativo” da conclusão do ensaio de 1900 –, ele expressa sua crença de que Lessa pudesse ter alterado sua maneira de pensar, reconsiderando sua recusa de cientificidade à história. Em dez anos, as ideias, que se não petrificam na intransigência do sectarismo, podem sofrer modificações, e vós fechastes o trabalho de então, como quem não considera o caso irrevogavelmente julgado [...]. [...] Dissestes que “a História coleciona e dispõe, metodicamente, os materiais, em cuja observação e comparação haurem suas induções ciências diversas. O método descritivo, aplicado pelo historiador, é um excelente instrumento”, acrescentastes, “para a aquisição de verdades gerais da Sociologia e seus ramos especiais”. [...] Este pensamento é justo [...]. Mas, se assim é, forçoso se faz reconhecer que o historiador, para apanhar a verdadeira expressão dos fatos e a sua natural filiação, tem de penetrar-lhes o âmago e descobrir as influências físicas, econômicas, étnicas, morais e até individuais, de cujo concurso resultaram. Não será um simples narrador [...]. E nessa tarefa, sem dúvida escabrosíssima, há os elementos de uma ciência, não de leis ou de noções, mas de fenômenos, que se expõem metodicamente, coordenados, segundo a relação da casualidade.9 Está aí, muito claramente, o desejo de afirmar um caráter científico para a história em novos parâmetros, que não eram mais o das “verdades gerais”, próprios às ciências sociais. Tal distinção, contudo, não tornava o historiador um “simples narrador”, já que o rigor do “método descritivo” que utilizava e a complexidade do objeto que enfrentava asseguravam à sua exposição metódica dos fenômenos sociais “os elementos de uma ciência”. Beviláqua, certamente reverberando debates 8 Clóvis Bevilácqua (1859-1944) era cearense e foi autor do anteprojeto do Código Civil Brasileiro em 1901 a convite do presidente Epitácio Pessoa. Atuou pouco na ABL, apesar de ter sido um de seus sócios fundadores, sendo seu discurso de recepção a Pedro Lessa considerado sua maior peça oratória nessa Casa. 9 Discurso de recepção de Clóvis Beviláqua, proferido em 6 de setembro de 1910. Em ABL, sessão do acadêmico Clóvis Beviláqua http:// www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8389&sid=179, acesso em: 10/06/2012. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL24 ANGELA DE CASTRO GOMES e demandas que eram travados em torno do estatuto científico da história como disciplina, fixava sua especificidade, tanto em face das ciências sociais como da literatura, pois a escrita da história, mesmo não produzindo leis, não era obra de ficção, ainda que recorresse à arte narrativa. Nesse sentido, embora acompanhando as reflexões de Lessa, chegava a uma conclusão distinta: a de que a história devia ser uma ciência. No Brasil dos anos 1910, pode-se aventar que os princípios da escola metódica já fossem mais conhecidos e compartilhados, o que absolutamente não implicava diminuição do prestígio de diversos cientificismos de matriz sociológica. Algo bem perceptível quando da entrada de Oliveira Vianna para o IHGB, em 1924. Credenciado pelo seu livro de estreia - Populações meridionais do Brasil, de 1920 -, esse autor colaborara para o Dicionário Histórico, elaborado pelo IHGB na passagem do Centenário da Independência, escrevendo o verbete sobre etnografia, e intitulando-o “o tipo étnico brasileiro”. O que me interessa em particular, nesse caso, é ressaltar de que modo um intelectual identificado com um modelo de ciência social “cientificista” está sendo recebido e consagrado como historiador. Seu discurso de posse é valioso, pois nele faz apreciações sobre o caráter científico da história, conectando-a com sua “utilidade” como saber ensinável.10 Nele, Vianna defende uma argumentação que afirma o caráter científico da história, situando sua especificidade e importância por sua vinculação com uma “missão pedagógica”. Seguindo seu vocabulário, a história tinha um “valor pragmático” bem singular que as demais ciências sociais não possuíam, o que era de extrema importância para os Estados nacionais. Distintamente de Pedro Lessa, Oliveira Vianna postulava que a “nova” história podia ser uma ciência, realizando generalizações, desde que adotasse procedimentos que garantissem a neutralidade e a objetividade do conhecimento, características das “modernas” ciências sociais. O sociólogo/historiador defendia, claramente, que, se a história desejasse alcançar o estatuto de “ciência moderna”, precisava buscar uma forte associação com a sociologia. O trabalho com os “testemunhos de arquivos”, como Viana dizia, precisava ser acrescido de “experiências complementares”, trazidas pelas ciências sociais, para que a história se tornasse científica, realmente. Uma proposta que, como se pode verificar, nem seguia as ponderações de Clóvis Beviláqua nem agradava historiadores, então muito respeitados, como Capistrano de Abreu. Este é incisivo em sua crítica à solução dada por Vianna à questão da cientificidade da história, quando, em carta ao amigo Lúcio de Azevedo, escreve: “A impressão deixada por seu primeiro escrito sobre as populações meridionais do Brasil é que conhece melhor Le Play que nossa terra.”11 10 Todas as referências são do discurso de posse Oliveira Vianna, Revista do IHGB, t. 96, v. 150, 1924. 11 ABREU, C. de. Correspondência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. Carta a João Lúcio de Azevedo, “São Lourenço, 7 de maio” (colocada entre as cartas de 1926), v. 2, p. 355. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 25 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL Contudo, essa demanda por cientificidade, segundo padrões sociológicos, não impediu que Vianna reconhecesse na história uma “bela arte narrativa” e que, por isso, identificasse nessa disciplina um “valor pragmático”, um teor educativo, muito especial e específico. Para Vianna, a história não “servia” apenas a um círculo “limitado, privativo, circunscrito e especializado” de pessoas, como a maioria das outras ciências sociais, inclusive a sociologia. Ela possuía um público muito mais amplo e diversificado, e só o “encantava” por seu poder de “arte de ficção”, ou seja, de narrativa literária. Na história, o estudo e a narrativa do passado não se faziam por mera curiosidade, comparável à das viagens ou dasmemórias. A história possuía um “alto valor pragmático” em duplo sentido. Em primeiro lugar, porque o conhecimento do passado é uma maneira de corrigir concepções acerca do presente, produzindo uma base segura para se projetar o futuro. No caso de países novos, como o Brasil, esse valor era fundamental, pois nossa história, diferentemente da dos países velhos, não trazia “lições de resignação”, mas sim “de entusiasmo”. Por isso a história interessa (e devia interessar) a todos os homens, tendo como “utilidade prática” a criação de “um sentimento de patriotismo” e de uma “consciência coletiva”, formados pela admiração despertada por um passado comum. Era pela história, particularmente se servindo da arte de narrar, que se aumentava o respeito nutrido por um povo por seus antepassados, e pelo patrimônio por eles legado, unindo-os através do tempo. A história, aproximando o passado do presente, impulsionava o futuro, tornando-se “uma maravilhosa escola de educação cívica”. Mas não era essa a única utilidade da história “moderna”. Justamente por ela possibilitar, como ciência objetiva, o conhecimento dos “elementos estruturais de um povo, as condições íntimas de seu viver, as particularidades fundamentais da sua mentalidade, da sua sensibilidade”, tornava-se essencial “à ação de todos que exercem uma função dirigente na sociedade, principalmente os que têm o encargo de direção política”.12 Portanto, se a evolução de um povo tem condicionantes fortíssimos, sendo “o papel reservado à ação da vontade consciente modestíssimo”, mais uma razão para potenciar os efeitos dessa ação pela ciência, o que tornava o “culto ao passado” um ponto de partida para a intervenção do homem na história. Oliveira Vianna não poderia ser mais claro ao demarcar os objetivos patrióticos da história em sua dimensão educativa, quer para o povo quer para as elites governantes. Portanto, em seu discurso, ele está compatibilizando uma concepção de história científica, segundo o modelo das novas ciências sociais, com uma concepção de história ensinável, cujo valor educativo e político, chamado por ele de pragmático, deixa evidente a função cívico-patriótica da disciplina. Sua narrativa não devia temer as artes da ficção, da boa literatura, já que era por meio da emoção 12 Ibidem, p. 450-1. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL26 ANGELA DE CASTRO GOMES que se criava uma comunidade nacional, composta dos que estão vivos, dos que já morreram e dos que ainda vão nascer, na fórmula conhecida do pensamento conservador. Por conseguinte, o cientificismo sociologizante de Oliveira Vianna não o impedia, muito ao contrário, de defender a importância do ensino da história, não só porque aí se radicava uma de suas especificidades como ciência social, como porque era a História uma das principais encarregadas da educação cívica do povo, isto é, da formação dos cidadãos e de seus dirigentes. Acompanhando-se os discursos de Pedro Lessa, Clóvis Beviláqua e Oliveira Vianna é possível ver como o debate sobre o estatuto de cientificidade da história era algo fundamental nas décadas do início do século XX, e como ele não pode ser separado das preocupações sobre a importância do conhecimento histórico para as sociedades “modernas”. Por isso, é fundamental atentar para a confluência existente no IHGB no reconhecimento da “função educativa” da disciplina, o que certamente já ocorria sob a Monarquia, mas ganhava contornos mais militantes com a República, uma vez que o novo regime reconhece o “povo” como interlocutor e ator da história. Nesse sentido, os autores, além de nos possibilitarem situar a diversidade de concepções de história que convivem no IHGB no início do século XX, evidenciam que tanto os que se orientavam por uma matriz que seguia, em tese, os procedimentos da escola metódica francesa, realizando uma escrita da história como memória da nação, como os que se pautavam por modelos cientificistas, conhecendo e se apropriando da literatura sociológica, confluíam ao afirmar o valor educativo da história como matéria a ser ensinada a todos. No caso dos que seguiam a matriz cientificista, apesar da diversidade que comporta, o que pode causar estranheza é o fato de ela, mesmo postulando determinismos (é certo que em graus variados) e valorizando os fenômenos naturais, objetivos e coletivos, defender uma “função pragmática” para a disciplina. Vale então lembrar que o paradigma cientificista raramente era imune à ação humana, pois se havia uma evolução da humanidade já traçada, seu ritmo ficava dependendo da intervenção dos grandes e sábios homens. Portanto, como Oliveira Vianna ilustra tão bem, o valor educativo da história era insubstituível quando a matéria era criar o amor à pátria, pelo conhecimento do passado, pela criação de uma “mentalidade” comum. Uma convergência, de um lado surpreendente, mas de outro compreensível, pois se pautava no que singularizava a história e a diferenciava das demais ciências sociais. Desse modo, no Brasil, como também ocorreu em outras experiências nacionais, houve uma convivência entre concepções diferenciadas de história que se orientavam pelos mais compartilhados paradigmas que dividiam e disputavam espaço durante toda a primeira metade do século XX. Mas, como igualmente ocorreu em outras experiências nacionais, esses paradigmas desembocavam em uma proposta de história ensinável interessada na construção de uma pátria MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 27 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL como comunidade de sentimentos, fundada no conhecimento de um passado comum, povoado por grandes homens e feitos, e habitado por um povo de muitas qualidades. Uma história com objetivos cívico-patrióticos que mobilizava a razão, mas principalmente as emoções, pois eram estas que tornariam o passado “vivo” (ressuscitado), construindo um vínculo afetivo e duradouro entre os cidadãos de uma nação republicana. * O período entre 1890 e 1920 pode assim ser considerado decisivo no que se refere ao estabelecimento das bases de uma historiografia no Brasil, quer pelo reconhecimento de métodos que caracterizam o ofício do historiador quer pela afirmação do “valor pragmático”, ou seja, cívico-patriótico da história. Esse é, portanto, um período estratégico na profissionalização dos praticantes da disciplina, o que se vinculou a preocupações com a rotinização de seus conteúdos “eruditos/científicos”, tendo-se em vista alcançar um amplo e diversificado público, adulto e infantil, por meio das mídias mais modernas, como os jornais, as revistas e os manuais escolares. Não é casual, assim, que também entre 1890 e 1920 o Brasil tenha assistido à conformação de uma literatura infantil, e que ela tenha se articulado fortemente aos projetos nacionalistas e modernizadores então vigentes. Ao longo dessas décadas, a educação foi entendida como um dos recursos mais poderosos para se produzir transformações sociais profundas e duradouras no país, em especial quando voltada para a “infância”, pois era nesse momento que os valores e as crenças dos futuros cidadãos republicanos seriam “moldados”. O livro e a leitura, bem como um conjunto de práticas e equipamentos culturais – como os museus, as exposições e as festas cívicas –, eram vetores estratégicos para o aprendizado de um nacionalismo republicano, que devia se traduzir em uma escrita da história de teor cívico- patriótico que narrava episódios, exaltava figuras históricas e divulgava costumes de grupos que compunham a nação brasileira. Em 1890, apenas um ano após a proclamação da república, dois livros são exemplares dessa tendência que somente faria crescer ao longo da primeira década do século XX, ganhando o mercado editorial e conquistando novos autores, que escreviam para crianças ou se preocupavam com as condições de seu aprendizado na escola e fora dela.13 Refiro-me ao famoso 13 Tenho total consciência das questões quecercam a difícil definição do que é literatura infantil e foram enfrentadas, por exemplo, pela Comissão Nacional de Literatura Infantil do MES, em 1936. Entretanto, para os objetivos deste texto, estou aproximando o gênero literatura infantil (aquele intencionalmente produzido para a criança, usando o critério da ficcionalidade) e os livros escolares, ou seja, os textos com explícitos objetivos didáticos e programáticos, considerando a época, o que é distinto do que hoje são os “livros didáticos”. Entendo que, entre 1890 e 1930, essas fronteiras eram fluidas, em especial quando se tratava de uma narrativa cívico-patriótica presente em manuais escolares de educação cívica; em livros de história do Brasil para os ensinos primário e secundário; e em “livros de histórias” com elementos maravilhosos e também intenções morais. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL28 ANGELA DE CASTRO GOMES texto de José Veríssimo, cuja segunda e mais conhecida edição é de 1906, A educação nacional, publicado pela editora Livraria Francisco Alves; e ao manual de Silvio Romero, prefaciado por João Ribeiro, A história do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis, da Livraria Alves e Cia. Minha intenção, aqui, é destacar o vínculo efetivo que uma espécie de pedagogia da nacionalidade estabelece com a construção de uma cultura política republicana, e como essa nova cultura política necessitava “imaginar” um passado, com destaque para um passado histórico nacional, que devia ser ensinado por meio de uma narrativa acessível que mobilizasse meios capazes de agradar a um amplo público, em especial o infantil. A dimensão pedagógica e patriótica dessa literatura era de grande importância, pois por intermédio dela eram conquistadas a aprovação do Estado – quando os livros eram adotados nas escolas – e também a do mercado, já que o público infantil despontava como um segmento consumidor de potencialidade. Com tais estímulos, ocorreu a especialização de editores e também de autores de literatura infantil, um gênero que devia apelar para a imaginação das crianças e transmitir valores morais, adequando-se aos programas escolares, se visasse alcançar esse mercado específico. No campo da literatura para crianças, seja nos “livros de literatura infantil” seja nos “livros escolares” (que podiam se confundir em um só), a incorporação de figuras e episódios históricos, aliada à construção de uma narrativa de moral cívico-patriótica, é uma constante. Algo que pode ser observado facilmente, a partir de alguns títulos, entre inúmeros exemplos que poderiam ser citados desde os anos 1890: Lições de História do Brasil, de 1895, do literato e folclorista Basílio Magalhães; Porque me ufano de meu país, do conde Afonso Celso, sócio do IHGB, de 1900; História do Brasil adaptada ao ensino primário e secundário, de João Ribeiro, de 1900; Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, de 1904, e Pátria brasileira, de 1909; Histórias de nossa terra, de Júlia Lopes de Almeida, de 1906; As nossas histórias, de 1907, e Os nossos brinquedos, sobre a temática do folclore, de Alexina de Magalhães Pinto, de 1908; Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, de 1910; Minha terra, minha gente, de Afrânio Peixoto, de 1915; A pátria brasileira, de Coelho Neto, de 1916; Nossa pátria: narração dos fatos da História do Brasil, através de sua evolução com muitas gravuras explicativas, de Rocha Pombo, de 1917; História do Brasil e Noções de História do Brasil, de Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino Nacional, de 1918; Contos da História do Brasil, de Viriato Corrêa, de 1921, e A filha da floresta, de Tales de Andrade, também de 1921. Todos esses livros, como os títulos deixam claro, podem ser classificados como manuais cívico-patrióticos, um tipo de literatura muito valorizada e utilizada nas escolas de vários países na primeira década do século XX. O patriotismo era, no vocabulário pedagógico e político da época, a palavra/sentimento que fazia com que a história se aproximasse da educação, mas com sua MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 29 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL especificidade, que era a de trabalhar “através do tempo”. Entretanto, se para muitos educadores a educação cívica não se confundia com a disciplina da história, ultrapassando-a, pois devia estar presente no ensino de todas as disciplinas, cabia à história um lugar muito especial na produção de um sentimento de amor à pátria, pois esse amor devia fundar-se fortemente no conhecimento e na valorização de um passado comum. A pátria não devia ser confundida com o Estado, nem mesmo com a nação e suas leis, em sua dimensão político-administrativa. A pátria era e devia ser entendida e sentida como uma comunidade afetiva, como uma entidade suprema e sagrada, objeto do respeito e do amor dos cidadãos, sobretudo dos cidadãos republicanos. No entanto, como Patrícia Hansen vem observando em seus estudos sobre Olavo Bilac, “ao contrário do que aparenta, a literatura cívico-patriótica da Primeira República não é um conjunto de textos ideologicamente homogêneo. A análise de uma de suas principais características, o ufanismo, presente em vários textos em maior ou menor grau, demonstra que não é sempre que o orgulho exacerbado da pátria oblitera a consciência das deficiências nacionais.”14 Segundo a autora, já haveria na Primeira República uma espécie de clivagem nessa literatura, havendo duas orientações em convivência: A primeira, excessivamente otimista, entendia que o futuro grandioso prospectado para o Brasil seria uma consequência óbvia da “pujança virtual” associada à grandeza territorial e às riquezas naturais do país. A outra, na qual se incluem os textos de Bilac, condicionava o futuro nacional a uma completa transformação mental, moral e até física, do homem brasileiro. Nesta perspectiva, era necessário executar uma ação de caráter pedagógico, que fizesse das crianças e jovens brasileiros, homens cientes dos problemas e obstáculos ao progresso do país e capazes de superá-los pelo adequado aproveitamento dos inegáveis recursos da terra pátria.15 É essa segunda variante que desejo destacar, porque acredito que ela era mais compartilhada do que se imagina, tendo ganhado força no pós-1930 e permanecido vigente após 1945. Nessa concepção, o orgulho exacerbado da pátria não era uma virtude, pois ele escondia os males ou deficiências nacionais, além de minimizar e até ignorar os sentimentos de convivência pacífica entre as nações, o que se tornou uma preocupação internacional após a Primeira Guerra Mundial, voltando a estar na ordem do dia no contexto da Segunda Guerra. Se a enumeração anterior foi longa e cansativa, ela cumpriu a tarefa de deixar evidente a sistemática produção dessa literatura cívico-patriótica e a importância de seus autores, muitos dos 14 HANSEN, P. S. Bilac e a literatura infantil: civismo e ideologia nos primeiros livros para crianças brasileiras, um dos resultados do Projeto de Pesquisa de Pós-Doutorado, Olavo Bilac, ideólogo do nacionalismo, financiado pela Faperj/Capes e desenvolvido no CPDOC/ FGV, 2010, mimeo. 15 Idem. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL30 ANGELA DE CASTRO GOMES quais grandes nomes da literatura para adultos, em prosa e verso. Os editores são um capítulo à parte e merecem reflexão cuidadosa, pois entre eles estão a Livraria Francisco Alves, a Livraria Castilho, de grande sucesso no mercado de livros para crianças, além da Editora Melhoramentos, com particular prestígio nos meios educacionais já nos anos 1920. Toda essa gama de atores do campo intelectual, sejam editores sejam autores que se dedicam à tarefa de escrever para um público amplo, nesse caso o público infantil, estão sendo aqui muito valorizados e entendidos como “mediadores culturais”. Trata-se, contudo, de utilizar essa categoria em sentido forte e sem qualquer conotação negativa ou pejorativa, afastando-se uma excessiva dicotomia entrea escrita dos historiadores “propriamente ditos” (identificados com o espaço do IHGB e, no pós-1930, com o das universidades), e a desses mediadores culturais. Eles costumam ser taxados como intelectuais “menores” pelo valor atribuído à sua produção, quer em termos de conteúdo, que seria simples e mesmo simplista, na chave do divertir e ensinar; quer por causa das mídias utilizadas, menos “nobres” que o livro, sendo efêmeras em grande parte, como é o caso dos periódicos e dos manuais escolares. Para reverter esse tipo de apreciação, muito consolidada, é bom ressaltar dois pontos. Em primeiro lugar, tais vetores culturais têm sido tratados pela literatura que trabalha com história do livro e da leitura e também com história de intelectuais como um dos meios mais seguros de se acessar formas de representações coletivas do passado, sendo assim entendidos como “vetores de memória”: como instrumentos estratégicos para se compreender a construção de memórias históricas nacionais. Em segundo lugar, os avanços da profissionalização e institucionalização da pesquisa histórica mantêm, no Brasil e no mundo, sólidas conexões com a preocupação da divulgação desse tipo de saber, podendo ou não estar encarnada no mesmo indivíduo (historiador e divulgador). Como diversos estudos de historiografia vêm assinalando, não há como se entender o processo de institucionalização e consolidação da disciplina sem relacioná-lo com as múltiplas estratégias de sua divulgação, em especial com aquelas voltadas para uma “pedagogia da nacionalidade”, que envolveria também as instituições museais e as práticas festivas, sobretudo as de teor cívico patriótico. Os vínculos entre essa escrita da história para um grande público e os projetos políticos de Estados nacionais são por demais óbvios para serem ignorados, mas nunca se deve considerar qualquer tipo de texto um mero instrumento de “manipulação político- ideológica”, minimizando a dinâmica dos processos de recepção cultural, ou deixando de considerar o grau de liberdade ou autoritarismo de governos, nessa área específica, em momentos históricos determinados. Os anos 1920, como se tem assinalado nos estudos de literatura infantil, são de inflexão nesse gênero em razão do aparecimento dos trabalhos de Monteiro Lobato, considerado um marco na renovação do que até então se escrevia para a infância. Sem absolutamente questionar o lugar MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 31 O CONTEXTO HISTORIOGRÁFICO DE CRIAÇÃO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL: CIENTIFICIDADE E PATRIOTISMO NA NARRATIVA DA HISTÓRIA NACIONAL desse autor, o que me interessa nessa incursão que relaciona historiografia, ensino de história e literatura para crianças é chamar a atenção para um dos pontos da crítica que Lobato desenvolve sobre o que até então se praticava, visando, entre outros objetivos, valorizar sua própria produção. Mas, ressalvo desde logo que ele não estava sozinho na elaboração de tais considerações, mas muito bem acompanhado e há muito tempo. Uma constatação que, pelo menos, evidencia que muitos literatos e educadores já vinham se dando conta das insuficiências dos livros destinados às crianças, sobretudo ante a importância da leitura realizada nesse momento da vida, reconhecida como decisiva por sua influência e duração. Em artigo de 1921,16 Lobato faz um diagnóstico que aponta para o fato de as crianças brasileiras aprenderem a ler na escola à força e em “livros horrorosos”, inclusive graficamente. Além disso, neles a infância era apresentada ao que chamava de uma “pátria pedagógica”, em estilo melodramático e ufanista que acabava por afastá-la da leitura e, acrescento eu seguindo a lógica de Lobato, do desejado amor à pátria. Em sua linguagem “o didatismo cívico” da literatura infantil existente acabava por “secar as crianças”, que ficavam apenas conhecendo um patriotismo “besta” (Lobato gostava de usar esse adjetivo). Vale lembrar que, nesse mesmo ano de 1921, Lobato publicava seu primeiro livro de literatura infantil, Narizinho arrebitado, anunciado no catálogo de sua editora Revista do Brasil, em 1922, como uma “obra fora dos moldes habituais e escrita de modo a interessar profundamente as crianças, poupando trabalho aos professores e pais”. E finalizando: “Adapta-se para o uso das escolas de São Paulo, da Paraíba e de outros estados”.17 Ou seja, ele anunciava um livro que queria ser (e foi) inovador, mas também que se voltava para o mercado de livros escolares, o que garantia circulação e bons rendimentos. Como os estudiosos de literatura infantil assinalam, Lobato, de fato, inovou muito o repertório literário infantil, criando personagens de tipo novo e cuidando da apresentação gráfica dos livros, até porque foi, durante um bom tempo, seu próprio editor. Contudo, compreensivelmente, não rompeu inteiramente com as características da literatura “cívico-patriótica” então produzida. Esta se vinculava, mais ou menos diretamente, ao mercado escolar e aos objetivos nacionalistas da ação educativa – que podiam ser ufanistas ou não –, o que evidentemente impunha “adaptações”, como ele mesmo explica na propaganda de Narizinho. As críticas de Lobato à má qualidade gráfica do livro infantil/escolar e ao seu estilo enfadonho nada tinham de novas, sendo conhecidas há muito, como o texto de José Veríssimo, A educação nacional, já mencionado, evidencia muito bem. De todo modo, o que desejo ressaltar é que, 16 Estou citando artigo de Lobato de A onda verde, no qual é discutida a questão da formação de leitores, a partir de SOARES, G. P. Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil (1915-1954). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. p. 180-2. 17 SOARES, G. P. Op. cit., citação na p. 185. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL32 ANGELA DE CASTRO GOMES inclusive Lobato, embora com recursos literários bem distintos dos autores do início do século XX, também se inseriu nessa vertente de escritores que se dedicaram a explorar a dimensão histórica ao se voltarem para o público infantil. Mesmo não caindo em um “patriotismo besta”, ele também escreveu sobre fatos e personagens da história, tratando igualmente de folclore brasileiro. Por fim e para concluir, insisto na riqueza desse contexto de debates, com inovações e críticas, que envolvia o campo da história do Brasil, quer em seu locus mais erudito quer nas múltiplas possibilidades de escrita que as mídias impressas ofereciam para se ganhar um público mais amplo de leitores, divertindo-os e instruindo-os no amor à pátria. Foi nesse tempo que o MHN foi criado, por determinação do então presidente Epitácio Pessoa, na ocasião das comemorações do Centenário da Independência. Abrigado no Pavilhão das Grandes Indústrias da “Exposição Internacional de 1922”, o núcleo inicial do museu devia não apenas evocar os acontecimentos históricos do passado nacional brasileiro, mas igualmente voltar-se para a instrução pública, vale dizer, buscar alcançar um público de não iniciados. Um grande desafio, já que implicava construir uma linguagem museal que articulasse os dois valores da disciplina da história tão propagados: o científico e o pragmático, apelando para a razão e a emoção dos que o visitassem. Um desafio que ainda permanece e este seminário procura, mais uma vez, enfrentar. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL 33 O Rio e a Exposição do Centenário Ruth Levy* O Rio de Janeiro foi cenário, em 1922, de um grande espetáculo: a Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência. A obra, descrita como “um trabalho hercúleo, executado no curto espaço de alguns meses”, afirmando “solenemente a nossa atividade empreendedora”1, ocupou, com seus palácios e pavilhões uma grande área do centro da cidade, que ia do Passeio Público à Ponta do Calabouço e de lá se estendia pelo espaço recém-conquistado com a demolição do Morro do Castelo. A ideia da comemoração já vinha desde alguns anos antes. Em 1916, foi apresentado à Câmara um projeto de autoria dos deputados José Bonifácio e Bueno
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