Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
O texto narrativo Contar histórias é uma atividade praticada por muita gente: pais, filhos, professores, amigos, namorados, avós... enfim, todos contam-escrevem ou ouvem-leem toda espécie de narrativa: histórias de fadas casos, piadas, mentiras, romances, contos, novelas. Assim, a maioria das pessoas é capaz de perceber que toda narrativa tem elementos fundamentais, sem os quais não pode existir; tais elementos de certa forma responderiam às seguintes questões: O que aconteceu? Quem viveu os fatos? Como? Onde? Por quê? Em outras palavras, a narrativa é estruturada sobre cinco elementos principais. Elementos da narrativa Toda narrativa se estrutura sobre cinco elementos, sem os quais ela não existe. Sem os fatos não há história, e quem vive os fatos são os personagens, num determinado tempo e lugar. Mas para ser prosa de ficção é necessária a presença do narrador, pois é ele fundamentalmente que caracteriza a narrativa. Os fatos, os personagens, o tempo e o espaço existem por exemplo num texto teatral, para o qual não é fundamental a presença do narrador. Já no conto, no romance ou na novela, o narrador é o elemento organizador de todos os outros componentes. Passemos então ao estudo de cada um deles. Enredo – o conjunto dos fatos de uma história é conhecido por muitos nomes: intriga, ação, trama, história. O termo mais largamente difundido é enredo. Duas são as questões fundamentais a se observar: a verossimilhança e as partes do enredo. Verossimilhança É a lógica do enredo, que o torna verdadeiro para o leitor. Os fatos de uma história não precisam ser verdadeiros, no sentido de corresponderem exatamente a fatos ocorridos no universo exterior, mas devem ser verossímeis, ou seja, mesmo sendo inventados, o leitor deve acreditar no que lê. Partes de enredo Para se entender a organização dos fatos no enredo não basta perceber que toda história tem começo, meio e fim; é preciso compreender o elemento estruturador: o conflito. Tomemos como exemplo as histórias infantis; imaginemos Chapeuzinho Vermelho sem Lobo Mau, o Patinho Feio sem a feiura, a Cinderela sem a meia-noite. O conflito possibilita ao leitor criar expectativas frente aos fatos do enredo. Conflito é qualquer componente da história que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor. O conflito determina as partes do enredo, que são: 1. Exposição: (ou introdução ou apresentação) é o começo da história, no qual são apresentados os fatos iniciais, os personagens, às vezes o tempo e o espaço. Enfim, é a parte na qual se situa o leitor diante da história que irá ler. 2. Complicação: (ou desenvolvimento) é a parte do enredo na qual se desenvolve o conflito (ou conflitos). 3. Clímax: é o momento culminante da história, é o momento de maior tensão, no qual o conflito chega a seu ponto máximo. 4. Desfecho: (desenlace ou conclusão) é a solução dos conflitos, boa ou má, podendo ser um final feliz ou não. Há muitos tipos de desfecho: surpreendente, feliz, trágico, cômico etc. Leia o conto a seguir e observe as partes de seu enredo: Um homem de consciência, de Monteiro Lobato Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro. Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor. Mas João Teodoro acompanhava com aperto do coração o desaparecimento visível de sua Itaoca. "Isto já foi muito melhor", dizia consigo. "Já teve três médicos bem bons -- agora um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando ..." João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível. "É isso", deliberou lá por dentro. "Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada, então ARRUMO A TROUXA e boto-me fora daqui." Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, se julgava capaz de nada... Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seriíssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que cai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!... João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou seu cavalo magro e partiu. -- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens? -- Vou-me embora -- respondeu o retirante. -- Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim. -- Mas, como? Agora que você está delegado? -- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro. Adeus. E sumiu. O enredo psicológico É uma narrativa cujo fato principal sempre está relacionado às lembranças e sentimentos dos personagens, o que acarreta a predominância do tempo psicológico (não há uma ordem exata), que flui de acordo com as emoções. Geralmente, a narrativa é escrita em 1ª pessoa, com um narrador personagem. A apresentação do enredo pode não seguir a ordem natural dos acontecimentos, já que o tempo das emoções não é linear; o espaço físico também é marcado do ponto de vista de como são sentidas as experiências. No Brasil a representante mais importante do conto psicológico é Clarice Lispector. Em seus textos, geralmente, um fato do cotidiano ou uma lembrança aparentemente banal (comum) desencadeia no personagem uma viagem ao próprio interior, para questionar a própria existência ou ressuscitar (despertar) dramas existenciais. Exposição – 1º parágrafo Complicação – do 2º ao 13º parágrafo Clímax – 9º parágrafo Desfecho – 14º parágrafo Leia atentamente o conto a seguir. Há nele um enredo psicológico. Tentação, de Clarice Lispector Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. Sentava nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavra, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se no futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos. Foi quando se aproximou sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu num ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo. Lá vinha ele trotando, à frenteda sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam. Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outros seres, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia, suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fita-lo. Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos. Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos. No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fosse carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo, afinal, despregou- se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mão compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás. Personagens A personagem ou o personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por mais real que pareça, o personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados personagens são baseados em pessoas reais. O personagem é um ser que pertence à história e que, portanto, só existe como tal se participa efetivamente do enredo, isto é, se age ou fala. Se um determinado ser é mencionado na história por outros personagens, mas nada faz direta ou indiretamente, ou não interfere de modo algum no enredo, pode-se não o considerar personagem. Passemos agora à classificação dos personagens, que podem ser analisados, de acordo com o que vem a seguir. 1. Quanto ao papel desempenhado no enredo: a) Protagonista: é o personagem principal - Herói é o protagonista com características superiores às de seu grupo. - Anti-herói é o protagonista que tem características iguais ou inferiores às de seu grupo, mas que por algum motivo está na posição de herói, só que sem competência para tanto. b) Antagonista: é o personagem que se opõe ao protagonista. É o vilão da história. c) Personagens secundários: são menos importantes na história. Tem uma participação menor ou menos frequente no enredo. São figurantes. d) Personagens planos: são caracterizados com um número pequeno de atributos que os identifica facilmente perante o leitor; de um modo gera, são personagens pouco complexos. e) Personagens redondos: são mais complexos que os planos, isto é, apresentam uma variedade maior de características, que podem ser físicas, psicológicas, sociais, ideológicas, morais. Vejamos agora uma descrição de personagem; observe as características físicas, psicológicas, morais, ideológicas e sociais. Botelho Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático, cabelo branco, curto e duro, como uma escova, barba e bigode do mesmo teor; muito macilento, com uns óculos que lhe aumentavam o tamanho da pupila e davam- lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo com seu nariz adunco e com sua boca sem lábios; viam-se-lhe ainda todos os seus dentes, mas tão gastos, que pareciam limados ao meio. Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e com um chapéu de Braga enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do Paraguai, ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda da fortuna desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E, agora, coitado, já velho, comido de desilusões, cheio de hemorroidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava à sombra do Miranda, com que muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservava amigo, a princípio por acaso e mais tarde por necessidade. Devorava-o, noite e dia, uma implacável amargura, uma surda tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por não lhe ter sido possível empolgar o mundo com suas mãos hoje inúteis e trêmulas. E, como o seu atual estado de miséria não lhe permitia abrir contra ninguém o bico, desabafava vituperando as ideias de época. Assim, eram às vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros assuntos palpitantes, vinha à discussão o movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da Lei do Rio Branco. Então Botelho ficava possesso e vomitava frases terríveis, para a direita e para a esquerda, como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aproveitando aquela válvula para desafogar o velho ódio acumulado dentro dele. (Azevedo, Aluísio. O cortiço. Rio de Janeiro, Ed. Ouro, p. 40) Tempo Aqui abordaremos o tempo fictício, isto é, interno ao texto. Os fatos de um enredo estão ligados ao tempo em vários níveis: Época em que se passa a história Constitui o pano de fundo para o enredo. A época da história nem sempre coincide com o tempo real em que foi publicada ou escrita. Um exemplo disso é o romance de Umberto Eco, O nome da Rosa, que retrata a Idade Média, embora tenha sido escrito e publicado recentemente. Duração da história Muitas histórias se passam em curto período de tempo, já outras têm um enredo que se estende ao longo de muitos anos. Tempo cronológico É o nome que se dá ao tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear; chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos. Tempo psicológico É o nome que se dá ao tempo que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens, isto é, altera a ordem natural dos acontecimentos. Está, portanto, ligado ao enredo não linear. Espaço Espaço, é, por definição, o lugar onde se passa a ação numa narrativa. Tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação. Assim como os personagens, o espaço pode ser caracterizado mais detalhadamente em trechos descritivos, ou as referências espaciais podem estar diluídas na narração. De qualquer maneira, é possível identificar-lhe as características, por exemplo, espaço fechado ou aberto, espaço urbano ou rural e assim por diante. Narrador Não existe narrativa sem narrador, pois ele é o elemento estruturador da história. Dois são os termos mais usados para designar a função do narrador na história: foco narrativo e ponto de vista (do narrador ou da narração). Ambos se referem à posição do narrador frente aos fatos narrados. Assim, teríamos dois tipos de narrador, identificados pelo pronome pessoal usado na narração: primeira pessoa ou terceira pessoa. Tipos de narrador Terceira pessoa: é o narrador que está fora dos fatos narrados, portanto, seu pontode vista tende a ser mais imparcial. O narrador em terceira pessoa é também conhecido pelo nome de narrador observador e suas características principais são: Onisciência: ele sabe tudo sobre a história. Onipresença: ele está presente em todos os lugares da história. Veja o exemplo abaixo de narrador observador. (...) Pedro sentou-se, cruzou as pernas, tirou algumas notas da flauta, como para experimentá-la e depois, franzindo a testa, entrecerrando os olhos, alçando muito as sobrancelhas, começou a tocar. Era uma melodia lenta e meio fúnebre. (...) Tirou as mãos de dentro da água da gamela, enxugou-as num pano e aproximou- se da mesa. Foi então que deu com os olhos de Pedro e daí por diante, por mais esforços que fizesse, não conseguiu desviar-se deles. (O continente. In: ... O tempo e o vento) Podemos perceber a onisciência do narrador observador, pois ele não apenas narra o que se passa com os personagens, mas também o que sentem; em outras palavras, ele sabe mais que os personagens. Primeira pessoa ou narrador personagem: é aquele que participa diretamente do enredo como qualquer personagem, portanto, tem seu campo de visão limitada, isto é, não é onipresente, nem onisciente. No entanto, dependendo do personagem que narra a história, de quando o faz e de que relação estabelece com o leitor, podemos ter algumas variantes de narrador personagem. Variantes de narrador personagem Narrador testemunha: geralmente não é o personagem principal, mas narra acontecimentos dos quais participou, ainda que sem grande destaque. Narrador protagonista: é o narrador que é também o personagem central. Podem-se citar inúmeros exemplos deste tipo de narrador, como, por exemplo, Bentinho, de Dom Casmurro. Veja abaixo um exemplo de narrador em primeira pessoa. “ Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã me acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Cori para lá, e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse em um espetáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podia ficar ali a polícia e mais ninguém. ” Menino de Engenho, de José Lins do Rego Atenção: Narrador não é autor As variantes de narrador em primeira pessoa ou em terceira pessoa podem ser inúmeras, uma vez que cada autor cria um narrador diferente para cada obra. Por isso, é bom que se esclareça que o narrador não é o autor, mas uma entidade de ficção, isto é, uma criação linguística do autor, e, portanto, só existe no texto. Modos de narrar Os textos dos gêneros narrativos têm em comum o objetivo de contar algum acontecimento, real ou fictício. Objetivos e características podem variar, mas a narração permanece como um traço de identidade entre relatos, crônicas, contos, novelas, romances. Muitas vezes, no interior de uma narrativa, é importante atribuir uma fala ou um comentário a uma personagem. Nessas situações, pode-se recorrer a diferentes modos de organização da linguagem para informar o que foi dito por alguém: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre. O discurso direto É o registro integral da fala do personagem, do modo como ele a diz. Isso equivale a afirmar que o personagem fala diretamente, sem a interferência do narrador, que se limita a introduzi-la. Há duas maneiras de registrar o discurso direto: 1. A mais convencional: a) Verbo de elocução (falar, dizer, perguntar, etc) + dois-pontos + travessão (na outra linha) Estirado por sobre a mesa, o administrador gritava: — Você já esteve no Alentejo? Variantes da forma convencional a) O personagem fala diretamente, isto é, sem ser introduzido, e o narrador se encarrega de esclarecer quem falou, como e por que falou. — Sente-se — ordena a professora irritada. b) Em vez dos travessões para isolar a fala do personagem, encontramos outra pontuação: vírgula, ponto etc. Só permanece o travessão inicial. — O meu projeto é curioso, insistiu o sardento, mas parece que este povo não me compreende. c) Vária falas se sucedem sem a presença do narrador; apenas se sabe o que fala cada personagem, por que há mudança de linha e novo travessão. — O que é, meu rapaz? — Eu queria conhecer a grande máquina. — Não conhece ainda? — Não. — É novo na cidade? — Nasci aqui. — E como não conhece a máquina? — Nunca me deixaram. 2. Usando aspas no lugar dos travessões: Verbo de elocução + dois-pontos + aspas Ao me despedir de Palor, no Aldebaran vazio, eu disse: “ Vamos nos ver novamente? ” O discurso indireto É o registro indireto da fala do personagem por meio do narrador, isto é, o narrador é o intermediário entre o instante da fala do personagem e o leitor, de modo que a linguagem do discurso indireto é a do narrador. (...) O outro objetou-lhe que por aqui havia febres e mosquitos; o major contestou-lhe com estatísticas e até provou exuberantemente que o Amazonas tinha um dos melhores climas da terra. Era um clima caluniado pelos viciosos que de lá vinham doentes... Perceba que nesse exemplo o narrador disse com suas palavras o que disseram os personagens. O discurso direto ficaria assim: O outro objetou-lhe: — Por aqui só há febres e mosquitos. O major contestou-lhe com estatísticas e até provou exuberantemente: — O Amazonas tem um dos melhores climas da terra. E um clima caluniado pelos viciosos que de lá vêm doentes... O discurso indireto livre É um registro de fala ou de pensamento de personagem que consiste num meio-termo entre o discurso direto e o indireto, porque apresenta expressões típicas do personagem mas também a mediação do narrador. Veja as diferenças entre o discurso direto, o indireto e o indireto livre abaixo. Discurso direto Discurso indireto Discurso indireto livre Ela andava e pensava: — Droga! Estou tão cansada! Ela andava e pensava que (a vida) era uma droga e que estava cansada. Ela andava (e pensava). Droga! Estava tão cansada. Era bruto, sim Senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando com um escravo. Desentupia bebedouro, consertava as cercas, curava os animais — aproveitava um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? RAMOS, Graciliano Vidas Secas. Tipos narrativos A narrativa de ficção A narrativa de ficção é construída, elaborada de modo a emocionar, impressionar as pessoas como se fossem reais. Quando você lê um romance, novela ou conto, por exemplo, sabe que aquela história foi inventada por alguém e está sendo vivida de mentira por personagens fictícios. No entanto, você chora ou ri, torce pelo herói, prende a respiração no momento de suspense, fica satisfeito quando tudo acaba bem. A história foi narrada de modo a ser vivida por você. Suas emoções não deixam de existir só porque aquilo é ficção, é invenção. No "mundo da ficção" a realidade interna é mais ampla que a realidade externa, concreta, que conhecemos. Através da ficção podemos, por exemplo, nos transportar para um mundo futuro, no qual certas situações que hoje podem nos parecer absurdas, são perfeitamente aceitas como verdadeiras. Os contos de fadas, as fábulas, os desenhos animados, asnarrativas fantásticas, em que tudo pode acontecer, também, nos remetem a outra realidade, bem mais ampla da que vivemos. Nestes casos, os textos narrativos, apresentam uma lógica interna que acabamos aceitando como verdade. Em a Metamorfose, o tcheco Franz Kafka inicia a narrativa com o personagem Gregor Samsa transformado em um inseto (metáfora da condição humana em um mundo adverso, desumano): “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa viu-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, e ao erguer um pouco sua cabeça viu o seu ventre marrom, abaulado divididos em saliências arqueadas (...).” Já Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, dá voz a um defunto que narra logo no primeiro capítulo o seu óbito: "Algum tempo hesitei se deveria começar estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor [...]." Para o leitor prosseguir na leitura dessas narrativas, é necessário que ele suspenda temporária e voluntariamente a sua descrença e aceite, como um fato da realidade, uma personagem transformada em um inseto horroroso e um defunto que resolve contar suas memórias. O relato A todo instante contamos alguma coisa a alguém. Como foi o show de nosso artista preferido, o último filme a que assistimos, um evento importante presenciado por nós. São inúmeras as circunstâncias em que relatamos, para alguém, o que ocorreu em uma ocasião específica. O relato é um gênero discursivo no qual são apresentadas as informações básicas referentes a um acontecimento específico. O principal objetivo do relato, oral ou escrito, é narrar para o leitor/ouvinte uma sequência de acontecimentos. Por esse motivo, os relatos focam ações. Ao contrário da maioria dos gêneros discursivos, os relatos ocorrem em muitos contextos diferentes. Isso acontece porque recorremos a esse gênero todas a vezes que temos a necessidade de apresentar uma sequência específica de fatos, associados a uma determinada situação. Há um contexto, porém, que as pessoas se reúnem para ouvir e fazer relatos: as rodas de “ causos”. Ainda frequentes em pequenas cidades do interior, essas situações se caracterizam pela presença de alguns “ contadores de causos”, pessoas que têm uma grande habilidade em apresentar de modo envolvente as histórias que contam. Estrutura de um relato Na organização dos relatos, o primeiro fator a ser considerado é a situação de interlocução, porque ele estabelecerá importantes diferenças entre um relato oral e um relato escrito. Em um relato oral, costumamos estar em contato direto com nossos interlocutores que, a qualquer momento, podem nos interromper e pedir informações ou esclarecimento. Isso dá, a quem relata oralmente um fato, maior liberdade em termos estruturais. Quando fazemos um relato escrito, devemos lembrar que os leitores não terão como solicitar mais informações ou esclarecimentos. O texto precisa, portanto, conter todas as informações necessárias para ser compreendido por quem o lê. Leia abaixo o relato de Edney Silvestre sobre os atentados de 11 de setembro. Lembranças de quem viveu o 11 de setembro de 2001 Depois de cobrir os ataques de 11 de setembro, não adio nada que eu quero fazer. De quase três mil mortos, a maioria tinha menos de 25 anos. Porque foi no horário em que estagiários e recém-formados trabalham. Eram 8h20 da manhã. Imagina só, você acaba de se formar, vai ao trabalho, um avião bate no prédio e você morre… Eu morava perto, a duas estações de trem do World Trade Center, e por isso corri pra lá. Tinha voltado da academia, estava subindo o elevador. Minha rotina geralmente era: ia para a academia, voltava aí ligava a televisão e o computador. Quando eu liguei a televisão tinha acabado de acontecer. Eu não entendi nada, só vi um buraco enorme no prédio. Eu e o cinegrafista Orlando Moreira fomos os primeiros jornalistas brasileiros a chegar ao que restava do WTC. Ou seja: escombros. Fomos a pé porque o sistema de transportes da cidade tinha parado de funcionar. Fora suspenso, por receio de novos ataques. O serviço só seria restabelecido no fim da tarde. Assim mesmo, parcialmente(...) Não havia como falar com a redação, que ficava no centro de Manhattan. Os telefones celulares não estavam funcionando porque, quando uma das torres veio abaixo, tinha no topo a antena que permitia a comunicação telefônica. Havia muitos brasileiros, no meio da multidão que fugia. Vários, ao verem o microfone que eu segurava, com o símbolo da Globo, vinham até nós, espontaneamente, dar seu emocionado relato do que acontecera. Foi difícil atravessar a barreira de policiais, as barricadas, a fumaça, sentindo aquele cheio de carne queimada que, mais tarde, saberíamos vir das milhares de vítimas carbonizadas. O prefeito de Nova York, Rudy Giuliano, nos viu e mandou que colocássemos máscaras contra toda aquela poeira e poluição. Orlando trabalhava incansavelmente. Fez as impressionantes imagens que abririam o Jornal Nacional daquela noite e que são utilizadas até hoje. De tudo, posso dizer que o mais difícil não foi a parte jornalística, árdua sim, trabalhosa sim, mas a parte humana. Difícil foi saber dos quase 3 mil assassinatos, ver as pessoas saltando para a morte por estarem cercadas pelas chamas, calor e fumaça, e manter para o telespectador brasileiro um relato jornalístico objetivo sem me deixar tomar pela emoção e revolta. (...) Alegorias narrativas: a fábula e o apólogo. A fábula É um gênero ficcional bastante popular e existe há muitos anos. Tradicionalmente, eram narrativas orais, e não se sabe ao certo quem as criou. Embora muito antigas, continuam a ser contadas e lidas, porque ensinam, alertam sobre algo que pode acontecer na vida real, criticam comportamentos humanos, ironizam os homens. Na maioria das vezes, os fabulistas usam animais como personagens de suas histórias, tornando-os uma espécie de símbolo: a formiga, representado o trabalho, o cordeiro, a inocência; o burro, a estupidez; a raposa, a astúcia. É importante saber que o narrador de uma fábula é um observador, o tempo verbal predominante e o pretérito perfeito do indicativo e a linguagem utilizada é a variedade padrão. Estrutura das fábulas Por meio das fábulas, podemos fazer duas leituras independentes: a) A narrativa propriamente dita, cuja estrutura narrativa sempre se repete: Situação inicial; Obstáculo; Tentativa de resolução; Resultado final. b) Moral: linguagem temática, dissertativa. Ela pode ser usada e analisada independentemente da fábula. Ela nos leva a dois mundos: O imaginário, narrativo, fantástico; O real, dissertativo, temático. Na verdade, a fábula é “ um estudo sério sobre o comportamento humano”, a ética e a cidadania. A coruja e a águia, de Monteiro Lobato Coruja e águia, depois de muita briga, resolveram fazer as pazes. — Basta de guerra – disse a coruja. — O mundo é grande, e tolice maior que o mundo é andarmos a comer os filhotes uma da outra. — Perfeitamente – respondeu a águia. — Também eu não quero outra coisa. — Nesse caso, combinemos isto: de agora em diante, não comerá nunca os meus filhotes. — Muito bem. Mas como posso distinguir os teus filhotes? — Coisa fácil. Sempre que encontrares uns borrachos lindos bem- feitinhos de corpo, alegres, cheios de uma graça especial que não existe em filhotes de nenhuma outra ave, já sabes, são os meus. — Está feito! – Concluiu a águia. Dias depois, andando à caça, a águia encontrou um ninho com três monstrengos dentro, que piavamde bico muito aberto. — Horríveis bichos! – Disse ela. — Vê-se logo que não são os filhos da coruja. E comeu-os. Mas eram os filhos da coruja. Ao regressar à toca, a triste mão chorou amargamente o desastre, e foi ajustar contas com a rainha das aves. — Quê? – Disse ela admirada. — Eram teus aqueles monstrenguinhos? Pois, olha, não se pareciam nada com o retrato que deles me fizeste... ---- Para o retrato de filho, ninguém acredite no pintor pai. Lá diz o ditado: quem o feio ama, bonito lhe parece. O apólogo O texto apólogo é classificado como um texto alegórico, caracterizado pelos personagens serem inanimados, porém o intuito é o mesmo da fábula: transmitir uma lição de vida por meio de situações análogas às reais, vividas geralmente por seres que não são vivos. O maior objetivo do apólogo é fazer com que haja modificações nos conceitos humanos que não são saudáveis, promovendo desta forma mudanças de comportamentos morais e sociais. Um apólogo, de Machado de Assis Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo? — Deixe-me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. — Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu? — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando... — Também os batedores vão adiante do imperador. — Você é imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: — Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima... A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir- se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Compartilhar