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Narrativa da Vida de Frederick Douglass, Um Escravo Americano. Escrita por ele mesmo. Frederick Douglass Tradução de Leonardo Poglia Vidal Revisão de Caroline Navarrina de Moura Edição de Lis Yana de Lima Martinez Leonardo Poglia Vidal (tradução) ii CONSELHO EDITORIAL: Profª. Drª. Sandra Sirangelo Maggio (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Prof. Dr. Claudio Vescia Zanini (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) Profª. Drª. Adriane Ferreira Veras (Universidade Estadual do Vale do Acaraú Prof. Dr. José Carlos Marquez Volcato (Universidade Federal de Pelotas) Profª Drª Jaqueline Bohn Donada (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título The Narrative of the life of Frederick Douglass: an American Slave Frederick Douglass Tradução Leonardo Poglia Vidal Revisão Caroline Navarrina de Moura Acompanhamento Editorial Lis Yana de Lima Martinez Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP): ____________________________________________________________ Douglass, Frederick Narrativa da Vida de Frederick Douglass, Um Escravo Americano / Frederick Douglass; traduzido por Leonardo Poglia Vidal. Título original The Narrative of the life of Frederick Douglass: an American Slave ISBN: 1515175340 ISBN-13: 978-1515175346 ________________________________________________________________ Todos os direitos autorais desta edição reservados ao tradutor e organizador da mesma Copyright © 2012 Leonardo Poglia Vidal All rights reserved. ISBN: 1515175340 ISBN-13: 978-1515175346 DEDICATÓRIA Para Roberta, Elizabeth, Luiz, Daniela, Sandra, Carol e Yana. i SUMÁRIO NOTA DO TRADUTOR ................................................................................... 3 INTRODUÇÃO – O PODER DAS PALAVRAS ........................................ 11 Informações sobre os originais: .......................................................................... 15 Prefácio .............................................................................................................. 17 Wendell Phillips, esq. ....................................................................................... 29 Frederick Douglass........................................................................................... 35 CAPÍTULO I ............................................................................................... 37 CAPÍTULO II ............................................................................................. 45 CAPÍTULO III ............................................................................................ 55 CAPÍTULO IV ............................................................................................ 61 CAPÍTULO V .............................................................................................. 67 CAPÍTULO VIN ........................................................................................ 73 CAPÍTULO VII .......................................................................................... 79 CAPÍTULO VIII ......................................................................................... 87 CAPÍTULO IX ............................................................................................ 95 CAPÍTULO X............................................................................................ 103 CAPÍTULO XI .......................................................................................... 147 APÊNDICE ............................................................................................... 167 COMO ESCAPEI DA ESCRAVIDÃO.................................................... 177 Leonardo Poglia Vidal (tradução) ii AGRADECIMENTOS Agradeço a Caroline Navarrina de Moura, revisora desta edição e autora da introdução; a Sandra Sirangelo Maggio, que tem me ajudado com os projetos intempestivos e os (des)caminhos da carreira acadêmica. A Lis Yana de Lima Martinez, que ajudou com parte da edição. Aos demais membros da comissão editorial. E isto pode parecer estranho, mas agradeço também àqueles que têm este livro em mãos, e em especial àqueles que propagarem e passarem adiante a mensagem que ele traz: a de que a educação é o caminho verdadeiro para a liberdade. 3 NOTA DO TRADUTOR Esta tradução tem dois objetivos: primeiro, disponibilizar em Português, pela primeira vez, um dos textos mais importantes para a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América (EUA), fundamental para a compreensão do processo histórico e cultural que instituiu direitos de cidadania a toda uma parcela da população que até então era legalmente destituída da própria humanidade. Segundo, estimular não apenas a leitura, mas o letramento no Brasil. Porque, se a história da vida de Frederick Douglass tem um tema dominante, é o de que a única fuga da escravidão que faz sentido começa por dentro – é um processo angustiante e dolorido, mas necessário, encetado pelo exercício da liberdade mais básica e íntima, que mesmo o mais vigiado dos escravos pode cultivar: a intelectual. Ouvi falar (literalmente) de Douglass pela primeira vez quando ouvia o audiobook, de Carl Sagan, entitulado The Leonardo Poglia Vidal (tradução) 4 Demon-Haunted World, fiquei tocado pelo episódio descrito por Sagan, que tem por fim reforçar o argumento de que a educação é o caminho para a liberdade. Imediatamente busquei pela versão em domínio público do texto, disponível na Internet; e, movido pela curiosidade, quis saber também por quanto o texto estava disponível em Português. Caiu-me(?) o queixo ao ver que não estava disponível em Português por preço algum. Considero uma obra de tal importância necessária e útil, tanto como lição de cidadania quanto como um estímulo a discussões sobre nossa história, nossa cidadania e nossa educação. De modo que decidi fazer alguma coisa nesse sentido, assim que juntasse do chão o meu queixo. Esse livro, como já foi apontado, é de extrema importância para a compreensão do processo abolicionista nos EUA, amplamente ensinado nas faculdades e escolas por lá; é considerado um marco da cidadania americana, e até versões para leitores infantis estão disponíveis. Seu autor, Frederick Douglass, foi um escravo, um trabalhador livre em uma fundição, depois um orador em prol do movimento abolicionista, tanto nos EUA quanto no exterior, tendo viajado para a Inglaterra e a Irlanda e difundido a causa da abolição, um recrutador de tropas para a Guerra Civil Americana, um sufragista, um conselheiro do presidente Abraham Lincoln e o primeiro afro-americano a disputar a vice-presidência dos EUA. Muito se falou quando Barack Obama foi eleito o primeiro presidente negro dos EUA. Pois bem – o primeiro candidato a vice-presidente por lá ainda havia sido escravo. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 5 Como Sagan aponta, Douglass também foi o único – e gostaria de salientar repetindo: o único – homem negro a participar da Convenção de Seneca Falls e a falar em defesa do direito feminino ao voto. Douglas não era apenas liberto, mas um libertário, e lutou ativamente pela igualdade de todos, sem distinção de sexo ou de cor. A Narrativa da Vida de Frederick Douglass (originalmente publicada em 1845) cobre seus primeiros anos de vida, até sua fuga da escravidão. Foi publicada porque, mesmo entre os abolicionistas, não se tinha uma ideia muito boa da capacidade intelectual dos escravos libertos, e muitos duvidavam que Frederick Douglass tivesse realmente sido um escravo, achando que ele apenas fazia este papel para impressionar e levantar o argumento da igualdade com seu exemplo. Esse tipo de racismo velado e pervasivo,mesmo da parte de aliados, Douglass enfrentou talvez da melhor maneira possível – um livro de seu próprio punho, em que não só dá nome aos bois, como também aos senhores, mestres, feitores e cuidadores de escravos sob quem sofreu as barbaridades que cometeram e, de quebra, indica locais e datas. Aos que porventura argumentem que Douglass usou um tijolo para matar uma mosca, é interessante salientar que teve, sem seu relato, o cuidado de silenciar a respeito de uma, e apenas uma, coisa: não indicou a forma exata de sua fuga, pois temia que seu relato fosse usado para impedir outros escravos de seguirem pelo mesmo caminho. Quarenta anos depois, entretanto, quando a abolição já tinha sido declarada e sua precaução tornada inútil, Leonardo Poglia Vidal (tradução) 6 Douglass finalmente escreveu o artigo Como Escapei da Escravidão (1881), em que finalmente revela a maneira com que fugiu (e repete boa parte do relato de sua vida em New Bedford). Este artigo foi anexado no final deste livro, a fim de completar a narrativa. Douglass escreveu duas outras autobiografias também inéditas: My Bondage and My Freedom (1855), em que expande o texto traduzido aqui, e Life and Time of Frederick Douglass (1881, revisada e expandida em 1892, por conta da abolição nos EUA), que é o único texto em que fala de sua vida pós Guerra Civil. Seu texto mais lido, entretanto, é sem sombra de dúvida o que consta neste volume, e há boas razões para que seja assim. Falar sobre essas razões também implica em falar sobre as escolhas realizadas nesta tradução, de modo que se mata dois coelhos com uma cajadada só: se explica a natureza do texto e se pede o perdão do leitor pelo miasma de álibis lunáticos que servem de desculpa para o que se fez na tradução. O estilo de Douglass é bastante fluido, direto e fácil de ler. É provável que isso se dê por conta do ofício de Douglass como palestrante, o que até certo ponto marcou sua escrita com a oralidade. São frases curtas, às vezes bastante repetitivas (o que tentei evitar como pude, para não tornar a leitura cansativa), fáceis de falar em um fôlego. Repetir palavras é enfatizar, e é um recurso amplamente usado na oratória; é, então, compreensível que utilizasse esse recurso também em sua escrita. Douglass não usa linguagem rebuscada nem parece pedante ou ansioso para Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 7 demonstrar sua instrução (para o que teria motivos de sobra, pois, como o leitor verá ela, é fruto de grande esforço pessoal). Tudo isso ajuda a explicar – mas não explica por completo – o tom dado à tradução, em que se buscou a simplicidade e a fluidez, em vez de se seguir a construção lógica dos argumentos ou buscar ser fiel ao estilo original. A outra metade da explicação está nas intenções deste livro. Este, espera-se, é um livro para ser lido: fácil, fluido e familiar. Todas as medidas foram convertidas para o sistema métrico, os ditados e lemas adaptados, as citações bíblicas e literárias pesquisadas (até onde se conseguiu – a referência do poema, no final da narrativa, eu não pude encontrar nem com promessa e vela acesa para o Negrinho do Pastoreio). Não se usou a palavra “inverdade” onde a “mentira” serviria, e as frases foram colocadas na ordem mais direta possível. O objetivo de usar linguagem simples é o de permitir a leitura mais ampla possível, e inspirar leitores iniciantes e veteranos com este texto peculiar, em que a educação tem parte tão importante. E o de incluir as fontes, permitir pesquisas subsequentes por eventuais alunos ou graduandos interessados. Finalmente, tenho algo a dizer em relação ao ‘negro’. Há diferentes tipos de referência à cor de pele no livro, as que mais aparecem sendo ‘nigger’, que é considerado termo racista (eu particularmente não entendo por quê, uma vez que o erro gramatical dentro da palavra faz o serviço Leonardo Poglia Vidal (tradução) 8 considerável de denunciar a ignorância no seu emprego – a melhor tradução que pude pensar para o termo seria a corruptela de ‘negro’ empregada por nossos racistas da casa, ‘nego’, mas, por motivos óbvios de clareza, não quis empregá-la), ‘colored’ ou em referências a pessoas ‘of color’, que corresponderiam ao ‘de cor’, além do ‘black’, que corresponderia ao nosso ‘negro’. Prefiro esse último tipo de referência à cor de pele, porque tem um sentido lógico – se a cor de pele se dá pela quantidade de melanina, um pigmento escuro, a pele mais escura pode bem ser chamada de ‘negra’, embora não seja totalmente. O ‘de cor’ é usado no Brasil como um eufemismo para ‘negro’ (como se ‘negro’ fosse um termo forte ou desconfortável para se usar comumente, o que denuncia o racismo de seu uso), e não faz sentido estético, uma vez que a pele branca também tem cor. Empreguei-o quando não pude evitar, para que o texto não ficasse repetitivo, porque, quando Douglass emprega o termo, essa conotação racista não está, obviamente, presente. Trata-se de uma questão de pesar a fidelidade ao original e a fidelidade ao sentido do original – em outra língua e em outra época, uma expressão análoga pode ter um significado cultural diferente. Pessoalmente, sou da opinião de que o politicamente correto faz mais mal do que bem a uma cultura, porque estabelece palavras aceitáveis e busca eliminar o uso daquelas que estão imbuídas de preconceito, e não faz nada para tratar do preconceito em si. Assim, o único efeito que tem é causar um efeito de bola de neve, em que os novos termos vão lentamente sendo imbuídos de preconceito e Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 9 trocados por termos ainda mais exóticos, ad infinitum – e, desse jeito, vamos acabar tendo que escolher entre ser pernósticos, preconceituosos ou mudos. Em minha opinião, a única forma de lidar com o preconceito é a educação. Creio que Douglass aprovaria. Leonardo Poglia Vidal, fev. 2016. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 10 Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 11 INTRODUÇÃO – O PODER DAS PALAVRAS Frederick Augustus Washington Bailey, ou apenas Frederick Douglass, pseudônimo pelo qual se tornou mundialmente conhecido ao escolhê-lo para assinar suas obras, foi um cidadão afro-americano abolicionista, orador, escritor e estadista que espalhou, por meio de suas autobiografias, o que realmente significava ser um escravo em seu país. Assim, pôde descrever de forma simples, objetiva e verdadeira as experiências dolorosas que presenciou e pelas quais passou, transformando seus escritos nos relatos mais lidos em todo território nacional, fazendo de Douglass um verdadeiro líder para o combate ao sistema legal da escravidão norte-americana. Nas suas narrativas, revela ao público fatos marcantes e extraordinários da sua vida: nascido no Condado de Talbot, no ano de 1818, Douglass encontra o regime escravagista no seu auge devido ao forte sistema capitalista no sul dos Estados Unidos. Como consequência, não possuía documentos próprios – escolhendo a data quatorze de Fevereiro como sendo o dia de seu aniversário – e é mandado para uma outra fazenda em Baltimore, a fim de servir parentes de seu dono original. Contudo, essa mudança na vida de Douglass se torna fundamental a partir Leonardo Poglia Vidal (tradução) 12 do momento em que a esposa de seu segundo dono, Sophie, a quem descreve como sendo excepcionalmente amável e generosa, decide ensiná-lo a ler e a escrever. O Sr. Auld não aprova a liberdade da esposa e manda imediatamente que cesse, mas a semente já havia sido plantada na mente e na criatividade da criança de oito anos. Douglass não se abate com o fim das aulas e decide seguir por conta própria as lições que um dia abririam portas para a sua independência; para atingirseu objetivo, faz sacrifícios enormes, como trocar comida por aulas e vender seu serviço extra nas idas pela cidade para comprar o livro didático de que necessitava. Aos vinte anos, Douglass é mandado de volta para a costa Leste, em Maryland, aos cuidados de seu primeiro dono, Edward Covey, que, ao contrário do Sr. Auld, tratava cruelmente seus escravos. Em vez de responder às violências físicas e psicológicas que enfrentava na mesma moeda, Douglass percebeu que podia mudar o seu mundo e o de seus colegas permanentemente, através das palavras. Com o domínio da escrita, teve acesso aos livros desde o literário até o panfleto que pregava contra o regime escravagista – e assim ganhou argumentos para questionar as condições em que vivia. Os conflitos entre Douglass e seu senhor, Covey, escalam, e Douglass é transferido novamente. Enfim consegue escapar da escravidão, chegando à região norte do país – mais especificamente a New Bedford, no estado de Massachussets, onde é recebido como um homem livre. Nesse momento, tanto sua vida pessoal quanto a sua vida política decolam Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 13 rapidamente. Casa-se com Anna Murray e logo se torna palestrante pela Sociedade Antiescravagista Americana. Douglass, então, conhece pessoas novas e influentes, como o William Lloyd Garrison, que também simpatizam com sua causa e o encorajam a se manifestar cada vez mais. Com o fim da Guerra Civil americana, é declarado o fim do regime escravagista no país e Douglass continua com suas publicações e palestras, engajando-se também em outras causas, como o direito ao voto feminino. Nesse momento, é tido como o mais importante militante a lutar pelas minorias, atraindo audiências cada vez maiores em suas reuniões dentro e fora do país, mantendo sempre o argumento que defendeu até o fim de sua vida: a igualdade – acreditava que todo o ser humano era igual, possuindo as mesmas virtudes e defeitos, as mesmas capacidades e fraquezas. Seus relatos trazem o que nenhum outro livro didático leva para os alunos da rede curricular de ensino, ou seja, a veracidade de um período histórico tão longo e tão duro. É extremamente gratificante poder contribuir com sua causa ao ajudar a trazer o seu texto para a língua portuguesa, perpetuando e propagando o seu legado através da palavra na qual tanto acreditava, que insiste em permanecer atual a cada mudança de geração. Caroline Navarrina de Moura1 1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da UFRGS. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 14 REFERÊNCIAS DOUGLASS, Frederick. Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave. Boston: Anti- Slavery Office, 1845. ___________________. Life and Times of Frederick Douglass: His Early Life as a Slave, His Escape from Bondage, and His Complete History to the Present Time. Hartford, Conn.: Park Publishing Co., 1881. GENOVESE, Eugene. A Economia Política da Escravidão. RJ: Pallas, 1976. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 15 INFORMAÇÕES SOBRE OS ORIGINAIS: Nota do documento original: este livro eletrônico está sendo divulgado neste momento em honra do aniversário de Martin Luther King Jr. (nascido a 15 de Janeiro, 1929), celebrado oficialmente em 20 de janeiro de 1992. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, Um Escravo Americano. Escrita por ele mesmo. Boston Publicado pelo Escritório Anti-escravidão, nº 25, Cornhill, 1845 Adicionado em 1845 por Frederick Douglass ao escritório da Corte Distrital de Massachussets por ato do Congressual no ano de 1845 Texto em domínio público encontrado gratuitamente em vários formatos no endereço eletrônico: <http://www.gutenberg.org/ebooks/23> Como Escapei da Escravidão DOUGLASS, Frederick. "My Escape from Slavery." The Century Illustrated Magazine 23, n.s. 1 (Nov. 1881): 125-131. Documento em domínio público disponível em vários formatos no endereço: <http://www.gutenberg.org/ebooks/99> Leonardo Poglia Vidal (tradução) 16 Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 17 PREFÁCIO No mês de agosto de 1841, participei de uma convenção contra a escravidão em Nantucket, em que felizmente conheci Frederick Douglass, o autor da narrativa que se segue. Ele não era conhecido de ninguém por lá, mas, tendo escapado recentemente dos grilhões da prisão sulista, e estando curioso em relação aos princípios e medidas tomadas pelos abolicionistas – de quem ele havia ouvido falar vagamente enquanto era um escravo – ele foi convencido a comparecer à convenção, embora na época residisse em New Bedford. Que momento feliz! – feliz para os milhões de seus irmãos acorrentados, ainda esperando a libertação de seu predicamento! – feliz para a causa da emancipação dos negros e da liberdade universal! – feliz para sua terra natal, que ele já fez tanto para salvar e abençoar! – feliz para o grande número de amigos e conhecidos, cujas simpatia e afeição, ele ganhou através das muitas tribulações que sofreu, das virtudes de seu caráter e de sua memória viva daqueles que ainda estão acorrentados, como se ainda estivesse com eles! – feliz para as multidões, em várias partes de nossa república, cujas mentes ele esclareceu em Leonardo Poglia Vidal (tradução) 18 relação ao assunto da escravidão, e que se derreteram em lágrimas por sua paixão ou se levantaram indignados diante de sua denúncia eloquente dos mercadores de homens! – feliz em si mesmo, uma vez que esse momento o trouxe à causa pública, “mostrou ao mundo um HOMEM”, atiçou as energias dormentes de sua alma e o consagrou ao grande serviço de quebrar o cajado do opressor, e de dar liberdade ao oprimido! Jamais esquecerei sua primeira fala na convenção – a emoção extraordinária que incitou em minha mente – a impressão poderosa que causou em um auditório cheio, totalmente tomado pela surpresa – o aplauso que se estendeu do princípio ao fim de seus comentários oportunos. Acho que jamais odiei a escravidão tão intensamente quanto naquele momento; com certeza, minha percepção da enorme injúria que ela, na natureza divina de suas vítimas, nunca esteve tão clara. E ali estava uma delas, de porte altivo e belo, dotada de um rico intelecto, um prodígio em sua eloquência natural, uma alma claramente “muito pouco abaixo dos anjos”, e ainda assim um escravo. Sim, um escravo fugido – temendo por sua segurança, mal acreditando que, em solo americano, uma única pessoa pudesse lhe oferecer a mão da amizade em meio às suas tribulações, por Deus ou pela Humanidade! Capaz de altos voos como um intelectual e uma criatura moral, tendo precisado de nada mais que um pouco de cultivo para torná-lo um distinto membro da sociedade e uma bênção para sua raça – e, no entanto, pela lei da terra, pela voz do povo, pelos termos do código da escravatura, Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 19 ele era apenas uma propriedade, um animal de carga, um bem material. Um querido amigo de New Bedford convenceu o Sr. Douglass a realizar uma palestra na convenção: ele subiu na plataforma com hesitação e embaraço, compreensíveis em uma pessoa sensível nesse tipo de situação, nova pra ele. Após se desculpar por sua ignorância, lembrando a audiência que a escravidão é escola pobre para o coração e o intelecto, ele narrou alguns casos de sua própria experiência como escravo, e durante sua fala, disse muitas coisas nobres e fez instigantes reflexões. Assim que ele se sentou, eu, cheio de esperança e admiração, levantei de minha cadeira e declarei que Patrick Henry, que tem fama como revolucionário, jamais havia feito um discurso tão eloquente pela causa da liberdade como aquele que recémhavíamos ouvido daquele fugitivo procurado. Assim pensava então, e assim penso agora. Lembrei a audiência do perigo que cercava esse jovem do norte, que havia emancipado a si mesmo – mesmo em Massachussets, terra dos nossos ancestrais peregrinos, dentre os descendentes dos senhores da revolução; e, assim, perguntei a eles se algum dia permitiriam que ele fosse carregado de novo para a escravidão – fosse por lei ou não, pela constituição ou fora dela. A resposta foi unânime em gritos trovejantes de – “NÃO!” “Vocês prestarão a ele seu socorro e o protegerão como um de seus irmãos, residentes deste estado portuário?” “SIM!”, gritou a multidão, com uma energia tão surpreendente que os tiranos impiedosos, como Mason e Dixon, poderiam quase ter ouvido a enorme comoção e a Leonardo Poglia Vidal (tradução) 20 reconhecido como a promessa de uma determinação invencível por parte daqueles que a emitiram, de não trair aqueles que passam e de esconder os perseguidos e aguentar com firmeza as consequências. Imediatamente percebi que, se o Sr. Douglass pudesse ser persuadido a dedicar seu tempo e talento promovendo o fim da escravatura, essa causa ganharia um ímpeto poderoso, e um golpe severo seria dado contra o preconceito racial contra os negros, sustentado pelo norte. Então, me dediquei a instigar sua esperança e coragem, para que ele pudesse ousar seguir uma vocação tão anômala e de tão grande responsabilidade para uma pessoa em sua situação; e nisso fui auxiliado por amigos cordiais, especialmente, pelo falecido agente feral da Sociedade Anti- escravidão de Massachussets, Sr. John A. Collins, que concordava comigo nessa questão. No começo, não logramos convencê-lo: ele não se julgava adequado a uma tarefa tão grandiosa; o caminho adiante lhe era totalmente desconhecido, e ele temia fazer mais mal do que bem. Após muito ponderar, entretanto, ele aquiesceu em experimentar – e, desde então, tem servido como palestrante, servindo em prol de ambos os Americanos ou a Sociedade Anti- escravidão de Massachussets. Ele tem sido muito pródigo em seu trabalho, e seu sucesso em combater o preconceito, em converter e agitar as mentes do público superam as mais elevadas expectativas levantadas no início de sua brilhante carreira. Ele se comporta de forma gentil e humilde, e ainda assim, com hombridade. Como palestrante, se distingue na emoção, perspicácia, Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 21 comparação, imitação, força de seu argumento e fluência de sua linguagem. Há nele aquela mistura de cabeça e coração que é indispensável para se iluminar o entendimento e ganhar os corações de outros. Que ele continue forte e constante! Que continue a crescer “em graça e no conhecimento de Deus”, que ele seja sempre mais útil à causa da humanidade ferida, seja aqui ou no estrangeiro! É, com certeza, um fato notável que um dos maiores defensores públicos da população escrava seja ele mesmo a pessoa de Frederick Douglass, um escravo fugitivo, e que a população negra dos Estados Unidos seja tão propriamente representada por um de seus próprios integrantes, Charles Lenox Remond, cujos apelos eloquentes têm exortado o mais alto aplauso nos dois lados do Atlântico. Deixem que os caluniadores das raças negras desprezem a si mesmos por sua baixeza e rigidez de espírito, e, de agora em diante, que se cesse de falar da inferioridade natural daqueles que requerem nada além de tempo e oportunidade para atingir o ponto mais alto da excelência humana. Na verdade, se pode questionar se alguma parte da população da terra teria sido capaz de aguentar as privações, sofrimentos e horrores da escravidão sem se tornar mais degradada do que os escravos de ascendência africana. Nada faltou fazer para aleijar seu intelecto, escurecer suas mentes, rebaixar sua natureza moral, obliterar todos os traços de sua humanidade e, ainda assim, de que forma maravilhosa eles têm aguentado o fardo descomunal da mais detestável sujeição, sob o qual vêm gemendo por séculos! Para ilustrar o efeito da escravidão Leonardo Poglia Vidal (tradução) 22 no homem branco – para demonstrar que, em iguais condições, ele não tem a mesma resistência de seu irmão negro – Daniel O’Connel, o distinto defensor da emancipação universal e o maior campeão da já prostrada, mas ainda não conquistada, Irlanda, relata a seguinte história em uma palestra dada por ele no Conciliation Hall, em Dublin, diante da Loyal National Repeal Association, em 31 de março de 1845: “Não importa”, disse o Sr. O’Connel, “sob que termo enganador a escravidão possa tentar se esconder, continua medonha. Tem uma tendência natural e inevitável de brutalizar cada qualidade nobre do homem. Um marinheiro americano, que naufragou na costa da África, onde foi escravo por três anos, foi descoberto embrutecido e rebaixado – havia perdido a capacidade da razão, esquecido sua língua nativa, só conseguia pronunciar uma algaravia sem nexo entre o Árabe e o Inglês, que ninguém era capaz de entender e ele próprio achava dificuldade em pronunciar. Assim se vai a teoria da influência humanizante de nossas instituições!” Mesmo admitindo que este é um caso extraordinário de deterioração mental, ao menos prova de que o escravo branco pode afundar tanto na escala da humanidade quanto o negro. O Sr. Douglass escolheu, muito apropriadamente, escrever sua narrativa em seu próprio estilo, e da melhor forma que possa, em vez de empregar a ajuda de outra pessoa. É, assim, texto de sua própria lavra; e, considerando quão longos e escuros seus anos de escravidão – quão poucas foram suas oportunidades de Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 23 desenvolver sua mente desde que ele quebrou seus grilhões –, faz jus ao seu coração e seu entendimento. Aquele que conseguir folheá-lo sem uma lágrima nos olhos, um suspiro, uma aflição de espírito – sem ser tomado por uma indizível aversão à escravatura e a todos os seus instigadores ou determinado a buscar a derrocada de tão execrável sistema – deve ter um coração de pedra, e qualificado para atuar como traficante de “escravos e almas de homens”. Tenho certeza de que esta obra é essencialmente verdadeira em todos os seus pontos, que nada tenha sido posto por malícia, nada exagerado, nada inventado; que, em vez de exagerar um único fato pertinente à escravidão como ela é, é mais branda que a realidade. A experiência de Frederick Douglass, enquanto escravo, não foi extrema; seu caso pode ser entendido como uma experiência comum do tratamento dispensado aos escravos em Maryland, estado em que são melhor alimentados que na Geórgia, Alabama ou Louisiana. Muitos sofreram incomparavelmente mais, enquanto muito poucos nas plantações sofreram menos do que ele. Ainda assim, quão deplorável era sua situação! Que castigos horríveis foram infligidos em seu corpo! Que atrocidades ainda mais chocantes cometidas com sua mente! Com todas suas nobres qualidades e aspirações sublimes, era tratado como um animal por pessoas que diziam ter os mesmos valores que Jesus Cristo! A que obrigações horríveis era constantemente sujeito! Quão carente de conselho e amparo, mesmo nas situações extremas! Quão escura era a cortina de mágoas que amortalhou de negro o último raio Leonardo Poglia Vidal (tradução) 24 da esperança, e encheu o futuro de horror e tristeza! E que ânsias vieram, depois que a liberdade se apossou de seu peito, e como sua miséria aumentou na proporção em que se tornou reflexivo e inteligente – demonstrando assim que um escravo contente é um homem extinto! Como pensou, raciocinou, sentiu, sob o açoite do condutor, com as correntes sobre seus membros! Que perigos encontrou em seus esforços para escapar de seu horrível destino! E quão singular foi sua salvação e preservaçãoentre uma nação inteira de inimigos impiedosos! Esta narrativa contém muitas situações comoventes, muitas passagens de grande poder e eloquência; mas eu acho que a mais emocionante delas é a descrição que Douglass dá de seus sentimentos, enquanto falava com seus botões sobre seu destino e as chances de um dia ser livre, nas margens da Cheepsake Bay – vendo os navios se afastando com suas asas brancas diante da brisa e as imaginando animadas pelo espírito vivo da liberdade. Quem poderia ler essa passagem e ficar insensível diante do patético e do sublime? Dentro dela há uma biblioteca de Alexandria inteira de pensamentos, sentimentos e emoções – todos os que poderiam e devem surgir como repreensão, súplica, resposta, contra este maior dos crimes – transformar o homem em uma mera propriedade do seu irmão! Maldito seja esse sistema que sepulta a divina mente do homem, desfigura a imagem de Deus, diminui aqueles que foram criados com glória e honra ao nível de animais quadrúpedes, exaltando o traficante de carne humana, Deus, que está acima de todos! Por que deveria a sua Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 25 existência ser prolongada por uma hora que fosse? O que quer dizer sua presença, além da ausência do temor a Deus, do amor aos homens, por parte do povo dos Estados Unidos? Que os céus ajudem sua eterna derrocada! Muitas pessoas são tão profundamente ignorantes da natureza da escravidão que teimam em não acreditar quando leem ou ouvem uma descrição das crueldades infligidas em suas vítimas. Elas não negam que os escravos são mantidos como propriedade, mas esse fato horrível não parece sugerir às suas mentes nenhuma ideia de injustiça ou sofrimento de injúrias e bárbaras selvagerias. Conte a elas dos cruéis açoitamentos, mutilações e marcações com ferro em brasa, ou cenas de conspurcação e sangue, do banimento de toda luz e conhecimento, e elas fingem estar muito indignadas com a enormidade dos exageros, com as mentiras nas declarações, com as calúnias ao caráter dos plantadores do sul! Como se todas essas afrontas medonhas não fossem o resultado natural da escravatura! Como se fosse menos cruel reduzir um ser humano ao estado de uma coisa do que flagelá-lo ou privá-lo de comida e agasalho necessários! Como se chicotes, correntes, aparelhos de tortura, palmatórias, mastins, feitores, condutores, patrulhas, tudo isso não fosse indispensável para manter os escravos submissos e proteger seus impiedosos opressores! Como se não fossem abundar o incesto, concubinato e adultério caso se extinguisse a instituição do casamento; quando todos os direitos humanos são aniquilados, as barreiras permanecem para proteger a vítima da fúria do saqueador; quando poder Leonardo Poglia Vidal (tradução) 26 absoluto é assumido sobre vida e liberdade, não será exercido de forma destruidora! Céticos desse tipo existem em abundância na sociedade. Em alguns casos, sua incredulidade vem da falta de reflexão; mas, geralmente, ela indica uma aversão à luz, o desejo de proteger a escravidão dos assaltos de inimigos, o desprezo pelos negros, escravos ou libertos. Esses tentarão desmentir as chocantes histórias de crueldade escravista registradas nesta narrativa verídica; mas irão fazê-lo em vão. O Sr. Douglass denunciou com franqueza seu lugar de nascimento, os nomes daqueles que clamavam ser donos de seu corpo e alma, e também os nomes daqueles que cometeram os crimes que constam nestas páginas. Logo, suas alegações poderiam facilmente ser desmentidas. Se fossem mentiras. Em sua narrativa, ele relata dois casos de crueldade assassina – em um deles, um senhor de escravos deliberadamente atirou num escravo pertencente a uma fazenda vizinha, que havia invadido sua propriedade sem querer enquanto pescava; no outro, um feitor bota uma bala na cabeça de um escravo que fugiu para uma sanga para escapar das violentas chibatadas. O Sr. Douglass nos diz que, em nenhum desses casos, alguma coisa foi feita para investigar ou prender os culpados. O jornal The Baltimore American, de 17 de março de 1845, relata uma atrocidade parecida, realizada com igual impunidade – como se segue: “Atirando em um escravo – Ficamos sabendo, através de uma carta do condado de Charles, Maryland, recebida por um concidadão, que um jovem chamado Matthews, sobrinho do general Matthews e cujo pai, Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 27 acredita-se, desfruta de uma posição em Washington, matou um dos escravos da fazenda de seu pai ao atirar contra ele. A carta diz que o jovem Matthews havia sido colocado em cargo da fazenda; que deu uma ordem ao servo, e foi desobedecido, ao que ele entrou na casa, pegou um revólver e, retornando, disparou contra o servo. Depois, fugiu imediatamente para a residência de seu pai, onde até então se encontra ileso.” – Não esqueçamos que nenhum senhor ou feitor de escravos pode ser condenado de nenhum tipo de barbárie perpetrada contra um escravo, diabólica como seja, por declaração de testemunhas negras, escravas ou libertas. Pelo código da escravatura, são consideradas incompetentes para testemunhar contra o homem branco, como se fossem de fato algum tipo de animal. Logo, não há proteção legal, de qualquer tipo, para a população escrava; e qualquer montante de crueldade pode ser empregado contra eles com impunidade. Seria possível, para a mente humana, idealizar um tipo mais horrendo de sociedade? O efeito de um sermão religioso sobre a conduta dos mestres de escravos sulistas é vividamente descrita na narrativa que se segue, e, como se verá, se mostra tudo menos salutar. Dada a natureza do caso, deve ser, pelo contrário, o mais pernicioso possível. O relato do Sr. Douglass, neste ponto, é sustentado por uma multidão de testemunhas, cuja veracidade é irrepreensível. “Um senhor de escravos que alegue ser cristão é evidentemente um impostor. Ele é um vilão do mais alto calibre. Ele é um raptor. Não importa o que se põe do outro lado da balança.” Leonardo Poglia Vidal (tradução) 28 Leitor! Você simpatiza com o propósito dos raptores ou com suas vítimas oprimidas? Se for com o primeiro, então você é inimigo de Deus e dos Homens. Se com o último, o que você está pronto a dar e ousar em sua defesa? Seja fiel, seja vigilante, seja incansável em seus esforços para quebrar cada jugo, e libertar os oprimidos. Venha o que vier – custe o que custar – escreva no estandarte que você segura ao vento, como seu lema religioso e político – “NÃO ME ASSOCIAREI À ESCRAVIDÃO! NÃO ME UNIREI A SENHORES DE ESCRAVOS!” Wm. Lloyd Garrison Boston, 1º de maio, 1845 Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 29 CARTA DE WENDELL PHILLIPS, ESQ. Boston, 22 de abril de 1845. Caro amigo: Com certeza, você lembra da velha fábula “O Homem e o Leão”, em que o leão reclama que não teria sido tão caluniado “se os leões escrevessem a história”. Bem, estou feliz por ter chegado o tempo em que “os leões escrevem a história”. Por tempo demais, tivemos que compreender o caráter da escravidão pela evidência deixada involuntariamente pelos senhores de escravos. Até se poderia descansar satisfeito com o que está evidente, e que por isso pode ser entendido como o resultado dessa relação, sem buscar mais a fundo, a fim de descobrir se entendeu sua totalidade. É verdade que aqueles que ficam uma semana inteira olhando os sacos de milho, e adoram contar as chibatadas nas costas dos escravos, dificilmente seriam o material para formar abolicionistas e reformadores. Lembro que, em 1838, muitos esperavam pelos resultados do experimento na Índia Ocidental, antes que se juntassem a nós. Esses “resultados” chegaram muito Leonardo Poglia Vidal (tradução) 30 tempo atrás; mas – ah!– poucos deles se converteram à nossa causa. Um homem deve estar pronto a se decidir pela emancipação através de outros testes, que não se a produção de açúcar aumentou – e pronto a odiar a escravidão por outras razões que não sejam apenas sujeitar os homens à fome ou flagelar mulheres – antes de ele estar pronto a deitar os primeiros tijolos de sua nova vida anti- escravidão. Fiquei feliz de saber, em sua história, quão cedo as mais negligenciadas crianças de Deus percebem seus direitos e a injustiça que sofreram. A experiência é um vívido professor, e muito antes que aprendesse seu ABC, ou soubesse para onde iam as “brancas velas” da baía do Chesapeake, você começou a entender a baixeza em que está o escravo, não por conta de sua fome, das chibatadas ou da labuta, mas pela morte cruel e devoradora que rói sua alma. A propósito disso, há uma circunstância que traz um valor único às suas memórias, e faz ainda mais notável sua percepção prematura. Você vem daquela parte do país em que nos dizem que a escravidão mostra sua face mais branda. Vamos ver, então, como é em sua melhor máscara – olhar seu lado bom, se algum existe, e então, por mais difícil que seja piorar a imagem apresentada, imaginar como fica ao se deslocar para o sul, para aquilo que é (para os negros) o Vale da Sombra da Morte, banhado pelo Mississipi. Nos conhecemos há tempo, e sabemos que podemos colocar toda nossa inteira confiança em sua verdade, Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 31 candor e sinceridade. Todos aqueles que o ouviram falar sentiram essa veracidade, da mesma maneira que sentirá, acredito, todo aquele que ler o seu livro. Sem um relato parcial – sem reclamações gerais – apenas o processo estrito da justiça medida, sempre que, por um momento, a bondade individual neutralizou o sistema mortal a que estava estranhamente aliada. Você tem estado conosco, também, já há alguns anos, e pode com justeza comparar o crepúsculo dos direitos, que sua raça desfruta no Norte, com a “meia-noite” enfrentada pelos trabalhadores ao sul da linha de Mason e Dixon. Nos dizer se, no fim das contas, o homem de cor de Massachussets está pior que o escravo mimado das plantações de arroz! Ao ler sua vida, ninguém pode dizer que escolhemos injustamente um espécime raro de crueldade. Sabemos que mesmo as situações amargas que você passou não foram insultos incidentais ou males individuais, mas coisas que sempre e necessariamente estão mescladas à sorte de cada escravo. São os ingredientes essenciais do sistema, não os resultados ocasionais. Tudo dito, eu lerei o seu livro temendo por você. Há alguns anos atrás, quando você tentou me dizer seu nome verdadeiro e o lugar em que nasceu, deve lembrar que eu o detive, e preferi continuar ignorante de tudo. E, com a exceção de detalhes vagos, ignorante eu continuei, até que você me leu suas memórias no outro dia. Na hora, eu não soube se agradecia ou não a confiança que me foi dada, até que percebi que ainda era perigoso, em Massachussets, que homens honestos dissessem seus nomes! Dizem que os Leonardo Poglia Vidal (tradução) 32 nossos fundadores, em 1776, assinaram a Declaração de Independência com o perigo da forca pairando sobre eles. Você, também, publica sua declaração de independência com o perigo à sua volta. Em todas as regiões cobertas pela Constituição dos Estados Unidos, não há nenhum lugar, estreito ou desolado, em que um escravo fugitivo possa dizer “estou salvo”. Todo o arsenal de Northern Law não tem um único escudo que pudesse protegê-lo. Posso dizer que, no seu lugar, eu teria jogado minhas memórias no fogo. Você talvez possa contar sua história com segurança, protegido como está, devido aos méritos de seus raros dons, pela afeição de tantos bons amigos – devotados a um fazer ainda mais raro, que é ajudar ao próximo. Mas será apenas por causa de seu trabalho (e também dos esforços destemidos daqueles que, pisando sobre as leis e a Constituição do país, estão determinados a “abrigar os fugitivos”, de fazer com que seus corações sejam, não importa o que a lei diga, um asilo aos oprimidos), se, no futuro, os mais humildes puderem andar na rua de queixo erguido, e testemunhar em segurança contra as crueldades que sofreram. E ainda assim é triste pensar que esses mesmos corações pulsantes que acolhem sua história e formam a salvaguarda que permite que você a conte, todos eles batem contra a lei2. Siga adiante, meu caro amigo, até que você e aqueles 2 [NT] No original, os corações batem contra o "statute in such case made and provided.", que na tradução literal quereria dizer (contra o) ‘estatuto desta forma feito e provido’. O termo deixa a frase sem sentido, intraduzível por fazer referência a um termo legal em Latim, Contra Formam Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 33 que, como você, foram salvos como se pelo fogo3 da prisão negra, tornem em leis as livres pulsações desses corações ilegais; e que a Nova Inglaterra, se separando da União sangrenta, clame a glória de ser a casa do refúgio aos oprimidos – até que nós não nos limitemos a apenas “abrigar os fugitivos” ou a ficar parados enquanto eles são caçados em torno de nós; mas, consagrando novamente a terra dos Peregrinos, como um asilo para os oprimidos, gritemos bem-vindo para os escravos tão alto que o som alcançará todas as senzalas das Carolinas, e fará que o escravo de coração partido pule ao pensar na velha Massachussets. Que esse dia venha logo! Até então, e sempre seu, Wendell Phillips Statuti. “Contra a lei” cumpre com o objetivo de manter o sentido geral e, principalmente, manter o texto inteligível e claro, uma das ideias que embasam esta tradução. 3 [NT] Alusão ao verso bíblico Coríntios, 3:15: “porém ele mesmo será salvo, como se tivesse passado pelo fogo para se salvar”. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 34 Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 35 FREDERICK DOUGLASS Frederick Douglass nasceu sob o regime da escravidão com o nome de Frederick Augustus Washington Bailey, próximo a Easton, no Condado de Talbot, Maryland. Ele não tinha certeza do ano de seu nascimento, mas sabia que era 1817 ou 1818. Ele foi enviado a Baltimore ainda menino para servir em uma casa, e lá aprendeu a ler e escrever com a assistência da esposa de seu senhor. Em 1838, ele escapou da escravidão e foi para Nova York, onde casou com Anna Murray, uma negra liberta que havia conhecido em Baltimore. Logo depois, ele mudou seu nome para Frederick Douglass. Em 1841, ele realizou uma palestra em uma convenção da Associação Anti-Escravidão de Massachussets e impressionou tanto o grupo que eles imediatamente o empregaram como um agente. Ele era um orador tão impressionante que muitos até duvidavam que tivesse sido mesmo um escravo. Ele, então, escreveu a Narrativa da Vida de Frederick Douglass. Durante a Guerra Civil, ele ajudou com o recrutamento de homens de cor para o 54º e o 55º Regimento de Massachussets, e defendeu constantemente a emancipação dos escravos. Depois da Leonardo Poglia Vidal (tradução) 36 guerra, ele se empenhou em defender e assegurar os direitos dos homens livres. Em seus últimos anos, em diversas ocasiões, foi secretário da Comissão de Santo Domingo, oficial e escrivão do Distrito de Colúmbia, e enviado dos Estados Unidos ao Haiti. Seus outros escritos autobiográficos são Meus Grilhões e Minha Libertação e Vida e Casos de Frederick Douglass, publicados em 1855 e 1881, respectivamente. Ele morreu em 1895. Narrativa da Vida de FrederickDouglass, um Escravo Americano 37 CAPÍTULO I Nasci em Tuckahoe, perto de Hillsborough, a pouco mais de dezenove quilômetros4 de Easton, no Condado de Talbot, Maryland. Não tenho informações acuradas sobre a minha idade, já que nunca vi nenhum documento que a contivesse. A grande maioria dos escravos sabe tão pouco sobre sua idade quanto os cavalos o sabem, e é a vontade da maior parte dos senhores que conheço manter os escravos ignorantes do fato. Não lembro de ter algum dia conhecido um escravo que soubesse seu aniversário. Em geral, não sabem mais do que a época – época de plantio, época de colheita, época de cerejas, na primavera ou no outono. Mesmo em minha infância, a falta dessa informação era fonte de infelicidade para mim. As crianças brancas sabiam a sua idade, e eu não entendia por que não podia ter o mesmo privilégio. Também não me era permitido perguntar ao senhor – ele considerava esse tipo de perguntas impróprias e impertinentes se vindas de um 4 [NT] 12 milhas, no original. A milha é uma unidade de medida de distância usada nos Estados Unidos, correspondente a 1,609344 quilômetros. Logo, doze milhas equivalem a pouco mais de 19Km e 300m. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 38 escravo, e indício de um temperamento inquieto. A estimativa mais próxima que posso fazer me dá entre vinte e sete e vinte e oito anos de idade. Isso porque ouvi meu senhor comentar, durante o ano de 1835, que eu tinha em torno de dezessete anos. O nome de minha mãe era Harriet Bailey. Ela era filha de Isaac e Betsey Bailey, ambos de cor, e bem escuros. Minha mãe era de uma compleição ainda mais escura que ambos. Meu pai era um homem branco. Isso era conhecido por todos que já ouvi comentar sobre meus pais. Também se cochichava que meu senhor era o meu pai, mas não sei nada sobre isso, esse conhecimento nunca me foi dado. Minha mãe e eu fomos separados quando era pequeno – antes que eu soubesse que ela era minha mãe. É um costume, na parte de Maryland, de que fugi, separar muito cedo os filhos das mães. Com frequência antes de a criança completar um ano, sua mãe lhe é tirada e colocada sob contrato em uma fazenda distante, e a criança é colocada aos cuidados de uma idosa, muito velha para o trabalho na plantação. Por que essa separação é feita, eu não sei, a menos que seja para aleijar o desenvolvimento da afeição da criança pela mãe, e destruir a afeição natural da mãe pela criança. Esse é o resultado inevitável. Eu não vi a minha mãe, ao menos sabendo quem era, mais do que quatro ou cinco vezes na vida; e cada uma dessas ocasiões por um curto período de tempo. Ela tinha sido contratada por um Sr. Stewart, que vivia a cerca de doze milhas de onde eu morava. Ela vinha à noite para me Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 39 ver, caminhando toda a distância, depois de todo o trabalho do dia. Ela era uma trabalhadora da plantação, e uma surra de chibata era a punição que poderia esperar se não estivesse no campo ao nascer do sol, a menos que tivesse permissão de seu senhor para o contrário – uma permissão que raramente ganham, e aqueles que a dão são considerados orgulhosamente como senhores gentis. Não lembro de ter visto nunca a minha mãe à luz do dia. Ela ficava comigo à noite. Ela deitava comigo e me fazia dormir, mas muito antes que eu acordasse ela tinha partido. Muito pouco se passava entre nós. A morte logo acabou com o pouco que tínhamos, e também com suas provações e seu sofrimento. Ela morreu quando eu tinha cerca de sete anos, em uma das fazendas de meu senhor perto do Moinho de Lee. Não me deixaram estar presente durante sua doença, sua morte nem enterro. Ela tinha se ido antes que eu soubesse qualquer coisa sobre o fato. Sem nunca ter desfrutado (por qualquer extensão de tempo considerável) de sua presença tranquila, seu cuidado terno e vigilante, recebi a notícia de sua morte como provavelmente teria recebido a da morte de um estranho. Tendo sido levada desse modo súbito, ela me deixou sem a menor indicação de quem era meu pai. O murmúrio de que meu senhor era meu pai pode ou não ser verdade; e, verdade ou mentira, teve pouca consequência para mim, já que (fato odioso que ainda é praticado) os escravagistas estabeleceram por lei que as crianças de mulheres escravas devem em todos os casos seguir na condição de suas mães. Isso se fez obviamente para atender à sua luxúria e Leonardo Poglia Vidal (tradução) 40 gratificar seus desejos perversos com o lucro além do prazer, pois através desse arranjo o senhor é, em muitos casos, mestre e pai de seus escravos. Conheço desses casos, e vale a pena ressaltar que esses escravos invariavelmente sofrem mais e têm que enfrentar mais provações do que os outros. Eles são, em primeiro lugar, uma constante ofensa à senhora. Ela está sempre disposta a encontrar defeitos neles, e nada do que fazem a agrada; ela prefere vê-los sob a chibata, especialmente, quando suspeita que seu marido favorece seu filho mulato mais do que os outros escravos negros. O senhor é, com frequência, compelido a vender esse tipo de escravo por deferência aos sentimentos de sua esposa. E, cruel como possa parecer a alguém um pai vender os próprios filhos a mercadores de carne humana, é com frequência a coisa mais humana que ele pode fazer, pois, a menos que isso aconteça, ele tem que não apenas açoitá-los ele próprio, mas também tem que assistir um filho seu amarrar o irmão, poucas nuances mais escuro que ele, e fazer o chicote sangrento cantar em suas costas nuas. E, se mostrar que desaprova esse estado de coisas, isso é associado à sua parcialidade como pai, o que só torna as coisas piores, tanto para si como para o escravo que tentou proteger ou defender. Cada ano traz consigo multidões desse tipo de escravo. Foi com certeza pensando nesse fato que um grande estadista do sul previu a queda da escravatura pelas leis inevitáveis da população. Se essa profecia algum dia for cumprida ou não, está claro que um tipo de gente muito Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 41 diferente daquele que foi trazido da África para este país está sendo gerado no sul, e mantido na escravidão. Se seu incremento não fizer mais nada, pelo menos enfraquece o argumento de que Deus amaldiçoou Ham5, e que, por isso, a escravidão Americana é correta. Se os descendentes de Ham são os únicos a poderem ser escravizados, de acordo com a escritura, então é certo que a escravidão no sul logo não poderá ser considerada bíblica, porque todos os anos são postos no mundo milhares de filhos que, como eu, têm pais brancos, geralmente seus senhores. Eu tive dois senhores. O sobrenome do primeiro era Anthony. Eu não lembro seu primeiro nome. Ele era geralmente chamado Capitão Anthony – título que, eu presumo, adquiriu ao comandar um barco na baía do Chesapeake. Ele não era considerado um senhor de escravos rico. Tinha duas ou três fazendas, e em torno de trinta escravos. Suas fazendas e escravos ficavam ao encargo de um feitor. O nome desse feitor era Plummer. O Sr. Plummer era um bêbado miserável, um boca-suja e um monstro selvagem. Ele sempre andava armado de um chicote e um bastão pesado. Houve vezes em que ele cortava e talhava as cabeças das mulheres de tal forma que 5 [NT] A maldição de Ham (em Português foi traduzido como ‘Cão’) confunde-se com a maldição de Canaã, que Noé, ofendido por ter sido contido por seus filhos ao dançar nu e embriagado em sua tenda, lançou sobre a linhagem de seu filho Cão (Canaã era filho de Cão): “E disse: Maldito seja Canaã, servo dos servos seja aos seus irmãos.” (Gênese, 09:25) O argumento, que permitia à sociedade americanaconciliar a prática da escravidão com o cristianismo, era baseado na ideia de que os escravos eram descendentes de Canaã, e, portanto, deveriam servir ao resto da humanidade. Douglass aponta que a miscigenação invalida esse pretexto. https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/9 Leonardo Poglia Vidal (tradução) 42 o próprio senhor se enraivecia com a sua crueldade, e ameaçava açoitá-lo se ele não se aprumasse. O Senhor, entretanto, não era um escravista piedoso. Era preciso muita barbárie por parte do feitor para afetá-lo. Ele era um homem cruel, endurecido por uma vida inteira de escravagista. Às vezes, ele parecia sentir bastante prazer ao açoitar um escravo. Eu era acordado com frequência ao alvorecer por gritos de partir o coração – de uma tia minha, que ele costumava amarrar a uma viga e açoitar suas costas nuas até que ela estivesse literalmente coberta de sangue. As palavras, lágrimas ou súplicas de sua vítima ensanguentada não pareciam tocar seu coração de aço, nem dissuadi-lo de seu violento propósito. Quanto mais ela gritava, mais forte ele açoitava; e ele batia mais onde o sangue corresse mais rápido. Ele a açoitava para fazê-la gritar, e para que ela se calasse; e não parava de bater com o chicote, já coberto de sangue coagulado, até que a fadiga o tomasse. Lembro da primeira vez em que testemunhei essa cena horrível. Foi o primeiro de uma série de ultrajes em que viria a testemunhar e tomar parte. Me atingiu com uma força tremenda. Era o portão de sangue, a entrada no inferno da escravidão, que eu estava prestes a atravessar. Foi um espetáculo terrível. Quisera poder colocar no papel o que senti ao presenciá-lo. Esse fato se sucedeu pouco depois que fui morar com meu antigo senhor, e de acordo com as circunstâncias que se seguem: tia Hester saiu uma noite – para onde ou para quê eu não sei – e estava ausente quando meu senhor desejou sua presença. Ele tinha ordenado que ela não saísse Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 43 à noite, e a avisara de que não queria pegá-la na companhia de um jovem, pertencente ao coronel Lloyd, que estava interessado nela. Esse jovem se chamava Ned Roberts, mas era conhecido como o Ned do Lloyd. A razão por que o senhor se interessava por ela era é fácil de adivinhar. Ela era uma mulher de porte nobre e proporções graciosas, tendo poucas iguais e pouquíssimas superiores, na aparência, entre as mulheres negras e brancas de nossa vizinhança. Tia Hester não havia apenas desobedecido suas ordens ao sair, mas havia estado na companhia de Ned do Lloyd, circunstância que, percebi pelo que ele disse enquanto a açoitava, era a pior de seus crimes. Se ele fosse um homem virtuoso, poderíamos pensar que estava interessado em resguardar a inocência de minha tia, mas os que o conheciam sabiam que não era o caso. Antes de começar a flagelar a tia Hester, ele a levou à cozinha e a despiu até a cintura, deixando seu pescoço, ombros e costas desnudos. Ele, então, ordenou que ela cruzasse suas mãos, chamando- a de ‘cadela maldita’6, e as amarrou ao gancho. Ela estava 6 [NT] No original, “d——d b—-h” – Douglass era, como a convenção da época ditava, avesso aos xingamentos e às blasfêmias, de modo que, nesta e em outras ocasiões em que há a menção à linguagem rude, trata-se de uma estimativa, um jogo de adivinhação. Como a proposta desta obra não é a de uma tradução literal, não é de grande consequência para o todo, mas é interessante fazer saber o leitor que Douglass tinha este cuidado – como um ex-escravo, buscando convencer a elite branca americana da injustiça da escravidão, dispondo de qualidades raríssimas aos de sua mesma condição, que eram educação e cultura, ele não estava obrigado apenas a demonstrar suas altas qualidades, mas também a se ater ao mais alto grau de moral e respeitabilidade. Em muitos sentidos, da mesma forma que um embaixador representa seu país. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 44 pronta para o propósito infernal que ele tinha em mente; seus braços estavam esticados para cima, de forma que ela se sustinha na ponta dos pés. Ele então disse a ela: “Agora, sua cadela maldita, eu vou lhe ensinar a desobedecer minhas ordens!”; e, depois de enrolar as mangas da camisa, começou a deitar nela o chicote pesado. Logo o sangue morno e vermelho (entre os gritos lancinantes e as horríveis imprecações) caía às gotas no chão. Fiquei tão mortificado e horrorizado com aquilo que presenciei que me escondi em um armário, e não ousei sair de lá até muito depois que tudo tinha terminado. Nunca havia visto nada assim antes. Sempre vivi com a minha avó nas cercanias da plantação, onde ela tinha sido colocada para criar os filhos das mulheres mais novas, então nunca tinha estado próximo das cenas sangrentas que aconteciam seguido na fazenda. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 45 CAPÍTULO II A família de meu senhor era constituída de dois filhos, Andrew e Richard; uma filha, Lucretia, junto com o esposo, capitão Thomas Auld. Eles moravam em uma casa próxima à fazenda do coronel Edward Lloyd. Meu senhor era funcionário e superintendente a serviço do coronel Lloyd. Ele era o que se poderia chamar de ‘o feitor dos feitores’. Passei dois anos de minha infância nessa fazenda, com a família de meu antigo senhor. Foi lá que presenciei o violento caso descrito no capítulo anterior; e, já que foi nessa fazenda que tive meus primeiros contatos com a escravatura, vou descrever como ela era, e de que forma se tratavam os escravos lá. A fazenda fica a cerca de vinte quilômetros ao norte de Easton, no condado de Talbot, e é situada à margem do rio Miles. As principais culturas de lá eram tabaco, milho e trigo. Eram produzidas em grande abundância, suficiente para permitir, juntamente com a produção das outras fazendas, o emprego constante de uma Leonardo Poglia Vidal (tradução) 46 corveta7 grande, que levava a carga para o mercado em Baltimore. Essa corveta tinha o nome de Sally Lloyd, em homenagem a uma das filhas do coronel. O afilhado de meu senhor, capitão Auld, era o mestre dessa nave, que, fora ele, era tripulada por escravos do coronel. Seus nomes eram Peter, Isaac, Rich e Jake. Eles eram tidos em alta conta entre os escravos, e vistos como os privilegiados da fazenda, uma vez que não era pouca coisa, aos olhos de um escravo, ter a permissão de conhecer Baltimore. O coronel Lloyd tinha entre trezentos e quatrocentos escravos em sua fazenda, e era dono de mais um grande número nas fazendas que possuía na vizinhança. Os nomes das fazendas mais próximas de onde eu me encontrava eram Wye Town e New Design. “Wye Town” era administrada por um homem chamado Noah Willis. New Design, por um homem chamado Sr. Towsend. Os feitores dessas e do resto das vinte fazendas eram dirigidos pelos administradores da fazenda do coronel. Esse era o lugar onde os negócios importantes aconteciam, o centro do governo de todas as vinte fazendas. Todas as disputas entre os administradores eram resolvidas lá. Se um escravo era condenado por um delito grave, e se tornasse intratável ou demonstrasse determinação em fugir, ele era levado imediatamente para lá, severamente castigado, colocado a bordo da corveta, levado para Baltimore e vendido para Austin Woolfork, ou algum outro mercador de escravos, como uma advertência para o restante dos escravos. 7 [NT] Barco ágil de médio porte (menor que uma fragata), geralmente de cerca de 30 metros de comprimento e três velas, com uma capacidade de carga de cerca de 40 toneladas. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 47 Era lá também que os escravos de todas as outras fazendas recebiamsua ração mensal de comida e as roupas do ano. Os homens e as mulheres recebiam de comida, mensalmente, três quilos e meio de porco ou peixe, e 25kg de farelo de milho8. Sua roupa anual consistia de duas camisas de linho grosso, um par de calças do mesmo material, um casaco, um par de calças para o inverno, feitas de tecido preto rústico, um par de meias e um par de sapatos, todo o conjunto não custando mais que sete dólares. A ração das crianças era dada às suas mães, ou às mulheres velhas que tomavam conta delas. As crianças que não podiam trabalhar nos campos não ganhavam sapatos, meias, casacos ou calças; apenas duas camisas de linho grosso por ano. Quando elas se gastavam, ficavam nuas até o próximo dia de distribuição. Crianças quase nuas, de sete a dez anos, eram comuns em todas as estações do ano. Os escravos não tinham camas, a menos que se possa chamar de cama um cobertor rústico – e só os homens e as mulheres adultos os tinham. Isso, entretanto, não era considerado uma grande privação. Sentiam menos a necessidade de camas do que a necessidade de tempo em que dormir, pois, quando o dia de trabalho no campo terminava, boa parte deles tinha o que lavar, costurar e cozinhar, sem nenhum dos instrumentos necessários para fazer essas coisas – de forma que boa parte das horas de sono eram consumidas no preparo para o trabalho do dia 8 [NT] No original, um bushel de milho e oito libras de porco ou peixe, mas se preferiu traduzir as unidades de medida para dar ao leitor brasileiro uma ideia mais precisa das medidas, uma vez que aqui se adota o sistema métrico. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 48 vindouro. Quando este era concluído, os velhos e os jovens, homens e mulheres, casados e solteiros, caíam lado a lado na cama comum – o chão úmido e frio – cada um se cobrindo com os míseros cobertores, e ali dormiam até que fossem chamados para os campos no dia seguinte pela corneta do cuidador. Quando ela soava todos tinham de levantar e se dirigir ao campo, sem demora – e ai daqueles que não ouvissem essa chamada matinal para os campos, porque os que não fossem despertos pela audição seriam pelo tato, sem distinção de sexo ou idade. O Sr. Severo9, o feitor, costumava ficar à porta da senzala, armado com uma vara de nogueira e um chicote pesado, pronto a açoitar qualquer um que fosse infeliz o suficiente para não ouvir ou que fosse, por qualquer outra razão, impedido de sair para o campo ao som da corneta. O nome do Sr. Severo era muito apropriado: era um homem cruel. Já o vi açoitar uma mulher até o sangue correr, durante meia hora seguida; e isso em meio às suas crianças que choravam, implorando para que libertasse a mãe. Ele parecia ter prazer em manifestar sua diabólica barbárie, e, além de ser cruel, era um praguejador terrível. Sua fala era capaz de gelar o sangue nas veias e arrepiar os cabelos de um homem comum. Eram poucas as sentenças que escapavam de sua boca que não começassem ou terminassem em alguma imprecação horrenda. O campo 9 [NT] Não se buscou, nesta tradução, adaptar também os nomes das personagens, uma vez que dar o nome aos bois (ou, mais ao ponto, aos escravistas) era um dos pontos da biografia de Douglass. Mas nesse caso se julgou apropriado fazê-lo, uma vez que o texto comenta o nome. No original: Mr. Severe. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 49 era o lugar para se testemunhar sua crueldade e profanidade, pois sua presença o tornava um lugar de sangue e de blasfêmia. Do nascer ao pôr do sol, ele estava amaldiçoando, furioso, cortando e golpeando, em meio aos escravos do campo, da maneira mais temível. Sua carreira foi curta. Ele morreu logo após eu ter chegado à fazenda do coronel Lloyd – e morreu como viveu, entoando maldições amargas e imprecações horrendas com seus últimos suspiros. Sua morte foi considerada resultado da misericórdia divina, pelos escravos. O Sr. Severo foi substituído pelo Sr. Hopkins. Ele era um homem muito diferente – menos cruel, menos profano e fazia menos barulho que o Sr. Severo. Sua atividade não se caracterizou por nenhuma demonstração extraordinária de crueldade. Ele açoitava, mas parecia não ter prazer nisso. Era considerado pelos escravos como um bom feitor. A fazenda do coronel Lloyd parecia com uma vila do interior. Todas as operações mecânicas das fazendas eram realizadas ali. O conserto dos sapatos, a serralheria, a carpintaria, os reparos em carroças, o feitio de pipas, a tessitura e a moedura de cereais, todas eram operações realizadas pelos escravos da fazenda. O lugar inteiro tinha um aspecto dinâmico e progressista, diferente das fazendas vizinhas. O número de casas, também, ajudava nessa impressão de vantagem em relação às vizinhas. Era chamada de A Fazenda do Casarão10. Poucos privilégios 10 [NT] Embora a tradição literal fosse justamente ‘Casa Grande’, que era usada no Brasil, não quis empregar o mesmo vocábulo para não confundir o leitor dando a ideia de uma única casa grande - as fazendas em questão Leonardo Poglia Vidal (tradução) 50 pareciam maiores para os escravos das fazendas do entorno do que fazer mandados para a Fazenda do Casarão. Era associado com grandeza em suas mentes. Um deputado não estaria mais feliz de sua eleição para o Congresso Americano do que um escravo de uma das fazendas ao redor de sua eleição para fazer mandados para o Casarão. Eles entendiam isso como evidência da confiança de seus cuidadores; e era por isso, além do desejo constante de estar longe do campo e do chicote do feitor, que consideravam o serviço para o Casarão um grande privilégio pelo qual valia a pena uma vida regrada. Quem recebia essa honra com maior frequência era chamado de o mais confiável e esperto dos indivíduos. Aqueles que competiam por esse posto buscavam diligentemente agradar seus feitores, como aqueles que buscam cargos de confiança nos partidos políticos buscam agradar e iludir o povo. O mesmo tipo de caráter que vemos nos escravos dos partidos políticos podia ser percebido nos escravos do coronel Lloyd. Os escravos escolhidos para irem ao Casarão buscar a ração mensal deles e de seus colegas escravos eram particularmente entusiásticos. Pelo caminho, eles faziam as matas velhas e densas reverberar com suas canções por quilômetros, mostrando, ao mesmo tempo, a mais elevada alegria e a mais profunda tristeza. Eles compunham enquanto caminhavam, sem cuidar o tempo ou o tom. O pensamento que viesse saía – se não em palavras, em som, tinham cada uma sua ‘casa grande’ e sua ‘senzala’ – o Casarão, no caso, era conhecido por ter a Casa Grande maior do que as vizinhas. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 51 e com frequência em ambos. Eles, às vezes, cantavam o sentimento mais patético no tom mais arrebatado, e o sentimento mais extasiado no tom mais patético. Em todas as suas canções, eles embrenhavam alguma coisa sobre a Fazenda do Casarão, especialmente quando estavam deixando a sua própria. Então, cantavam mais exaltados as palavras: “Estou indo embora para a Fazenda do Casarão! Oh, sim! Oh, sim! Oh!” Isso virava num refrão, em meio a palavras que pareceriam a muitos uma besteirada sem sentido, mas, que mesmo assim, eram plenas de sentido para eles. Sempre achei que escutar aquelas canções faria mais para convencer algumas mentes do caráter hórrido da escravidão do que a leitura de volumes inteiros de filosofia sobre o assunto. Enquanto escravo, eu nunca entendi o significado profundo daquelascanções rudes e, aparentemente, incoerentes. Eu estava dentro do círculo, e assim não via nem ouvia da forma que aqueles que estão por fora são capazes. Aquelas canções contavam a história de uma angústia que estava, então, totalmente além de minha parca compreensão; eram notas altas, longas e profundas, que respiravam com as queixas e as súplicas de almas cheias, pesadas, transbordando da mais amarga aflição. Cada nota era um clamor contra a escravidão e uma súplica a Deus para que os livrasse das correntes. Ouvir aquelas notas selvagens sempre me abateu o espírito, me enchendo com Leonardo Poglia Vidal (tradução) 52 uma tristeza inexprimível. Com frequência, me encontrei em lágrimas ao ouvi-las. A mera memória daquelas canções, até agora, me aflige, e mesmo enquanto escrevo estas memórias, uma expressão do meu sentimento já correu seu caminho, descendo pela minha face. É a essas canções que atribuo a minha primeira, fugidia, compreensão do caráter desumanizante da escravidão. Eu não consigo me livrar dessa ideia. Essas canções ainda me seguem, para aumentar meu ódio à escravatura, e atiçar minha compaixão por meus irmãos acorrentados. Se alguém desejar ser marcado com os efeitos esmagadores da escravidão, que vá até a fazenda do coronel Lloyd e, no dia da ração, se embrenhe nas matas de pinheiros. Lá, em silêncio, escute os sons que vão passar pelas câmaras de sua alma – e se mesmo assim não ficar marcado pela vida, será apenas porque “não há carne neste coração obstinado”. Eu fico abismado ao ouvir com frequência, desde que vim do norte, pessoas falando das canções dos escravos como um sinal de sua satisfação e contentamento. É impossível conceber um engano maior. Os escravos cantam mais quanto mais são infelizes. A canção do escravo representa as tristezas em seu coração – ele se alivia com elas, da mesma maneira como um coração partido só se alivia com as lágrimas. Ao menos, essa é a minha experiência. Seguido tenho cantado para afogar a minha mágoa, mas raramente para expressar minha felicidade. Chorar de alegria, cantar de alegria, também não eram comuns para mim enquanto estava na goela da escravidão. O canto de um proscrito, naufragado em uma ilha Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 53 desolada, pode ser considerado uma evidência tão grande de contentamento e felicidade quanto o canto de um escravo; as canções de um e do outro vêm da mesma emoção. Leonardo Poglia Vidal (tradução) 54 Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 55 CAPÍTULO III O coronel Lloyd mantinha um jardim grande e muito bem cultivado, que demandava os cuidados de quatro homens, fora o jardineiro-chefe (o Sr. M’Durmond). Esse jardim era provavelmente a maior atração do lugar. Durante os meses de verão, vinha gente de perto e de longe (de Baltimore, Easton e Annapolis) para ver. Era cheio de todo tipo de frutas, desde a resistente maçã do norte até a delicada laranja do sul. Esse jardim era fonte de alguns problemas na fazenda. Suas frutas excelentes eram uma tentação considerável para os enxames de garotos famintos, bem como para os escravos mais velhos do coronel, pois eram poucos os que tinham virtude ou manha suficientes para resisti-lo. Não se passava um dia de verão sem que um escravo fosse açoitado por roubar frutas, e o coronel tinha de recorrer a todo tipo de estratagema para manter os escravos longe do jardim. O último, e mais bem sucedido, desses estratagemas era cobrir a cerca com piche – se um escravo fosse pego manchado de piche, era prova suficiente de que ou ele tinha entrado no jardim, ou tinha tentado entrar. Em todo caso, era severamente açoitado pelo Leonardo Poglia Vidal (tradução) 56 jardineiro-chefe. Esse plano funcionou bem: os escravos desenvolveram tanto medo do piche quanto do chicote, pois perceberam que era impossível tocá-lo sem se sujar. O coronel também tinha um esplêndido apeiro11. Seu estábulo e galpões para carroça pareciam com as cocheiras dos estabelecimentos das cidades grandes. Os cavalos tinham as melhores figuras e o mais puro sangue. Seu galpão continha três magníficas carruagens, três ou quatro cabriolés, além de carroças e caleches do mais alto estilo. Esse estabelecimento estava sob os cuidados de dois escravos – o velho Barney e o jovem Barney, pai e filho. Cuidar desses estabelecimentos era a única coisa que faziam; mas isso não era um trabalho fácil, pois o coronel Lloyd era mais exigente com o manejo de seus cavalos do que com qualquer outra coisa. A menor desatenção era imperdoável, e punida da maneira mais severa pelos cuidadores. Se o coronel suspeitasse de qualquer omissão no trato de seus cavalos – como frequentemente suspeitava, o que fazia o ofício do jovem e velho Barney uma atividade muito sofrida –, não havia desculpa que os salvasse. Eles nunca sabiam quando estavam a salvo do açoite; com frequência, eram mais castigados quando não mereciam, e escapavam do castigo quando o mereciam mais. Tudo dependia da aparência dos cavalos e do estado mental do coronel quando estes eram levados a ele para o uso. Se um cavalo não se movesse rápido o suficiente, ou não mantivesse a cabeça suficientemente erguida, era culpa 11 [NT] Ou arreamento, ou arreios; conjunto de rédeas, selas, barrigueira, cincha, etc. necessário à montaria ou ao aparelhamento do animal a um veículo. Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 57 de seus guardadores. Era triste estar próximo da porta do estábulo e ouvir as reclamações contra os guardadores quando os cavalos eram levados de volta. “Não deram atenção apropriada a este cavalo; ele não foi propriamente raspado e escovado, ou não se alimentou bem; sua forragem estava muito seca ou muito úmida; ele comeu cedo ou tarde demais; passou frio ou calor; comeu feno demais e pouco grão, ou grão demais e pouco feno; em vez do velho Barney cuidar dele pessoalmente, deixou seu filho fazer o trabalho.” A todas essas acusações, não importava quão injustas fossem, o escravo não podia dizer uma palavra – o coronel não admitiria que um escravo o contradissesse; quando ele falava, um escravo deveria ficar em pé, escutar e tremer, e isso era literalmente o que acontecia. Eu já vi o coronel Lloyd fazer o velho Barney (que tinha entre cinquenta e sessenta anos de idade) descobrir sua cabeça calva, ajoelhar no chão úmido e receber nos ombros nus e gastos pela fadiga mais de trinta chibatadas de uma só vez. O coronel Lloyd tinha três genros, o Sr. Winder, o Sr. Nicholson e o Sr. Lowndes. Todos eles viviam no Casarão, e tinham o privilégio de açoitar os escravos quando quisessem, desde o velho Barney até William Wilkes, o cocheiro. Já vi Winder fazer um dos servos da casa ficar distante o suficiente para tocar só com a ponta do chicote, de modo que cada açoitada levantava enormes vergões em suas costas. Descrever a opulência do coronel Lloyd seria como descrever as riquezas de Jó. Ele tinha entre dez e quinze servos na casa. Diziam que ele tinha mil escravos, e Leonardo Poglia Vidal (tradução) 58 acredito que não seja exagero; ele tinha tantos que não os conhecia quando via, e nem os escravos das fazendas do entorno o conheciam. Dizem que um dia, ao cavalgar pela estrada, encontrou um negro e perguntou, do jeito comum de se dirigir aos negros nas estradas públicas do sul: “Então, garoto, a quem você pertence?” “Ao coronel Lloyd”, respondeu o escravo. “Bem, e o coronel te trata bem?” “Não, senhor”, respondeu ele. “Quê, ele faz você trabalhar demais?” “Sim, senhor.” “E você não tem comida o suficiente?” “Sim, senhor, o pouco de comida que ele me dá é suficiente12.” O coronel, depois de descobrir o lugar a que o escravo
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