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Caio Fábio DXraújo Filho CANTARES Celebração , Toesía e ‘Devoção "De fato, Cantares, o encantador cântico do amor homem-mulher, é uma grande dádiva de Deus a todos nós e uma experiência de liberdade existen cial de gratidão pela vida! 0 Pastor Caio Fábio, em seu comentário, deixou-se ser conduzido pela melo dia do texto e dançou conforme sua música: permi tiu que o encanto natural do texto o seduzisse com sua beleza, mistéiro e paixão. O resultado é que o texto bíblico se explicitou desnudo, com sua pró pria verdade e beleza, beleza-verdade de corpos em amor, homem e mulher corpóreos, sexuados, segun do o plano original do Criador. Ageu Heringer Lisboa 0 0 0 " L i e reli este livro que, embora pequeno, encheu- -me de sonhos, proporcionou-me grandes alegrias, renovou e restarou elos perdidos do meu amor conjugal. Espero que esta exposição restaure, deste precioso texto sagrado, a expressão poética de sentimentos esquecidos e permita vivenciar a mais profunda experiência existencial do ser hu mano, o amor." Pr. Ricardo Barbosa ❖ 00 "A mensagem de um amor abrasador de Cantares de Salomão, tem sido negligenciada pelo protestan tismo histórico. Caio Fábio resgata e nos apresenta a vivência espiritual (pneuma), psicológica (psiquê) e erótica (soma) de homem e mulher a luz da revelação. E nos oferece reflexões alentadoras para o processo de planejar e viver integralmente o casamento." Pr. Osmar Ludovico Caio Fábio DXraújo Filho CANTARES Celebração, Toesia e devoção Visão Nacional de Evangelizaçao Publicado com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA EDITORA E DISTRIBUIDORA “VINDE” Caixa Postal 84 24000 - Niterói - RJ Primeira Edição -1987 Impresso nas oficinas da Associação Religiosa Imprensa da Fé C.P. 18.918 São Paulo - Brasil C.G.C. 62.202.528/0001-09 E Proibida a reprodução total ou parcial sem permissão escrita do editor. Capa: Eduardo Reis e Mônica Bosch ÍNDICE Prefácio — Teófanes de Almeida Elias Introdução I — A Chave Hermenêutica . . 1 1 Introdução II — Uma Breve Perspectiva de Alternativas Históricas à Interpretação de Cantares 19 Capítulo 1 — A Força do A m or............... 25 Capítulo 2 — 0 Amor: Como Se Mantém 33 Capítulo 3 — Amor: Os Agentes Psicológicos de sua A firm ação.................. 43 Capítulo 4 — A Estética no A m o r...............57 Capítulo 5 — Ele e E la ................ 1.................65 Capítulo 6 — 0 Ato Conjugal: A Dança do A m o r......................................81 Capítulo 7 — A Manutenção da Poesia . . . 87 Capítulo 8 — Agentes Circunstanciais Positivos e Negativos ..........101 Apêndice — Prevenção de Problemas Conjugais..............................109 5 DEDICATÓRIA Em Cantares o nome de Deus não é menciona do. No entanto está mais presente do que em alguns textos onde há fartura de sua menção. Inspirado nesta realidade, dedico este livro àqueles casais que sem nenhum estardalhaço triunfalista religioso consagraram a silenciosa poesia do seu amor como um culto ao Deus da vida e da alegria. Tel-Aviv, 17 de Maio de 1986 PREFÁCIO Faço parte de uma geração que assiste atônita à fratura de relações matrimoniais aparentemente estáveis das gerações passa das, assim como participa ela mesma com amargor da falência de muitos de seus pró prios casamentos. E verdade que esta minha geração parece mais autêntica, menos farisaica, diante do ma trimônio. E, no que concerne aos círculos das igrejas evangélicas, tem ela a vantagem de discutir aberta e biblicamente os problemas e dificuldades que envolvem a vida conjugal, com orientação direta, utilíssima, não dispo nível em tempos não muito distantes. Dentro e fora das igrejas evangélicas discu te-se intensamente o casamento na busca de causas e soluções para o desastre configurado 8 pelos crescentes e alarmantes índices de separação, frustração e desajustes conjugais. No entanto, nem sempre a discussão é aproveitável para os que sinceramente dese jam guiar suas vidas conforme a vontade de Deus. Freqüentemente oscila-se entre posi ções simplistas demais ou enfoques suposta mente bíblicos mas de um legalismo asfixian- te e perigoso. Como pastor e marido sinto-me grato a Deus por este “O casamento como devoção, poesia e celebração.” A abordagem é total mente bíblica e nova, fugindo das interpreta ções metafóricas clássicas do livro de Cantares. É possível que o pensamento evangélico mais conservador se assuste diante das idéias expostas aqui de modo tão transparente e realista. Escrevendo com fluidez e poesia, o pastor Caio Fábio D’Araújo Filho consegue organizar neste texto as profundas lições dispersas entre os capítulos do livro de Can tares de Salomão. Mas ele não é mais direto e forte do que a própria Escritura quando ana lisa com riqueza e brilhantismo o relaciona mento conjugal descrito em Cantares. Se, por um lado, uma avalanche de cargas variadas se tem derramado sobre os já comba lidos casamentos desta era, alegra-me muito perceber que Deus não tem abandonado seus filhos sem o prometido e tão desejado escape. E vejo que este livro se situa neste plano da contra-partida de Deus a favor de casamen tos sólidos e felizes, distantes daquela solidez hipócrita e felicidade aparente que nos acos tumamos a ver. Estou certo de que Deus, por Sua graça, 9 continuará a conceder sensibilidade, ternura, visão crítica da vida e profundidade nas Escri turas a este meu querido amigo Caio Fábio, com o que possa prosseguir seu já muito pro fícuo ministério entre casais, do qual minha esposa Mônica e eu temos sido beneficiários constantes e diretos. Teófanes de Almeida Elias Pastor da Igreja Presbiteriana Betânia São Francisco — Niterói — RJ. Julho de 1986 10 INTRODUÇÃO I A CHAVE HERMENÊUTICA Cantares é a expressão maior da poesia que nasce entre um homem e sua mulher. Isso sem desconsiderarmos toda a gama variada de opções interpretativas que o livro oferece. Aliás, ele é visto mais comumente como um texto espiritual de sentido vertical caracteri- zador das relações do homem com a divinda de, de Israel com Javé, do Messias com seu povo, de Cristo com a Igreja ou de Jesus com o crente. Desde o primeiro século da nossa era co meçaram os judeus piedosos a considerar Can tares uma alegoria da relação de Javé com Is rael. O rabino Akiva, já no segundo século, afirmou ser este livro o mais santo dos textos da Escritura e de um valor incalculável para Israel. Isso em razão de que se cria que nele se acha a afirmação maior da poesia devocional 11 de Israel para com Deus e a legitimação do amor divino em favor de Israel. Na perspectiva cristã-exegética foi Oríge- nes, especialista em alegorias, quem começou a ver no texto de Cantares alusões ao amor mútuo entre Cristo e a Igreja. Na época da Reforma Protestante o livro esteve para ser expurgado do cânon Sagrado, só permane cendo graças à interferência de Calvino, que o fez permanecer sob a alegação de que se tratava de uma alegoria espiritual. A relutância dos reformadores em fazer Cantares permanecer na relação dos livros ins pirados acontecia em razão de ainda estar presente e enraizada na perspectiva deles a mentalidade católica-medieval anti-sexual ou pelo menos imputadora de um papel pecami noso ao sexo No nosso século, Watchman Nee, o escri tor cristão chinês, celebrizou-se por seu estilo alegorista, inclusive mediante a belís sima exposição comentada que fez do “Cân ticos dos Cânticos”, como se auto-intitula o livro de Cantares (1:1). Ao meu ver é inquestionável que o livro de Cantares possa ser visto como alegoria ou, melhor ainda: como parábola. Minha lamen tação é que ele seja visto somente como tal. Para que fique claro o que estou dizendo permitam a confecção de um gráfico: 12 REALIDADE CANTARES: A descrição poé tica do amor entre um homem e uma mulher. O cd 3cr ALEGORIA DEVOÇÃO: Amor mú- tuo entre Cristo e aIgre- ja- Ora a alegoria devocional só é verdadei ra se ela se basear numa verdade real; também só é utilizável se o fato no qual se inspira for igualmente utilizável; e só é eticamente boa se a realidade tomada como ilustração for do mesmo modo moral e pura. A lógica nos conduz à seguinte reflexão: a alegoria só é legítima, tanto comparativa quanto moral e eticamente, se o paradigma, ou seja, o padrão, o modelo, for igualmente legítimo, seja comparativa, seja eticamente. Isso nos leva a inverter o gráfico anterior: 13 ALEGORIA DEVOÇÃO: amor mútuo entre Cristo e a Igreja A 2'oG «D 13 3cr v REALIDADE CANTARES: a descrição poética do amor entre um homem e uma mulher. O que eu estou querendo dizer é que se o histórico gera a alegoria, e se o que é físico engravida aquilo que é espiritual, então é porque o histórico e o corpo-físico em tal caso, estão revestidos de dignidade e devo- cionalidade. É por isso que desta vez você vai ler um material sobre Cantares que não igno ra a dimensão horizontal da relação existente no texto. Em Cantares, portanto, há duas relações: Relação 1: Horizontal Amor e Amizade Homem Mulher 14 Relação 2: Vertical DEUS A O *<íç>o >w Q PO O <HHatn>2: n > > £ o po O V/ 5/3V > IGREJA No entanto, ainda que Cantares se apresen tasse apenas na relação 1, ele merecería estar no cânon, pois o amor entre um homem e sua mulher pode e deve ser visto como expressão de santidade e objeto de uma revelação espe cífica de Deus quanto à sua poesia e prática. Quando/ você estiver lendo as simples e singelas reflexões que seguirão este intrói- to, tenha em consideração algumas coisas bá sicas: Primeira: O objetivo do livro. Meu objetivo é colocar você diante de um ideal. Lembre-se: de um ideal. Eu pessoalmente não sou um diapasão afinado diante da harmonia da sinfonia do amor no “Cântico dos Cânticos” , mas é pela sua melodia e notas que estou 15 tentando afinar a minha orquestra conju gal. Segunda: O meio de compreensão. Leia o livro como poesia pura, em voz alta, e deixe sua imaginação voltar no tempo e mergulhar nas águas profun das da encantação do amor. Terceira: A atitude. Enquanto estou escrevendo esta intro dução, antes de adentrar o véu do amor, nas páginas de Cantares, sinto-me cheio de temor e tremor, percebendo que es tou diante da terra Santa. Parece estra nho, mas Cantares, mesmo nos seus mo mentos mais íntimos, tem que ser lido como conto de santidade e poesia da pureza conjugal. Isso porque o amor con jugal dos cristãos deve também ser de voção a Deus entre um homem e sua mulher. Deve ser a liturgia do culto con jugal, no santo altar do leito, na oferen da de corpos gratos e entregues um ao outro sem egoísmo, na dança ritual do amor e do prazer, em meio à melo dia da respiração feliz, no ideal de gerar alegria e bem estar no outro. Se eu não pudesse encarar desse modo o próprio ato conjugal, de duas eu esco lhería uma opção: ou tomar-me-ia celi batário ou consideraria meu leito uma fuga à santidade, sempre que tocasse em minha esposa. Mas quero viver a vida com a perspectiva daquele que dis se: “E tudo quanto fizerdes, fazei-o para a glória de Deus” (I Coríntios 16 10:31). É por essa razão que resolvi chamar a esse trabalho de “Cantares: o casamento como devoção, poesia e celebração” . Meu desejo mais sincero, portanto, é con tribuir, sem desmerecer os esforços de outros no passado, para que o “Cântico dos Cânti cos” seja a canção de muitos dos meus irmãos e irmãs casados. Todavia, deve ficar também claro, que o presente texto não é, não pre tende e mesmo não podería ser um texto especializado no assunto. Muito mais em função das minhas próprias limitações no campo da erudição, do que pela falta de desejo de que o mesmo o fosse. 17 INTRODUÇÃO II UMA BREVE PERSPECTIVA DE ALTERNATIVAS HISTÓRICAS À INTERPRETAÇÃO DE CANTARES Quando pensei em escrever sobre o Cântico dos Cânticos, o fiz com o desejo de que o mesmo fosse um texto dos mais simples, des provido de todos aqueles jargões exegéticos e técnicos, com as freqüentes notas de rodapé, que costumam caracterizar os comentários bíblicos. Todavia, mesmo mantendo intactas minhas intenções originais — afinal, nem eu sou um erudito e nem o livro se destina a eles — concluí que seria útil ao público leigo um mínimo de orientação a respeito daquelas que são as perspectivas básicas pelas quais se vê o livro de Cantares. 1- O encontro na vinha: H.A. Ironsaide imaginava assim a confec ção do poema: O Rei Salomão tinha um vinhedo na zona montanhosa de Efraim, 19 a uns 80 km ao Norte de Jerusalém (8:11). Para cuidar do vinhedo ele con tratou arrendatários (8:11), compostos por uma mulher, dois filhos (1:6) e duas filhas: a Sulamita e a sua irmãzinha (6: 13). A Sulamita era a bela da família, ainda que passasse desapercebida (1:5). Seus irmãos talvez fossem apenas filhos de sua mãe (1:6). Sobre a Sulamita reca íam grandes responsabilidades que lhe eram impostas pelos irmãos. Por isso não lhe sobrava quase nenhum tempo para o trato pessoal (1:6). Seu cuidado com a vinha era dioturno e indômito (2:15). Também cuidava de rebanhos nas “ho ras vagas” do dia (1:8). Por estar tão exposta ao sol bronzeou-se demais e machucou a pele (1:5). Num certo dia chegou ao vinhedo um forasteiro elegante e bonito. Era Salo mão, desfigurado para não ser reconhe cido. Demonstrou interesse pela jovem vinhateira, que se sentiu incomodada por julgar que seu aspecto pessoal estava feio (1:6). Ela, no entanto, tomou o forasteiro por um pastor de ovelhas, e perguntou-lhe onde estava o seu rebanho (1:7). Ele lhe respondeu com evasivas (1:8), porém, ao mesmo tempo, lhe falou palavras de amor (1:8 a 10). Pro meteu-lhe também que no futuro lhe traria presentes caros (1:11). Salomão encantou o coração da jovem e lhe pro meteu que um dia voltaria. De noite ela sonhava com ele e em certas ocasiões ela cria que ele estava voltando (3:1). Finalmente,um dia, ele voltou com todo 20 o seu majestoso esplendor para fazê-la sua esposa (3:6, 7). Se essa interpretação histórica está correta, então há apenas dois personagens centrais na história: Salomão e a Sulamita. Além disso, a narrativa supra serve apenas para explicar o contexto histórico de um terço do livro, pois para sua montagem em 3:6, 7. No en tanto, é justamente daí em diante que se de senrolam os principais poemas conjugais. Na da invalida tal interpretação histórica, desde que se permita que o livro permaneça aberto, a fim de que seja mais do que um ensaio sobre o namoro, porém uma descrição do namoro (até 3:6, 7) e do casamento, no desenrolar poético, até ao final dos Cânticos. 2 - O rico e o pobre disputando o coração de uma mulher. Heinrich Ewald (1826) afirmava que são três os personagens básicos envolvidos no Cântico dos Cânticos: Salomão, a Sula mita e um pastor de ovelhas. Ewald interpretou “o amado” como um pastor de ovelhas pelo qual a Sulamita era apaixonada e de quem estava noiva, antes de ser capturada e levada para o palácio por um dos servos de Salomão. Depois dela ter resistido a todas as ten tativas que o Rei fez a fim de conquistá- la, é feita livre e retorna ao seu amante, com quem ela aparece na cena final. Os que lêem o livro desta forma dividem- no numa seqüência mais ou menos as sim: A jovem relembra seu amado (1:2, 3). Pede que ele logo a leve de volta, pois o 21 Rei a introduziu nas seduções da corte (1:4). Suas recordações acerca do ama do a perturbam (1:7). Na luta por conquistá-la o Rei tenta se duzi-la com jóias (1:11) e perfumes (1:12). Mas ela prefere o cheiro do cam po que há no corpo de seu amado (1:13, 14). Ela se recorda de uma visita feita pelo seu amado e de um sonho que se seguiu a isso (2:8 — 3:5). Depois dis so ela é novamente visitada e louvada por Salomão (3:6 — 4:7). Imperturbá vel, a jovem relembra as palavras de seu amado e antecipa seu dia de casamentocom ele (4:8 - 5:1). Nesta expectativa sua mente fica impregnada com as lem branças do seu amado. Por isso, ela so nha com ele e o descreve (5:2 — 6:3). Nesse ínterim ela recebe mais uma visita de Salomão, que tenta conquistar o seu amor (6:4 — 7:9). Ela, no entanto, mantendo sua fidelidade ao jovem pas tor, resiste às tentativas do Rei (7:10 — 8:3). Depois disso Salomão a liberta ve rificando ser impossível conquistar-lhe o coração (8:4 — 14). Pessoalmente sou seduzido a aceitar esta interpretação. Isso porque essa maneira de ver as coisas descreve um amor que não se deixa domesticar. Tal história seria digna de figurar como um texto sagrado. No entanto, não posso aceitar essa interpretação histórica do texto pelas seguintes razões: 1- Aceitá-la implica em negar a autoria de Salomão — pois o Rei não descrevería de si mesmo tal fracasso. E a autoria de Salomão é uma afirmação antiquíssima, 22 tanto no judaísmo como no cristianis mo. Aliás, até que Ewald montasse a sua perspectiva (1826), não se conhecia outra interpretação. Acho temerário negar mais de dois mil anos de história por causa de uma bela montagem textual. Ademais, Cantares se presta também para outras montagens históricas convenien- tes.Espaço é o que não falta em meio à hetereidade da poesia. Ê fácil conduzir um texto poético em muitas direções opostas. 2 - Aceitá-la também significaria esquecer inúmeros outros aspectos do texto que se embutem perfeitamente bem, pura e simplesmente, ao amor de Salomão e da Sulamita. No nosso singelo e não exaustivo comen tário de Cantares, você perceberá que não nos preocupamos em fazer uma leitura his tórica seqüênciada io texto. Nem sei se esse foi o objetivo do escritor de Cantares quando o compôs. Minha única preocupação foi a de fazer uma leitura fenomenológica dos senti mentos e motivações implicadas na poesia, a partir da pressuposição tradicional de que se tratava de uma descrição do amor de Salomão e da Sulamita. Caso você vá fazer uma leitura baseada na crítica literária, seja qual for a sua ótica interpretativa, este trabalho lhe oferecerá muitos “panos para as mangas” , em relação ao modo leigo mediante o qual ele se apre senta. Todavia, se você ler o livro com a ótica fenomenológica, perceberá que nele há ma 23 terial que pode ser muito útil à compreensão do estado febril do amor que nasce entre um homem e um mulher, bem como do ideal su blime que nele se encerra. A opção é sua .Você pode portar-se diante deste livro como um cirurgião com um bistu- ri na mão, ansioso por encontrar enfermida des; ou como um garoto com um sorvete na mão, ávido por mergulhar no seu sabor. Eu tenho certeza de que sua (eu) companheira (o) preferirá que você faça a segunda opção. 24 CAPITULO I A FORÇA DO AMOR O livro de Cantares não exalta o amor co mo virtude sublime. Sem dúvida o amor é a mais sublime de todas as virtudes, mas quem quer meditar nele como tal deve ler outros tex tos, não Cantares. Quem sabe a sinfonia de Paulo em I Coríntios 13:4 a 8: “O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, Não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspe ra, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba; mas, havendo pro fecias, desaparecerão; havendo línguas, 25 cessarão, havendo ciência, passará;” . . . Não estou dizendo que no Cântico dos Cân ticos não haja expressão dessa sublimidade. Ao contrário, o sublime está presente no livro, mas não é um sublime que sublima, que se projeta para o imaginário, para o utópico- abstrato. É um sublime no corpo, no sangue, nos lábios, na pele, na voz e na amizade do homem e de sua mulher. É um sublime aqui e agora, na história cheia de ambiguidades e contradições. E um sublime apaixonado ao invés de fraternal, como é o caso de I Coríntios 13. É nesse sentido que Cantares não exalta o amor como virtude sublime, conquanto o exalte como uma espécie de su blime em imanência e não em transcendên cia. Em Cantares, a transcendência do amor é ser imanente no corpo, na alma e na trama da alegria dos cônjuges. Por isso, não fique espe rando encontrar grandes conceituações de amor no livro. Os amantes de Cantares não filosofam nem conceituam o amor. Apenas deixam-se dominar por ele, permitem-se inebriar pelo seu cheiro e entregam-se sem resistência a sua magia. O amor não é defini do em Cantares, apenas, às vezes, comparado àquilo que dá gosto e poesia à vida: — “É melhor que o vinho” (1:2b) — “Do teu amor nos lembraremos mais do que do vinho, não é sem razão que te amam” (1:4c). Afinal, é “o vinho que alegra o coração do homem e da mulher” (Salmo 104:15a). E o amor conjugal deve ser um banquete de almas, uma celebração de alegria pela preva- lecência de dois seres sobre o egoísmo, indômito adversário daqueles que desejam ser 26 um. Não nos é estranho que a linguagem do amor seja comparativa em relação ao vinho, pois é também ele (o vinho) que deve ser ofe recido “aos que perecem, . . . aos amargura dos de espírito; para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e de suas fadigas não se lem brem mais” (Provérbios 31:6). Pois que rea lidade faz esquecer mais eficazmente o infortúnio que o amor? É diante dele que a pobreza e a amargura são esquecidas pelo curto-eterno espaço do amor. No curto espaço de amar, o eterno, o sem- fim, se faz presente. Na linguagem de Carlos Drummond de Andrade: “O mundo é grande, e cabe nessa janela sobre o mar; o mar é grande e cabe na cama e no col chão de amar; o amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.” No amor, o total invade o parcial, o eterno o temporal, o júbilo conquista a tristeza, o prazer vence o desconforto e a pobreza, a gratidão faz esquecer as fadigas. Em Cantares o amor aparece com o ímpeto do desmaio, da perda dos sentidos, chega com a veemência da fraqueza que domina o cor po e a alma, traz consigo a força da rendição: “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor” (2:5). Diante do amor, o egoísmo fica tomado de anemia, o orgulho deixa de oferecer resistên cia, e o corpo dominado pela impotência não consegue esboçar reação de rejeição. Por isso os apaixonados são fracos. Em Cantares o 27 amor não é chamado de grande ou majestoso ou sacrificial, mas de belo. Trata-se de um sen timento lindo, fascinante: “Que belo é o teu amor, ó minha irmã, noiva minha!” (4:10). Esse amor pode e deve ser belo porque se inspira no amor rasgado, partido, moído, usa do e ensanguentado daquele que por nós se deu: “Mas Deus prova o Seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” Rm 5:8. O amor no Cântico dos Cânticos é rendição assumida e divulgada, é estado de entrega de clarado, é vertigem das forças frias da razão ante o exército avassalador da paixão que sitia o coração, despotizando-o, enfraquecen do-o nas suas próprias possibilidades de dizer não àquele que o domina: “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, que lhe direis? Que desfaleço de amor” (5:8) No contexto do “Cântico dos Cânticos” o amor tem paladar, tem sabor, tem tempero, é apetitoso, inspirador de prazer: “Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias” (7:6) No entanto, nem só de cheiro, gosto, alegria, prazer e vantajosa rendição vive o amor. Em Cantares esse amor é também luta, combate, guerra e morte. É amor que enfrenta a própria possibilidade de morrer. Em Cristo, o amor foi mais forte do que a morte, porque tanto por amor ele enfrentou a morte, como também por 28 amor dela ressuscitou (Romanos 4:24, 25). Mas no nosso livro de afeições e de extasia- mentos entre um homem e sua mulher, como pode o amor ser forte como a morte? “O amor é forte como a morte” (8:6). A equivalência daforça do amor em relação à morte,no cotidiano apaixonado de dois se res humanos, marido e mulher, não está nem na sua longevidade, nem na sua prevalecên- cia sobre o fato da morte. Está, sim, na de terminação irremovível, inafastável e inexorá vel de ambos caminharem na procura e na promoção da felicidade. O amor é forte como a morte porque quem morre por amor enfren tou cara a cara a morte e prevaleceu. Perde na luta com a morte, não quem morre, mas quem foge dela. No entanto, literalmente falando, o texto está aludindo à invencibilidade ordi nária da morte. É uma maneira comparativa de dizer: o amor é invencível, jamais acaba. É forte como a morte porque ela sempre vem de antemão vitoriosa. O amor é forte como a morte quanto a vi da é um dar da vida pelo outro, especialmente o outro-eu, o cônjuge, minha carne noutro corpo até a morte. Deve ser em razão desse poder triunfante e conquistador do amor que em Cântares se repete um fascinante estri- bilho: “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis nem desperteis o amor, até que este o queira” (8:4). Quando o amor chega, a sua força se ins taura nos seus conquistados de tal forma que a própria personalidade, temperamento são parcialmente alterados: “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, 29 pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis nem desperteis o amor, até que este o queira” (2:7; 3:5). Gazelas e cervas são animais conhecidos na poesia oriental por sua timidez e recato. As sim é o amor: é, ele faz com que até os tími dos se declarem, e os recatados se aventurem para além dos limites de suas estreitas frontei ras de expressões. Se você tem dúvida do que estou afirmando, então é só imaginar, ou me lhor, lembrar como ficam os apaixonados: falantes, desinibidos, soltos, livres, soprados pela brisa da poesia, encantados. Mas o estribilho do silêncio e das ações cautelosas, para que não se acorde o amor de seu sono, de seu inverno na alma, de seu leito de sossego, visa revelar também esta outra verdade: Tenha cuidado para não provocar aquilo que pode se tornar irreprimível. Tal cautela refere-se àqueles que ainda não foram atingidos pela força mortal e paradoxal mente vivificadora do amor. E por isso que é a mulher casada quem diz às amigas soltei ras: “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo que não acordeis nem desperteis o amor, até que este o queira” . Amar é mais que ser feliz; é perder o di reito à auto-felicidade em favor do outro; é ser feliz na felicidade promovida para o cônjuge; é realizar-se realizando; é comple- tar-se completando; é beber o refluxo do nosso próprio fluxo abenççador; é vida entregue e repartida com o objeto-humano da nossa caminhada. 30 Mas o estranho é que esse amor que se dá, que se entrega, que conquista e se dei xa conquistar é, paradoxalmente, pleno de auto-estima e dignidade. Seu padrão é ele vadíssimo. Sua ética de entrega determina que ele não negocia com coisa alguma. Ele se coloca acima de riqueza, suborno, jogo de interesses: “ainda que alguém desse todos os bens da sua casa pelo amor, seria de todo des prezado” (8:7). O interessante no texto é que quem fala ao Rei — forte, majestoso e dono de tudo — é a sulamita, mulher bela, porém simples e pobre (6:13; 8:1 a 3). A afirmação da mulher é que seu amor não tinha preço. Dera-se a ele por amor, nada mais. Escolhera ser serva do amor, mas jamais se deixaria impressionar pelos tesouros do amante. Assim é o amor adulto e santo: é confiante, digno, invendável, sem preço. Está acima do poder de compra e barganha. E sentimento inegociável. A oferta de bens, adornos, casas e tesouros a fim de obtê-lo, recebe como resposta o desdém: “seria de todo desprezado”. Os que tentam substituir o afago pelo vesti do, a carícia pela jóia, a voz doce pela serenata paga, a gentileza pelo luxo, a ami zade pela diversão, a alegria e o prazer pe lo humor comprado, acabarão sendo des prezados. O amor em Cantares é sobrevivente mesmo nos dilúvios e nas pororocas da vida: “As muitas águas não poderíam apagar o 31 amor nem os rios afogá-lo” (8 :7a). O amor trafega na Arca da salvação, sobre vive com sua chama mesmo no coração do mais caudaloso rio. A idéia é a de uma tocha de fogo que so brevive à enxurrada e à imersão. O amor vence as intempéries, o calor, o des conforto, a pobreza, as catástrofes, as bancar rotas e os dilúvios do medo, da violência e da oposição. Amar é levar nas mãos a “pira Olímpica” que sobrevive aos jogos da vida e é testemu nha da vitória e prêmio dos perseverantes. Assim é o amor em Cantares: alegre como o vinho, delicioso como os mais inebriantes acepipes e manjares, irresistível como o des maio, inexorável como a morte, inapagável como chama na olimpíada da vida e invendá- vel como tudo que não tem preço. É a pro-cura pois desse ideal e dessa utopia em carne e osso que o homem e mulher de vem pôr-se a caminho. 32 CAPÍTULO II O AMOR: COMO SE MANTÉM No capítulo intitulado “A Força do Amor” vimos que Cantares propõe a encarnação da UTOPIA conjugal na expressão de um amor alegre, saboroso, irreprimível, indômito, de caminho inexorável em direção à conquista, inegociável e inapagável. Todavia, apesar de ser o livro do Cântico dos Cânticos um pro jeto com cara de utopia, nele não são encon trados apenas os sonhos e os devaneios de corações apaixonados, mas também as bases bem sólidas sobre as quais esse amor-fantasia deve ancorar-se, no seu intento de se trans formar de abstrato em concreto, de imagi nário em histórico, de sonho em realida de. 33 FIDELIDADE O amor conjugal só sobrevive respirando o ar de fidelidade, da confiança mútua e do res peito. Sem esse oxigênio, a relação conjugal se asfixia e morre. Pois quem consegue amar alguém em quem não confia? Quem consegue ser atraído a um amor incapaz de confiança? ou quem, com suficiente dignidade, fará re pousar sua honra sobre um parceiro (a) em quem não encontra honradez? A infidelidade é inicialmente madrasta do amor, depois passa a ser carcereira; por último se converte em verdugo frio e impiedoso do próprio sentimento. Amor nenhum sobrevive intacto e sadio ante a infidelidade. É por essa razão que a jus tificativa mais explícita ao divórcio, em todo o Novo Testamento, é a infidelidade: “Quem repudiar seu cônjuge, não sendo por causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outro, comete adultério” (Jesus, em Mateus 19:9) Em Cantares, a fidelidade é descrita co mo estrutura comparável a uma inexpugná vel fortaleza: “Eu sou um muro, e os meus seios como as suas torres; sendo eu assim, fui tida por digna da confiança do meu amado” (8:10). “Eu sou um muro”, uma muralha, um cas telo forte, de altas, alertas e defensivas torres — diz ela. 34 É claro que essa é uma declaração posta na boca da mulher. Mas quem tem dúvida de que tal assertiva possa e deva embutir-se perfeita- mente em lábios masculinos? Os seios altos e belos da esposa eram torres inalcançáveis. Que bela figura para caracterizar que o seu corpo a ninguém mais entregava, e por ninguém se deixava apalpar ou possuir! O resultado de tal atitude é óbvio: “fui tida (o) por digna (o) da confiança do (a) meu (minha) amado (a)” . O amor não arde em ciúme”, mas também não dá motivos reais para o outro arder em ciúmes. Normalmente são os mais tendentes à infidelidade os que mais ciúmes têm. Proje tam suas próprias fantasias no outro e nele concebem o mal. Outra belíssima figura que Cantares empresta à fidelidade é a de um indevassável e oculto Éden de amor, paraíso perdido, cujo caminho só o cônjuge conhece, e de cujos frutos só ele provou, e cujas cristalinas águas mitigavam exclusivamente sua sede: “Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva minha, manancial recluso, fonte selada” (4:12) Que amor se mantém inteiro e sadio sob a supeita de que outro já bebeu ocultamente da fonte, já comeu do fruto, já penetrou triunfante no jardim das delícias que só a ele per tencia? A resposta é dispensável. 35 AMIZADE Fidelidade e amizade são irmãs gêmeas, pois o amigo não trai. No entanto, queremos nos deter no fenômeno amizade como virtu de diferenciada da fidelidade na perspectiva do tratamento, pois pode-se ser fiel mas ser bruto, incompreensivo, tirano, exigente, cruel, incompassivo, amedrontador. . . O Cântico dos Cânticos não é só a poesia de dois amantes no casamento, mas inclusive de dois amigos e companheiros fraternais. O amor que é só paixão é vulcânico, emo cional, irracional e imprevisível. Por isso, na receita do amor feliz tem que ser colocada uma boa e bem temperada pitada de fraterni dade. É estranho, mas cônjuges apenas apaixo nados sofrem e fazem sofrer imensamente. Amor-paixão sem amizade-fraterna é como uma cachoeira sem leito e caminho ou como avião sem piloto ou equilibrista sem prumo. Não tem rumo, controle ou equilíbrio. E por isso que os apaixonados de Cantares se vêem também como irmãos: “arrebataste-me o coração, minha irmã” (4:9) “jardim fechado és tu, minha irmã” (4:12) “Abre (a porta), minha irmã” (5:2) Há horas nas quais o melhor auxílio que tem o casamento é a amizade serena, dialogá- vel, interlocutora, racional, aconselhadora, sacerdotisa, companheira. . . No meio da impaciência, das diferenças de 36 temperamento, gostos e idéias, a amizade ajuda mais que a própria paixão, o desejo e o prazer. Nesses momentos os cônjuges têm que ten tar vencer o que os vence com fraternidade e camaradagem; tratar-se como parcimoniosos amigos; respeitar-se como os estranhos se res peitam. Quando, por causa das diferenças, um côn juge não está conseguindo amar o outro, deve amá-lo ao menos como ao amigo (a). Todos nós sabemos que na hora das discor- dâncias é difícil ver o outro como tal, mas esta é a única maneira de eles preservarem o respeito mútuo. SANTIDADE As virtudes são quase sempre redundantes, se retro-alimentam, dependem umas das ou tras. Pois veja: fidelidade e amizade desembo cam no rio da santidade, pois quem é fiel e amigo mantém-se puro para o outro. No en tanto, a santidade como virtude tem caráter mais subjetivo que a fidelidade, é mais motiva- cional que comportamental, mais íntima que aparente, mais determinadora de atitudes do que de ações. É mais devocional do que mo ral; no seu referencial é mais vertical que ho rizontal, mais sacramental do que ética. Na relação entre o homem e sua mulher (e vice-versa) esse espírito de santidade tem que estar presente, pois sem tal perspectiva, o máximo que se obtém é moralismo, condutis- mo e legalismo, nunca um coração que não 37 trai, não engana e não se polui — sobretudo e antes de tudo — por encarar o seu casamento como uma relação sagrada e improfanável. Eis a razão por que no Cântico dos Cânti cos se lê: “Abre-me (a porta), Minha irmã, querida minha; pomba minha, imaculada minha. . . ” (5:2) ou ainda: “Mas uma só é a minha pomba, a minha imaculada. . .” (6:9). Outra vez perguntamos: À luz de toda a Escritura, e especialmente do Novo Testamen to, tal assertiva relaciona-se somente à mulher, ou diz respeito também aos deveres do ho mem? Não há necessidade de responder ao óbvio. A tradução de Efésios 5:25 a 27 para o contexto da relação conjugal fica assim: “O marido deve amar a sua mulher, a ponto de se entregar por ela, para que a santifique, purificando-a por meio da água da palavra, para apresentar a si mesmo esposa gloriosa, sem mácula, porém santa e sem defeito” . Somente os santos santificam! A relação da palavra imaculada com a pom ba sugere uma santidade sem pedantismo, sem fanfarrismo, sem vanglória, mas pelo contrário, inocente, pura e simples (Mt. 10:16b). 38 HONRA Quem é fiel não trai; quem é amigo com preende; quem é santo, santifica e respeita; por conseguinte, honra. As virtudes geram uma espécie de “efeito cascata” . Honra é apreço, preito, homenagem, crédi to, reputação, consideração, distinção, mercê, atenção, fineza, glória, fama e celebridade: “Saí, ó filhas de Sião, e contemplai ao Rei Salomão com a coroa com que sua mãe o coroou no dia do seu desposório, no dia do júbilo do seu coração” (3:11) O coral do Cântico dos Cânticos exalta a honra, o júbilo e a glória de Salomão no dia do seu desposário, ou seja, do seu casamento. Nesse dia ele foi coroado! Não deveria o casamento ser encarado co mo um ato de realeza, de coroação? No contexto de Cantares, isso tem a ver com a situação histórica concreta de Salomão. Mas não seria possível imaginar o próprio ato do casamento como o dia do júbilo, da alegria e da coroação de um ser humano? A Bíblia, num sentido amplo, confere ao casamento essa honra real: “Digno de honra entre todas seja o matri mônio” (Hb. 13:4). A honra mútua na vida conjugal deve tra duzir-se na imputação da dignidade que cada qual confere ao outro. Honrar o companheiro (a) é dignificar ca 39 da uma de suas vitórias, afirmar sua alegria, acreditar em sua palavra, considerar seus de sejos, homenageá-lo por suas realizações, dis- tingui-lo com favores especiais, reconhecer suas qualidades publicamente, celebrá-lo co mo a alguém especial. Ora, mas alguém diría: Tal pessoa é especial demais para ser o meu marido ou a minha es posa! Digo eu: Mas como você conseguiu casar com alguém a quem não admira? Com alguém que a seus olhos não é especial? Com uma pessoa sem feitos, sem realizações, sem virtudes? Não consigo acreditar que haja alguém que se tenha deixado conquistar e fascinar pela desgraça com cara humana, e nem posso crer que a mais banal das criaturas não seja em si mesma especial. Quem ama vê motivos suficientes para honrar o outro. A honra é indispensável virtude na conso lidação da vida a dois. SUBMISSÃO Neste momento a responsabilidade recai especialmente sobre as mulheres. Isso porque em lugar nenhum da Escritura se requer que os homens sejam submissos às suas esposas. No entanto, isto é requerido delas com algu ma frequência: “As mulheres sejam submissas aos seus próprios maridos, como ao Senhor” . 40 “Como, porém, a Igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres estejam sujeitas aos seus próprios mari dos”. . . a esposa respeite a seu marido” (Efésios 5:22, 24, 33). O que determina a qualidade da submissão é o referencial divino: “ . . . como ao Senhor” “ . . . assim também as mulheres” “. . . como a Igreja. . .” Há dois padrões elevados: — O Senhor — A Igreja a Cristo. No Cântico dos Cânticos, conquanto fique claro a qualquer pessoa — mesmo numa rápida leitura — que a mulher está sujeita ao mari do, na maior parte das vezes aparece uma submissão implícita, não declarada, não achatante, não esmagadora. Há apenas uma única frase indicadora de submissão: “Leva-me após ti. . .” (1:4) É uma submissão leve, livre, suave e auto- oferecida! No contexto amplo da Escritura, especial mente no N.T., a submissão não é apenas um direito do homem sobre a mulher, mas antes de mais nada uma condição adquirida pela vida e pelas ações qualificativas: “ . . . como também Cristo é o cabeça” “. . . como também Cristo amou, e a si mesmo se entregou por ela.” “Assim também os maridos devem amar as suas mulheres” 41 . .Como a seus próprios corpos” . . antes a alimenta, e dela cuida, como também Cnsto o faz com a Igreja” . “ . . . cada um de vós de per si, também ame a sua própria esposa” (Efésios5:23,25, 28, 29, 33) Se entendo o que leio acima, a submissão da mulher ao marido é quase-devocional, ou mesmo, totalmente devocional. É uma submis são inspirada, estimulada e engravidada pelo amor do marido, por suas atitudes maduras, altruístas, solidárias, de uma autoridade não despótica. Portanto, quando se fala na responsabilida de das mulheres quanto a serem submissas a seus próprios maridos, se está falando — de fato e muito mais — no amor dos maridos, amor gerador dessa submissão leve e livre naalma da esposa. Sem esses cinco pilares, a utopia descrita na FORÇA DO AMOR não sobrevive à lua-de- mel. A poesia do amor só não é engano e ilusão quando repousa segura sobre fidelidade, ami zade, santidade, honra e submissão. É assim que o amor se mantém. 42 CAPÍTULO III AMOR: OS AGENTES PSICOLÓGICOS DE SUA AFIRMAÇÃO O amor é fenômeno na alma, na psique, nas entranhas do ser, na raiz da vida, fazendo aí nascer o germe da vontade em direção ao ou tro, do desejo não egoísta voltado para alguém que se torna mais que o eu que ama. Justamente por ser o amor fenômeno es tranho, misterioso, supraquímico, mágico — merece ser olhado como tal. Não a fim de que se possa mediocremente debulhá-lo — tal pretensão é animalesca — mas na expectativa de se saber como acontece o seu escorrer de água e vida irrigando a existência, transfor mando modestos brotos em flores e frutos, operando nos troncos estéreis da vida o mila gre do renovo, da esperança, do élan de viver e de se dar; de amar. Quando o amor chega, só Deus lhe concebe os motivos. Pode-se tentar teorizar, arrazoar, 43 explicar carências, identificar compatibilida- des, descobrir sonhos comuns, projetar espe ranças semelhantes, perceber iguais desejos veementes, encontrar congruências quase absolutas. Mas nada disso vai explicar tudo; ou nada, sobre a chegada do amor. Pois quantas são as vezes em que duas pessoas identificáveis passam a vida juntas sem jamais encontrarem em suas semelhanças ou sadias e complementares dessemelhanças razão para se associarem na vida e no amor! Mas no presente momento minha preocupa ção, mais do que fazer nascer, é manter vivo o que existe; é conservar incandescente, ar dente, candente a chama do amor. Por isso, me dedicarei a refletir sobre o fenômeno pos terior à sua súbita e vitoriosa chegada. Minha reflexão voltar-se-á para os aspectos psicoló gicos essenciais à manutenção da chama ar dente do amor no coração já por ele incen diado. DIFERENCIAÇÃO O amor se mantém psicologicamente co mo fenômeno de afirmação e distinção. O objeto do amor não se deixa industrializar, fabricar em série, de modo indistinguível em relação aos demais seres humanos. O objeto do amor só pode ver-se como ser único, inigua lável, incomparável. Afinal, o amor consiste também em tornar o comum, especial; o or dinário, extraordinário; o referível, irreferí- vel. Qual é o cônjuge que se sente amado (a) 44 quando não percebe nenhuma diferença en tre o tratamento a ele (a) dispensado e o que é projetado em direção às pessoas do sexo oposto à sua volta? Sem a diferenciação comparada como glorificação do outro, o amor sucumbe ante o igualitarismo comportamental. Nesse senti do o amor é paradoxal: fraternalmente ele é socializador, mas conjugalmente é cataliza dor de todas as afeições que puder obter. É por isso que a linguagem da diferencia ção em Cantares é quase rude e irreal: “Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha, querida entre as donzelas” (2:2). Se comparados aos demais, os cônjuges querem ter a afirmação de sua superioridade inalcançável. É como fazer espinho concor rer com lírio: “Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens” (2:3) A excelência da qualidade, do sabor, do prazer que promove, da natureza que possui, tem que ser afirmada. Seu gosto é inigualá vel, assim como a maçã, inimitável em seu paladar. E essa capacidade de afirmar a diferença do objeto do amor — mesmo que seja para enfrentar os que não vêem nada de especial na pessoa que recebe a concentração única do nosso amor — tem que ser suficientemente forte: “Quem é o teu amado mais do que outro amado, ó tu, mais formosa entre as mulheres? 45 Que é o teu amado mais do que outro amado, que tanto nos conjuras?” — perguntam as amigas. Diz ela: “o meu amado é alvo e rosado, o mais distinguido entre dez mil” (5:9 e 10). Na sociedade poligâmica, no harém real, havia o pano de fundo histórico explicativo do que se segue: “Sessenta são as rainhas, oitenta as concubinas, e as virgens sem número. Mas uma só é a minha pomba, a minha imaculada, de sua mãe a única, a predileta daquela que a deu à luz; viram-na as donzelas e lhe chamaram ditosa; viram-na as rainhas e as concubinas e a louvaram” (6:8, 9). E assim que o amor vê, isso porque ele é justificador, embelezador, atribuidor de virtu de, pleno de graça, encobridor de falhas, projetador de grandezas, onde tantas vezes nem elas existem: “Tu és toda formosa, querida minha, e em ti não há defeito” (4:7) Sem dúvida você deve estar pensando: “E , mas mesmo amando o meu cônjuge, vejo nele muitos defeitos, e até feiúras” . 46 Mas saiba ò seguinte: o amor não deixa de ver erros e defeitos, ele simplesmente os su blima, transcende, perdoa; embeleza-os com qualidades que existem no ser objeto do amor. Na declaração supra, feita pelo esposo, o que realmente dá significado à poesia não é: “Tu és toda formosa” ou “Em ti não há defeito” , mas sim: “querida minha” . É o fato de ser querida e amada que a torna “ toda formosa” e “sem defeito”. Não que ne la não houvesse extraordinária beleza, mas sem dúvida é o amor que lhe atribui ausên cia total de defeitos. Não é uma constatação objetiva, mas subjetiva e graciosa. O amor sempre gera graça! Que fique claro que a diferenciação é uma necessidade suprema, na psiquê do objeto do amor (ele ou ela), quanto a manter a cha ma do sentimento ardente na alma. AUTO-IMAGEM A afirmação diferenciada que o cônjuge faz do outro é sempre geradora de auto-ima- gem naquele que a ouve e que a recebe para si. Aliás, esse é o caminho: a afirmação posi tiva produz uma auto-imagem sadia naquele que é o objeto das assertivas. Assim é que em Cantares, especialmente a esposa é plena de uma convicta e bela auto- 47 imagem. Mesmo a eventual cor de sua pele, excessi vamente queimada do sol, não lhe tira a cer teza de sua beleza: “Estou morena, porém formosa” (1:5) Seu ego também se vê de alguma forma belo: “Eu sou a rosa de Sarom, o lírio dos vales” (2:1) Pouca coisa faz tanto bem quanto possuir uma auto-imagem sadia e equilibrada. Sem as auto-exaltações dos soberbos e sem a auto-fla- gelação dos culpados e ingratos. A nossa Sulamita de Cantares é mulher se gura e de firmes convicções. Não se julga inca paz de despertar o amor, como sucede com muitas pessoas. Porque não se amam, nunca admitem que são amadas. E quem não se ama, jamais se vê como capaz de despertar amor ou admiração em alguém. Ela diz com certeza: “O meu amado é meu, e eu sou dele” (2:16) Essa convicção é tão forte, que a faz afir mar de novo, agora invertendo a ordem ini cial, de possessão para entrega: “Eu sou do meu amado, e ele é meu” (6:3). Outra vez a Sulamita aparece como uma mulher consciente de que a sua ausência é geradora de saudade e desejo no companhei ro. Estar longe dela é estar carente, é estar com menos, é ser infeliz, é estar incompleto: “Eu sou do meu amado, e ele tem saudades de mim” (7:10). Por último, ela se afirma como conhecedo- 48 ra do tipo de caráter de que é tecida. Nada é mais perigoso do que ver-se como invulnerável, mas também nada é tão vul nerável quanto enxergar-se como fácil e rapi damente conquistável. Mas a mulher do Cântico dos Cânticos de senvolveu auto-imagem positiva também em relação à estrutura do seu caráter: “Eu sou um muro, e os meus seios como as suas torres; sendo assim, fui tida por digna da confiança do meu amado” (8:10) Assim é que nela encontramos vários níveis de expressão de auto-imagem: Em relação à aparência: “Estou morena, porém formosa”. Em relação ao ego: “Eu sou a rosa, o lí rio...” Em relação ao possuir: “O meu amado é meu e. . .” Em relação a entregar-se: “eu sou do meu amado. . .” Em relação d sua ausência: “ele tem sauda des de mim” . Em relação ao seu caráter: “fui tida por digna de confiança.” Mas é bom que fique claro: boa parteda auto-imagem que nosso parceiro de vida co mum possui nós é que provocamos nele, se ja por elogios e reconhecimentos, seja por massacres psíquicos e nossa incapacidade de atribuir-lhe virtude. Isso não exclui — nem po dería ser diferente — o fato de que a criação que cada um de nós recebeu contribuiu signifi cativamente para determinar a maneira como 49 nos vemos e nos aceitamos. Um bom cônjuge pode ser agente de terapia psíquica para o companheiro durante toda a vida. O amor também se mantém psiquicamente sadio e aceso mediante esse abanar da afir mação que gera auto-imagem incandescente, esbraseado, no fogareiro da alma. A M UTUALIDADE É interessante, mas em Cantares o processo psicológico é perfeito: diferenciação gera auto-imagem positiva, que por seu turno pro move a mutualidade. O belo é que são alguns dos poemas re veladores da auto-imagem da mulher que agora reaparecem a fim de demonstrar que é na troca dos pertencimentos e das entre gas, dos serviços prestados, das mãos que se lavam, dos corpos que se abrigam, dos egos que se deixam possuir mutuamente, que o amor se afirma: “Eu sou do meu amado, e ele é meu” . “O meu amado é meu, e eu sou dele” (6:3;2:16). Na linguagem sábia e poética de Eclesiastes esse fenômeno de mutualidade é assim descri to: “Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver só; 50 pois, caindo, não haverá quem o levante. Também se dois dormirem juntos, eles se aquentarão; mas um só como se aquentará? Se alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão de três dobras não se rebenta com facilidade” (Eclesiastes 4:7 a 12). O amor pode existir e se manter por mui to tempo sem ser correspondido apenas no espreitar dos corações daqueles que amam a distância, platonicamente, de modo inconfes- so, oculto, no esgueirar das sombras e das es quinas, mediante contemplação semi-adorati- va — como menino com fome em frente à vitrina da padaria. Mas na relação conjugal o amor não correspondido se deixa acumular de amarguras, revoltas, azedumes, lembranças dolorosas, agudas e profundas, fazendo nas cer, por fim, não raramente, uma espécie de ódio ou de amor dissimulado e adoecido. A mutualidade exige uma co-respondência, pois sem resposta a proposta de quem ama toma-se oferecimento rejeitado, portanto humilhado, pisoteado e chicoteado pela indi ferença daquele ao qual alegremente se doara. A relação conjugal é relação de mutualida de, ou então não é relação con-jugal, con-ju- gada, relação de mesmo jugo, de distribuição equânime, de socialização de amor e afetos. A psiquê humana responde e exige ser co- respondida. Por isso, a mutualidade é outro forte agente psicológico de manutenção do amor conjugal. 51 SENSO SEXUAL O amor entre um homem e uma mulher é também amor entre macho e fêmea; entre seres de sexos opostos, tão opostos quanto atraentes entre si; tão diferentes quanto em- butíveis; tão dessemelhantes quanto perfei- tamente complementares. É nessa diferença que a psiquê desenvolve o fenômeno do mistério, do oculto, do enig mático, do encoberto, do guardado, a fim de excitar-se em desvendar o mistério, revelar o oculto, decifrar o enigmático, descobrir o encoberto e apropriar-se do guardado. Mas o amor conjugal não viverá para sempre do misterioso. Os idosos amantes têm na preocupação de quem morrerá primeiro o mistério maior que anima as suas existências, pois quem ama e é amado quer partir depois, para poupar ao outro o sofrimento de uma irresolvível saudade. Mas entre os amantes jovens — ainda distantes do silêncio do se pulcro e das lágrimas de uma saudade feita de um banzo maior que o das naus carregadas de africanos desterrados e deserdados — o amor é feito de mistério e de senso sexual. Estamos usando a expressão “senso sexual” a fim de não sermos julgados impiedosa e precipitadamente por aqueles que não conse guem dar ao sensual um papel sadio dentro do casamento, sem que logo o relacionem às carnais insinuações dos que só projetam seus corpos na perspectiva pública da lascívia, lúbrica, voluptuosa, libertina, impudica, enfim 52 carnal, maligna e promíscua. Quando falamos de “senso sexual” deseja mos retratar exatamente o valor etimológi- co das duas palavras: — Senso: Faculdade de apreciar: sentido, tino, sensibilidade, percepção. — Sexual: referente à cópula, à união entre os sexos; pertinente à relação en tre um homem e sua mulher,qua lidade do macho e da fêmea, ele mento distintivo e caracterizador tanto na diferença quanto na atra ção entre os opostos. Portanto, senso sexual, em nosso conceito, significa a percepção aguçada para a diferença sexual do outro, na sua capacidade de atrair. Senso sexual no sentido em que estamos em pregando é a capacidade de apreciar, de sen tir, de perceber a diferença do cônjuge. Ele se deixa impressionar pelo mistério, pela bele za, pelo encontro e a dessemelhança atrativa do outro (a), como também se deixa invadir por uma sadia curiosidade, desejo de penetrar o impenetrável, possuir o impossuível, apro priar-se do inapropriável. Na realidade, eu creio que mesmo entre aqueles que se perten cem, na qualidade de marido e mulher, tal realidade pode continuar presente. Toda nu dez, entre.um homem e uma mulher, deve ser nudez plena de mistério; nudez dada e, es tranhamente, reservada; nudez exposta e, ao mesmo tempo, resguardada da banalidade; nudez livre, mas jamais vulgarizada; nudez sempre percebida, mas nunca tornada comum e não-poética; nudez sempre mágica e cheia de uma inocente capacidade de insinuar o 53 amor e o prazer no companheiro (a). Assim é que no Cântico dos Cânticos esse senso sexual e essa curiosidade desejosa con tinuam presentes na relação dos cônjuges: “O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao filho da gazela; eis que está detrás da nossa parede, olhando pelas janelas, espreitando pelas grades” (2:9). É desse modo que ele alimenta tanto a sua psiquê quanto a dela: por trás, olhando, es preitando, curioso, a intimidade dela. Isso porque o homem vive — sexualmente fa lando — do desejo de possuir o corpo da quela que o inspira — sua mulher — e ela — a esposa — do prazer de saber que faz nascer na alma dele o desejo de possuí-la. São duas psiquês diferentes: uma quer possuir, a outra quer ser possuída. Homem e mulher são assim! Quem nega isso, ou está sendo hipócrita, ou está negando a história, ou assinando seu ates tado de patologia sexual. O senso sexual prossegue em Cantares na medida em que tanto o marido percebe o dançar especial do corpo de sua mulher, quanto ela se apresenta marcada por uma fe minilidade expressiva: “Que formosos são os teus passos dados de sandália, filha do príncipe! Os meneios de teus quadris são como colares trabalhados por mãos de artistas” (7:1). Portanto, parece evidente que no Cântico dos Cânticos o amor é psicologicamente te- rapeutizado pela afirmação diferenciada, que 54 pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis nem desperteis o amor, até que este o queira” (2:7; 3:5). Gazelas e cervas são animais conhecidos na poesia oriental por sua timidez e recato. As sim é o amor: é, ele faz com que até os tími dos se declarem, e os recatados se aventurem para além dos limites de suas estreitas frontei ras de expressões. Se você tem dúvida do que estou afirmando, então é só imaginar, ou me lhor, lembrar como ficam os apaixonados: falantes, desinibidos, soltos, livres, soprados pela brisa da poesia, encantados. Mas o estribilho do silêncio e das ações cautelosas, para que não se acorde o amor de seu sono, de seu inverno na alma, de seu leito de sossego, visa revelar também esta outra verdade: Tenha cuidado para não provocar aquilo que pode se tornar irreprimível. Tal cautela refere-se àqueles que ainda não foram atingidos pela força mortal e paradoxal mente vivificadorado amor. É por isso que é a mulher casada quem diz às amigas soltei ras: “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo que não acordeis nem desperteis o amor, até que este o queira” . Amar é mais que ser feliz; é perder o di reito à auto-felicidade em favor do outro; é ser feliz na felicidade promovida para o cônjuge; é realizar-se realizando; é comple tar-se completando; é beber o refluxo do nosso próprio fluxo abençoador; é vida entregue e repartida com o objeto-humano da nossa caminhada. 30 gera auto-imagem positiva, que se corresponde mediante a mutualidade, que produz o senso sexual. E esse senso sexual prossegue se manifes tando através da especial e convidativa manei ra de olhar, ou seja, mediante uma salutar insinuação: “Arrebataste-me o coração, minha irmã, noiva minha; arrebataste-me o coração com um só dos teus olhares. . .” (4:9) O senso sexual, como fenômeno de aprecia ção, de percepção, expressa-se também como sensibilidade gustativa, cheia de apetite. Os cônjuges devem manifestar sua fome e sede de amor e sua necessidade de se satisfazerem na entrega mútua, na troca de seus auto-sa- bores: “Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens; desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento, e o seu fruto é doce ao meu paladar” • (2:3). Recordemos que para o marido a mulher é o paraíso perdido, é seu Éden de prazer (4:12). É por isso que para ele o ato de prová-la é tão saboroso como o degustar de variados e doces frutos, o sentir de inebriantes cheiros: “Os teus renovos são um pomar de romãs, com frutos excelentes: a hena e o nardo; o nardo e o açafrão, o cálamo e o cinomano, 55 com toda sorte de árvores de incenso; a mirra e o aloés, com todas as principais especiarias. Es fonte dos jardins, poço das águas vivas, correntes que correm no Líbano!” (4:13 a 16). Tal descrição é tão bela e apetitosa, tão reveladora de gosto e prazer, que a mulher se auto-oferece ao marido: “Ah! venha o meu amado para o seu jardim, e coma os seus frutos excelentes” (4:16b). Após o saborear da relação sexual, ou seja, da entrada no paraíso, no Éden psíquico e emocional, o esposo declara: “Já entrei no meu jardim, minha irmã, noiva minha; colhi a minha mirra com a especiaria, comi o meu favo com o mel, bebi o meu vinho com o leite” (5: 1). Que coisa linda! que beleza colorida: verde, azul, amarela, vermelha, castanha, lilás, violeta, cheirosa, estonteante, irresistível. Assim é a psicologia do amor. 56 CAPITULO IV A ESTÉTICA NO AMOR Cantares é um poema que celebra o amor e a beleza. No entanto, já vimos que nele a beleza é uma realidade mais subjetiva que objetiva, realidade patrocinada pela graça, favor imerecido — em relação a Deus — e quase imerecido em algumas perspectivas hu manas (4: 7). Mas sem dúvida o Cântico dos Cânticos anuncia também, com voz de júbilo a beleza objetiva, a estética, a forma, o belo, o agradável aos olhos. Quando lidamos com essa perspectiva, sem pre nos sentimos temerosos, em razão de duas coisas: 1- O mundo não é só dos belos, dos formo sos, dos que inspiram os olhos e engravi dam corações com a sua imagem. 2- A Bíblia nos adverte com respeito à su per ficialização da vida, na idolatração do 57 belo e na minimização do valor da for mosura íntima, psíquica, profunda: “Não seja o adorno das esposas o que é exterior, como frisado de cabelo, adereços de ouro, aparato de vestuário; seja porém, o homem interior do coração, unido ao incorruptível de um espírito manso e tranquilo, que é de grande valor diante de Deus” (I Pd. 3:3,4). Mas me parece que Pedro não está combaten do a beleza e o trato estético com o corpo, antes sim a materialização absolutista do belo. Ele está se insurgindo contra a filosofia da política do corpo, da exacerbação do ex terior em detrimento da vida íntima, bela e mansa, Tão perigosa quanto a hipervalorização da estética é sua hipovalorização. Valorizá-la demasiadamente é correr o risco de cair na adoração do corpo humano: “mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança de homem corruptível. . .” (Rm l;23a) Porém desvalorizar o corpo é pecado de natureza gnóstica, ascética, purista, e desti tuída de valor com relação a enfrentar a sen sualidade: “Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e falsa humildade, e rigor ascético; 58 todavia não têm valor algum contra a sensualidade” (Cl 2:21 a 23). Assim é que em Cantares a estética tem seu valor sadio e equilibrado pela pendência entre o subjetivo e o objetivo, o exterior e o interior, o aparente e o profundo, o rosto e o coração. FORMOSURA A anatomia do amor começa na afirmação da formosura: — Formosura apesar da pele estar excessi vamente queimada de sol: “Eu estou morena, porém formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão” (1 :5). — Formosura da face: “As éguas dos carros de Faraó te comparo, ó querida minha. Formosas são as tuas faces entre os teus enfeites, ■ o teu pescoço com os colares” (1: 9,10). — Formosura total: ‘Eis que és formosa, ó querida minha, eis que és formosa; os teus olhos são como os das pombas. Como és formoso, amado meu, como és amável. O nosso leito é de viçosas folhas. . .” (1:15, 16). ‘Tu és toda formosa, querida minha, e em ti não há defeito” (4:7). “Quão formosa, e quão aprazível és, 59 ó amor em delícias!” (7:6). — Formosura como a das grandes capitais do Oriente: “Formosa és, querida minha, como Tirza, aprazível como Jerusalém, formidável como um exército com bandeiras” (6 :4). — Formosura crescente: estrela d ’alva, lua, sol. Aumentando sua glória. “Quem é esta que aparece como a alva do dia, formosa como a lua, pura como o sol, formidável como um exército com ban- eiras?” (6:10). — Formosura convidativa: “O meu amado fala e me diz: Levanta-te, querida minha, formosa minha, e vem ” (2:10). ADORNO Os cônjuges de Cantares se enfeitam, se adornam, se embelezam com o auxílio da sua arte contemporânea: — Enfeites e colares aformoseiam a mulher: “Formosas são as tuas faces entre os teus enfeites, o teu pescoço com os colares” (1:10). — Para ampliar a beleza, mais adornos, pre senteados pelos amigos: “Enfeites de ouro te faremos, com incrustações de prata” (1:11). — O enfeite encantava também o marido: “Arrebataste-me o coração, 60 minha irmã, noiva minha; . . . com uma só pérola do teu colar” (4:9). PERFUME O corpo dos cônjuges deve não somente es- ar belo e enfeitado, mas cheiroso: — Da mulher procedia um perfume im- pregnador do ambiente: “Enquanto o Rei (marido) está assen tado à sua mesa, o meu nardo exala o seu perfume” ( 1:12). — O perfume do marido era tão bom que, quando sua face estava posta sobre os seios de sua esposa, isso a lembrava do bom cheiro dos saquinhos perfumados que usavam as mulheres entre os seios: “O meu amado é para mim um saquitel de mirra, posto entre os meus seios” (1:13), — 0 cheiro do marido era tão especial que se assemelhava a forte fragrância de cer tas flores que perfumavam as vinhas ao sul do Mar Morto: “Como racimo de flores de hena nas vinhas de En-Gedi, é para mim o meu amado” (1:14). — O rescender do perfume dela era para ele superior a qualquer essência orien tal: “O aroma dos teus ungüentos (é me lhor) do que toda sorte de 61 especiarias” (4:10). — Os vestidos dela lembravam o encanta dor cheiro dos bosques e campos do líbano: “A fragrância dos teus vestidos é como a do Líbano” (4:1 lb). — O assoprar do vento sobre ela era um espalhar de aromas: “Levanta-te, vento norte, e vem tu, vento sul, assopra no meu jardim, para que se derramem os seus aromas” (4:16). — O mero toque de suas mãos contagiava objetos com seu cheiro: “As minhas mãos destilavam mirra, e os meus dedos mirra preciosa, sobre a maçaneta do ferrolho” (5:5). OS CORPOS É revolucionário o fato de que em Cantares não apenas o corpo da mulher é belo, mas também o do homem. Aliás, ainda que não exagerando o valor e o papel do corpo, a Bíblia vindica-lhe significativa atenção quanto a observar, com alguma frequência, a beleza que o possa estar vestindo (I Sam 9:2; 16:12; II Sam 14:25; Dn 1:4). Assim é que no livro do amor conjugal ideal — Cantares — tanto a mulher quanto o ho mem possuem corpos dignos de serem considerados. Isso faz ser banido de nossas mentes todo gnosticismo subjacente que possa estar pretendendo dicotomizar o corpo 62 do espírito, e o material do espiritual. No Cântico dos Cânticos o corpóreo é vazado pe lo espiritual, e o físico santificado no uso e na ação do amor. E é no ato conjugal o mo mento no qual surge a maior oportunidade e o melhor pretexto para que se tenha uma mente grata pela bênção de ser alma corpórea e de se poder psicossomatizar alegrias e emoções na respota que o corpo dá ao prazer que vem pelo encontro apaixonado de duas almas con-jugadas pelo amor. 63 CAPÍTULO V ELE E ELA Faz-se necessário ver agora como os cônju ges do Cântico dos Cânticos detalham a bele za física e sexual do outro, afirmando o de sejo exclusivo e direcionado de um pelo ou tro. Iniciaremos essa procura observando as de clarações do esposo acerca da mulher. ELA A mulher é notada e descrita da cabeça aos pés no livro de Cantares: 65 A CABEÇA E OS CABELOS Sua cabeça e seus cabelos são vistos de mo do gracioso: “A tua cabeça é como o monte Carmelo, a tua cabeleira como a púrpura; um rei está preso nas suas tranças ” (7:5). Tal é a beleza de seus cabelos que as suas amigas — filhas de Jerusalém — admitem que o seu marido está preso pelas suas tranças. Tam bém se afirma em Cantares o trato especial que a jovem esposa dá ao seu cabelo: — Ela os ondula: “Os teus cabelos são como rebanhos de cabras que descem ondeantes do monte de Gileade” (4:1b; 6:5). — Ela os entrança: “um rei está preso nas suas tranças” (7:5). OS OLHOS São constantes, graciosos, cheios de ternu ra e pureza: “Os teus olhos são como os das pombas” (1:15b). 66 O seu brilho é tão reluzente, diz tanta coisa silenciosamente, que mesmo um véu não os impede de serem notados: “Os teus olhos. . . brilham através do véu” (4: lb). Os seus olhos exerciam um fascínio hipnó tico e perturbador sobre seu marido: “Desvia de mim os teus olhos, porque eles me perturbam” (6:5). Uma outra figura belíssima que se oferece para caracterizar a transparência do olhar da esposa é a da piscina de águas claras: “Os teus olhos são como as piscinas de Hesbom, junto às portas de Bete-Rabim” (7:4). Há um poder arrebatador no seu olhar: “Arrebataste-me o coração, minha irmã, noiva minha, arrebataste-me o coração com um só dos teus olhares” (4:9). O ROSTO A face da esposa do Cantares é como lago sereno, como oferta de paz: “Pomba minha, que andas pelas veredas dos penhascos, no esconderijo das rochas escarpadas, mostra-me o teu rosto, faze-me ouvir a tua voz, 67 porque a tua voz é doce, e o teu rosto é amável” (2:14), No rosto dela havia revelação. Era o apoca lipse do amor. Por isso ele diz “mostra-me o teu rosto”. Na face da esposa se desenhava a fisionomia daquilo que é amável. Que diferença há entre esse semblante fe- minino-amigo e algumas carrancas que vesti ram de vez o rosto de certas esposas! Tamanha era a luz de amor que esplendia do rosto da esposa que o marido dizia: “As tuas faces (são) como romã partida, brilham através do véu” (4:3). A impressão que a beleza radiante e cheia de vida que o rosto da esposa deixou no seu marido foi tão grande que ele repetiu outra vez o verso anterior: “As tuas faces como romã partida, brilham através do véu” (6:7). Repetições são comumente enfatismos ca- racterizadores das realidades que marcam a mente com fortes impressões. É nessa pers pectiva que as repetições de Cantares também devem ser lidas. Do geral o marido apaixonado desce aos detalhes do fisionômico no rosto da esposa. Como já nos detivemos nos olhos e no aprofundamento deles no olhar, limitar-nos- emos a ver outros elementos definidores da configuração facial. Os lábios dessa mulher objeto de poesia são vistos como bem cuidados, pintados e bem desenhados no todo da boca: “Os teus lábios são como um fio de escarlata, a tua boca é formosa” (4:3). 68 Mas a boca dessa mulher não é apenas bela e atraente. Sua encantação atinge níveis mais profundos. Mergulha numa dimensão abso lutamente importante da percepção humana. Atinge o paladar: universo do gosto: “Os teus lábios, noiva minha, destilam mel” (4:11). Certamente tal descrição deve ser lida com maior objetividade que subjetividade. Não é mera descrição poética, subitamente dotada da beleza que no mundo real não se conhece. A asseveração de que há mel derramando-se da boca da esposa revela antes de ficção amorosa, o bom trato da mulher para com a sua boca. Tamanha é a grandeza objetiva dessa percepção que o marido diz: “Mel e leite se acham debaixo da tua língua” (4:11). Tal é a magia da boca na encantação do amor, que os dentes são vistos como essen cialmente importantes e dignos de observa ção: “São os teus dentes como rebanho de ovelhas recém-tos- quiados, que sobem do lavadouro, e dos quais todos produzem gêmeos, e nenhuma delas há sem crias” (4:2). Numa linguagem contemporânea manifesta- dora da realidade parafrasearíamos a poesia supra da seguinte forma: “Os teus dentes estão bem escovados, devidamente higienizados, estão todos completos.” 69 Novamente vale notar a impressão que essa boa aparência dos dentes causa na mente do cônjuge. É tal o impacto que ele repete a poesia mais adiante: “São os teus dentes como o rebanho de ovelhas, que sobem do lavadouro, dos quais todos produzem gêmeos, e nenhuma delas há sem crias” (6: 6). O rosto da esposa é percebido como uma obra de arte, como uma arquitetura em car ne e osso. Por isso até o nariz da companhei ra é descrito com a força de uma comparação arquitetônica: “O teu nariz é como a torre do Lí bano, que olha para Damasco” (7:4b). Certamente que a intenção do marido é afirmar a forma bem construída do nariz de sua esposa. Todavia, é verdade que esse con ceito de beleza é tão lato quanto subjetivo, tão misterioso quanto inexplicável, tão pro fundo quanto impenetrável. Há uma ótica cultural pela qual se enxerga a beleza. O belo no ocidente pode ser o feio no oriente. O atraente na Europa pode ser o re pugnante na África. Isso porque a beleza é mais conceituai e cultural do que objetiva e pragmaticamente palpável. O PESCOÇO É interessante observar a beleza como um acontecimento histórico-cultural, logo, tam bém, imerso nos conceitos caracterizadores 70 da contemporaneidade dos que se deixam encantar pela beleza: “O teu pescoço é como a torre de Davi, edificada para arsenal; mil escudos pendem dela, todos broquéis de valorosos” (4:4). Outra vez a beleza é contemplada na pers pectiva cultural: torre de Davi, escudos, bro quéis. Alude-se assim aos adereços embele- zadores do pescoço da esposa: colares, gar- gantilhas e enfeites. A perfeição e os belos contornos do pesco ço da esposa são vistos como “uma torre de marfim” (7 :4 ). Essa meticulosidade do olhar poético do marido tem muito a ensinar aos homens acerca de seus olhares freqüentemente ge- neralistas e incapazes de notar a beleza sutil da esposa. OS SEIOS Os seios ocupam preponderante impor tância' na visão física do livro de Cantares. Essa observação deve ser verdadeira tanto pela quantidade de alusões que há acerca de les, quanto também em razão das repetições que são feitas no que tange à sua paridade be la e perfeita. Assim é que diz o marido: “Os teus dois seios são como duas crias, gêmeas de uma gazela, que se apascentam entre os lírios” (4:5). 71 Numa alusão abreviada mas totalmente semelhante ele diz: “Os teus seios como tuas crias, gêmeas de uma gazela” (7:3). Os seiosda esposa são vistos como jovens (duas crias), como iguais (gêmeas) e como per fumados (entre os lírios). Esse trato da esposa com o seio aparece também na relação compa rativa com duas torres, eretas, rijas, sobres saídas: “Eu sou um muro, e os meus seios como as suas torres” (8 :10a). Há no texto supra, como já vimos ante riormente, não apenas uma alusão ao fato de que os seios da mulher não eram tocados e alcançados por qualquer ambição masculina tornando-se ela assim digna de confiança — mas há também uma referência ao trato para com os seios. Por isso eles não são flácidos e precocemente envelhecidos. Conservam-se em pertigados como duas torres. Obviamente que tal reivindicação tem tempo e hora. Afinal, o corpo humano envelhece e morre. Tamanha é a inspiração que o seio da es posa gera no cônjuge que ele diz: “Esse teu porte é semelhante à palmeira, e os teus seios a seus cachos. Dizia eu: Subirei à palmeira, pegarei em seus ramos. Sejam os teus seios como os cachos da vida” (7 :7 ,8 ). São seios que convidam a serem tocados como os cachos da palmeira e revelam-se saborosos como os cachos da uva. É por isso 72 que o marido tem prazer em descançar em seu regaço: “O meu amado é para mim um saquitel de mirra, posto entre os meus seios” (1:13). O UMBIGO A anatomia do amor na Bíblia desce a um nível de detalhamento que a maioria dos cristãos que conheço não podem suportar. Ante descrição como essa que me propus a fazer em Cantares sei que exponho-me a ser mal entendido e interpretado. Reconheço que a mentalidade evangélica ainda é possuí da por um ascetismo corpóreo maligno (Mc 7: 18, 19; Rm 14:14; Tito 1:15) e hipócrita (Mt 23:25; Cl 2:18, 19, 21a 23).Mas resolvo correr o risco unicamente por não me ver mais santo que o Espírito Santo que inspirou Cantares e também por causa do princípio hermenêutico enunciado por nós na introdu ção do livro. A alegoria espiritual de Cantares (perspecti va que vê o livro como vertical e definidor apenas da relação de Cristo com a Igreja) só é legítima, tanto comparativa quanto moral e eticamente falando, se o paradigma (o amor do homem e da mulher, que é o padrão e o modelo da comparação) for igualmente legítimo, seja comparativa^ seja eticamente. É por essa razão que o anúncio feito pelo ma rido de que se abebedava do vinho do amor no cálice natural do umbigo da sua esposa não é uma afirmação desrespeitosa, antes san 73 ta, bela e sensualmente própria: “O teu umbigo é taça redonda, a que não falta bebida ” (7:2). ELE É algo quase agressivo ante as machistas perspectivas pelas quais enxergamos o ho mem, a afirmação de que o marido tem sua beleza esmiuçada na poesia de Cantares tan to quanto a mulher. Sendo para nós o ser que apenas impõe-se pela força, pela inteligência e pelo esforço, o homem teve seu físico desmerecido sob a alegação de que tratava-se de algo comple tamente irrelevante ao casamento. O Canta res, entretanto, resgata a beleza do corpo do homem com dignidade e poesia. É extraordinariamente bom quando a nos sa mente já está liberta dos algozes do pre conceito que põe sobre o homem a idéia-jugo de que achar belo outro-igual é sintoma de patologia do caráter. Enquanto escrevo este capítulo me en contro numa praia de Casabranca, no Marro cos, aguardando uma conexão de trinta ho ras, para o Cairo. Foi aqui, passeando pela praia no fim da tarde, que senti que minha mente estava livre, na santidade do Senhor, para admitir que o meu semelhante pode ser visto como belo, sem que isso signifique qualquer coisa que não seja a mera admissão do belo. 74 OS OLHOS Olhar cristalino, límpido, ridente de luz, espelhando a imagem da amada diante da face é uma das grandes belezas de que dispõe o esposo para fascinar a sua companheira: “Os seus olhos são como os das pombas junto às correntes das águas, lavados em leite, postos em engaste” (5:12). Poucas coisas revelam tão pujantemente a real beleza de um ser quanto o seu olhar: “Os olhos são a lâmpada do corpo” (Mt. 6:22). O ROSTO A esposa revela também a fragrância que se exala desde o rosto barbado e bem cuidado do seu esposo: “As suas faces são como canteiros de bálsamo, " como colinas de ervas aromáticas” (5:13). Quando vejo alguns maridos queixarem-se do distanciamento físico de suas esposas, observo também esses detalhes que a poesia do Cântipo dos Cânticos diz que a esposa aprecia. É claro que nem toda frieza, distan ciamento e indiferença das esposas deve-se ao descuido, ao desleixo e ao desmazelo físico de seus esposos, mas é sem dúvida que 75 afirmamos que esse dado é deveras impor tante. OS CABELOS Os cabelos contribuem também para que o coração da mulher fique grávido de poesia e satisfação: “A sua cabeça é como o ouro mais apurado, os seus cabelos, cachos da palmeira, são pretos como os corvos” (5:11). E curioso observar essa atenção que a mu lher dá aos cabelos, aos seus cachos e à sua cor. Será que os homens tem considerado a possibilidade de que suas esposas não gostam de seu penteado ou do seu corte de cabelo? A Bíblia — em Cantares — não nos incita à um concurso de beleza, mas também não nos es timula a concorrermos ao prêmio dos mais degradados esteticamente. AS MÃOS Mãos calejadas são sinal de trabalho. É mes mo. Todavia mãos sujas e mal cuidadas re velam descaso para com o instrumento-mor da carícia que um homem faz na sua compa nheira. O parceiro conjugal do Cântico dos Cânti cos é diferente da maioria de nós no seu cui dado com as mãos: 76 “As suas mãos são cilindros de ouro, embutidos em jacintos;” (5:14). O VENTRE A esposa aprecia também a forma e a rigi dez do ventre do seu companheiro. Essa qua lidade do físico do esposo parece ser aquela que mais nos afeta no ocidente, quando se vive em sociedades que promovem meios de subsistência e empregos quase que comple tamente favorecedores da inatividade física. Vivemos sentados o dia inteiro, achatando as nádegas e dilatando a barriga. Como tenho dito, qualquer perspectiva que eu esteja incentivando de cuidado com o corpo tem relação, especialmente, com a juventude normal dos casais. Tempo no qual não se deve admitir (exceto em razão de pato logias hormonais), que o físico se deteriore tão rapidamente.Além disso, essa auto-ava- liação física deve estar presente freqüente- mente em nossas mentes, forçando-nos assim, constantemente, a cuidar para que se tenha um mínimo de preservação física. Diz a esposa de Cantares: “O seu ventre é alvo como o marfim, coberto de safiras. ” (5:14b). 77 AS PERNAS Na cultura secular ocidental as pernas da mulher é que são freqüentemente objeto de consideração estética, na maioria das vezes, lascivas. Já em Cantares não se encontra nenhu ma alusão às pernas da mulher, mas somente com respeito às do homem: “As suas pernas são colunas de mármore, assentados em bases de ouro puro; o seu aspecto é como o Líbano, esbelto como os cedros ” (5:15). Pernas rijas (mármore), firmes e seguras (bases de ouro), belas aos olhos (aspecto co mo o Líbano), prontas, ágeis e lépidas. Sua aparência era “esbelta como os cedros” . Essas são algumas declarações que a esposa faz a respeito do impacto estético que o físi co de seu companheiro nela causava. Tudo o que dissemos até aqui neste capí tulo teve os seguintes propósitos: 1- Mostrar a dignidade da apreciação da beleza física da esposa e do esposo. 2- Resgatar a noção da pureza do belo no corpo, demonstrando sua santidade a partir da inspiração do Espírito Santo na poesia do amor conjugal em Cantares. 3- Estimular os casais - mesmo os mais idosos — a tentarem viver na perspecti va do auto-preservação da aparência, mas sem, contudo, caírem no preservacio- nismo físico fútil, vaidoso e idolátrico. 78 Creio que se essas dimensões da vida forem também redimidas na mentalidade evangéli ca,então criar-se-á o espaço emocional e psi cológico para a plena realização afetiva e
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