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Acumulação primitiva_ um processo atuante na sociedade contemporânea (2)

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02/08/2018 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
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Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia
14 | 2012 :
Numéro 14
Acumulação primitiva: um processo
atuante na sociedade contemporânea
Accumulation primitive : un processus actif dans la societé contemporaine
Primitive accumulation: a process active in contemporary society
S����� L�������
Resumos
Português Français English
Com a hegemonia da reprodução social capitalista, a acumulação primitiva é interpretada ora como sendo um fato do
passado, ora como um processo que perdura até hoje. Nosso ponto de vista é de que a acumulação primitiva
historicamente não desapareceu, sendo, inclusive, um importante componente da sociedade contemporânea. Nela, os
processos capitalistas de acumulação primitiva e de reprodução do capital coexistem e se complementam de forma
contraditória e dialética. O primeiro, o processo de acumulação primitiva está relacionado à espoliação e à produção de
um capital novo, enquanto que o segundo, o de reprodução do capital está relacionado à exploração e tem como ponto
de partida um capital já constituído. A diferença entre os termos espoliação e exploração é apresentada, bem como a
posição de Harvey sob essa polêmica, se constituindo nas discussões que constituindo a primeira parte do texto. Na
segunda parte se discute que a acumulação primitiva dos dias atuais repete a fraude, o roubo e a violência que
estiveram presentes no momento da gênese do capitalismo. Embora o mundo pareça ter mudado, com tanto avanço
técnico e tantas leis acerca dos direitos humanos, não mudou muito, pois persistem práticas de fraude, roubo e
violência como expedientes de produção de capital. Vários exemplos de rapinagem dos recursos naturais são dados,
incluindo-se aí a biopirataria. Também é destacada a escravidão por dívida, como uma forma violenta de espoliação,
uma forma de acumulação primitiva de capital em que o trabalhador livre, pelos mecanismos de sujeição ao qual está
submetido, perde sua liberdade. O roubo de terras se constitui num outro exemplo de acumulação primitiva dessa
sociedade contemporânea. Afirma-se que todas as formas de espoliação são produtoras de dinheiro e produtoras de
capital em potencial e que o capital financeiro é que constrói, em especial, o elo entre acumulação primitiva e
reprodução do capital na sociedade contemporânea.
Dans le contexte d'hégémonie de la reproduction sociale capitaliste, l'accumulation primitive est interprétée soit
comme un processus du passé, soit comme un processus qui se fait présent jusqu’aujourd’hui. Notre point de vue est
que l'accumulation primitive historique n'a pas disparu. Au contraire, elle est encore une importante composante de la
société contemporaine. En ce cas, les deux processus capitalistes, d'accumulation primitive et de reproduction du
capital, coexistent et s’accomplissent de façon contradictoire et dialectique. Le premier processus est attaché à la
spoliation et à la production d'un capital nouveau, alors que le second est attaché à l'exploration d’un capital déjà
constitué qui, en même temps, fait partie de celui-là. La différence entre les deux termes, spoliation et exploration, est
examinée dans la première partie du texte, et en considérant la position de Harvey à propos de cette controverse. Dans
la deuxième partie on discute l'accumulation primitive qui se manifeste aujourd’hui, comme la fraude, le vol et la
violence, tels qu’ils se présentaient lors de la genèse du capitalisme. Bien que le monde ait changé, à cause du progrès
technique, et malgré l’existence de lois de protection des droits de l'homme, il y a encore des actions semblables à celles
de cette époque-là. Ces actions se manifestent vraiment comme expédientes de la production du capital à la façon
primitive, à savoir: le vol de terres; la rapine des ressources naturelles y inclus la biopiraterie; l'esclavage pour dette,
une forme violente de spoliation où le travailleur libre, par les mécanismes de domination auxquels il est soumis, perd
sa liberté. Par conséquent, on propose la thèse suivante : toutes les formes de spoliation sont productrices d'argent et
de capital en potentiel et le capital financier, à son tour, construit particulièrement le lien entre l’accumulation
primitive et la reproduction du capital dans la société contemporaine.
With the hegemony of the social accumulation reproduction, the primitive accumulation is interpreted sometimes like
a fact of the past and sometimes like a process that continues until today. Our point of view is that the historical
primitive accumulation has not disappeared, including being one of the important components of contemporary
society. In this society, the capitalist processes of primitive accumulation and the reproduction of capital coexist and
complement each other in a contradictory and dialectical way. The first, the process of primitive accumulation is
related to spoliation and to the production of new capital, while the second, the reproduction of capital is related to the
exploration and it is a part of a capital already existing. The difference between the names 'spoliation' and 'exploitation'
is confronted and the Harvey's opinion about accumulation by dispossession is discussed in the first part of the text.
The second part discusses about the primitive accumulation of today, repeating the fraud, the theft and the violence,
that were presents in the moment of the genesis of capitalism. Although the world seems to have changed, with both
technical advancement and a variety of laws about human rights, it has not changed that much. Acts of fraud, theft and
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violence as expedients to generate capital still continues. Several examples of robbery of the natural resources are
given, including the bio-piracy. Also, the debt slavery is emphasized as a violent form of spoliation, a form of primitive
accumulation of capital in which the free worker, by mechanisms of subjection which he is subjugated, loses his
freedom. The theft of land constitutes another example of primitive accumulation of the contemporary society. It is
stated that all forms of dispossession are producing money and producing potential capital. Particularly, the financial
capital is the one that especially establishes the link between primitive accumulation and reproduction of capital in
contemporary society.
Entradas no índice
Index de mots-clés : accumulation primitive, exploitation, société contemporaine, spoliation
Index by keywords : contemporary society, exploration, Primitive accumulation, spoliation
Índice de palavras-chaves : acumulação primitiva, espoliação. exploração, sociedade contemporânea
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Créditos : frutosdocerrado
A afirmação de que a acumulação primitiva se constituiu num processo que abriu as portas para a
expansão do processo de reprodução do capital é geral. Todavia, a interpretação de que tal processo não
tenha desaparecido com a hegemonia da reprodução social capitalista é bastante polêmica. A falta de
consenso indica a complexidade do real que afasta qualquer simplismo interpretativo e motiva a reflexão
sobre a questão. 
1
A discussão a seguir é mais um adendo a essa polêmica. Nosso ponto de vista é de que a acumulação
primitiva historicamente não desapareceu, sendo, inclusive, um importante componente da sociedade
contemporânea. Tanto a acumulação primitiva como a reprodução do capital constituem, portanto,
processos imanentes à sociedade contemporânea. Nesse sentido, questionamos a interpretação na qual se
formula uma visão linear do tempo, em que se desenvolve primeiro a chamada acumulação primitiva do
capital que ocorreria apenas antes da reprodução capitalista.Bem como a interpretação que coloca em
dúvida a compreensão de que há uma sucessão progressiva no tempo, que ao afirmar a segunda – a
reprodução do capital - faz desaparecer a primeira, que historicamente lhe deu origem. Tomando-se os dias
atuais, o que se vê é o contrário. Observamos um recrudescimento da acumulação primitiva, considerada,
conforme veremos, como um processo primitivo no sentido de contraposto a moderno. Na
contemporaneidade se desenvolvem processos capitalistas de acumulação primitiva e de reprodução do
capital que coexistem historicamente e se complementam de forma contraditória e dialética.
Surpreendentemente, cresce a importância da acumulação primitiva que muitos supunham ser
historicamente superada pelo avanço da reprodução do capital. 
2
Essa afirmação, de que acumulação primitiva historicamente não desapareceu, requer, a princípio, a
distinção entre acumulação primitiva do capital e reprodução do capital.
3
Fundamentalmente, o processo de acumulação primitiva está relacionado à espoliação, enquanto que o
de reprodução do capital está associado à exploração. Espoliação significa privar alguém de algo, por meios
ilícitos, ilegítimos ou violentos. É esse o sentido dos mecanismos espoliativos, como aquele que nega o
direito à posse. Por exemplo, sob o selo da propriedade privada capitalista se arranca da terra, os que vêm
nela vem trabalhando há várias gerações. Já a exploração se vincula aos diversos procedimentos que
buscam se apossar do lucro, por meio da sujeição da posse e do domínio da propriedade privada.
4
A diferença entre espoliação e exploração é de suma importância e mais adiante trataremos dela. Trata-
se de uma diferença ao mesmo tempo analítica e teórica que nos permite compreender melhor o real.
Muitas vezes a dinâmica do real evidencia, em especial, o processo de reprodução do capital; outras vezes, o
de acumulação primitiva. Mas, a apresentação apenas de um desses processos é mais exceção do que a
regra, pois o que se afigura, frequentemente, é a presença combinada da reprodução do capital com a
acumulação primitiva do capital. Para simplificar, no fundo, o que distingue a acumulação primitiva do
capital da reprodução do capital é o fato da acumulação primitiva ser um processo que se resume na
produção de um capital novo, enquanto que o processo de reprodução do capital parte de um capital já
constituído e o incrementa ainda mais, por meio de agregação de novo valor procedente do processo de
exploração do trabalho. 
5
Em suma, podemos falar que estamos diante de um processo de reprodução do capital quando o
processo, a dinâmica econômica é produtora de mais valor originário do trabalho que tem como base, como
princípio da produção, um capital já constituído. Em outros termos, estamos diante de um processo de
reprodução do capital quando o valor em processo não é só produtor de mais valor, mas especificamente é
produtor da substância valor originária do trabalho abstrato.
6
A reprodução do capital pode se desenvolver a partir de formas e relações de produção tipicamente
capitalista, como é o caso do trabalho assalariado, bem como pode se desenvolver por meio de relações
sociais de produção não especificamente capitalistas.
7
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Desapossamento, espoliação: o fundamento da
acumulação primitiva
Inúmeros exemplos podem ser pinçados na história que mostram o desenvolvimento da reprodução do
capital assentado nos processos de exploração cujas relações sociais de produção não eram especificamente
capitalistas. Um exemplo, já clássico, diz respeito à industrialização brasileira, em que o desenvolvimento
do capital cafeeiro, que desempenhou o papel de condição prévia para a industrialização, se assentou em
relações não capitalistas de produção.
8
Como é sabido, em São Paulo a economia cafeeira, nos momentos iniciais da industrialização, combinou
a produção da mercadoria café com trabalhadores livres produtores dos seus meios de vida do trabalhador.
Eles plantavam gêneros alimentícios para o próprio consumo, comercializavam o excedente e recebiam em
dinheiro o trabalho efetuado no cafezal. Moravam no interior das fazendas, nas “colônias”. Sob o regime de
trabalho, denominado de colonato, precisamente assentado em relações sociais de produção não
especificamente capitalista, foi que, em especial, se desenvolveu o capital cafeeiro. Seu desenvolvimento
não se fundou em relações sociais de produção especificamente capitalistas, nas quais os trabalhadores
vendiam sua força de trabalho num mercado de trabalho constituído (trabalho versus salário). Se fundou
na exploração do trabalho do colono por meio da instituição de uma relação social de produção específica,
não capitalista, o colonato.
9
Em relação à formação do capital por meio de processos espoliativos, nos quais, cabe chamar a atenção
para a violência, talvez o exemplo mais ilustrativo da história moderna seja a escravidão moderna.
Escravidão essa que inquestionavelmente não tem nada a ver com relações capitalista de produção. Não há
venda de força de trabalho e nem constituição de um mercado de trabalho. O que é vendido no mercado é a
pessoa, o escravo. É nítido que o escravo não tem nada que possa trocar; pois ele é expropriado de tudo,
inclusive do domínio de seu próprio corpo. Esse corpo não lhe pertence e é comercializado, por outros,
como mercadoria. É seu corpo e não sua capacidade de trabalho que é mercadejado, que é objeto de
transações. Desenvolve-se, assim, o capital, utilizando-se de forma espoliativa, de usurpação do sujeito do
seu próprio corpo.
10
O que surpreende é que em pleno século XXI, no auge do desenvolvimento capitalista desenvolvem-se
relações sociais fundadas na espoliação, como mecanismo de produzir capital. Embora moralmente
inadmissível, faz parte, sim, da contemporaneidade, a escravidão. Não em termos da escravidão moderna
dos nossos tempos coloniais, mas revestida de algo novo: a dívida.
11
Essa se apresenta em vários setores da produção e em várias atividades, podendo, inclusive, estar ligada
aos circuitos da globalização, como é o caso, por exemplo, do circuito mundial de exploração sexual, onde a
coerção e a exploração são as regras. A escravidão por dívida é diferente da escravidão moderna ou, ainda,
da escravidão da antiguidade clássica, mas uma coisa é comum a todas elas: a liberdade do corpo é alienada
do sujeito. Esse aspecto, a perda da liberdade, da possibilidade de ir e vir e a sujeição e a coerção da pessoa
associadas à exploração revelam traços de uma dinâmica econômica na qual se faz presente a acumulação
primitiva. 
12
Isso posto, o que se busca afirmar é que para se compreender a sociedade contemporânea é preciso
atentar para o seguinte fato: não é porque o trabalho assalariado se generalizou e nem porque o capital
domina todas as esferas da vida que impera absoluta a reprodução capitalista. Se pensarmos na formação
dessa sociedade veremos que ela é resultado de uma produção de capital que não se baseou apenas em
formas e relações sociais de produção especificamente capitalista e nem se expandiu mundialmente apenas
a partir do processo de reprodução do capital. Ela se constituiu na conjugação da acumulação primitiva
com a reprodução do capital. Sua dinâmica revela que essa conjunção não ficou no passado, mas faz parte,
também, do presente.
13
A sociedade contemporânease formou e vem se desenvolvendo, também por meio da acumulação
primitiva, que se constitui num processo que se funda na expropriação e na fraude, onde a violência é mais
a regra que a exceção. Esse é o nosso ponto de vista. O que estamos chamando de acumulação primitiva, é,
de fato, expropriação. Dessa forma, temos acumulação primitiva por espoliação e reprodução do capital
por exploração. Em geral, o termo acumulação primitiva ou originária é empregado apenas para se referir
a processo que abriu as portas para o processo de reprodução do capital. Entendemos que a acumulação
primitivahistoricamentenãodesapareceu apresentando infinitas maneiras e combinações com o próprio
processo de reprodução do capital dos dias atuais.
14
A gênese do capitalismo corresponde a um período histórico determinado e, no dizer de Marx, esse
período nada mais é do que “pré-história do capital e do modo de produção correspondente ao mesmo”.1
15
Nessa “pré-história do capitalismo”, ou seja, nesse período histórico onde se origina o capitalismo, o
processo de acumulação foi denominado por Marx, de acumulação primitiva ou, ainda, de acumulação
originária. Esse processo tirou do trabalhador a terra, os instrumentos de trabalho; enfim, suas condições
de trabalho e a possibilidade de prover seus meios de subsistência. Esse processo significou nada mais,nada
menos, do que a constituição da propriedade privada capitalista e aos poucos a propriedade feudal e o
mundo feudal foi se esvaindo enquanto eram tecidas as tramas de um mundo burguês.
16
Marx também discute outras transformações havidas nesse período de transição da sociedade feudal
para a sociedade capitalista. Mas, sem dúvida, é a constituição da propriedade privada capitalista que
guarda o segredo do desenvolvimento das relações sociais capitalista. Dentre as transformações apontadas
por Marx, cabe destacar a aplicação tecnológica consciente da ciência na produção, o desenvolvimento da
divisão do trabalho e a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho que só poderiam ser
utilizados se o fossem coletivamente, como a maquinaria. Marx ainda enfatiza o caráter internacional do
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regime capitalista e destaca a expropriação do próprio capitalista por meio do processo de centralização do
capital.2
Nessa transição, nessa “pré-história do capitalismo” se deu a acumulação primitiva, a acumulação
originária (primitiva no sentido de primeira a existir e originária por ter o sentido de origem, de gênese)
que se foi condição do desenvolvimento capitalista. Hoje em dia a acumulação primitiva, que se funda na
expropriação, é bom lembrar, não é originária e nem primitiva, porque não estamos na «pré-história” do
capitalismo. Podemos muito bem manter a palavra “primitiva” se essa palavra for compreendida no seu
sentido figurado: o de brutal e primário. 3 Não estamos na pré-história do capitalismo, não porque se
passaram séculos, mas porque o caráter especificamente capitalista está plenamente desenvolvimento,
mesmo que no seu seio se combinem formas e relações sociais de produção capitalista com formas e
relações sociais de produção não capitalista, bem como formas de espoliação.
18
Harvey, no livro New Imperialism concorda com a interpretação de Mandel, de que a acumulação
primitiva continua existindo e que essa não se situa apenas na gênese do capitalismo. Harvey atribui ao
adjetivo “primitiva” um obstáculo à compreensão de que a acumulação primitiva ainda continue existindo.
Para superar o obstáculo presente na palavra “primitiva”, que acabou induzindo à interpretação que essa
forma de acumulação só teria se desenvolvido na “pré-história” do capitalismo, Harvey cunha o termo
accumulation by dispossession. Traduzindo: acumulação por desapossamento. Como formas dessa
acumulação por desapossamento aponta, dentre outras, a biopirataria, a violação dos direitos de
propriedade intelectual, a privatização dos serviços públicos e a destruição dos recursos ambientais globais.
19
Antes de discutir a colocação de Harvey, cabem algumas observações em relação ao termo acumulação
por desapossamento. A tradução de accumulation by dispossession, como acumulação por
desapossamento foi proposital, achamos que valia a pena, iniciando essa discussão, fazer uma tradução
literal, que, como verão, será abandonada, mas que, por ora, é importante para situar duas ordens da
questão sobre acumulação, que permitirão avançar com mais clareza na discussão proposta.
20
A primeira ordem diz respeito à distinção necessária entre posse, propriedade e apropriação. A posse
sempre se refere à posse de um objeto e, portanto, para que a posse exista é necessária uma relação entre o
sujeito e o objeto. A propriedade, por outro lado, se inscreve no domínio do direito, da outorga e precisa ser
reconhecida socialmente. E, a apropriação diz respeito à posse e à propriedade, sendo, portanto, uma
síntese de ambas.4 Essas diferenças são importantes porque permitem perceber que é a propriedade que
necessita de reconhecimento social por meio do direito legal.
21
A segunda ordem de questão refere-se ao sentido da palavra “desapossar”, presente na ideia de
acumulação por desapossamento. A palavra “desapossar” permite perceber claramente a ideia de negação
da posse. Por isso, quisemos ser tão literais, para revelar o conteúdo da ideia de desapossamento. Melhor
dizendo, a palavra des-apossamento revela com transparência ofuscante o prefixo des que significa
negação; no caso, negação da posse. Outras palavras usam esse prefixo como negação, tais como: desamor,
desilusão, desterrar, desatenção, desacreditar...
22
Traduzimos do original em inglês, accumulation by dispossession, por acumulação por desapossamento
para deixar bem claro a ideia de negação da posse. No entanto, na tradução francesa do livro de Harvey,
bem como na espanhola e na portuguesa o termo accumulation by dispossession não é traduzido como
acumulação por desapossamento, mas por acumulação por expropriação. Na tradução brasileira é
utilizado o termo acumulação por espoliação.
23
Que termo é mais adequado? Desapossamento, expropriação ou espoliação? Se virmos que explorar tem
mais o sentido de extrair lucro ou compensação material e que espoliar guarda o sentido de desapossar, não
resta dúvida que a melhor tradução de accumulation by dispossession é a de acumulação por espoliação,
como figura na tradução brasileira. Foi usada a palavra “espoliação' porque ela guarda o mesmo sentido de
desapossamento, sendo que tem a vantagem, ainda, de quando assume o sentido jurídico, de expressar “ato
de privar alguém de algo que lhe pertence ou a que tem direito por meio de fraude ou violência; esbulho”.
(grifo nosso).5
24
Dizendo de outra maneira, acumulação por espoliação é a melhor tradução, ainda mais porque a palavra
“espoliar”, repetindo, tem o sentido jurídico de “ato de privar alguém de algo que lhe pertence ou a que tem
direito por meio de fraude ou violência”. 6 Com o uso da palavra “espoliação”, a ideia de fraude e violência
tão presente nos relatos sobre a acumulação primitiva e em todo transcurso do desenvolvimento da
sociedade capitalista até os dias atuais fica muito mais transparente.
25
O termo acumulação por espoliação é consagrado, mas nem por isso vamos deixar de fazer uma última
observação. Como dissemos, Marx utiliza o termo “acumulação primitiva ou originária” porque está
tratando da acumulação que é prévia e é condição do desenvolvimento do capitalismo. Situa-se, a
acumulação primitiva na pré-história do capitalismo e é, eminentemente, um processo espoliativo.
26
Já a acumulação por espoliação, nos termos de Harvey, não é primitiva, no sentido de originária, porque
não se refere ao momento da gênese do capitalismo, mas diz respeito à história do desenvolvimento
capitalista como um todo. Mas, convenhamos, em ambos os casos, ou seja, tanto na acumulação primitiva
(originária), própriada pré-história do capitalismo, ou na acumulação por espoliação, o que de fato há é
acumulação primitiva entendida como um processo que se funda na espoliação e na produção de um
capital novo que não parte de um capital já constituído.
27
Em outros termos, há um processo de acumulação primitiva, um processo que se desenvolve junto ao
processo de reprodução no transcurso da história do capitalismo. Ou seja, tanto a acumulação primitiva do
capital como a reprodução do capital são imanentes ao processo de desenvolvimento da sociedade
capitalista. Compõem dois movimentos que veem se combinando e se retroalimentando, sendo
movimentos constitutivos do capitalismo. Há uma dialética entre acumulação primitiva e reprodução do
capital, na qual a primeira tem como fundamento a espoliação (não importando o tempo histórico, sempre
se trata de espoliação, expropriação, desapossamento) e, a segunda, a reprodução, que tem como
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“a acumulação primitiva que abre caminho à reprodução expandida é bem diferente da acumulação por
espoliação, que faz ruir e destrói um caminho já aberto”. (Harvey, 2004, p.135).
A acumulação primitiva: uma face bestial da
sociedade contemporânea
fundamento a exploração, quer fundada em formas e relações sociais de produção especificamente
capitalista ou não.
Por exemplo, no século XVIII, na Inglaterra, a reprodução do capital por meio da exploração do trabalho
fabril se combinou com a acumulação primitiva proveniente da espoliação colonial. Hoje, em pleno século
XXI, o processo de acumulação, quer pela usurpação de bens comuns, como a água ou o espaço público, ou,
ainda, por meio da escravidão por dívida, dentre tantos casos a citar, se combina com as formas mais
avançadas de reprodução do capital.
29
Uma última colocação a respeito das formulações de Harvey refere-se à sua afirmação de que:30
De fato, é a acumulação primitiva que abre caminho à reprodução. No entanto, não consideramos que a
acumulação primitiva (a originária) seja tão diferente (nos termos de Harvey, “bem diferente”) da
acumulação por espoliação que se desenvolve nos dias atuais. No fundamento, na ideia de
desapossamento, ambas não são diferentes, são iguais. Além do mais, a chamada acumulação por
espoliação não destrói um caminho já aberto, como salienta o autor, ou seja, não destrói um caminho
aberto para que a reprodução do capital possa se expandir. Muito pelo contrário, a chamada acumulação
por espoliação cria novos caminhos, novas possibilidades que se compõem com o movimento de
reprodução do capital, dando, portanto novo fôlego ao capital.
31
Como uma bola de neve que ao rolar acrescenta mais neve à bola e a faz crescer, a acumulação primitiva
de capital em sua relação com a reprodução do capital garante a continuidade do capitalismo. Como disse
Harvey, o processo de acumulação pela espoliação se constitui num mecanismo de superar as crises de
sobreacumulação capitalista. Garante-se, assim, pelos movimentos do capital, tanto com a acumulação,
como com a reprodução, o desenvolvimento da sociedade capitalista. Esses dois movimentos afiançam a
sobrevivência da sociedade burguesa. Como diz Lefebvre, a “sociedade burguesa ou subsiste, ou se
desmorona”. (Léfebvre, 1977, p. 221). Na combinação dialética entre acumulação primitiva e reprodução
do capital reside o segredo da persistência da sociedade burguesa; nessa combinação, entre acumulação
primitiva e reprodução ela se mantém e se desenvolve.
32
A acumulação primitiva na sociedade contemporânea repete a fraude, o roubo e a violência que
estiveram presentes no momento da acumulação originária. Uma simples leitura do capítulo sobre
acumulação primitiva, no “O Capital”, de Marx, nos faz pensar em quão ultrajante foi esse tempo histórico
do passado. O mundo parece ter mudado; evoluiu. Muitos creem que hoje já não se permite a escravidão, o
mercado de pessoas, a expropriação violenta da terra de quem nela trabalha e nem se criam leis contra os
pobres. Infelizmente, isso não é verdade. Apesar do avanço técnico e de tantasleis acerca dos direitos
humanos, persiste a violência, a fraude e o roubo como chaves da acumulação primitiva de capital. E isso
questiona a ideia de progresso?
33
A rapinagem dos nossos recursos naturais, um bem de toda sociedade brasileira, persiste. Ela vai desde a
exploração desses recursos até a curiosidade pela comunidade internacional pelo potencial genético de
nossa biodiversidade. Para se ter a dimensão desse potencial, só a Amazônia, sem se considerar os biomas
da caatinga, do pantanal, da mata atlântica e dos campos e dos manguezais, possui 30% de todas as
sequencias de DNA do nosso planeta. Um tesouro que está sendo violado, até mesmo por empresas
estrangeiras. Por meio da biopirataria o roubo se processa, os biomas são violados, além do roubo de
nossas madeiras, de nossas plantas medicinais ou de nossa fauna, cabendo lembrar ainda, da pilhagem dos
conhecimentos e saberes das comunidades tradicionais locais.
34
Alguns exemplos podem ser elucidativos. O nosso popular quebra-pedras, uma planta da família das
euforbiáceas, utilizada com fins terapêuticos para problemas renais está patenteado pelos Estados Unidos.
Do veneno da jararaca pesquisadores brasileiros descobriram o princípio ativo capotren, que foi patenteado
nos Estados Unidos pela Bristol-Myers Squibb, que vende o medicamento Capoten, usado no mundo
inteiro para hipertensão. Ironia da história, no Brasil, o Capoten está entre os 100 remédios que os
brasileiros mais consomem e o Brasil paga royaltys pelo seu uso.
35
O pau-rosa, árvore nativa da Amazônia, foi patenteado pela França nos idos dos anos 20 para a produção
do perfume Chanel, n05. A patente do pau-brasil é do Canadá, a do nosso sapo Kampô, maior sapo verde
do Brasil que é originário do Vale do Juruá, de cuja costas se extrai uma substância farmacológica para
tratamento da isquemia, é dos Estados Unidos. Do jaborandi se extrai a molécula pilocarpina que
éfundamental para o combate do glaucoma, cujo produto farmacêutico é fabricado pela americana Merk e
patenteado lá fora. A esses exemplos se somam inúmeros outros bens expropriados, como a andiroba, a
copaíba e o cipó ayuasca ou o santo-daime.
36
O cupuaçu, fruto da Amazônia, com sementes semelhantes ao cacau, teve pedido de patente pela
empresa japonesa Asahi Foods. Além de patentear o fruto, a empresa registrou a marca çupulate’, um tipo
de chocolate feito a partir de amêndoas do cupuaçu, que havia sido desenvolvido no Brasil. Com isso,
qualquer exportação brasileira não poderia usar o nome cupuaçu, mesmo se dissesse respeito ao nosso
tradicional doce de cupuaçu, salvo, é verdade, se pagasse uma taxa à Asahi Foods. Por meio da atuação da
EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e doGrupo de Trabalho da Amazônia (GTA) que
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Figura 1 - Denúncias de Trabalho Escravo
Mapa de Théry, H. ; Mello Théry, N. A. ; Girardi, E. P. ; Hato, J. Geografias do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Revista
Nera, Presidente Prudente, nº.17, p. 12, 2010.
congrega várias entidades amazônicas, bem como de outras instituições, o pedido de patente do “cupulate”
não se efetivou.
Esses casos são apenas alguns casos de biopirataria. Eles expressam a expropriação de nossos recursos
naturais; a expropriação de bens comuns que passaram a ser privatizados e, assim, passaram a se inserirem
no movimento de acumulação primitiva de capital. O mesmo sentido tem a destruição dos recursos
ambientais globais, uma vez que se trata de um bem comum que está sendo aniquilado e com sua
destruição o que acaba sendo expropriado é a humanidade.
38
No Brasil, desde 1888, a escravidão, o direito de propriedade sobre uma pessoa, foi banido. Desde então,
não existe a outorga ou direito de propriedadesobre um ser humano. No entanto, persistem situações em
que o trabalhador está preso ao seu patrão, sem possibilidade de se libertar dele. Esse é o caso da
escravidão por dívida, como comentamos no início desse texto, uma forma de aprisionamento e posse de
uma pessoa.
39
No caso da escravidão por dívida, das três distinções anteriormente apresentadas: posse, propriedade e
apropriação, a escravidão por dívida se situa no âmbito da posse, por meio do exercício da posse da
liberdade do outro. A escravidão por dívida é diferente da escravidão moderna do nosso período colonial
porque nesse último caso, a compra e venda de escravos significavam a propriedade de outrem e gozavam
de reconhecimento social e de leis.
40
A escravidão por dívida se constitui numa forma violenta de espoliação, numa forma de acumulação
primitiva de capital em que o trabalhador livre, pelos mecanismos de sujeição ao qual está submetido,
perde sua liberdade. A Organização Internacional do Trabalho define o trabalho escravo como sendo, sem
exceção alguma, degradante. Diz que “toda forma de trabalho escravo é degradante, mas o recíproco nem
sempre é verdadeiro”, ou seja, nem todo trabalho degradante é trabalho escravo. 7 O trabalho escravo avilta
a humanidade do homem.
41
Em 2005, a Organização Internacional do Trabalho publicou um relatório sobre trabalho escravo no
mundo intitulado: “Uma aliança global contra o trabalho escravo” , que teve dentre todos os méritos, o de
não permitir mais que o tema fosse abafado e nem considerado tabu. Naquela ocasião estimou que, no
mundo, havia 12,3 milhões de pessoas submetidas à escravidão por dívida e que desse total, 2, 4 milhões
haviam sido vitimas do tráfico de seres humanos. 8
42
Tanto na escravidão por dívida ou na escravidão que envolve a propriedade do outro, como no passado, a
violência – quer física como psicológica por meio da coerção, das ameaças e das punições, está presente. Se
na escravidão moderna, dos tempos do Brasil Colonial, havia dependência do tráfico negreiro, na
escravidão por dívida não há essa dependência, constituindo-se numa vantagem econômica para quem
submete o outro. Se a cor da pessoa era significativa na escravidão, onde os negros eram escravizados, na
escravidão por dívida qualquer cor de pele é suscetível da sujeição por dívida.
43
Em 2010, no Brasil, houve 204 denúncias sobre a prática de trabalho escravo (escravidão por dívida)
relativas a 4.163 trabalhadores. 9 O mapa sobre denúncias de trabalho escravo no Brasil mostra,
claramente, que o trabalho escravo ocorre em todas as regiões brasileiras.
44
Segundo análise presente em “Geografias do trabalho escravo contemporâneo no Brasil”, a partir dos
dados dos Cadernos de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (desde 1986) e dos registros de
trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (desde
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https://journals.openedition.org/confins/7424?lang=pt 7/9
“Eu fui vendida por um grupo de mafiosos da Chechênia. Vieram de Odessa mostrando ser ricos homens
de negócios... Ofereceram um trabalho como assistente de compras em uma butique de Moscou,
inclusive me mostraram uma fotografia da loja... Fui comprada e vendida várias vezes no mercado de
Arizona por muitos comerciantes: russos, europeus e inclusive árabes. Me converti em uma mercadoria;
sim, isto é o que somos, produtos de uma aldeia global”. (Napoleoni, 2008, p. 25)
“Quando várias famílias ocupando pequenas propriedades... ao longo de um rio ou de uma estrada, o
grileiro compra todas as posses, ou apenas algumas delas, incluindo aquelas localizadas nas
extremidades. Depois, ele marca uma grande área com ‘piques’ (trilhas abertas na floresta), muitas
vezes reivindicando a propriedade de toda a terra comunitária. Aqueles que não aceitam a reivindicação
do grileiro são frequentemente expulsos da área pelo uso de violência”. (Greenpeace, 2009, p. 22)
Considerações Finais
1995) o “trabalho escravo ocorre, sobretudo, nas seguintes atividades econômicas: companhias
siderúrgicas, carvoarias, mineradoras, madeireiras, usinas de álcool e açúcar, destilarias, empresas de
colonização, garimpos, fazendas, empresas de reflorestamento/celulose, agropecuárias, empresas
relacionadas à produção de estanho, empresas de citros, olarias, cultura de café, produtoras de sementes de
capim e seringais. De fato, as atividades econômicas que se desenvolvem nas microrregiões de maior
concentração de trabalho escravo são a produção de carvão (Santa Maria da Vitória, por exemplo), a
pecuária (São Felix do Xingu), mineração (Parauapebas), exploração de madeira (Paragominas, Tomé Açu).
Há, portanto, aparecimento do trabalho escravo mesmo em segmentos bastante capitalizados e
tecnologizados. (Théry; Mello Théry; Girardi; Hato, 2010, p. 14).
O relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalho escravo no Brasil do século XXI
mostra que é por meio da caderneta de dívidas – prática que remonta ao século XIX - que o trabalhador é
mantido em situação de escravidão. Os trabalhadores começam a trabalhar devendo transporte, roupas,
alimentação e material de trabalho. Similar situação ocorre em relação ao tráfico de mulheres e à
exploração sexual.
46
No noroeste da Sérvia, num lugar denominado de mercado Arizona, porque é como uma cidade
americana típica da época da corrida do ouro, se concentram os traficantes de mulheres subjugadas pela
condição de escravidão por dívida. O relato de uma ex-prostituta é muito esclarecedor. A respeito dos
traficantes diz:
47
O roubo de terras também se constitui num exemplo de acumulação primitiva de capital. Documentos
falsos de registro de propriedades são forjados. Usurpa-se, assim, a terra de quem nela trabalha ou da
União, quando se trata de terras devolutas. A ocupação ilegal de terras, conhecida no Brasil como grilagem,
incide, sobretudo, sobre as terras públicas. Para isso, os grileiros contam com a ajuda de cartórios, praticam
a violência expulsando, quando é o caso, posseiros e comunidades indígenas.
48
Ao se apossar de uma terra os grileiros utilizam várias estratégias para garantir a apropriação (posse e
propriedade). Dentre alguns expedientes, tomando-se como referência os madeireiros do Pará, está o uso
de concessões inválidas de seringais, as quais foram emitidas há 40 ou 50 anos atrás com validade por um
ano para exploração da borracha. Essas concessões podem até terem alteradas seus limites, permitindo
acrescer a extensão da apropriação da terra. Outro mecanismo bastante utilizado é a apresentação nos
cartórios de concessões inválidas denominadas de “cartas de sesmarias”, as quais perderam efeito por
ocasião da independência do país. Outro expediente diz respeito, simplesmente, às ocupações de área de
floresta que passam a ser guardadas por jagunços.
49
Em terras ocupadas pelos trabalhadores que cultivam sua terra, os grileiros forjam papéis de
arrendamento ou de aquisição.
50
Os grileiros, com a cumplicidade de funcionários de cartórios, falsificam documentos e, com isso, é
possível registrar a propriedade nos institutos de terra do governo (estadual e federal) que emitem certidão
de registro da propriedade declarando que a propriedade da terra está em processo de análise. Essa
pluralidade de registros em andamento acaba conferindo um caráter legal ao documento. 
51
A Medida Provisória de n.º 458, aprovada pelo Senado e sancionada pelo presidente Lula em 2009 teve
como objetivo regularizar os ocupantes de uma área de 67,4 milhões de hectares de terras da Amazônia,
área maior que a Itália e a Alemanha juntas, e avaliados em 70 bilhões de reais. Essa Medida Provisória
permite que o governo federal venda as terras, sem licitação, a posseiros, mas também a grileiros que em
2004 já ocupavam essas terras. As áreas podem ter até 1.500 hectares, o que nos leva a indagar: que
posseiro temcapacidade econômica para explorar economicamente uma área desse tamanho? Não é à toa
que apareceu na mídia se afigurou, muitas vezes, o termo de “Medida Provisória da Grilagem”.
52
Com a discussão sobre acumulação primitiva e reprodução quisemos enfatizar que o roubo, a fraude e a
violência se apresentam na acumulação por desapossamento (acumulação por espoliação), não só no
passado, mas no presente. Quer em relação à rapinagem dos recursos naturais, da biopirataria, do
comprometimento dos recursos naturais globais, quer por meio da extrema sujeição das pessoas
submetidas à escravidão por dívida ou quer pelo roubo de terras, o movimento de acumulação primitiva se
conjuga com as formas mais avançadas do movimento de reprodução do capital. 
53
Poderíamos dizer, se fossemos tão irônicos quanto Marx, que o roubo, a fraude e a violência são também
alguns dos fatores idílicos da acumulação primitiva nos dias atuais. Reinventam-se mecanismos que
permitem a espoliação, os quais em nada diferem das práticas do roubo, da fraude e da violência, tão bem
descritas por Marx no capítulo do O Capital, já referido, que é intitulado “A chamada acumulação
primitiva”. Como bem alertou Marx, sua proposta era discorrer sobre o processo de acumulação na
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02/08/2018 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
https://journals.openedition.org/confins/7424?lang=pt 8/9
Bibliografia
Notas
1 A esse respeito ver o capítulo XXIV, intitulado “A chamada acumulação originária”. Em O Capital (Marx, 1984: 891-
954). 
Inglaterra, devido ao fato da Inglaterra se revestir da forma clássica da acumulação. Diz que a história da
expropriação, que despoja da terra o trabalhador, adota diferentes tonalidades em distintos países e
percorre, numa sucessão diferente, as diversas fases. (Marx, 1984, p. 895). Nosso desafio foi o de pensar as
tonalidades que revestem nosso desenvolvimento.
Por último, queremos destacar que o processo de acumulação primitiva de capital nos dias atuais
encontra elo com o processo de reprodução do capital por meio do capital financeiro. O processo de
espoliação, ou seja, a produção de riqueza pelo desapossamento se metamorfoseia facilmente em dinheiro.
Se esse dinheiro se constituir apenas como um meio de troca pelas transações de compra e venda que ele
possibilita, ou se servir apenas para medir o que está se trocando, esse dinheiro não tem a potencialidade
de se colocar como capital. Todavia, quando se insere no processo de produção ele se coloca como capital. É
como se estivéssemos duas engrenagem que se combinam num movimento.
55
As diversas formas de espoliação são produtoras de dinheiro e produtoras de capital em potencial. Para
que o dinheiro funcione como capital tem que ser empregado no processo produtivo, seja de qualquer
capitalista que for, quer diretamente investido na produção, quer indiretamente funcionando na condição
de capital financeiro. Consagra-se, assim, por meio do capital financeiro o elo entre acumulação primitiva
do capital e reprodução do capital.
56
É nessa condição de capital – de dinheiro que se transforma em capital – que se garante a sobrevivência
da sociedade contemporânea, nos moldes em que ela se desenvolve. E as estratégias de acumulação
primitiva faz parte, sem dúvida alguma, dessa sobrevida.
57
Se o dinheiro procedente da escravidão por dívida, até mesmo do tráfico de mulheres ou da biopirataria,
por exemplo, não desenvolver a função de capital produtivo o movimento de acumulação primitiva não se
constitui como um movimento de acumulação de capital, mas apenas como acumulação de dinheiro. São as
praças financeiras, com os bancos e os fundos de investimento, por exemplo, bem como os paraísos fiscais,
locais esses por excelência de lavagem de dinheiro, que ao “não deixarem o dinheiro parado, como se
estivesse debaixo de um colchão” dão alma ao dinheiro transformando-o em capital.
58
A história do capitalismo é a história da combinação da reprodução do capital fundada em relações
sociais de produção especificamente capitalista – compra e venda da força de trabalho – e em relações
sociais de produção não especificamente capitalista. Mas, é também, a combinação de movimentos, o da
reprodução do capital e o da acumulação. Em outros termos, é a história da combinação da reprodução do
capital com formas de acumulação primitiva, onde o sentido de primitiva toma o sentido de brutal,
relacionado a processos de espoliação.
59
Esse é o sentido de se dizer que a acumulação primitiva não se constitui como uma fase historicamente
datada do capitalismo. Não se constitui como fase, mas como processo que faz crescer e dá novo fôlego ao
capital.
60
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02/08/2018 Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea
https://journals.openedition.org/confins/7424?lang=pt 9/9
2 Idem.
3 . O termo ‘primitiva’ assume o sentido derivado: impulsivo, bárbaro, brutal e instintivo.
4 A respeito da distinção entre posse, propriedade e apropriação ver o interessante trabalho de DUSSEL, em especial o
capítulo sobre “Digresionses sobre el Modo de Apropriación”. (Dussel, 1998; 226 a 243).
5 Conforme Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
6 Idem.
7 A esse respeito, ver o documento da Organização Internacional do Trabalho intitulado “Trabalho Escravo no Brasil
do Século XXI”, 2000.
8 Organização Internacional do trabalho. Uma aliança global contra otrabalho escravo, 2005. Em 2009 a Organização
Internacional do Trabalho lançou um outro relatório global, denominado “O custo da coersão. Relatório Global no
seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos e Princípios Fundamentais do Trabalho”. Nesse relatório
considerou prematuro elaborar uma nova estimativa mundial, preferindo abordar as tendências básicas do trabalho
forçado.
9 Fonte dos dados: Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no campo Brasil 2010. Essa Comissão se constitui numa
 entidade ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Índice das ilustrações
Título Figura 1 - Denúncias de Trabalho Escravo
Créditos Mapa de Théry, H. ; Mello Théry, N. A. ; Girardi, E. P. ; Hato, J. Geografias do trabalhoescravo contemporâneo no Brasil. Revista Nera, Presidente Prudente, nº.17, p. 12, 2010.
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/7424/img-1.png
Ficheiro image/png, 52k
Para citar este artigo
Referência eletrónica
Sandra Lencioni, « Acumulação primitiva: um processo atuante na sociedade contemporânea », Confins [Online],
14 | 2012, posto online no dia 19 março 2012, consultado o 02 agosto 2018. URL :
http://journals.openedition.org/confins/7424 ; DOI : 10.4000/confins.7424
Autor
Sandra Lencioni
Professora Titular do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo , slencion@usp.br
Direitos de autor
 
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