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Maria da Conceição Jardim UMA COMUNIDADE DE VIDA E SAÚDE Contributo para uma Pastoral de Saúde em Psicogerontologia 2 Pré-impressão e capa: PAULUS Editora Impressão e acabamento: Publidisa Depósito legal: ISBN: 978-972-30-1605-5 © PAULUS Editora, 2012 Rua D. Pedro de Cristo, 10 1749-092 LISBOA Tel.: 218 437 620 – Fax: 218 437 629 editor@paulus.pt Departamento Comercial Estrada de São Paulo 2680-294 APELAÇÃO Tel.: 219 488 870 – Fax: 219 488 875 comercial@paulus.pt www.paulus.pt Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios, electrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópias, gravações ou qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informação sem autorização prévia, por escrito, do editor. 3 Prefácio O ano de 2012 foi na Europa consagrado ao Envelhecimento Activo. Não pode haver maior oportunidade para a obra que agora se publica e dá pelo título de Uma Comunidade de Vida e Saúde com o subtítulo Contributo para uma Pastoral da Saúde em Psicogerontologia. O problema do envelhecimento está na ordem do dia, uma vez que tem aumentado extraordinariamente o tempo médio de vida. Depois do programa da OMS, em 1977, que tinha como objectivo a “Saúde para Todos” e com duas das metas mais anos à vida e mais vida aos anos, que aumentando o tempo de vida aumentou exponencialmente o número de idosos. Isto levou a estudo exaustivo do fenómeno do envelhecimento e do acompanhamento dos seniores na última etapa da sua vida. Maria da Conceição Jardim apercebeu-se da importância deste fenómeno e decidiu estudá-lo. Fazendo parte de uma congregação religiosa, as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, consagrada ao cuidado das pessoas afectadas na sua doença mental, a autora desta obra quis fazer um estudo muito interessante sobre o cuidar dos mais velhos, em Psicogerontologia, eventualmente se estes têm problemas do foro psiquiátrico. Este trabalho, de grande interesse pastoral, começa pela análise do mundo contemporâneo, um tempo em que se multiplicam as situações de perturbação mental. Uma sociedade desumanizada corre o risco de ter uma saúde também ela desumanizada. Então, antes de ver o que fazer com os doentes, tem de se procurar conhecer cada doente, com o seu caso diferente, para um acompanhamento que, por si, seja já uma forma de intervenção terapêutica. Cuidar e acompanhar cada doente faz parte da acção do terapeuta. Acresce o facto de este estudo se inserir num quadro de unidades clínicas da Igreja Católica o que obriga a uma preocupação acrescida pelos que são mais pobres ou que mais sofrem. Toda a comunidade que acolhe doentes deverá ser hospitaleira. A autora tem o cuidado de avaliar o carisma da sua congregação, assente na misericórdia, com dom de Deus ao serviço dos irmãos, como estilo de vida em disponibilidade para os outros, como apoio à vulnerabilidade de cada um, no concreto da sua vida. Este carisma tem de ser cultivado com uma reflexão profunda a partir da antropologia do idoso, com cuidados específicos, com o acompanhamento em Psicogerontologia, com uma terapia eficaz no conseguir resultados. O enquadramento do estudo é a Pastoral da Saúde, isto é, a actividade organizada da Igreja, através da qual se torna presente, aqui e agora, no mundo da saúde, a acção salvífica de Cristo. O enquadramento na Pastoral da Saúde permite integrar em todo o trabalho a acção humanizadora, a sensibilidade ética, a capacidade organizadora e a avaliação constante do trabalho já desenvolvido. Maria da Conceição Jardim introduz na sua obra um elemento hoje universalmente reconhecido como essencial no cuidado dos doentes. É o problema da espiritualidade. De facto, reconhece-se que a espiritualidade tem dimensão terapêutica. Se ele contém o apoio na cultura, no desenvolvimento das relações é no constante desafio para a 4 esperança, a espiritualidade é também transcendência. Por isso, a dimensão religiosa do ser humano tem de ser também contemplada numa terapia integral. Assim sendo, a dimensão holística do cuidar exige o apoio religioso, também ele important para as pessoas crentes, qualquer que seja a sua opção religiosa. Respeitar a fé de cada um e proporcionar-lhe o seu exercício, em práticas religiosas oportunas, é missão do cuidador. Também nesta área a autora é de reflexão transparente. Em Psicogerontologia o cuidar tem de ser integral. Os apoios espirituais e mesmo religiosos são indispensáveis no tempo de envelhecimento, para um envelhecimento saudável e activo. Uma Comunidade de Vida e Saúde é uma obra que vale a pena ler, fazendo mesmo ela parte do estudo para o trabalho a realizar com os doentes, na sua normal fase de envelhecimento. Cumprimento a autora e desejo o maior sucesso no seu trabalho de cuidadora. Mons. Vítor Feytor Pinto 5 Introdução O estudo aqui apresentado é fruto de um trabalho de investigação que resultou numa dissertação de mestrado em Ciências Sociais (especialização em Ética Teológica) na Universidade Católica de Lisboa, sob orientação do Professor Doutor Jerónimo dos Santos Trigo e de monsenhor Vítor Feytor Pinto. Situa-se dentro do horizonte dos estudos realizados na área da Pastoral da Saúde. Este tema, particularmente apaixonante mas imensamente vasto, sobretudo no que diz respeito à prática pastoral, restringe-se, neste trabalho, à investigação de um programa nos âmbitos da saúde, com a ética e com a espiritualidade. Estes âmbitos da saúde estão pouco explorados cientificamente, por isso mesmo merecem uma continuada investigação científica, simultaneamente acompanhada da prática pastoral. Exporemos aqui a proposta pastoral referenciada na prática que incide especialmente no acompanhamento espiritual ao doente, como campo de acção e missão, onde se pode encontrar o verdadeiro sentido da nossa actividade pastoral. Aborda-se aqui também a questão da missão hospitaleira e a questão da prática e do método. Dada a vastidão do tema, referem-se apenas alguns desafios, embora muitos mais nos sejam colocados quotidianamente na missão de hospitalidade. Este trabalho foi desenvolvido em cinco capítulos. No capítulo i abordam-se as características e a formação de uma Comunidade de Saúde, bem como o testemunho e o desafio que constituem no mundo da saúde. Começaremos por abordar a Comunidade de Saúde e a sua missão paradigmática neste mundo desumanizado, desenvolvendo modelos de humanização em saúde, cuidando e acompanhando os doentes. À medida que vamos avançando, e que a própria comunidade aparece mais enriquecida, aborda-se a missão da Igreja e os novos desafios pastorais no mundo contemporâneo. Ainda neste contexto, vamos fazer realçar o sentido da própria comunidade, enquanto convocada por Cristo para ajudar espiritualmente os doentes que lhe são confiados. Nesta abordagem, analisámos alguns desafios pastorais inerentes à missão da Igreja e também o seu papel de “perita de hospitalidade” em cuidar os doentes, tendo como prioritários os mais necessitados. Contemplaremos aqui a urgência de humanização tendo em conta a tradição dos cuidados de saúde, reportando-nos às práticas dos primeiros tempos do cristianismo. Toda a acção pastoral a partir da relação de ajuda espiritual assenta as suas bases nos cuidados holísticos. Todos sabemos que ao longo dos séculos passámos por certa turbulência em determinados períodos civilizacionais e culturais, mas sempre se designou a questão da saúde como importantíssima. Ora, é conceptualizável ainda que, assente numa visão de acompanhamento e relação de ajuda ao doente, sempre tenha feito parte integrante da história da Igreja uma presença constante e significativa na área dos cuidados aos mais carentes. Neste capítulo i, chama-se ainda a atenção para a tomada de consciência de que vivemos numa aldeia planetária, na esfera social e colectiva, com permanência dos valores referenciais da civilização que formam o núcleo duro da consciência humana, individual e colectiva, isto é, enquanto entendida no plano íntimo pessoal ou noplano das relações interpessoais. 6 No capítulo ii estudar-se-á o carisma das Irmãs Hospitaleiras, qual dom de Deus oferecido à Sua Igreja. Para isso se abordará o tema da pastoral hospitaleira, com uma história vivida a partir da misericórdia, como estilo de vida. Toda esta história passa por São João de Deus e São Bento Menni, como protótipos da misericórdia de Deus revelada por Jesus Cristo para ser vivida e anunciada aos pobres e doentes. Deste carisma brotam alguns desafios, integrados na história congregacional, e sublinha-se aqui a valorização de um caminho de abertura ao novo, ao inédito, como sinal libertador, terapêutico, criativo, evangelizador, testemunhal, uma busca de Deus a partir do acompanhamento espiritual e personalizado ao doente. Tentaremos fazer uma abordagem do que significa o carisma da hospitalidade experienciado nos cuidados aos doentes a partir do estilo da misericórdia e ternura de Deus. Neste contexto, vamos falar da psicologia e vulnerabilidade do idoso, numa abordagem própria da antropologia que estuda alguns comportamentos em situações de doença, tendo como chave a antropologia social; tentaremos aplicar tudo isto no contexto do impacto na família e na comunidade. Neste capítulo serão também tratados os aspectos da Pastoral da Saúde e contemplar-se-á, sobretudo, os factores sociológicos e psicológicos da doença. Pretende-se sublinhar os âmbitos fundamentais onde é possível intervir no campo da Pastoral da Saúde. Pareceu-nos que esta seria uma oportunidade para marcar algumas fronteiras entre saúde, ética e vida, para uma morada acolhedora e envolvente da condição humana. Foi intenção deliberada não sofisticar a análise, mas sim trabalhar na perspectiva do encaminhamento para melhorias neste serviço e desse modo contribuir para o enriquecimento do trabalho da comunidade em que a autora se insere. Abordam-se aqui também os aspectos que dizem respeito à vida espiritual da pessoa doente. No percurso deste estudo, transversalmente, iremos sublinhar os aspectos mais relevantes da saúde, concretamente em termos de espiritualidade e religião, como factores fundamentais no apoio ao Homem doente ou em situação de sofrimento. Procuram-se utilizar diversos temas inerentes à saúde, onde são abordados em complementariedade os problemas e questões sobre o bem-estar do Homem doente. Num primeiro momento iremos abordar a Comunidade de Saúde como espaço fundamental, onde aparecem os grandes desafios inerentes à missão da Pastoral da Saúde, como lugar acolhedor onde ao pobre e ao doente pertence por direito ser acolhido, cuidado e amado. Este capítulo abordará ainda a hospitalidade em Pastoral da Saúde quando nem mesmo for possível a comunicação não verbalizada, sobretudo a importância que toma a comunicação no sentido da delicadeza e da atenção. Utilizou-se a dimensão carismática como guia privilegiado para este fim. No capítulo iii estudar-se-á a possível implementação de um novo dinamismo à Pastoral da Saúde. Para tal far-se-á uma reflexão sobre alguns documentos da Igreja e as orientações da mesma acerca da pastoral dos doentes. Neste contexto, pretende-se descobrir a sintonia entre Pastoral da Saúde e Pastoral Hospitaleira, no sentido de escutar o magistério da Igreja e marcar o ritmo da saúde em termos de presenças significativas na Igreja e no mundo. 7 Neste trabalho pretende-se colocar os doentes e o Homem em sofrimento no centro dos projectos de saúde de modo a identificar o verdadeiro carisma hospitaleiro como desafio à saúde integral que se quer para o bem-estar do doente em cuidados holísticos: promover a qualidade e a inovação como experiências comprometedoras do carisma de hospitalidade e sobretudo mostrar que em Jesus Cristo se pode descobrir o rosto humano da misericórdia e da compaixão. O carisma hospitaleiro faz a “ponte” entre o humano e o divino, sempre que se trata de acolher, cuidar e amar cada irmão doente ao jeito de Jesus, o Bom samaritano do Amor. Cuidados estes que se querem humanizados, como um serviço pastoral de acompanhamento espiritual dedicado a todos os que precisam, sem distinção e num esforço de personalização dos serviços. No capítulo iv abordam-se as linhas de força da Pastoral como caminho de libertação para o Homem doente. A dimensão terapêutica da Pastoral da Saúde incidirá sobretudo no intercâmbio de ligação frente à paróquia e o hospital, como concertação de uma Missão que se quer atenta às necessidades do Homem do nosso tempo. Numa dimensão terapêutica, reflectir-se-á sobre os cuidados em gerontologia num serviço humanizado com acompanhamento espiritual ao doente, a partir da relação de ajuda pastoral, qual caminho de libertação para o Homem em sofrimento. A misericórdia de Deus é vista aqui como “sacramento” presente na vida do doente, mas latente por detrás da comunidade de saúde, que é bem visível na sua vocação de cuidar e representar o próprio Cristo. O capítulo v incidirá mais concretamente nas áreas éticas analisando-se diversos aspectos como sejam os cuidados continuados e terminais, tendo presente o apoio aos familiares e abordando a dimensão curativa qual bálsamo de Deus-medicina que cura o doente. Isto é, a hospitalidade é levada ao doente como verdadeira presença de Deus, por pessoas vocacionadas para a missão pastoral e a espiritualidade será vista aqui como uma terapia de Deus para o Homem em sofrimento. Neste capítulo abordar-se-á ainda o tema da Pastoral da Saúde em cuidados continuados integrados na rede nacional, tendo em conta os problemas dos familiares no seu drama em poder ou não dar apoio ao seu familiar doente ou idoso. Procurar- se-á reflectir na sociedade do conhecimento e na oferta de oportunidades, tendo presente a renovação de saúde e como abordar as novas multiplicidades das fronteiras do conhecimento humano, e como isso se projecta no “mercado da saúde”. Este capítulo procura ainda evidenciar como a missão hospitaleira em competência de ser cura integral para o Homem doente, acompanhada da verdade absoluta de Jesus Cristo, que sempre esteve do lado do doente, libertando-o do sofrimento, é uma forma de ser e estar no mundo da saúde. 8 CAPÍTULO I UMA COMUNIDADE DE SAÚDE A comunidade de saúde é aquela que está estreitamente ligada à missão de Jesus, abrindo novos horizontes à humanidade doente, permitindo que todas as pessoas façam a experiência da misericórdia de Deus, na plenitude do seu ser, numa verdadeira relação humana articulada com o transcendente. Pela mesma razão, encontramos o fundamento evangélico da comunidade de saúde na relação que Jesus teve, durante a Sua vida terrena, com os doentes. Jesus curou, salvou e libertou a todos. Muitas narrações evangélicas de curas podem iluminar a nossa especial vocação e missão de comunidade de saúde, na Igreja e no mundo.1 Além disso, hoje, a acção sanadora em favor dos doentes, aos quais ajudamos a experimentar a proximidade e a ternura de Deus, é a nossa forma de dar a vida pelo Reino. Jesus traça o caminho que os Seus seguidores deverão percorrer: «Quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas, quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, há-de salvá-la.» (Mc 8,35) Cristo é radical na Sua forma de viver e amar. A acção pastoral no anúncio e revelação de Deus obriga-nos a dar-nos a nós mesmos, o amor e disponibilidade aos outros, já que é na relação interpessoal que Deus Se dá e Se revela. É a partir desta verdade vivida e experienciada na fé em Jesus Cristo que podemos admirar, contemplar e viver o mistério da caridade, no sentido de um contínuo crescimento humano e espiritual, numa comunidade que desenvolve a sua espiritualidade em Jesus, Aquele que está sempre do lado do doente e do mais miserável.2 1 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Identidade Hospitaleira Missão Compartida, Identidade e Missão, Documento do XVIII Capítulo Geral, Jubileum, Roma, Maio, 2000, n.º 3. Esta abordagem leva-nos a compreender a situação de sofrimento e abandono em que actualmente se encontram muitos doentes, querem países menos desenvolvidos, quer na sociedade ocidental, dita desenvolvida. Neste sentido, a nossa sociedade interpela e exige uma conversão que imprima à comunidade de saúde um novo dinamismo apostólico, uma criatividade sem limites e um novo impulso missionário.3 Trata-se de viver a alegria do mensageiro da paz que caminha ao encontro de quem precisa, levando a alegria da presença amiga e libertadora4, concretizando o aforismo: como são belos os pés daquele que anuncia a Paz e as mãos que repartem o Pão! A hospitalidade é, e quer ser sempre, um dom do Espírito, aberta à acção pastoral dos doentes, no sentido de construir um processo de relação de ajuda personalizada de modo a integrar o doente no meio social. Ao longo do caminho, a pessoa torna-se mais consciente de que a vida da comunidade se constrói quotidianamente no serviço alegre e disponível sobretudo na atenção aos que mais necessitam. Isto é, trata-se de ser pão repartido na mesa dos pobres, construindo uma relação personalizada de modo a proporcionar bem-estar, e, sobretudo, uma maior qualidade de vida.5 Para melhorar o desempenho, foram promovidas acções de formação que têm exigido um intercâmbio multidisciplinar e interdisciplinar a partir de uma adequada selecção do 9 pessoal, de modo a formar uma comunidade significativa no âmbito da saúde.6 Esta comunidade deve estar centrada no essencial, e, inevitavelmente, ser testemunha de solidariedade preconizada pelo fundador da congregação, São Bento Menni. 2 Cf. J. C. BERMEJO, Relação pastoral de ajuda ao doente, Materiais de trabalho, ed. Paulinas, Lisboa, 2002, 27-28. 3 O Capítulo Geral é uma assembleia em que se reúnem irmãs, representantes eleitas de todas as casas e de todos lugares em que a congregação em causa está implantada. Este encontro, representativo de toda a congregação, tem por objectivo proceder a uma avaliação da vida da congregação nos anos precedentes e definir linhas de actuação para os seis anos seguintes. Quando a vida da Igreja ou circunstâncias especiais da congregação o exigem, pode ser convocado de modo extraordinário, não obedecendo aos seis anos que ordinariamente medeiam a sua realização. 4 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, o. c., 4-5. 5 Cf. C. JEAN DE DIOS VIAL, E. SCRECCIA, La Cultura e della Vita Fondamenti e Dimensioni Atti Della Settima Assemblea Generale Della Pontifia Accademia per la Vita, Pontifícia Academia Pró vita (Città del Vaticano, 1-4 marzo 2001), Roma, 2002, 65-67. Neste âmbito, procurar viver em comunidades fundamentadas na espiritualidade congregacional, sobretudo levando à prática a tradição hospitaleira, aprender com Bento Menni a viver a humildade e a confiança em Deus7 é o nosso ideal. De facto, pretendemos desenvolver uma pastoral que se fundamenta no mandato de Jesus Cristo: «Vai e faz tu também do mesmo modo.» (Lc 10,37) Este é um desejo natural de unidade na comunidade que vive alicerçada na comunhão total com Deus, que antevê e acolhe, assim, a dor daqueles que, por vezes, nem a sabem expressar e disfarçam aquilo que não sabem dizer. A missão traduz-se em fazer o bem, unindo ciência e caridade, competência e humanidade, eficácia e eficiência, segundo um modelo integral de cuidados à pessoa que sofre. Na óptica de Vítor Feytor Pinto, há um desafio na área da Pastoral da Saúde: é necessário ir às fontes e lá descobrir a sensibilidade com que Jesus ensinou, curou e libertou o Homem do seu sofrimento. Por conseguinte, compreender a profundidade deste ministério é saber que cada membro é enviado a enfrentar os desafios inerentes à missão, mas sobretudo a levar a Boa Nova do Reino a todos os que necessitam de cuidados integrais de saúde.8 O facto de Jesus ser para todos saúde e salvação leva- nos a ler nas entrelinhas do Evangelho o sentido da missão. 6 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, o. c., n.os 23-24. 7 Cf. M. SOROLDONI, Santidade a toda a prova, Vida de Bento Menni Fundador das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, Livraria A. I., Porto, 1984, 27-30. 8 Cf. V. FEYTOR PINTO, Saúde para todos – desafios para uma acção pastoral, PAULUS Editora, Lisboa, 1999, 121. A comunidade de saúde fundamenta-se na própria acção de Jesus Cristo que viveu numa comunidade de partilha com os Seus discípulos. Jesus envia o grupo dos Apóstolos para ser testemunha da Boa Nova do Reino, na liberdade e humildade. O chamamento é individual, mas Jesus forma “os Doze”, o que significa a universalidade. O que é realmente importante é que Jesus envia os discípulos dizendo: Ide por todo o mundo, curai os doentes, recebestes de graça daí de graça. (Lc 10,1-5) Do mesmo modo, acompanhado pelos discípulos, «Jesus começou a percorrer a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino, curando as doenças e enfermidades» (Mt 4,23). A missão de Jesus é confirmada pelo Pai, que envia o Espírito Santo. Esta actividade de Jesus faz parte da missão sanadora: Jesus é “médico” e amigo dos doentes. A partir do ministério da compaixão, descobrimos Jesus nos doentes e levamos a nossa alegria e disponibilidade em servir os pobres; isto é, somos canal da transparência do amor de Jesus pelos mais desprezados da sociedade.9 Acima de tudo, é necessário interpelar com responsabilidade e sobretudo exercer a função profética10, anunciando a esperança na vida eterna e certeza do Amor do Pai. A missão do agente de pastoral é um processo de transformação pessoal e social a partir de uma caminhada na fé. A sua missão, tal como a de Jesus, é, sobretudo, ajudar o doente a encontrar um sentido para a vida, e a cultivar os valores humanos. 10 A partir da corresponsabilidade surgem comunidades reveladoras da esperança que podem transformar os dinamismos da cura numa proposta de novidade na comunhão com Deus, com o transcendente, só Ele pode curar o corpo, a alma e a sociedade a partir da cura holística.11 O que é realmente importante neste paradigma da comunidade de saúde é saber como Jesus actuava. O mais importante para Ele eram as pessoas e as suas necessidades, libertá-las espiritualmente, levar-lhes a experiência do Reino de Deus. 9 Cf. A. PRONZATO, Todo corazón para los enfermos Camilo de Lellis, Sal Terrae, Santander, 2000, 259-265. 10 Cf. J. C. BERMEJO, o. c., 147. 11 Cf. COMISSÃO NACIONAL DA PASTORAL DA SAÚDE, A cultura do testemunho no Hospital Católico, Política da Saúde e Solidariedade Cristã, Actas dos XIII e XIV Encontros Nacionais da Saúde, ed. Paulinas, Fátima, 2000-2001, 103-104. 11 1. Num mundo desumanizado – modelos de humanização em Saúde Segundo Albert Nola, a nossa união com Deus é sobretudo vivida na nossa atitude para com as pessoas. Mais importante ainda, precisamos de construir um mundo mais humano, acalmar a mente e o coração, como Jesus fizera, partindo em busca de Deus.12 Os problemas do mundo de hoje dependem em parte da nossa compreensão do outro. Porém, a modernidade é a era da razão: gradualmente, os países mais avançados começaram a agir de forma irracional e desumana. A sua violência não se pode ajustar de modo algum aos ideais do progresso humano e menos ainda ao modelo de humanização preconizado para o Homem, que nas nossas circunstâncias actuais de incerteza e insegurança são cada vez mais urgentes. Assim, é necessário criar modelos de humanização em saúde que transmitam força anímica ao Homem afectado pelo sofrimento, angústia e solidão. Para Vitor Feytor Pinto, falar de humanização em saúde, num mundo desumanizado, é falar de uma relação humana positiva em todo o exercício de cuidados, quer na educação para a saúde, quer nos tratamentos a que os doentes têm de se sujeitar, quer na recuperação socioprofissional que exigem, quando desejamos reintegrar as pessoas na sua vida normal, depois de um tempo de crise. Segundo este autor, humanizar é, então, tornar humano, cuidar a pessoa como pessoa, dar-lhe atenção e responder de uma forma positiva, dar-lhe razão de esperança, no sentido de se reencontrar na plenitude da sua realização pessoal, é implementar humanizaçãoem saúde.13 12 Cf. A. NOLAN, Jesus Hoje, Uma espiritualidade de liberdade radical, Edições Paulinas, 2.ª ed., Lisboa, 2009, 27-29. Para explorarmos esta nova oportunidade mais a fundo, o progresso da medicina e das ciências humanas, com o desenvolvimento de novas abordagens técnicas, terapêuticas e preventivas, somos obrigados a um constante diálogo interdisciplinar, numa busca do sentido para a vida e para o bem-estar integral do Homem.14 Neste percurso é importante a reflexão e o diálogo sobre o próprio Homem na sua tarefa contínua de auto-realização, isto é, humanizar -se e humanizar o mundo em que está inserido conforme afirma Vítor Feytor Pinto15. Também para Leonardo Boff a consolidação de uma sociedade mundial globalizada e o surgimento de um novo paradigma civilizacional passa pelo cuidado com os pobres, marginalizados e excluídos, já que todo o Universo reclama harmonia.16 Cada pessoa é única e irrepetível, mas vocacionada para ser solidária e construir comunidades coerentes que respondam às necessidades comuns e às diferentes ideologias do Homem, segundo a sua crença.17 Neste sentido, unem-se intimamente reflexão teológica, teórica e realização pessoal, na perspectiva dos valores fundamentais, a partir da sua dignidade e liberdade invioláveis, conforme pensa Costa Pinto.18 Considerando que o mundo está a sofrer um processo de constante “mutação”, cada vez mais é preciso construir modelos que nos falem de humanização, de forma a dar sentido e harmonia ao momento histórico que estamos a viver. 13 Cf. V. FEYTOR PINTO, o. c., 124. 14 Cf. L. BERGER, D. MAILLOUX-POIRIER, Pessoas Idosas, Uma abordagem global, Processo de Enfermagem por necessidades, ed. revista e corrigida, Lusodidacta, Lisboa, 1995, 107- 108. 15 Cf. V. FEYTOR PINTO, o. c., 36-28. 16 Cf. L. BOFF, Saber cuidar, Ética do humano – compaixão pela terra, Editora Vozes, 3.ª ed., Petrópolis, 1999, 142. Segundo Boff o bem-estar do Homem depende de muitos factores, entre os quais um ambiente envolvente saudável não é o de menos impacto. A crise 12 generalizada que afecta a humanidade revela-se pela falta de cuidado com que se tratam as realidades importantes da vida: a natureza, os milhões de crianças condenadas a trabalhar como adultos, os idosos abandonados, a alimentação dos pobres, a saúde pública e a educação mínima. O presente livro aprofunda várias dimensões da vida pessoal e social, especialmente na perspectiva da fase planetária e ecológica da humanidade. Tudo o que existe no universo precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver saudavelmente. 17 Cf. B. DOMINGUES, Bioética. Questões disputadas, Metanóia, Porto, 2001, 24-25. Marchesi afirma que, nos dias de hoje, humanizar o hospital implica a modificação das estruturas, e sobretudo uma verdadeira relação com os operadores, isto é, aplicar bons recursos humanos que pratiquem boas relações com os familiares, com o doente e todo o meio envolvente. Por conseguinte, o que é realmente importante é oferecer ao doente a ajuda necessária, de modo a consolidar e construir também uma relação de acompanhamento personalizado, de ajuda espiritual, tratando-o como um todo para que possa viver em plenitude.19 Tudo, absolutamente tudo, evolui a partir dessa singularidade, matéria e espírito, átomos e estrelas, substâncias químicas e formas de vida. Enquanto seres humanos, cada um concretiza-se numa personalidade, numa identidade própria, e todos temos o dever de actualizar as próprias capacidades e de as pôr inteligentemente ao serviço dos outros, para que realizem a sua vocação própria. Tornamo-nos mais livres, responsáveis e solidários se «descobrirmos e promovermos a cultura da vida, para uma civilização do amor», segundo afirmação expressa de Vítor Feytor Pinto.20 A autenticidade humana revela-se, pois, como ser aberto aos outros, para dar e receber sem excessivas contabilidades. À partida, neste universo em mutação, é necessário defender os valores fundamentais da pessoa humana que, simultaneamente, são reivindicados e espezinhados pelos mais poderosos. Torna-se urgente assumir o empenho específico de trabalhar em defesa do doente mais pobre, promover o respeito pela sua dignidade.21 Além disso, como comunidade, estamos solidárias com todos os nossos irmãos doentes, sobretudo os mais pobres, e é para estes que trabalhamos. 18 Cf. J. COSTA PINTO, Questões Actuais de Ética Médica, Editorial A. O., 3.ª ed. revista e aumentada, Braga, 1990, 11. 19 Cf. P. MARCHESI, A Humanização da Assistência ao Doente, Edição Portuguesa do Secretariado de Humanização e Pastoral Hospitalar dos Irmãos de São João de Deus, Roma, 1982, 93. 20 V. FEYTOR PINTO o. c., 111. Este paradigma abriu o caminho para o novo fenómeno a que nós chamamos luta pela justiça social. Obviamente, a nossa missão é estar atentas e sensíveis aos mais pobres, aos que sofrem, até porque são estes que não têm ninguém para os ajudar no tempo de crise e de sofrimento.22 A voz dos sem-voz pode agora ser ouvida em algumas franjas da sociedade que vão construindo o poder da paz, da compaixão e da justiça. Além disso, para contradizer de modo absoluto a desumanização, sobretudo quando o Homem está fragilizado pela doença, há que considerar a dimensão espiritual, seja qual for a sua religião, raça ou cor. A espiritualidade tem uma importância primordial porque é uma das dimensões mais valiosas da vida humana. Portanto, este é o elemento-base na recuperação terapêutica da pessoa doente, sendo uma referência essencial à transcendência, mantendo o respeito incondicional pela diversidade de opções e convicções, especialmente necessário no tempo da enfermidade. Neste âmbito, a Igreja está intimamente ligada aos cuidados de saúde, e, por isso, também ela tem responsabilidade em ajudar a criar um modelo de humanização, tendo em conta a importância dos cuidados holísticos, indispensáveis para a saúde global.23 Todos os profissionais de saúde e agentes pastorais devem também ter em atenção a espiritualidade de cada ser humano doente, reconhecendo a condição de 13 fragilidade em que se encontra, de modo a poder oferecer-lhe uma boa qualidade de vida.24 Para que o processo terapêutico seja eficaz, é muito importante saber cuidar o doente de forma personalizada; isto é, prestar serviços de saúde de forma integral e humanizadora. 21 Cf. J. P. MACHADO, “Sofrimento, Mistério do Homem, Profissionais de Saúde”, in Brotéria, n.º 1, vol. 165, Junho, Lisboa, 2007, 25-26. 22 Cf. A. PRONZATO, o. c., 286-289. 23 No Encontro Nacional sobre a Pastoral da Saúde, em Fátima (2008), houve uma grande preocupação em que os tratamentos hospitalares fossem sempre acompanhados de todo o conforto que o apoio espiritual ao doente lhe pode trazer, destacando-se a importância dos cuidados de saúde a partir dos serviços de capelania bem organizados de modo a que os doentes se sintam apoiados no tempo da doença e do sofrimento pelos assistentes espirituais, voluntários e capelães. O modelo assistencial de cuidados exige uma necessária humanização, mas também, sobretudo, o testemunho de profissionais dedicados, responsáveis, que transmitem uma cultura própria que integra o valor da vida, em todas as dimensões, como um dom de Deus.25 Nesta visão, temos modelos de humanização sempre que estabelecemos dinâmicas de evangelização, comunicação e acompanhamento espiritual de relação de ajuda no tempo da crise, e atendemos o doente na sua situação concreta de sofrimento, fragilidade e solidão. Aquilo que nos parece importante é constituir comunidades dinâmicas no universo hospitalar, a partir de uma acção organizada com todos os que trabalham no âmbito da saúde. O nosso objectivo é implementar uma pastoral que ofereça apoio espiritual a todos os doentes, seus familiares, profissionais e voluntários, independentemente das suas opções espirituais, religiosas, ideológicas ou políticas, em ordem ao bem maior e total, no respeito integral pela pessoa humana. 14 2. Cuidar e acompanhar os doentes Atendendo ao que afirma Rui Costa, fica a convicção de quea saúde não é mera ausência de doença, mas sim um “estado” de bem-estar físico, psicológico, social e espiritual que permite ao Homem a sua autêntica realização. Consequentemente, a saúde não é um conceito estático, mas um processo sumamente dinâmico, encaminhado para a consecução, conservação e fomento do equilíbrio entre todos os elementos que compõem a situação existencial do Homem. E isto significa que, embora os aspectos físicos e emocionais da doença vivida no quotidiano estejam equilibrados, é necessário ter em conta o doente nos seus aspectos ambientais, familiares e sociais, para lhe prestarmos um acompanhamento adequado à sua situação concreta. 24 Cf. COMISSÃO NACIONAL DA PASTORAL DA SAÚDE, Relatório do XIX Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, Fátima, 2008, 3. 25 Cf. BENTO XVI, Mensagem do Papa para o Dia Mundial do Doente 2010: Dar Vida Semeando a Esperança, Vaticano, 22 de Novembro de 2009, 2-3. Apesar de todas as nossas limitações, porém, o critério com que se pode avaliar a nossa missão de agentes pastorais no cuidar e acompanhar espiritualmente os doentes consiste em saber se, eticamente, é bom ou mau e se está de acordo com a sua perspectiva existencial, física e social, em ordem a que, ultrapassada a crise, o doente possa viver novamente a sua auto-realização na convivência social e no cumprimento da sua missão.26 Ao olhar o nosso mundo, descobrimos imediatamente a urgência de cuidar e acompanhar os mais necessitados, isto é, Deus quer que descubramos aqueles que ao nosso lado, na nossa rua, na nossa cidade mais precisam de nós. Há sobretudo a urgência de estar atentos para poder encontrar Jesus escondido na vida de cada irmão.27 Cuidar e acompanhar os doentes é fazer a experiência de Deus no meio do Seu povo, sobretudo o Seu estilo de vida e, como Jesus, ser sensível à angústia e sofrimento dos doentes e dos aflitos. O Novo Testamento relata que Jesus se sentia tocado por todos os necessitados, fosse qual fosse a sua mágoa e a sua dor (Lc 8, 26- 29; 34-39). O Seu desejo ardente era curar a todos, é esta a forma de cuidar e de acompanhar de Jesus. Cuidar e acompanhar os doentes significa lançar-se na aventura de confiar perdidamente em Deus como Boa Notícia especialmente para eles (Mt 8,5- 13). A única forma de avançarmos neste projecto de cuidar e de acompanhar os doentes será fazendo como o centurião, caminhar juntos, suplicando firmemente a Deus que seja Ele o autor da acção, na certeza de que nos podemos ajudar mutuamente. 26 Cf. R. COSTA PINTO, o. c., 19-20. 27 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “As Ordens e as Congregações Religiosas em Portugal”, VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 223-228, p. citadas: 224-226. 15 3. A Igreja, comunidade em missão junto dos mais pobres – Os desafios pastorais É naturalmente muito importante que se caminhe cada vez mais no sentido de uma maior personalização dos cuidados de saúde a partir de um serviço desinteressado às pessoas que sofrem. O estar ao lado dos pobres abre-nos horizontes impensáveis, sobretudo no campo da hospitalidade. Leva-nos a descobrir novas formas de trabalhar, abertas ao dom do Espírito, e torna-nos mais sensíveis aos apelos de Deus, de forma a responder com lucidez às urgências do nosso tempo.28 Considerando a relevância da saúde para todos, é urgente constituir o «processo harmónico de bem- estar físico, psíquico, social espiritual que dê ao Homem a capacidade para cumprir a missão à qual Deus o destinou, de acordo com a etapa da vida em que se encontra»29, seja qual for a circunstância. Como lemos nas Actas do XII e XIV Encontros Nacionais da Pastoral da Saúde, fazem parte do grupo dos discípulos de Jesus no nosso tempo todos os assistentes espirituais, os profissionais de saúde; em suma, todos os que trabalham apaixonadamente neste âmbito. A missão de acompanhar o Homem que sofre requer uma qualidade assistencial integral, uma grande exigência, que implica um trabalho interdisciplinar e uma adequada formação na área da saúde. Além da relevância do trabalho realizado, também é importante desenvolver estruturas e espaços acolhedores que proporcionem maior bem-estar a todos os que trabalham com os doentes na dimensão espiritual e religiosa.30 28 Cf. COMISSÃO NACIONAL DA PASTORAL DA SAÚDE, o. c., 128. 29 V. FEYTOR PINTO, o. c., 17. A chave paradigmática que nos leva a amar o próximo de forma genuína é deixarmo-nos mover pela compaixão pelos mais necessitados, humanizar, evangelizar, e sobretudo ajudar os agentes de pastoral a consagrar a vida em favor dos doentes. A doença constitui um verdadeiro desafio, uma vez que todas as pessoas passam por ela, e só a partir da consciência disso se pode compreender a urgência de prestar um apoio espiritual significativo a todos os que necessitem. Contudo, a comunidade em missão junto dos mais pobres constitui um mistério do Eu e do Tu perante o mistério de Deus. Por isso, a atenção a todos, sobretudo àqueles que em suas casas vivem encerrados na vergonha, na pobreza, na dor, na angústia e no sofrimento, é uma urgência.31 Ajudá-los a libertar-se a partir de um processo gradual, numa experiência de comunhão total.32 Numa sociedade marcada pelo consumismo, pelo poder e pelo ter, é importante dar testemunho apostólico e ser sinal da disponibilidade do ser na realização da sua missão na Igreja, como dom de curar, não somente como serviço de amor caritativo a homens sofredores, mas, mais ainda, como prova de que o poder de curar é companheiro inseparável de Jesus. A Igreja é uma comunidade enviada aos mais pobres, a sua missão é sobretudo acompanhar, curar e libertar o ser humano atingido pela solidão, doença, angústia e sofrimento (Tg 2,15-16). Leonardo Boff afirma que não é difícil descobrir os desafios; olhando a sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento, da comunicação e do 16 desenvolvimento, torna-se fácil descobrir os desafios que se colocam à Pastoral da Saúde. Todavia, esta sociedade, em vez de oferecer bem-estar ao Homem, “abre brechas” de solidão no universo humano: com a generalização do uso da Internet perdeu-se o contacto pessoal. Criou-se um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, de comunicação, de contacto humano.33 Por isso, este autor defende a evidência da necessidade de construir a harmonia de todo o Cosmos.34 Os desafios da Pastoral fundamentam-se basicamente no cuidado, na comunicação, no estar atento ao outro. Escutar atentamente o que ele nos quer dizer, através de símbolos, palavras e gestos. O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. «Quer dizer, no cuidado e na atenção, identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-estar e das acções um intercâmbio de comunicação com exigências da própria Saúde.»35 30 Cf. COMISSÃO NACIONAL DA PASTORAL DA SAÚDE, o. c., 129. 31 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “Princípios e Orientações da Acção Social e Caritativa da Igreja”, VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 229-234, p. citadas: 227-228. 32 Cf. L. FARIA, Uma Ponte entre duas Loucuras, a Misericórdia e a Hospitalidade no carisma das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, Ed. Artegraf, Madrid, 2006, 146-148. Neste sentido, o desafio pastoral consiste numa maior e mais consciente fidelidade criativa ao Homem e a Deus que nos chama e nos envia em missão para o mundo do sofrimento, como instrumentos da Sua Bondade e Misericórdia. O segredo do êxito está na fé, na confiança, na entrega, na audácia e na disponibilidade, podendo o agente de pastoral cumprir a missão, com novo dinamismo. Acima de tudo, devemos ser presença sanadora para o Homem doente, isto é, ser voz profética que revela o poder humanizador do Evangelho.36 É importante recordar que Jesus desafiou o coxo, o paralítico e o aleijado, dando-lhesuma simples ordem: «Levanta-te e caminha.» (Mc 7,53-56) Fortalecidos pela sua fé, de repente conseguiram levantar-se e caminhar. 33 Cf. L. BOFF, o. c., 11. 34 BOFF, o. c., afirma que o bem-estar do Homem depende de muitos factores. O cosmos deverá estar plenamente ordenado e em harmonia, assim como todo o meio envolvente saudável. Esta obra é bastante crítica, na medida em que o autor questiona muitos factores da vida humana e social, pelo que constitui um grande desafio pastoral para o nosso tempo, na resposta à questão: como cuidar o espaço para que haja uma boa qualidade de vida. 35 Ibidem, 12. 36 Cf. R. SÁNCHEZ, Enviadas a Curar, La Fraternidad, Signo de Sanación y Salvación, Caridad y Ciencia, Artes Gráficas, Madrid, 1994, 27-28. À medida que vamos descobrindo a missão de Jesus e o seu poder, damo-nos conta de que a assistência ao Homem em sofrimento é o caminho que a Igreja tem de percorrer no cumprimento da sua missão, dando um testemunho de alegria pascal e de esperança cristã. O acompanhamento espiritual marca a diferença, porque, por um lado, ajuda a que o doente se anime na fé em Cristo e, por outro lado, ajuda o Homem a descobrir o valor do sofrimento, o sentido da morte, na luta pela vida, na sua globalidade, a partir da actualização da mensagem da Boa Nova de Cristo para o nosso tempo.37 O desafio pastoral implica a qualidade do serviço prestado ao doente e o diálogo e comunicação com a família. Sempre que estamos atentos ao outro, podemos escutar palavras que revelam necessidades espirituais e, sobretudo, apelos aos cuidados integrais. A análise crítica da realidade e os desafios internos e sociais transparecem nas expressões dos doentes, que são reveladoras das suas preocupações de forma extraordinária. Um dos grandes desafios da Pastoral da Saúde é saber escutar o grito sofredor dos nossos contemporâneos que reclama uma voz profética, confiante, geradora de 17 esperança perante a problemática ética que responsabiliza os profissionais, administrativos e gestores que trabalham em campos muito delicados como é o âmbito da Saúde.38 O que importa é a experiência concreta. O grande anúncio lido a cada passo nos olhares angustiados e nas pressas dos milhares de transeuntes de vida apressada nas cidades, cada vez mais caóticas, é: «Testemunhas precisam-se, que sejam profetas de esperança, que semeiem a alegria de um sentido para a vida.» Finalmente, o maior desafio é ser presença significativa no mundo da Saúde. 37 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Plano de Pastoral da Saúde, Província de Portugal, Lisboa, 2008, 19-20. 38 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “Meditação sobre a Vida”, VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 129-139, p. citadas: 132-133. 18 4. A missão da Pastoral da Saúde em hospitalidade Neste mundo globalizado, marcado por grandes mudanças, a desigualdade “gritante” dos nossos dias é a que se verifica entre ricos e pobres. E esta desigualdade vê-se também entre países ricos e países pobres.39 Embora não possa haver dúvidas acerca do poder das grandes empresas e do domínio dos poderosos sobre os mais pobres, existe uma diferença abissal na economia, sendo urgente promover a justiça, dialogar com a cultura e com outras religiões no sentido de promover a saúde em hospitalidade. Lendo os sinais dos tempos na perspectiva de Jesus e à luz do mandato apostólico, preconizamos uma Pastoral da Saúde que tem a missão de ser «expressão viva da cordialidade e do acolhimento de Jesus, vivendo e transmitindo valores a partir da hospitalidade com simplicidade e alegria»40. Neste sentido, articulando entre si a missão da Pastoral da Saúde no vasto universo do sofrimento, aceitamos os desafios do mundo actual a partir da missão de cuidados integrais na área da saúde: «Partilhamos, de certa maneira, a nossa missão hospitaleira com outras pessoas. Favorecemos a sua vida de fé e procuramos comunicar-lhes o espírito da nossa congregação em vista dum melhor serviço hospitaleiro.»41 A acção pastoral deverá estar atenta ao que se vive, pensa, goza ou sofre. É fundamental potenciar uma leitura crente da vida, discernindo-a a partir do Evangelho e interrogando-O a partir da vida. São as pessoas doentes que nos ajudam e ensinam a descobrir que a vida dos homens de hoje pode ser lida como Evangelho de Jesus Cristo. Este processo de saber estar junto de quem sofre com qualidade e dignidade exige que a comunidade eclesial assuma a saúde global como expressão qualificada da presença do Reino.42 O tempo presente desafia-nos a renovar a nossa acção pastoral fazendo uma análise cuidadosa sobre os meios, os critérios, os dinamismos a impulsionar com os projectos a desenvolver na missão, a estabelecer parcerias.43 Cristo convoca-nos para a hospitalidade em benefício dos doentes. E a partir desta, descobrimos o modo de ser e estar, e, sobretudo, aprendemos a testemunhar que o Reino já existe neste mundo, efectivamente entregando a vida em hospitalidade.44 39 Cf. CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, “Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo”, n.os 8-9. 40 IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Constituições. Directório, Roma, 1994, n.º 59. 41 Idem, Plano de Pastoral da Saúde, Província de Portugal, 2008, 38-39. Para Morujão, a missão hospitaleira passa por uma Pastoral da Saúde que tem como centro a pessoa doente. Quem a serve em entrega total e incondicionalmente gasta a vida “gota a gota” em disponibilidade. A riqueza das relações, a caridade, um serviço de qualidade que cure e integre o doente são aspectos que tornam presente o Deus da vida, na missão da Pastoral da Saúde.45 É o Senhor que chama, também nos confia a missão e nos envia a proclamar a Boa Nova da salvação até aos confins da terra, abandonando o conforto e indo ao encontro da ovelha perdida da casa de Israel. Porventura não será este o resultado de um dos sinais do nosso tempo?46 Neste sentido, de qualquer modo, a Igreja tem necessidade urgente de pessoas com 19 fé sólida, profunda e genuína sensibilidade humana e social para estarem na vanguarda da defesa dos direitos dos doentes, reconstruindo assim o significado da sua oração contemplativa, integrada na dimensão do mistério da doença e realizando, simultaneamente, a sua vocação: «Cada comunidade realiza a missão que a congregação lhe confia […]. Participamos todas da missão, que é única, embora sejam diversas as tarefas, e procuramos uma integração harmoniosa entre a vida fraterna, espiritual e apostólica.»47 42 Cf. J. C. BERMEJO, Inteligencia Emocional, La Sabiduría del Corazón en la Salud y en la acción social, Edición Sal Terrae, Madrid, 2007, 58-61. 43 Cf. CONSELHO INTERNACIONAL DE ENFERMEIROS, Estabelecer parcerias com as Famílias para promover a adesão ao tratamento, a Promover a enfermagem e a saúde em todo o mundo, Catálogo da Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE), Ordem dos Enfermeiros, 2008, 39-40. 44 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Identidade e Missão, Lisboa, 2006, 15-17. 45 Cf. V. CÁRCEL ORTÍ, “Fidelidade a uma Missão”, in Hospitalarias, n.º 228, Outubro -Novembro, Lisboa, 1999, 12-16. 46 Cf. M. MORUJÃO, “Missão de globalizar a reconciliação com Deus, com os outros e com a criação”, in Brotéria, n.º 5, vol. 167, Lisboa, Novembro 2008, 330-331. De acordo com o que afirma Vitor Feytor Pinto, vivemos com esperança o desafio no futuro da saúde, sempre novo e exigente mas cheio de novidade, porque temos a certeza de que a consagração hospitaleira implica uma dedicação total à missão. Considerando a importância da missão da Pastoral da Saúde, temos a certeza de que o serviço à vida pressupõe a interiorização de uma cultura que reflicta a humanização e personalização, nos cuidados e nas estruturas, a partir de um acompanhamento espiritual e religioso.48 20 5. Acolher e cuidar dos doentes Podemos dizer que a melhor palavra para descrever aquilo que Jesus experimentou pelos doentesseria simpatia. É esta a experiência que nós somos conduzidas a viver na medida em que nos vamos tornando conscientes da solidariedade para com os mais fracos e doentes. Segundo pensa Menni, quanto mais pobres forem os pobres, mais representam Jesus ao vivo.49 Esta espiritualidade vai desaguar no coração do Pai Bondoso e cheio de Misericórdia e, sobretudo, na sua compaixão pelos pobres. Reconhecer esta realidade é seguir os passos de Bento Menni, no sentido de se estar disponível para cuidar os pobres. 47 IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Constituições. Directório, n.º 63. 48 Cf. V. FEYTOR PINTO, “Retos para la Pastoral Sanitaria em Portugal”, in Dolentium Hominum, Roma, n.º 35, ano xii, 1997-2, 74-75. 49 No seu livro O preço da coragem, Mantonati relata a vida de Bento Menni, sublinhando a coragem em seguir Jesus, descobrindo-o no rosto dos doentes. Ele escutou a voz do Mestre: «Toma a tua cruz e segue-me!» Em breve deixou a segurança do emprego para seguir a vocação religiosa hospitaleira, na Ordem de São João de Deus, da qual chegou a ser o superior geral, fiel discípulo do Mestre Jesus. O sinal de contradição seguiu-o pela vida fora. Restaurou a ordem em Espanha, Portugal e México. Foi fundador das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, em 1881, A sua missão é dedicar-se aos doentes mentais e a outros irmãos mais necessitados. Esta é uma espiritualidade/filosofia própria das comunidades hospitaleiras: acolher e cuidar com ternura os doentes mais pobres. Para esta vocação só assim se torna compreensível falar do Mistério de Deus. Foram estas as atitudes das primeiras Irmãs Hospitaleiras que, porque viviam conscientes da sua pobreza, puderam levar por diante esta obra tão grandiosa.50 A experiência de total comunhão levava-as a cuidar os doentes com “amor de mãe”, sentiam-no de forma palpável e, com ternura, entregavam o coração em plena disponibilidade para estarem ao serviço dos doentes, de todos os marginalizados e desprezados pela sociedade. Cuidar os pobres é defender os seus direitos fundamentais, em particular o direito à liberdade, à saúde, à vida, à esperança. Por outras palavras, saber acolher e cuidar é, porventura, imitar a dimensão da vida de Jesus e implica mover a esperança de que a tenra planta da congregação vai lançar frondosos ramos, no mundo da hospitalidade, como diz Pina Ribeiro.51 O novo paradigma de acolher e cuidar o doente é a força dinâmica do amor, que actua sob a acção do Espírito, expressa-se num serviço activo, numa entrega generosa, que dá testemunho de Cristo. É esta a forma de acolher e cuidar o Homem em sofrimento, centrada na faceta peculiar da hospitalidade em favor dos mais pobres. Viver em fidelidade o carisma de uma congregação requer especial dedicação aos que mais sofrem, e sobretudo estar atento aos sinais de Deus que passam e marcam a vida do Homem: «Através da acção apostólica, fazemos presente o amor de Deus aos homens. A todos recebemos como irmãos, sem distinção de raça, religião, ideologia ou classe social, prestando-lhes uma assistência integral.»52 50 Cf. A. MONTONATI, O preço da coragem, São Bento MenniO preço da coragem, São Bento Menni -100. 51 Cf. A. RIBEIRO, Vocação de Caridade, Carisma da Congregação das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, Ed. Irmãs Hospitaleiras do Sagrada Coração de Jesus, Queluz, 1986, 72-73. É decisivo potenciar uma relação cada vez mais humana e humanizante com o doente e sobretudo procurar a qualidade integral nos cuidados de saúde, para que estes respondam às necessidades dos tempos e lugares, tendo sempre presente a funcionalidade e o bem-estar como critério evangélico do serviço amoroso e generoso, livre e disponível em benefício dos irmãos. Bento Menni dizia: «Minhas filhas, a vossa sede, o vosso desejo, o vosso anelo será imitar o glorioso Pai e 21 Patriarca São João de Deus, que não procurava outra coisa senão sacrificar-se para aliviar os pobres por amor de Jesus Cristo.»53 Hoje, a acção sanadora em favor dos doentes, aos quais ajudamos a experimentar a proximidade e a ternura de Deus, é a forma de darmos a vida pelo Reino. A grande manifestação da unidade é descobrir a misteriosa dignidade da pessoa humana e a sua profunda força partindo de Cristo, e valorizar inteligentemente o significado da autêntica humanização a que Deus nos convida ao acolher e partilhar a vida com aqueles que vivem dentro de si a experiência dolorosa da doença, da solidão, da pobreza, e sobretudo, da falta de amor.54 No respeito pelo princípio da dignidade e dos direitos da pessoa, é necessário descobrir o chamamento, a vocação, e anunciar ao Homem que a sua vida tem um significado profundo, que a sua pessoa foi colocada pelo próprio Deus no centro da história, como primordial. Colocarmo-nos no lugar do outro constitui uma experiência significativa, de importância fundamental, no sentido de lhe oferecer razões de alegria e esperança num futuro melhor.55 Assim, o respeito pela dignidade da pessoa humana significa, acima de tudo, a promoção da sua capacidade para pensar, decidir e agir. Conseguiremos isso cuidando, acolhendo e amando os pobres porque representam o próprio Jesus Cristo. 52 IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, o. c., n.º 61. 53 Idem, Missão Hospitaleira, Boa Notícia, Identidade e Missão, Documento do XIX Capítulo Geral, Roma, 2006, 29-31. 54 Cf. P. MARCHESI, o. c., 59-60. 22 6. A Comunidade Hospitaleira – Comunidade em missão A Comunidade Hospitaleira é o lugar privilegiado para construir a esperança libertadora de onde dimana o anúncio, o testemunho de vida, numa entrega total no seguimento de Jesus Cristo. Esta é o berço deste sonho que se vai realizando quotidianamente, onde se opera a cura para os que assistimos e a cura para os que nela vivem e trabalham. Acima de tudo, queremos caminhar para a plena identificação entre o dizer, o fazer e o ser, conscientes da responsabilidade que representa o que é ser comunidade em missão. A comunidade em missão torna-se um grande desafio, e, simultaneamente, um compromisso que nos motiva a trabalhar apaixonadamente, a fim de proporcionar aos doentes cuidados holísticos e, sobretudo, uma inserção na sociedade, na Igreja e no mundo.56 É nosso dever desenvolver uma presença mais próxima das situações de marginalização e sofrimento, de modo a estabelecer a funcionalidade, procurando a máxima optimização dos recursos financeiros, estruturais e humanos, com imaginação criativa, já que estes são bens escassos e pertencem aos pobres.57 Como Cristo, que ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a Boa Nova do Reino de Deus, assim também nós queremos ser presença libertadora para os pobres, os doentes, os marginalizados. 55 Cf. J. RIBEIRO, O Importante é a Saúde, Estudo da adaptação de uma técnica de avaliação do Estado de Saúde – SF – 36, Fundação Merck Sharp Dohme, Lisboa, 2005, 40-41. 56 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “Princípios de Acção Social e Caritativa”, VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 229-234, p. citada: 234. 57 Cf. J. C. BERMEJO, Relación de ayuda, En el misterio del dolor, Artes Gráficas, Madrid, 1996, 17-18. A comunidade em missão, para o mundo do doente, torna-se esperança libertadora, espaço cuidadosamente organizado para acontecer a experiência da vida fraterna e apostólica com dinamismo espiritual. De facto, já a primeira comunidade em Jerusalém testemunhava a alegria e o encanto de ser chamada e convocada em nome de Jesus misericordioso, pela força do Espírito, para curar os doentes.58 Se desejamos seguir Jesus, teremos de implementar o dinamismo da esperança, a partir do carisma da misericórdia, no sentido de ajudar o doente para que faça a experiência de ser amado e curado por Jesus. A comunidade de saúde é libertadora porque revigora, fortalece e anima o coração dilacerado pela dor, constrói uma relação humana profunda que torna possível a comunicação da mensagem do amore da paz, segundo afirma A. Brusco em Humanizar os Hospitais.59 A hospitalidade continua a habitar no coração da humanidade e a testemunhar a força samaritana do Amor de Deus, em benefício dos pobres e doentes.60 Assim, pois, a comunidade em missão constrói uma torrente viva, libertadora e tem como origem Deus, o Deus que foi revelado em Jesus Cristo como misericórdia, bondade, ternura e compaixão. Ser comunidade em missão é também articular os valores da comunidade empenhada na saúde, descobrindo o espírito de contemplação na acção, a fraternidade e a amizade, na união de corações, no serviço alegre, disponível aos doentes, (vivas 23 imagens de Jesus). Ao descrever o estilo desta comunidade sublinha-se ainda a importância do agradecimento, humildade, obediência, pobreza, sacrifício e alegria na sua vida e força espiritual como comunidade.61 58 Cf. C. MARTINI, Manuale di Pastorale Sanitária, G. Camolli e I. Monticelli Eds., Edizione Camelliane, Milão, 1999, 140-141. 59 Cf. A. BRUSCO, Humanizar os Hospitais, Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, Braga, 1985, 8. 60 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “Responsabilidade Solidária pelo Bem Comum”, VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 94-96. O que é mais significativo para uma comunidade em missão, como instrumento de aperfeiçoamento prático, é o propósito firme de estar atenta a programas de promoção e educação para a saúde, sobretudo para todas as pessoas que vivem, quer em meios hospitalares quer no âmbito social, em abandono total, isto é, entregues a si mesmas.62 A Comunidade Hospitaleira é chamada a ser espaço de missão libertadora, a fazer o bem a todos e ser espaço de esperança onde todos os doentes encontrem um lugar, e sobretudo um abrigo, uma casa, uma comunidade de paz, alegria e amor, um espaço onde Deus se revela vivo e verdadeiro. 6.1. Convocadas por Cristo para a hospitalidade Nas entrelinhas da vida quotidiana brota o compromisso da hospitalidade, para continuar na Igreja e no mundo a missão salvífica de Jesus em favor dos doentes. A partir desta mística, vamos descobrindo a cada momento o chamamento de Deus para a missão apostólica, que se revela a partir do cuidado directo aos doentes, destinatários da nossa acção, traduzida por “verdadeira caridade” enquanto forma de escutar Deus que nos chama para a missão, e simultaneamente vivemos em disponibilidade para os planos de Deus, estando atentas à missão de cuidar, tratar e amar os doentes, respeitando os seus direitos fundamentais.63 Por conseguinte, a nossa liberdade interior é posta à prova quando atendemos com ternura as pessoas que necessitam dos nossos cuidados, e o fazemos de forma gratuita, atenta, generosa e espontânea. A partir deste compromisso de hospitalidade fazemos a experiência de que podemos diariamente contemplar o rosto de Cristo na pessoa dos nossos irmãos doentes (qual milagre), como Maria de Nazaré, a Mãe de Jesus e as mulheres da Bíblia que acompanharam Jesus até à cruz (cf. Jo 19,25-27). Como elas, apostamos na vida, apesar da ausência de possibilidades humanas e sobretudo apesar da vulnerabilidade que experimentamos no nosso quotidiano, em contacto com a dor e o sofrimento.64 No entanto, continuamos a acreditar que Deus pode construir um novo céu e uma nova terra, apesar da pobreza e da miséria em que vivem os pobres e doentes. Tudo pode ser transformado em consolação e alegria, porque a Deus nada é impossível. 61 Cf. M. A. JIMÉNEZ RECIO, Relación sobre los orígenes de la Congregación de Hermanas Hospitalarias del Sagrado Corazón de Jesús, Madrid, 1981, 238-245. 62 Cf. M. SOROLDONI, o. c., 82-85. 63 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Constituições. Directório, n.º 34. Por conseguinte, quando a presença de Deus, misteriosa, invade a nossa vida, os doentes e necessitados com os quais seguimos Jesus ajudam-nos a tomar consciência do valor da vida, a abrir horizontes a novas realidades e, ao mesmo tempo, a viver em plenitude a nossa existência humana.65 A dedicação incondicional implica responder eficazmente às necessidades das pessoas doentes a quem servimos, a partir dos trabalhos mais simples e humildes, próprios da mãe que cuida do seu filho pequeno. «Todos os dias os levantamos, lhes damos de comer, os curamos, vestimos e limpamos […]. O nosso lugar é ao lado dos 24 doentes, mesmo que o seu estado seja repugnante.»66 É este o caminho da verdadeira hospitalidade. Bento Menni soube traduzir o conteúdo da missão hospitaleira como uma experiência mística da união com Deus, a partir do compromisso de fidelidade, na expressão «servir os doentes com ternura ou simplesmente servir»67. Ser hospitaleiro é estar sempre disponível e em posição de sentinela em favor dos irmãos necessitados. Pertence ainda ao estilo hospitaleiro a preocupação constante, cheia de delicadeza, pela situação da pessoa doente, com uma opção preferencial pelos mais pobres e desprotegidos, sem abandonar os demais. Este constitui o principal objectivo da missão em hospitalidade68, na fidelidade à missão de estar na defesa da dignidade humana mais vulnerável: «Sempre que deixastes de fazer o bem aos mais pequeninos foi a mim que o não fizestes.» (Mt 25,40-50) É sobretudo necessário uma transformação pessoal hoje, para descobrirmos este caminho. 64 Cf. C. MARTINI, o. c., 142-143. 65 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Identidade Hospitaleira... 26-27. 66 F. BERRUETE, Perfil Juandediano del Beato Bento Menni, Granada, 1985. A Carta Pastoral A Acção Social da Igreja, da Conferência Episcopal Portuguesa, apresenta o convite a fazermos a experiência de descobrir a presença de Deus na pessoa doente, no mais humilde. Entre outras realidades, a Igreja é convidada a despojar-se dos bens terrenos e a abrir-se à acção do Espírito Santo, e sobretudo estar atenta aos sinais dos tempos, no sentido de acolher com ternura de Mãe os mais simples.69 Considerando a relevância da realidade antropológica da pobreza, é necessário deixarmo-nos interpelar por Deus, que nos chama a estar efectivamente disponíveis para atender os doentes com amor desinteressado, fazer a opção preferencial pelos desprezados da sociedade. É, pois, preciso acolher o doente com ternura e aconchego, assumir que na realidade ele é um irmão a tratar e, se possível, curar. Hoje, o Senhor continua a confiar à Sua Igreja a missão de percorrer toda esta Galileia, proclamando o Evangelho do Reino, curando entre o povo todas as doenças e enfermidades que inquietam o Homem do nosso tempo. Fomos convocadas por Cristo para servir e acompanhar espiritualmente os doentes, sendo para eles samaritanos ao jeito de Cristo compassivo e misericordioso que passou na terra fazendo o bem.70 67 M. SOROLDONI, o. c., 86-88. 68 Cf. B. MENNI, Constituciones de las Hijas de Nuestra Señora del Sagrado Corazón de Jesús, Madrid, 1882, n.º 4. 69 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “A Acção Social da Igreja” V Volume, Secretariado Geral do Episcopado, Rei dos Livros, Lisboa, 2002, 90-113, p. citada: 97. Nesta tarefa é de salientar a importância do cuidado pela auto -estima, não só para todos os doentes como para os profissionais, não no sentido do orgulho ou da vaidade, mas no sentido em que esta significa um processo de estabilidade emocional, num estádio de desenvolvimento da personalidade.71 Mesmo em situações de doença, a auto-estima pode ser factor de «bem-estar psicológico. Sobretudo, reflecte, naturalmente, os sentimentos de satisfação e felicidade de cada um consigo próprio, com as suas condições de vida sociais, relacionais, com as realizações pessoais do passado e com as expectativas de futuro.»72 A maturidade humana, fruto de uma integração harmónica das diferentes dimensões, põe o agente de pastoral na predisposição de compreender o impacto da 25 doença na pessoa, para a acompanhar num sentido global.73 Lendo os sinais dos tempos, tomamos consciência da transcendência do mistériodo sofrimento e sobretudo descobrirmos que a partir deste a vida é para ser contemplada, experimentada e amada. O rosto interpelante de Deus, como diz Santo Agostinho, «é mais íntimo a mim mesmo do que eu». Deus é Infinito, é Amor, é Misericórdia é Coração, é caminho seguro para chegar ao Pai. Aquilo que nos identifica mais claramente, em todo este processo, é acolher e cuidar espiritualmente aqueles que estão aos nossos cuidados. 70 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Plano de Formação, Identidade e Missão, Ed. Congregación de Hermanas Hospitalarias del Sagrado Corazón de Jesús, Madrid, 2001, 66-69. 71 Cf. J. RIBEIRO, o. c., 50-51. 72 R. FERREIRA NOVO, Para Além da Eudaimonia, o Bem-Estar Psicológico em Mulheres na Idade Adulta Avançada, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e do Ensino Superior, Lisboa, 2003, 49. 73 Cf. J. C. BERMEJO, Relação pastoral de ajuda ao doente, 37. É necessário saber escolher aquilo que é importante e trabalhar no sentido de conseguir o objectivo de despertar o interesse pela vida, através de simples experiências positivas que, despertando confiança no amanhã, assim fazem sentir segurança e coragem para caminhar sempre em frente.74 Uma presença amiga neste sentido é importante para construir “pontes e abrir estradas” de esperança e harmonia, na alegria de se saber convocado por Cristo, para trabalhar em hospitalidade. «Formamos na Igreja uma família hospitaleira que tem o seu fundamento em Deus. Abertas à acção do Espírito, comprometemo -nos a formar comunidades como a dos primeiros cristãos, que tinham um só coração e punham tudo em comum.»75 Fiéis ao carisma da hospitalidade, e continuando atentas à acção do Espírito, agradecemos o dom recebido dos fundadores, a visão de fé sobre a pessoa humana, a descoberta de Deus nos acontecimentos e na história.76 Esta abordagem constitui um desafio, ela é simultaneamente uma missão exigente que “arrasta consigo” a forma específica da hospitalidade, acolher e cuidar os marginalizados. Por isso, a gratuidade é uma mística que dinamiza o trabalho pastoral, a partir do acompanhamento espiritual aos doentes, uma visão de fé, de esperança e de amor. Nesta dimensão, o sentir-se convocada por Cristo gera uma “terapêutica” da esperança, actualiza a mensagem e integra o acompanhamento personalizado à pessoa doente e, sobretudo cruza todos os elementos do tratamento, sem esquecer a importância da humanização que supõe uma espiritualidade integrada no universo do sofrimento.77 74 Cf. J. RIBEIRO, o. c., 62. 75 IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Constituições. Directório, n.º 48. 76 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “A Família Esperança da Igreja e do Mundo” VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 171-234, p. citada: 171. 77 Cf. D. SERRÃO, R. NUNES, Ética em Cuidados de SaúdeÉtica em Cuidados de Saúde -33. 6.2. Acompanhar e ajudar espiritualmente o doente As transformações demográficas, sociais e familiares da sociedade têm vindo a revelar, com particular incidência, o aumento da população idosa com perda de autonomia, bem como o aparecimento de situações problemáticas no âmbito da saúde mental, dependência física, isolamento e exclusão social, nos sectores expressivos e tendencialmente importantes em termos de cuidados de saúde. Todavia, o acompanhamento espiritual aos doentes inclui em primeiro lugar, atitudes humanas como o respeito, a compreensão, uma equilibrada participação 26 afectiva, sem a qual não é possível ajudar quem sofre. «Trata-se de fazer um caminho espiritual e percorrer, com o doente, o itinerário de mistério no sofrimento, centrado no seu problema concreto na dimensão do seu ser.»78 Acompanhar o doente é, sobretudo, ler o “documento humano em profundidade”, no sentido de saber compreender a natureza humana na sua totalidade. Carlos Bermejo fala da sua experiência de relação pastoral de ajuda ao doente como terapia fundamental para uma libertação integral no seu todo. Ele aconselha a estar muito atento, saber escutar activamente.79 Ter presente a dimensão vertical e horizontal, isto é, fazer a experiência suprema da nossa relação com Deus através das crenças, valores, estilo de vida, qualidade de vida, e interacções de nós próprios, com os outros e com a natureza. Para Vítor Feytor Pinto, acompanhar espiritualmente os doentes quer na vida sacramental, quer no simples aprofundamento da fé, é uma realidade antiga e sempre nova que urge desenvolver e cuidar. Por conseguinte, a Igreja tem neste campo um papel primordial. Trata-se de transformar a realidade temporal e orientá-la para progredir na qualidade profissional de modo a implementar a originalidade pastoral, de modo a estar atento ao doente.80 78 J. C. BERMEJO, o. c., 38. 79 Cf. B. PÉREZ DE MENDIGUREM, Orar na Doença, PAULUS, Lisboa, 2001, 52-54. Os cuidados continuados de saúde são acolhidos incondicionalmente pelo agente de pastoral, à maneira de Jesus, na medida em que também ele aprende a conviver com esta realidade, havendo, no entanto, momentos de interrogação, períodos de silêncio e solidão, profundas dúvidas e incertezas.81 É preciso tomar consciência da urgência da intervenção qualitativa no quadro referencial, a qual passa por estar consciente da complexidade dos problemas daí decorrentes, contornados pelo estabelecimento de redes sociais de apoio integrado que estabeleçam entre si objectivos convergentes na vertente da prestação de cuidados continuados de saúde e apoio social, de forma humanizada, global e executiva, preferencialmente no âmbito quotidiano do indivíduo/familiares (ambulatório/ /domiciliário).82 Os profissionais de saúde devem ter como referência o doente, sobretudo possuir a necessária competência técnica/ /profissional, bem como a consciência dos valores que conferem um sentido à doença, na sua actividade profissional a partir da dimensão humana/espiritual.83 Acolher e cuidar os doentes terá de passar por criar redes integradas nos sectores da saúde, quer no domicílio, quer em regime ambulatório, de forma a colmatar o aumento exponencial do número de pessoas portadoras de doenças crónicas, com tendência inexorável para a deficiência, para a desvantagem e para a incapacidade.84 80 Cf. V. FEYTOR PINTO, Saúde para todos... 30-31. 81 Cf. A. NOLAN, o. c., 144-146. 82 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, Diário da República - 1.ª Série - n.º 19-28 de Janeiro de 2010, Dec.-Lei n.º 8/2010, Artigo 1.º, 257. 83 Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PASTORAL DA SAÚDE, o. c., 18-19. 84 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “Responsabilidade Solidária pelo Bem Comum”, VI Volume, 2002-2005, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2006, 91-121, p. citadas: 94-95. Acima de tudo, é necessário formar equipas multidisciplinares, devidamente preparadas, sobretudo centradas no objectivo essencial, com competência profissional para o acompanhamento, espiritual e humano, através de cuidados de média e longa duração, indispensáveis a um sistema de saúde que se quer adequado para responder também às necessidades de uma população com idade mais avançada. 27 A nossa missão implica também cuidar da dimensão espiritual e, sobretudo, ser presença que revele a existência do amor, da fé, da esperança, da confiança, do profundo respeito e da inspiração. Através dela emerge o significado e a razão para a existência.85 No contacto com o doente e com a família é necessário estarmos atentos aos elementos culturais, sociais, psicológicos e outros, não descurando a dimensão religiosa da pessoa à qual, na situação de enfermidade, ninguém é alheio. Cuidar e acompanhar o doente é prestar-lhe uma assistência integral, humana/ /espiritual e religiosa.86 Mais do que um dever das confissões religiosas ou do Estado, este é, sobretudo, um direito do doente. Por isso, há que salvaguardar sempre e em qualquer parte a sua opção religiosa.87 O ser humano é umser espiritual por natureza, daí ser fundamentalmente importante ter em atenção a ajuda no cuidado espiritual. 85 Cf. D. BERNARDO, “Espiritualidade Fonte de Esperança para um Futuro Humanizado”, in Servir, volume n.º 54. N.º 5, Setembro-Outubro, Lisboa, 2006, 210-213. 86 Cf. L. ANDRADE, As Metas de Saúde para Todos, Metas da Estratégia Regional Europeia da Saúde para Todos, Organização Mundial de Saúde, Bureau Regional da Europa, Ministério da Saúde Departamento de Estudos e Planeamento, Copenhague, Lisboa, 1986, 134-135. 87 Cf. M. PAPALÉO NETTO, docente de Clínicas Médicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Chefe da Clínica Geronto-psiquiátrica do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo. A obra Gerontologia, A Velhice e o Envelhecimento em Visão Globalizada contém muitos ensinamentos e diversas medidas de prevenção entre outras as de higiene dietética e de amparo social, familiar, económico e medidas de recuperação para manter a qualidade de vida, principalmente de idosos dependentes. Nesta obra ele analisa os temas com profundidade e as características biológicas e funcionais do idoso, analisa aspectos éticos, morais e religiosos. Cf. Gerontologia, A Velhice e o Envelhecimento em visão Globalizada, Editora Atheneu, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Brasil, (1996) 2000. Reconhece-se actualmente que a Pastoral da Saúde tem vindo a descobrir que a espiritualidade é muito significativa para os doentes. Além disso, são inúmeras as pessoas que encontram caminhos de felicidade na busca da espiritualidade e da cura, na solidariedade de uma comunidade que acolhe incondicionalmente o que precisa de cuidados.88 88 Cf. A. NOLAN, o. c., 44-46. 28 CAPÍTULO II O CARISMA DAS IRMÃS HOSPITALEIRAS Segundo Pina Ribeiro, o carisma hospitaleiro implica viver o Amor calado e misericordioso de Cristo Jesus, simbolizado no Seu coração divino, e projectá-lo nos mais necessitados da sociedade, em especial através da assistência, aos doentes, preferencialmente aos mais pobres.1 Também Vítor Feytor Pinto pensa que neste contexto paradoxal podemos reconhecer que a história do carisma hospitaleiro abriu caminho à missão a partir da experiência espiritual e da actuação apostólica dos fundadores, S. Bento Menni, Maria Angústias e Maria Josefa Récio.2 Estas mulheres foram fiéis a Deus e descobriram o rosto de Cristo na pessoa que sofre; por isso, elas foram peregrinas incansáveis do amor de Jesus pelos pobres. À medida que prosseguimos no estudo do carisma, vamos fazendo a experiência de que viver em hospitalidade é promover, organizar e fazer sintonizar os centros assistenciais. Destes destacam-se a vivência da esperança e da caridade no carisma hospitaleiro.3 Neste contexto particularmente importante, destaca-se a vivência do carisma, na sua essência de oferecer a cura holística através de um processo dinâmico de discernimento, de entrega vivida na alegria no serviço aos doentes, e nos leva a tomar consciência do significado dos sinais dos tempos, e, a partir da reinterpretação destes, a seguir os passos de Jesus em hospitalidade. Trata-se de encarnar os dinamismos da esperança de viver o carisma na caridade heróica, que, a partir da missão em benefício dos pobres e dos abandonados, é vivida tal como a vivia Jesus. A fidelidade a Deus passa por um exercício de ascese que nos leva a estar atentos a todas as situações de pobreza e miséria. Só assim podemos afirmar que o carisma hospitaleiro é um dom de Deus oferecido à Igreja e ao mundo, estando ao serviço do doente. 1 Cf. A. RIBEIRO, o. c., 19. 2 Cf. M. SOROLDONI, o. c., 62-62. 3 Cf. A. MONTONATI, o. c., 26. A experiência carismática vivida em hospitalidade traduz-se na vocação à santidade, através do chamamento feito por Deus, para O seguir em fidelidade radical de modo a transformar o mundo através da caridade, para ser sua presença junto do doente.4 Acolhemos o dom do carisma que o Espírito de Deus oferece à Sua Igreja, aceitando o desafio que este traz consigo, ou seja, seguimos os passos do fundador e das primeiras irmãs, na redescoberta dos valores fundamentais na vida comunitária, a exemplo dos primeiros discípulos, que punham tudo em comum e depois distribuíam pelos pobres (cf. 2Cor 11,9-33). A centralidade de Jesus Cristo na nossa vida faz parte da espiritualidade hospitaleira que nos leva a descobrir que os doentes são memória da presença viva do Senhor, a partir do sofrimento humano. Na nossa opção de consagradas, os doentes permitem-nos fazer uma releitura dos votos em chave hospitaleira: abnegação, ascese, solidariedade, abandono, acolhimento, serviço alegre e disponível, misericordioso ao jeito do Bom Samaritano do Evangelho.5 29 1. O carisma da misericórdia, dom de Deus à Igreja A situação do mundo contemporâneo manifesta transformações radicais e por isso também algumas ameaças aos direitos humanos. Olhando para os sinais do nosso tempo, estes aparecem assombrosamente ambíguos e confusos.6 Por outro lado, a palavra e o conceito Misericórdia parecem causar algum mal-estar ao Homem, porque este se tornou o senhor da terra e do mundo, pelo domínio do saber, do ter, da ciência e da técnica, o que, embora constitua uma ilusão, faz com que pareça não haver espaço para a misericórdia divina. Neste contexto, o Homem actual está demasiado envolvido no factor “desenvolvimento” que presentemente se verifica na sociedade em geral. Aparte de todo o resto, de facto, a sua sabedoria e cultura podem até impedi-lo de ver a verdade (cf. Lc 10,21). 4 Cf. HERMANAS HOSPITALARIAS DEL SAGRADO CORAZÓN DE JESÚS, Carisma y Espiritualidad, Roma, 1994, 79-81. 5 Cf. IRMÃS HOSPITALEIRAS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, Identidade Hospitaleira..., n.os 8-9. É neste contexto que se torna necessário descobrir a importância do mistério de Deus, “Pai das misericórdias” revelado por Cristo, como que um singular apelo dirigido a todo o Universo, mas sobretudo à Igreja (Povo de Deus), na perspectiva evangelizadora do Papa João Paulo II7, o Papa que evangelizou peregrinando pelo mundo. Também Pina Ribeiro afirmou que o carisma hospitaleiro se revela como sendo uma experiência de fé iluminada pelo Espírito Santo, vivida e comunicada para a guardarmos, aprofundarmos, experimentarmos e desenvolvermos constantemente na Igreja e no mundo.8 Sabendo esta verdade, todos nós somos responsáveis pelo seu conhecimento e divulgação na vida comunitária e na sociedade em geral, a exemplo de Jesus, tendo Deus como um Pai cheio de amor. Também a nossa vocação-missão nasce na Igreja, é da Igreja e para a Igreja.9 Vivemos em comunidade, temos os nossos tempos fortes de oração e de encontro com Deus. A vida fraterna fortalece e orienta a nossa existência para estarmos mais disponíveis para o serviço do Reino de Deus, sobretudo no cuidado ao Homem em sofrimento. 6 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Documentos Pastorais, “Carta Pastoral nos Cinquenta Anos da Aprovação e Adopção da Declaração Universal dos Direitos Humanos”, V Volume, Edição Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa, Lisboa, 2002, 154-172, p. citada: 155. 7 JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Dives in Misericórdia, n.º 3. 8 Cf. A. RIBEIRO, o. c., 21-22. 9 Cf. AA. VV., Vida Consagrada, Comunhão para a Missão, XIX Semana de Estudos sobre a Vida Consagrada, Edições Paulinas, Fátima, 2003, 171. Lendo os sinais dos tempos, na perspectiva da formação hospitaleira, prestamos especial atenção aos meios que possam criar e fortalecer o sentido eclesial da vocação consagrada, que implica: amor e dedicação à Igreja; oferecimento de uma experiência de Deus que permite reconhecê-l’O presente nas vivas imagens, nos doentes mentais, nos idosos, e, sobretudo, nos mais pobres e necessitados.10 Na verdade, Jesus estabelece a prioridade da misericórdia e da hospitalidade como fundamento de toda a doutrina da acção pastoral da Igreja, porque a vocação em hospitalidade revela-se através da misericórdia.11 Ao tentarmos compreender o mundo do sofrimento das muitas experiências humanas, estas levam-nos
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