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A_Narrativa_da_Vida_de_Frederick_Douglas

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Prévia do material em texto

Narrativa da Vida 
de Frederick Douglass, 
Um Escravo Americano. 
Escrita por ele mesmo. 
 
 
Frederick Douglass 
 
Tradução de Leonardo Poglia Vidal 
Revisão de Caroline Navarrina de Moura 
Edição de Lis Yana de Lima Martinez 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
ii 
 
 
CONSELHO EDITORIAL: 
 
Profª. Drª. Sandra Sirangelo Maggio (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) 
Prof. Dr. Claudio Vescia Zanini (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) 
Profª. Drª. Adriane Ferreira Veras (Universidade Estadual do Vale do Acaraú 
Prof. Dr. José Carlos Marquez Volcato (Universidade Federal de Pelotas) 
Profª Drª Jaqueline Bohn Donada (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título 
 
 The Narrative of the life of Frederick Douglass: an American Slave 
 
Frederick Douglass 
 
Tradução 
Leonardo Poglia Vidal 
 
Revisão 
 Caroline Navarrina de Moura 
 
Acompanhamento Editorial 
Lis Yana de Lima Martinez 
 
 
 
 
 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP): 
____________________________________________________________ 
Douglass, Frederick 
 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, Um Escravo Americano / Frederick 
Douglass; traduzido por Leonardo Poglia Vidal. 
 
Título original The Narrative of the life of Frederick Douglass: an American Slave 
 
ISBN: 1515175340 
ISBN-13: 978-1515175346 
________________________________________________________________ 
Todos os direitos autorais desta edição reservados ao tradutor e organizador da 
mesma 
 
 
 
 
Copyright © 2012 Leonardo Poglia Vidal 
All rights reserved. 
 
ISBN: 1515175340 
ISBN-13: 978-1515175346 
 
DEDICATÓRIA 
 
 
Para Roberta, Elizabeth, Luiz, Daniela, Sandra, Carol e Yana.
i 
 
SUMÁRIO 
 
NOTA DO TRADUTOR ................................................................................... 3 
INTRODUÇÃO – O PODER DAS PALAVRAS ........................................ 11 
 
Informações sobre os originais: .......................................................................... 15 
Prefácio .............................................................................................................. 17 
Wendell Phillips, esq. ....................................................................................... 29 
Frederick Douglass........................................................................................... 35 
CAPÍTULO I ............................................................................................... 37 
CAPÍTULO II ............................................................................................. 45 
CAPÍTULO III ............................................................................................ 55 
CAPÍTULO IV ............................................................................................ 61 
CAPÍTULO V .............................................................................................. 67 
CAPÍTULO VIN ........................................................................................ 73 
CAPÍTULO VII .......................................................................................... 79 
CAPÍTULO VIII ......................................................................................... 87 
CAPÍTULO IX ............................................................................................ 95 
CAPÍTULO X............................................................................................ 103 
CAPÍTULO XI .......................................................................................... 147 
APÊNDICE ............................................................................................... 167 
 
COMO ESCAPEI DA ESCRAVIDÃO.................................................... 177 
 
 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
ii 
AGRADECIMENTOS 
 
 
Agradeço a Caroline Navarrina de Moura, revisora desta edição e autora da 
introdução; a Sandra Sirangelo Maggio, que tem me ajudado com os 
projetos intempestivos e os (des)caminhos da carreira acadêmica. A Lis 
Yana de Lima Martinez, que ajudou com parte da edição. Aos demais 
membros da comissão editorial. E isto pode parecer estranho, mas agradeço 
também àqueles que têm este livro em mãos, e em especial àqueles que 
propagarem e passarem adiante a mensagem que ele traz: a de que a 
educação é o caminho verdadeiro para a liberdade.
3 
 
 
 
 
 
 
 
NOTA DO TRADUTOR 
 
 
 
Esta tradução tem dois objetivos: primeiro, 
disponibilizar em Português, pela primeira vez, um dos 
textos mais importantes para a abolição da escravatura nos 
Estados Unidos da América (EUA), fundamental para a 
compreensão do processo histórico e cultural que instituiu 
direitos de cidadania a toda uma parcela da população que 
até então era legalmente destituída da própria humanidade. 
Segundo, estimular não apenas a leitura, mas o letramento 
no Brasil. Porque, se a história da vida de Frederick 
Douglass tem um tema dominante, é o de que a única fuga 
da escravidão que faz sentido começa por dentro – é um 
processo angustiante e dolorido, mas necessário, encetado 
pelo exercício da liberdade mais básica e íntima, que 
mesmo o mais vigiado dos escravos pode cultivar: a 
intelectual. 
Ouvi falar (literalmente) de Douglass pela primeira vez 
quando ouvia o audiobook, de Carl Sagan, entitulado The 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
4 
Demon-Haunted World, fiquei tocado pelo episódio descrito 
por Sagan, que tem por fim reforçar o argumento de que a 
educação é o caminho para a liberdade. Imediatamente 
busquei pela versão em domínio público do texto, 
disponível na Internet; e, movido pela curiosidade, quis 
saber também por quanto o texto estava disponível em 
Português. Caiu-me(?) o queixo ao ver que não estava 
disponível em Português por preço algum. Considero uma 
obra de tal importância necessária e útil, tanto como lição 
de cidadania quanto como um estímulo a discussões sobre 
nossa história, nossa cidadania e nossa educação. De modo 
que decidi fazer alguma coisa nesse sentido, assim que 
juntasse do chão o meu queixo. 
Esse livro, como já foi apontado, é de extrema 
importância para a compreensão do processo abolicionista 
nos EUA, amplamente ensinado nas faculdades e escolas 
por lá; é considerado um marco da cidadania americana, e 
até versões para leitores infantis estão disponíveis. Seu 
autor, Frederick Douglass, foi um escravo, um trabalhador 
livre em uma fundição, depois um orador em prol do 
movimento abolicionista, tanto nos EUA quanto no 
exterior, tendo viajado para a Inglaterra e a Irlanda e 
difundido a causa da abolição, um recrutador de tropas 
para a Guerra Civil Americana, um sufragista, um 
conselheiro do presidente Abraham Lincoln e o primeiro 
afro-americano a disputar a vice-presidência dos EUA. 
Muito se falou quando Barack Obama foi eleito o primeiro 
presidente negro dos EUA. Pois bem – o primeiro 
candidato a vice-presidente por lá ainda havia sido escravo. 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
5 
Como Sagan aponta, Douglass também foi o único – e 
gostaria de salientar repetindo: o único – homem negro a 
participar da Convenção de Seneca Falls e a falar em defesa 
do direito feminino ao voto. Douglas não era apenas 
liberto, mas um libertário, e lutou ativamente pela igualdade 
de todos, sem distinção de sexo ou de cor. 
A Narrativa da Vida de Frederick Douglass (originalmente 
publicada em 1845) cobre seus primeiros anos de vida, até 
sua fuga da escravidão. Foi publicada porque, mesmo entre 
os abolicionistas, não se tinha uma ideia muito boa da 
capacidade intelectual dos escravos libertos, e muitos 
duvidavam que Frederick Douglass tivesse realmente sido 
um escravo, achando que ele apenas fazia este papel para 
impressionar e levantar o argumento da igualdade com seu 
exemplo. Esse tipo de racismo velado e pervasivo,mesmo 
da parte de aliados, Douglass enfrentou talvez da melhor 
maneira possível – um livro de seu próprio punho, em que 
não só dá nome aos bois, como também aos senhores, 
mestres, feitores e cuidadores de escravos sob quem sofreu 
as barbaridades que cometeram e, de quebra, indica locais e 
datas. Aos que porventura argumentem que Douglass usou 
um tijolo para matar uma mosca, é interessante salientar 
que teve, sem seu relato, o cuidado de silenciar a respeito 
de uma, e apenas uma, coisa: não indicou a forma exata de 
sua fuga, pois temia que seu relato fosse usado para impedir 
outros escravos de seguirem pelo mesmo caminho. 
Quarenta anos depois, entretanto, quando a abolição já 
tinha sido declarada e sua precaução tornada inútil, 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
6 
Douglass finalmente escreveu o artigo Como Escapei da 
Escravidão (1881), em que finalmente revela a maneira com 
que fugiu (e repete boa parte do relato de sua vida em New 
Bedford). Este artigo foi anexado no final deste livro, a fim 
de completar a narrativa. 
Douglass escreveu duas outras autobiografias também 
inéditas: My Bondage and My Freedom (1855), em que expande 
o texto traduzido aqui, e Life and Time of Frederick Douglass 
(1881, revisada e expandida em 1892, por conta da abolição 
nos EUA), que é o único texto em que fala de sua vida pós 
Guerra Civil. Seu texto mais lido, entretanto, é sem sombra 
de dúvida o que consta neste volume, e há boas razões para 
que seja assim. Falar sobre essas razões também implica em 
falar sobre as escolhas realizadas nesta tradução, de modo 
que se mata dois coelhos com uma cajadada só: se explica a 
natureza do texto e se pede o perdão do leitor pelo miasma 
de álibis lunáticos que servem de desculpa para o que se fez 
na tradução. 
O estilo de Douglass é bastante fluido, direto e fácil de 
ler. É provável que isso se dê por conta do ofício de 
Douglass como palestrante, o que até certo ponto marcou 
sua escrita com a oralidade. São frases curtas, às vezes 
bastante repetitivas (o que tentei evitar como pude, para 
não tornar a leitura cansativa), fáceis de falar em um fôlego. 
Repetir palavras é enfatizar, e é um recurso amplamente 
usado na oratória; é, então, compreensível que utilizasse 
esse recurso também em sua escrita. Douglass não usa 
linguagem rebuscada nem parece pedante ou ansioso para 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
7 
demonstrar sua instrução (para o que teria motivos de 
sobra, pois, como o leitor verá ela, é fruto de grande 
esforço pessoal). Tudo isso ajuda a explicar – mas não 
explica por completo – o tom dado à tradução, em que se 
buscou a simplicidade e a fluidez, em vez de se seguir a 
construção lógica dos argumentos ou buscar ser fiel ao 
estilo original. 
A outra metade da explicação está nas intenções deste 
livro. 
Este, espera-se, é um livro para ser lido: fácil, fluido e 
familiar. Todas as medidas foram convertidas para o 
sistema métrico, os ditados e lemas adaptados, as citações 
bíblicas e literárias pesquisadas (até onde se conseguiu – a 
referência do poema, no final da narrativa, eu não pude 
encontrar nem com promessa e vela acesa para o Negrinho 
do Pastoreio). Não se usou a palavra “inverdade” onde a 
“mentira” serviria, e as frases foram colocadas na ordem 
mais direta possível. O objetivo de usar linguagem simples 
é o de permitir a leitura mais ampla possível, e inspirar 
leitores iniciantes e veteranos com este texto peculiar, em 
que a educação tem parte tão importante. E o de incluir as 
fontes, permitir pesquisas subsequentes por eventuais 
alunos ou graduandos interessados. 
Finalmente, tenho algo a dizer em relação ao ‘negro’. 
Há diferentes tipos de referência à cor de pele no livro, as 
que mais aparecem sendo ‘nigger’, que é considerado termo 
racista (eu particularmente não entendo por quê, uma vez 
que o erro gramatical dentro da palavra faz o serviço 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
8 
considerável de denunciar a ignorância no seu emprego – a 
melhor tradução que pude pensar para o termo seria a 
corruptela de ‘negro’ empregada por nossos racistas da 
casa, ‘nego’, mas, por motivos óbvios de clareza, não quis 
empregá-la), ‘colored’ ou em referências a pessoas ‘of color’, 
que corresponderiam ao ‘de cor’, além do ‘black’, que 
corresponderia ao nosso ‘negro’. Prefiro esse último tipo de 
referência à cor de pele, porque tem um sentido lógico – se 
a cor de pele se dá pela quantidade de melanina, um 
pigmento escuro, a pele mais escura pode bem ser chamada 
de ‘negra’, embora não seja totalmente. O ‘de cor’ é usado 
no Brasil como um eufemismo para ‘negro’ (como se 
‘negro’ fosse um termo forte ou desconfortável para se usar 
comumente, o que denuncia o racismo de seu uso), e não 
faz sentido estético, uma vez que a pele branca também 
tem cor. Empreguei-o quando não pude evitar, para que o 
texto não ficasse repetitivo, porque, quando Douglass 
emprega o termo, essa conotação racista não está, 
obviamente, presente. Trata-se de uma questão de pesar a 
fidelidade ao original e a fidelidade ao sentido do original –
em outra língua e em outra época, uma expressão análoga 
pode ter um significado cultural diferente. 
Pessoalmente, sou da opinião de que o politicamente 
correto faz mais mal do que bem a uma cultura, porque 
estabelece palavras aceitáveis e busca eliminar o uso 
daquelas que estão imbuídas de preconceito, e não faz nada 
para tratar do preconceito em si. Assim, o único efeito que 
tem é causar um efeito de bola de neve, em que os novos 
termos vão lentamente sendo imbuídos de preconceito e 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
9 
trocados por termos ainda mais exóticos, ad infinitum – e, 
desse jeito, vamos acabar tendo que escolher entre ser 
pernósticos, preconceituosos ou mudos. Em minha 
opinião, a única forma de lidar com o preconceito é a 
educação. 
Creio que Douglass aprovaria. 
 
 
Leonardo Poglia Vidal, fev. 2016. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
10 
 
 
 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
11 
 
 
 
INTRODUÇÃO – O PODER DAS PALAVRAS 
 
 
 
 
 Frederick Augustus Washington Bailey, ou apenas 
Frederick Douglass, pseudônimo pelo qual se tornou 
mundialmente conhecido ao escolhê-lo para assinar suas 
obras, foi um cidadão afro-americano abolicionista, orador, 
escritor e estadista que espalhou, por meio de suas 
autobiografias, o que realmente significava ser um escravo 
em seu país. Assim, pôde descrever de forma simples, 
objetiva e verdadeira as experiências dolorosas que 
presenciou e pelas quais passou, transformando seus 
escritos nos relatos mais lidos em todo território nacional, 
fazendo de Douglass um verdadeiro líder para o combate 
ao sistema legal da escravidão norte-americana. 
 Nas suas narrativas, revela ao público fatos marcantes 
e extraordinários da sua vida: nascido no Condado de 
Talbot, no ano de 1818, Douglass encontra o regime 
escravagista no seu auge devido ao forte sistema capitalista 
no sul dos Estados Unidos. Como consequência, não 
possuía documentos próprios – escolhendo a data quatorze 
de Fevereiro como sendo o dia de seu aniversário – e é 
mandado para uma outra fazenda em Baltimore, a fim de 
servir parentes de seu dono original. Contudo, essa 
mudança na vida de Douglass se torna fundamental a partir 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
12 
do momento em que a esposa de seu segundo dono, 
Sophie, a quem descreve como sendo excepcionalmente 
amável e generosa, decide ensiná-lo a ler e a escrever. O Sr. 
Auld não aprova a liberdade da esposa e manda 
imediatamente que cesse, mas a semente já havia sido 
plantada na mente e na criatividade da criança de oito anos. 
Douglass não se abate com o fim das aulas e decide seguir 
por conta própria as lições que um dia abririam portas para 
a sua independência; para atingirseu objetivo, faz 
sacrifícios enormes, como trocar comida por aulas e vender 
seu serviço extra nas idas pela cidade para comprar o livro 
didático de que necessitava. 
 Aos vinte anos, Douglass é mandado de volta para a 
costa Leste, em Maryland, aos cuidados de seu primeiro 
dono, Edward Covey, que, ao contrário do Sr. Auld, tratava 
cruelmente seus escravos. Em vez de responder às 
violências físicas e psicológicas que enfrentava na mesma 
moeda, Douglass percebeu que podia mudar o seu mundo 
e o de seus colegas permanentemente, através das palavras. 
Com o domínio da escrita, teve acesso aos livros desde o 
literário até o panfleto que pregava contra o regime 
escravagista – e assim ganhou argumentos para questionar 
as condições em que vivia. Os conflitos entre Douglass e 
seu senhor, Covey, escalam, e Douglass é transferido 
novamente. Enfim consegue escapar da escravidão, 
chegando à região norte do país – mais especificamente a 
New Bedford, no estado de Massachussets, onde é 
recebido como um homem livre. Nesse momento, tanto 
sua vida pessoal quanto a sua vida política decolam 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
13 
rapidamente. Casa-se com Anna Murray e logo se torna 
palestrante pela Sociedade Antiescravagista Americana. 
Douglass, então, conhece pessoas novas e influentes, como 
o William Lloyd Garrison, que também simpatizam com 
sua causa e o encorajam a se manifestar cada vez mais. 
Com o fim da Guerra Civil americana, é declarado o 
fim do regime escravagista no país e Douglass continua 
com suas publicações e palestras, engajando-se também em 
outras causas, como o direito ao voto feminino. Nesse 
momento, é tido como o mais importante militante a lutar 
pelas minorias, atraindo audiências cada vez maiores em 
suas reuniões dentro e fora do país, mantendo sempre o 
argumento que defendeu até o fim de sua vida: a igualdade 
– acreditava que todo o ser humano era igual, possuindo as 
mesmas virtudes e defeitos, as mesmas capacidades e 
fraquezas. 
Seus relatos trazem o que nenhum outro livro didático 
leva para os alunos da rede curricular de ensino, ou seja, a 
veracidade de um período histórico tão longo e tão duro. É 
extremamente gratificante poder contribuir com sua causa 
ao ajudar a trazer o seu texto para a língua portuguesa, 
perpetuando e propagando o seu legado através da palavra 
na qual tanto acreditava, que insiste em permanecer atual a 
cada mudança de geração. 
 
Caroline Navarrina de Moura1 
 
 
1
 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da UFRGS. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
14 
REFERÊNCIAS 
 
DOUGLASS, Frederick. Narrative of the Life of 
Frederick Douglass, an American Slave. Boston: Anti-
Slavery Office, 1845. 
___________________. Life and Times of Frederick 
Douglass: His Early Life as a Slave, His Escape from 
Bondage, and His Complete History to the Present Time. 
Hartford, Conn.: Park Publishing Co., 1881. 
GENOVESE, Eugene. A Economia Política da 
Escravidão. RJ: Pallas, 1976. 
 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
15 
 
INFORMAÇÕES SOBRE OS ORIGINAIS: 
 
Nota do documento original: este livro eletrônico está 
sendo divulgado neste momento em honra do aniversário 
de Martin Luther King Jr. (nascido a 15 de Janeiro, 1929), 
celebrado oficialmente em 20 de janeiro de 1992. 
 
Narrativa da Vida de Frederick 
Douglass, Um Escravo Americano. 
Escrita por ele mesmo. 
 
Boston 
Publicado pelo Escritório Anti-escravidão, nº 25, 
Cornhill, 1845 
Adicionado em 1845 por Frederick Douglass ao 
escritório da Corte Distrital de Massachussets por ato do 
Congressual no ano de 1845 
 
Texto em domínio público encontrado gratuitamente em vários 
formatos no endereço eletrônico: 
<http://www.gutenberg.org/ebooks/23> 
 
 
 
Como Escapei da Escravidão 
DOUGLASS, Frederick. "My Escape from Slavery." 
The Century Illustrated Magazine 23, n.s. 1 (Nov. 1881): 
125-131. Documento em domínio público disponível em 
vários formatos no endereço: 
<http://www.gutenberg.org/ebooks/99> 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
16 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
17 
 
 
 
 
 
PREFÁCIO 
 
 
 
 
No mês de agosto de 1841, participei de uma convenção 
contra a escravidão em Nantucket, em que felizmente 
conheci Frederick Douglass, o autor da narrativa que se segue. 
Ele não era conhecido de ninguém por lá, mas, tendo 
escapado recentemente dos grilhões da prisão sulista, e 
estando curioso em relação aos princípios e medidas 
tomadas pelos abolicionistas – de quem ele havia ouvido 
falar vagamente enquanto era um escravo – ele foi 
convencido a comparecer à convenção, embora na época 
residisse em New Bedford. 
Que momento feliz! – feliz para os milhões de seus 
irmãos acorrentados, ainda esperando a libertação de seu 
predicamento! – feliz para a causa da emancipação dos 
negros e da liberdade universal! – feliz para sua terra natal, 
que ele já fez tanto para salvar e abençoar! – feliz para o 
grande número de amigos e conhecidos, cujas simpatia e 
afeição, ele ganhou através das muitas tribulações que 
sofreu, das virtudes de seu caráter e de sua memória viva 
daqueles que ainda estão acorrentados, como se ainda 
estivesse com eles! – feliz para as multidões, em várias 
partes de nossa república, cujas mentes ele esclareceu em 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
18 
relação ao assunto da escravidão, e que se derreteram em 
lágrimas por sua paixão ou se levantaram indignados diante 
de sua denúncia eloquente dos mercadores de homens! – 
feliz em si mesmo, uma vez que esse momento o trouxe à 
causa pública, “mostrou ao mundo um HOMEM”, atiçou 
as energias dormentes de sua alma e o consagrou ao grande 
serviço de quebrar o cajado do opressor, e de dar liberdade 
ao oprimido! 
Jamais esquecerei sua primeira fala na convenção – a 
emoção extraordinária que incitou em minha mente – a 
impressão poderosa que causou em um auditório cheio, 
totalmente tomado pela surpresa – o aplauso que se 
estendeu do princípio ao fim de seus comentários 
oportunos. Acho que jamais odiei a escravidão tão 
intensamente quanto naquele momento; com certeza, 
minha percepção da enorme injúria que ela, na natureza 
divina de suas vítimas, nunca esteve tão clara. E ali estava 
uma delas, de porte altivo e belo, dotada de um rico 
intelecto, um prodígio em sua eloquência natural, uma alma 
claramente “muito pouco abaixo dos anjos”, e ainda assim 
um escravo. Sim, um escravo fugido – temendo por sua 
segurança, mal acreditando que, em solo americano, uma 
única pessoa pudesse lhe oferecer a mão da amizade em 
meio às suas tribulações, por Deus ou pela Humanidade! 
Capaz de altos voos como um intelectual e uma criatura 
moral, tendo precisado de nada mais que um pouco de 
cultivo para torná-lo um distinto membro da sociedade e 
uma bênção para sua raça – e, no entanto, pela lei da terra, 
pela voz do povo, pelos termos do código da escravatura, 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
19 
ele era apenas uma propriedade, um animal de carga, um 
bem material. 
Um querido amigo de New Bedford convenceu o Sr. 
Douglass a realizar uma palestra na convenção: ele subiu na 
plataforma com hesitação e embaraço, compreensíveis em 
uma pessoa sensível nesse tipo de situação, nova pra ele. 
Após se desculpar por sua ignorância, lembrando a 
audiência que a escravidão é escola pobre para o coração e 
o intelecto, ele narrou alguns casos de sua própria 
experiência como escravo, e durante sua fala, disse muitas 
coisas nobres e fez instigantes reflexões. Assim que ele se 
sentou, eu, cheio de esperança e admiração, levantei de 
minha cadeira e declarei que Patrick Henry, que tem fama 
como revolucionário, jamais havia feito um discurso tão 
eloquente pela causa da liberdade como aquele que recémhavíamos ouvido daquele fugitivo procurado. Assim 
pensava então, e assim penso agora. Lembrei a audiência 
do perigo que cercava esse jovem do norte, que havia 
emancipado a si mesmo – mesmo em Massachussets, terra 
dos nossos ancestrais peregrinos, dentre os descendentes 
dos senhores da revolução; e, assim, perguntei a eles se 
algum dia permitiriam que ele fosse carregado de novo para 
a escravidão – fosse por lei ou não, pela constituição ou 
fora dela. A resposta foi unânime em gritos trovejantes de – 
“NÃO!” “Vocês prestarão a ele seu socorro e o protegerão 
como um de seus irmãos, residentes deste estado 
portuário?” “SIM!”, gritou a multidão, com uma energia tão 
surpreendente que os tiranos impiedosos, como Mason e 
Dixon, poderiam quase ter ouvido a enorme comoção e a 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
20 
reconhecido como a promessa de uma determinação 
invencível por parte daqueles que a emitiram, de não trair 
aqueles que passam e de esconder os perseguidos e 
aguentar com firmeza as consequências. 
Imediatamente percebi que, se o Sr. Douglass pudesse 
ser persuadido a dedicar seu tempo e talento promovendo 
o fim da escravatura, essa causa ganharia um ímpeto 
poderoso, e um golpe severo seria dado contra o 
preconceito racial contra os negros, sustentado pelo norte. 
Então, me dediquei a instigar sua esperança e coragem, 
para que ele pudesse ousar seguir uma vocação tão anômala 
e de tão grande responsabilidade para uma pessoa em sua 
situação; e nisso fui auxiliado por amigos cordiais, 
especialmente, pelo falecido agente feral da Sociedade Anti-
escravidão de Massachussets, Sr. John A. Collins, que 
concordava comigo nessa questão. No começo, não 
logramos convencê-lo: ele não se julgava adequado a uma 
tarefa tão grandiosa; o caminho adiante lhe era totalmente 
desconhecido, e ele temia fazer mais mal do que bem. Após 
muito ponderar, entretanto, ele aquiesceu em experimentar 
– e, desde então, tem servido como palestrante, servindo 
em prol de ambos os Americanos ou a Sociedade Anti-
escravidão de Massachussets. Ele tem sido muito pródigo 
em seu trabalho, e seu sucesso em combater o preconceito, 
em converter e agitar as mentes do público superam as 
mais elevadas expectativas levantadas no início de sua 
brilhante carreira. Ele se comporta de forma gentil e 
humilde, e ainda assim, com hombridade. Como 
palestrante, se distingue na emoção, perspicácia, 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
21 
comparação, imitação, força de seu argumento e fluência de 
sua linguagem. Há nele aquela mistura de cabeça e coração 
que é indispensável para se iluminar o entendimento e 
ganhar os corações de outros. Que ele continue forte e 
constante! Que continue a crescer “em graça e no 
conhecimento de Deus”, que ele seja sempre mais útil à 
causa da humanidade ferida, seja aqui ou no estrangeiro! 
É, com certeza, um fato notável que um dos maiores 
defensores públicos da população escrava seja ele mesmo a 
pessoa de Frederick Douglass, um escravo fugitivo, e que a 
população negra dos Estados Unidos seja tão propriamente 
representada por um de seus próprios integrantes, Charles 
Lenox Remond, cujos apelos eloquentes têm exortado o 
mais alto aplauso nos dois lados do Atlântico. Deixem que 
os caluniadores das raças negras desprezem a si mesmos 
por sua baixeza e rigidez de espírito, e, de agora em diante, 
que se cesse de falar da inferioridade natural daqueles que 
requerem nada além de tempo e oportunidade para atingir 
o ponto mais alto da excelência humana. 
Na verdade, se pode questionar se alguma parte da 
população da terra teria sido capaz de aguentar as 
privações, sofrimentos e horrores da escravidão sem se 
tornar mais degradada do que os escravos de ascendência 
africana. Nada faltou fazer para aleijar seu intelecto, 
escurecer suas mentes, rebaixar sua natureza moral, 
obliterar todos os traços de sua humanidade e, ainda assim, 
de que forma maravilhosa eles têm aguentado o fardo 
descomunal da mais detestável sujeição, sob o qual vêm 
gemendo por séculos! Para ilustrar o efeito da escravidão 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
22 
no homem branco – para demonstrar que, em iguais 
condições, ele não tem a mesma resistência de seu irmão 
negro – Daniel O’Connel, o distinto defensor da 
emancipação universal e o maior campeão da já prostrada, 
mas ainda não conquistada, Irlanda, relata a seguinte 
história em uma palestra dada por ele no Conciliation Hall, 
em Dublin, diante da Loyal National Repeal Association, 
em 31 de março de 1845: “Não importa”, disse o Sr. 
O’Connel, “sob que termo enganador a escravidão possa 
tentar se esconder, continua medonha. Tem uma tendência 
natural e inevitável de brutalizar cada qualidade nobre do homem. 
Um marinheiro americano, que naufragou na costa da 
África, onde foi escravo por três anos, foi descoberto 
embrutecido e rebaixado – havia perdido a capacidade da 
razão, esquecido sua língua nativa, só conseguia pronunciar 
uma algaravia sem nexo entre o Árabe e o Inglês, que 
ninguém era capaz de entender e ele próprio achava 
dificuldade em pronunciar. Assim se vai a teoria da 
influência humanizante de nossas instituições!” Mesmo 
admitindo que este é um caso extraordinário de 
deterioração mental, ao menos prova de que o escravo 
branco pode afundar tanto na escala da humanidade quanto 
o negro. 
O Sr. Douglass escolheu, muito apropriadamente, 
escrever sua narrativa em seu próprio estilo, e da melhor 
forma que possa, em vez de empregar a ajuda de outra 
pessoa. É, assim, texto de sua própria lavra; e, 
considerando quão longos e escuros seus anos de 
escravidão – quão poucas foram suas oportunidades de 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
23 
desenvolver sua mente desde que ele quebrou seus grilhões 
–, faz jus ao seu coração e seu entendimento. Aquele que 
conseguir folheá-lo sem uma lágrima nos olhos, um 
suspiro, uma aflição de espírito – sem ser tomado por uma 
indizível aversão à escravatura e a todos os seus 
instigadores ou determinado a buscar a derrocada de tão 
execrável sistema – deve ter um coração de pedra, e 
qualificado para atuar como traficante de “escravos e almas 
de homens”. Tenho certeza de que esta obra é 
essencialmente verdadeira em todos os seus pontos, que 
nada tenha sido posto por malícia, nada exagerado, nada 
inventado; que, em vez de exagerar um único fato 
pertinente à escravidão como ela é, é mais branda que a 
realidade. A experiência de Frederick Douglass, enquanto 
escravo, não foi extrema; seu caso pode ser entendido 
como uma experiência comum do tratamento dispensado 
aos escravos em Maryland, estado em que são melhor 
alimentados que na Geórgia, Alabama ou Louisiana. Muitos 
sofreram incomparavelmente mais, enquanto muito poucos 
nas plantações sofreram menos do que ele. Ainda assim, 
quão deplorável era sua situação! Que castigos horríveis 
foram infligidos em seu corpo! Que atrocidades ainda mais 
chocantes cometidas com sua mente! Com todas suas 
nobres qualidades e aspirações sublimes, era tratado como 
um animal por pessoas que diziam ter os mesmos valores 
que Jesus Cristo! A que obrigações horríveis era 
constantemente sujeito! Quão carente de conselho e 
amparo, mesmo nas situações extremas! Quão escura era a 
cortina de mágoas que amortalhou de negro o último raio 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
24 
da esperança, e encheu o futuro de horror e tristeza! E que 
ânsias vieram, depois que a liberdade se apossou de seu 
peito, e como sua miséria aumentou na proporção em que 
se tornou reflexivo e inteligente – demonstrando assim que 
um escravo contente é um homem extinto! Como pensou, 
raciocinou, sentiu, sob o açoite do condutor, com as 
correntes sobre seus membros! Que perigos encontrou em 
seus esforços para escapar de seu horrível destino! E quão 
singular foi sua salvação e preservaçãoentre uma nação 
inteira de inimigos impiedosos! 
Esta narrativa contém muitas situações comoventes, 
muitas passagens de grande poder e eloquência; mas eu 
acho que a mais emocionante delas é a descrição que 
Douglass dá de seus sentimentos, enquanto falava com seus 
botões sobre seu destino e as chances de um dia ser livre, 
nas margens da Cheepsake Bay – vendo os navios se 
afastando com suas asas brancas diante da brisa e as 
imaginando animadas pelo espírito vivo da liberdade. 
Quem poderia ler essa passagem e ficar insensível diante do 
patético e do sublime? Dentro dela há uma biblioteca de 
Alexandria inteira de pensamentos, sentimentos e emoções 
– todos os que poderiam e devem surgir como repreensão, 
súplica, resposta, contra este maior dos crimes – 
transformar o homem em uma mera propriedade do seu 
irmão! Maldito seja esse sistema que sepulta a divina mente 
do homem, desfigura a imagem de Deus, diminui aqueles 
que foram criados com glória e honra ao nível de animais 
quadrúpedes, exaltando o traficante de carne humana, 
Deus, que está acima de todos! Por que deveria a sua 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
25 
existência ser prolongada por uma hora que fosse? O que 
quer dizer sua presença, além da ausência do temor a Deus, 
do amor aos homens, por parte do povo dos Estados 
Unidos? Que os céus ajudem sua eterna derrocada! 
Muitas pessoas são tão profundamente ignorantes da 
natureza da escravidão que teimam em não acreditar 
quando leem ou ouvem uma descrição das crueldades 
infligidas em suas vítimas. Elas não negam que os escravos 
são mantidos como propriedade, mas esse fato horrível não 
parece sugerir às suas mentes nenhuma ideia de injustiça ou 
sofrimento de injúrias e bárbaras selvagerias. Conte a elas 
dos cruéis açoitamentos, mutilações e marcações com ferro 
em brasa, ou cenas de conspurcação e sangue, do 
banimento de toda luz e conhecimento, e elas fingem estar 
muito indignadas com a enormidade dos exageros, com as 
mentiras nas declarações, com as calúnias ao caráter dos 
plantadores do sul! Como se todas essas afrontas medonhas 
não fossem o resultado natural da escravatura! Como se 
fosse menos cruel reduzir um ser humano ao estado de 
uma coisa do que flagelá-lo ou privá-lo de comida e 
agasalho necessários! Como se chicotes, correntes, 
aparelhos de tortura, palmatórias, mastins, feitores, 
condutores, patrulhas, tudo isso não fosse indispensável 
para manter os escravos submissos e proteger seus 
impiedosos opressores! Como se não fossem abundar o 
incesto, concubinato e adultério caso se extinguisse a 
instituição do casamento; quando todos os direitos 
humanos são aniquilados, as barreiras permanecem para 
proteger a vítima da fúria do saqueador; quando poder 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
26 
absoluto é assumido sobre vida e liberdade, não será 
exercido de forma destruidora! Céticos desse tipo existem 
em abundância na sociedade. Em alguns casos, sua 
incredulidade vem da falta de reflexão; mas, geralmente, ela 
indica uma aversão à luz, o desejo de proteger a escravidão 
dos assaltos de inimigos, o desprezo pelos negros, escravos 
ou libertos. Esses tentarão desmentir as chocantes histórias 
de crueldade escravista registradas nesta narrativa verídica; 
mas irão fazê-lo em vão. O Sr. Douglass denunciou com 
franqueza seu lugar de nascimento, os nomes daqueles que 
clamavam ser donos de seu corpo e alma, e também os 
nomes daqueles que cometeram os crimes que constam 
nestas páginas. Logo, suas alegações poderiam facilmente 
ser desmentidas. Se fossem mentiras. 
Em sua narrativa, ele relata dois casos de crueldade 
assassina – em um deles, um senhor de escravos 
deliberadamente atirou num escravo pertencente a uma 
fazenda vizinha, que havia invadido sua propriedade sem 
querer enquanto pescava; no outro, um feitor bota uma 
bala na cabeça de um escravo que fugiu para uma sanga 
para escapar das violentas chibatadas. O Sr. Douglass nos 
diz que, em nenhum desses casos, alguma coisa foi feita 
para investigar ou prender os culpados. O jornal The 
Baltimore American, de 17 de março de 1845, relata uma 
atrocidade parecida, realizada com igual impunidade – 
como se segue: “Atirando em um escravo – Ficamos sabendo, 
através de uma carta do condado de Charles, Maryland, 
recebida por um concidadão, que um jovem chamado 
Matthews, sobrinho do general Matthews e cujo pai, 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
27 
acredita-se, desfruta de uma posição em Washington, 
matou um dos escravos da fazenda de seu pai ao atirar 
contra ele. A carta diz que o jovem Matthews havia sido 
colocado em cargo da fazenda; que deu uma ordem ao 
servo, e foi desobedecido, ao que ele entrou na casa, pegou 
um revólver e, retornando, disparou contra o servo. Depois, fugiu 
imediatamente para a residência de seu pai, onde até então 
se encontra ileso.” – Não esqueçamos que nenhum senhor 
ou feitor de escravos pode ser condenado de nenhum tipo 
de barbárie perpetrada contra um escravo, diabólica como 
seja, por declaração de testemunhas negras, escravas ou 
libertas. Pelo código da escravatura, são consideradas 
incompetentes para testemunhar contra o homem branco, 
como se fossem de fato algum tipo de animal. Logo, não há 
proteção legal, de qualquer tipo, para a população escrava; e 
qualquer montante de crueldade pode ser empregado 
contra eles com impunidade. Seria possível, para a mente 
humana, idealizar um tipo mais horrendo de sociedade? 
O efeito de um sermão religioso sobre a conduta dos 
mestres de escravos sulistas é vividamente descrita na 
narrativa que se segue, e, como se verá, se mostra tudo 
menos salutar. Dada a natureza do caso, deve ser, pelo 
contrário, o mais pernicioso possível. O relato do Sr. 
Douglass, neste ponto, é sustentado por uma multidão de 
testemunhas, cuja veracidade é irrepreensível. “Um senhor 
de escravos que alegue ser cristão é evidentemente um 
impostor. Ele é um vilão do mais alto calibre. Ele é um 
raptor. Não importa o que se põe do outro lado da 
balança.” 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
28 
Leitor! Você simpatiza com o propósito dos raptores ou 
com suas vítimas oprimidas? Se for com o primeiro, então 
você é inimigo de Deus e dos Homens. Se com o último, o 
que você está pronto a dar e ousar em sua defesa? Seja fiel, 
seja vigilante, seja incansável em seus esforços para quebrar 
cada jugo, e libertar os oprimidos. Venha o que vier – custe 
o que custar – escreva no estandarte que você segura ao 
vento, como seu lema religioso e político – “NÃO ME 
ASSOCIAREI À ESCRAVIDÃO! NÃO ME UNIREI A 
SENHORES DE ESCRAVOS!” 
Wm. Lloyd Garrison Boston, 1º de maio, 1845 
 
 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
29 
 
 
 
 
CARTA DE 
WENDELL PHILLIPS, ESQ. 
Boston, 22 de abril de 1845. 
 
 
 
 
Caro amigo: 
Com certeza, você lembra da velha fábula “O Homem e 
o Leão”, em que o leão reclama que não teria sido tão 
caluniado “se os leões escrevessem a história”. 
Bem, estou feliz por ter chegado o tempo em que “os 
leões escrevem a história”. Por tempo demais, tivemos que 
compreender o caráter da escravidão pela evidência deixada 
involuntariamente pelos senhores de escravos. Até se 
poderia descansar satisfeito com o que está evidente, e que 
por isso pode ser entendido como o resultado dessa 
relação, sem buscar mais a fundo, a fim de descobrir se 
entendeu sua totalidade. É verdade que aqueles que ficam 
uma semana inteira olhando os sacos de milho, e adoram 
contar as chibatadas nas costas dos escravos, dificilmente 
seriam o material para formar abolicionistas e 
reformadores. Lembro que, em 1838, muitos esperavam 
pelos resultados do experimento na Índia Ocidental, antes 
que se juntassem a nós. Esses “resultados” chegaram muito 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
30 
tempo atrás; mas – ah!– poucos deles se converteram à 
nossa causa. Um homem deve estar pronto a se decidir pela 
emancipação através de outros testes, que não se a 
produção de açúcar aumentou – e pronto a odiar a 
escravidão por outras razões que não sejam apenas sujeitar 
os homens à fome ou flagelar mulheres – antes de ele estar 
pronto a deitar os primeiros tijolos de sua nova vida anti-
escravidão. 
Fiquei feliz de saber, em sua história, quão cedo as mais 
negligenciadas crianças de Deus percebem seus direitos e a 
injustiça que sofreram. A experiência é um vívido 
professor, e muito antes que aprendesse seu ABC, ou 
soubesse para onde iam as “brancas velas” da baía do 
Chesapeake, você começou a entender a baixeza em que 
está o escravo, não por conta de sua fome, das chibatadas 
ou da labuta, mas pela morte cruel e devoradora que rói sua 
alma. 
A propósito disso, há uma circunstância que traz um 
valor único às suas memórias, e faz ainda mais notável sua 
percepção prematura. Você vem daquela parte do país em 
que nos dizem que a escravidão mostra sua face mais 
branda. Vamos ver, então, como é em sua melhor máscara 
– olhar seu lado bom, se algum existe, e então, por mais 
difícil que seja piorar a imagem apresentada, imaginar como 
fica ao se deslocar para o sul, para aquilo que é (para os 
negros) o Vale da Sombra da Morte, banhado pelo 
Mississipi. 
Nos conhecemos há tempo, e sabemos que podemos 
colocar toda nossa inteira confiança em sua verdade, 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
31 
candor e sinceridade. Todos aqueles que o ouviram falar 
sentiram essa veracidade, da mesma maneira que sentirá, 
acredito, todo aquele que ler o seu livro. Sem um relato 
parcial – sem reclamações gerais – apenas o processo 
estrito da justiça medida, sempre que, por um momento, a 
bondade individual neutralizou o sistema mortal a que 
estava estranhamente aliada. Você tem estado conosco, 
também, já há alguns anos, e pode com justeza comparar o 
crepúsculo dos direitos, que sua raça desfruta no Norte, 
com a “meia-noite” enfrentada pelos trabalhadores ao sul 
da linha de Mason e Dixon. Nos dizer se, no fim das 
contas, o homem de cor de Massachussets está pior que o 
escravo mimado das plantações de arroz! 
Ao ler sua vida, ninguém pode dizer que escolhemos 
injustamente um espécime raro de crueldade. Sabemos que 
mesmo as situações amargas que você passou não foram 
insultos incidentais ou males individuais, mas coisas que 
sempre e necessariamente estão mescladas à sorte de cada 
escravo. São os ingredientes essenciais do sistema, não os 
resultados ocasionais. 
Tudo dito, eu lerei o seu livro temendo por você. Há 
alguns anos atrás, quando você tentou me dizer seu nome 
verdadeiro e o lugar em que nasceu, deve lembrar que eu o 
detive, e preferi continuar ignorante de tudo. E, com a 
exceção de detalhes vagos, ignorante eu continuei, até que 
você me leu suas memórias no outro dia. Na hora, eu não 
soube se agradecia ou não a confiança que me foi dada, até 
que percebi que ainda era perigoso, em Massachussets, que 
homens honestos dissessem seus nomes! Dizem que os 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
32 
nossos fundadores, em 1776, assinaram a Declaração de 
Independência com o perigo da forca pairando sobre eles. 
Você, também, publica sua declaração de independência 
com o perigo à sua volta. Em todas as regiões cobertas pela 
Constituição dos Estados Unidos, não há nenhum lugar, 
estreito ou desolado, em que um escravo fugitivo possa 
dizer “estou salvo”. Todo o arsenal de Northern Law não 
tem um único escudo que pudesse protegê-lo. Posso dizer 
que, no seu lugar, eu teria jogado minhas memórias no 
fogo. 
Você talvez possa contar sua história com segurança, 
protegido como está, devido aos méritos de seus raros 
dons, pela afeição de tantos bons amigos – devotados a um 
fazer ainda mais raro, que é ajudar ao próximo. Mas será 
apenas por causa de seu trabalho (e também dos esforços 
destemidos daqueles que, pisando sobre as leis e a 
Constituição do país, estão determinados a “abrigar os 
fugitivos”, de fazer com que seus corações sejam, não 
importa o que a lei diga, um asilo aos oprimidos), se, no 
futuro, os mais humildes puderem andar na rua de queixo 
erguido, e testemunhar em segurança contra as crueldades 
que sofreram. 
E ainda assim é triste pensar que esses mesmos corações 
pulsantes que acolhem sua história e formam a salvaguarda 
que permite que você a conte, todos eles batem contra a 
lei2. Siga adiante, meu caro amigo, até que você e aqueles 
 
2 [NT] No original, os corações batem contra o "statute in such case made 
and provided.", que na tradução literal quereria dizer (contra o) ‘estatuto 
desta forma feito e provido’. O termo deixa a frase sem sentido, 
intraduzível por fazer referência a um termo legal em Latim, Contra Formam 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
33 
que, como você, foram salvos como se pelo fogo3 da prisão 
negra, tornem em leis as livres pulsações desses corações 
ilegais; e que a Nova Inglaterra, se separando da União 
sangrenta, clame a glória de ser a casa do refúgio aos 
oprimidos – até que nós não nos limitemos a apenas 
“abrigar os fugitivos” ou a ficar parados enquanto eles são 
caçados em torno de nós; mas, consagrando novamente a 
terra dos Peregrinos, como um asilo para os oprimidos, 
gritemos bem-vindo para os escravos tão alto que o som 
alcançará todas as senzalas das Carolinas, e fará que o 
escravo de coração partido pule ao pensar na velha 
Massachussets. 
Que esse dia venha logo! 
Até então, e sempre seu, 
Wendell Phillips 
 
 
 
 
Statuti. “Contra a lei” cumpre com o objetivo de manter o sentido geral e, 
principalmente, manter o texto inteligível e claro, uma das ideias que 
embasam esta tradução. 
3 [NT] Alusão ao verso bíblico Coríntios, 3:15: “porém ele mesmo será 
salvo, como se tivesse passado pelo fogo para se salvar”. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
34 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
35 
 
 
 
 
FREDERICK DOUGLASS 
 
 
 
 
Frederick Douglass nasceu sob o regime da escravidão 
com o nome de Frederick Augustus Washington Bailey, 
próximo a Easton, no Condado de Talbot, Maryland. Ele 
não tinha certeza do ano de seu nascimento, mas sabia que 
era 1817 ou 1818. Ele foi enviado a Baltimore ainda 
menino para servir em uma casa, e lá aprendeu a ler e 
escrever com a assistência da esposa de seu senhor. Em 
1838, ele escapou da escravidão e foi para Nova York, 
onde casou com Anna Murray, uma negra liberta que havia 
conhecido em Baltimore. Logo depois, ele mudou seu 
nome para Frederick Douglass. Em 1841, ele realizou uma 
palestra em uma convenção da Associação Anti-Escravidão 
de Massachussets e impressionou tanto o grupo que eles 
imediatamente o empregaram como um agente. Ele era um 
orador tão impressionante que muitos até duvidavam que 
tivesse sido mesmo um escravo. Ele, então, escreveu a 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass. Durante a Guerra 
Civil, ele ajudou com o recrutamento de homens de cor 
para o 54º e o 55º Regimento de Massachussets, e defendeu 
constantemente a emancipação dos escravos. Depois da 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
36 
guerra, ele se empenhou em defender e assegurar os 
direitos dos homens livres. Em seus últimos anos, em 
diversas ocasiões, foi secretário da Comissão de Santo 
Domingo, oficial e escrivão do Distrito de Colúmbia, e 
enviado dos Estados Unidos ao Haiti. Seus outros escritos 
autobiográficos são Meus Grilhões e Minha Libertação e Vida e 
Casos de Frederick Douglass, publicados em 1855 e 1881, 
respectivamente. Ele morreu em 1895. 
 
Narrativa da Vida de FrederickDouglass, um Escravo Americano 
37 
 
 
 
 
CAPÍTULO I 
 
 
 
 
Nasci em Tuckahoe, perto de Hillsborough, a pouco 
mais de dezenove quilômetros4 de Easton, no Condado de 
Talbot, Maryland. Não tenho informações acuradas sobre a 
minha idade, já que nunca vi nenhum documento que a 
contivesse. A grande maioria dos escravos sabe tão pouco 
sobre sua idade quanto os cavalos o sabem, e é a vontade 
da maior parte dos senhores que conheço manter os 
escravos ignorantes do fato. Não lembro de ter algum dia 
conhecido um escravo que soubesse seu aniversário. Em 
geral, não sabem mais do que a época – época de plantio, 
época de colheita, época de cerejas, na primavera ou no 
outono. Mesmo em minha infância, a falta dessa 
informação era fonte de infelicidade para mim. As crianças 
brancas sabiam a sua idade, e eu não entendia por que não 
podia ter o mesmo privilégio. Também não me era 
permitido perguntar ao senhor – ele considerava esse tipo 
de perguntas impróprias e impertinentes se vindas de um 
 
4 [NT] 12 milhas, no original. A milha é uma unidade de medida de 
distância usada nos Estados Unidos, correspondente a 1,609344 
quilômetros. Logo, doze milhas equivalem a pouco mais de 19Km e 300m. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
38 
escravo, e indício de um temperamento inquieto. A 
estimativa mais próxima que posso fazer me dá entre vinte 
e sete e vinte e oito anos de idade. Isso porque ouvi meu 
senhor comentar, durante o ano de 1835, que eu tinha em 
torno de dezessete anos. 
O nome de minha mãe era Harriet Bailey. Ela era filha 
de Isaac e Betsey Bailey, ambos de cor, e bem escuros. 
Minha mãe era de uma compleição ainda mais escura que 
ambos. 
Meu pai era um homem branco. Isso era conhecido por 
todos que já ouvi comentar sobre meus pais. Também se 
cochichava que meu senhor era o meu pai, mas não sei 
nada sobre isso, esse conhecimento nunca me foi dado. 
Minha mãe e eu fomos separados quando era pequeno – 
antes que eu soubesse que ela era minha mãe. É um 
costume, na parte de Maryland, de que fugi, separar muito 
cedo os filhos das mães. Com frequência antes de a criança 
completar um ano, sua mãe lhe é tirada e colocada sob 
contrato em uma fazenda distante, e a criança é colocada 
aos cuidados de uma idosa, muito velha para o trabalho na 
plantação. Por que essa separação é feita, eu não sei, a 
menos que seja para aleijar o desenvolvimento da afeição 
da criança pela mãe, e destruir a afeição natural da mãe pela 
criança. Esse é o resultado inevitável. 
Eu não vi a minha mãe, ao menos sabendo quem era, 
mais do que quatro ou cinco vezes na vida; e cada uma 
dessas ocasiões por um curto período de tempo. Ela tinha 
sido contratada por um Sr. Stewart, que vivia a cerca de 
doze milhas de onde eu morava. Ela vinha à noite para me 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
39 
ver, caminhando toda a distância, depois de todo o trabalho 
do dia. Ela era uma trabalhadora da plantação, e uma surra 
de chibata era a punição que poderia esperar se não 
estivesse no campo ao nascer do sol, a menos que tivesse 
permissão de seu senhor para o contrário – uma permissão 
que raramente ganham, e aqueles que a dão são 
considerados orgulhosamente como senhores gentis. Não 
lembro de ter visto nunca a minha mãe à luz do dia. Ela 
ficava comigo à noite. Ela deitava comigo e me fazia 
dormir, mas muito antes que eu acordasse ela tinha partido. 
Muito pouco se passava entre nós. A morte logo acabou 
com o pouco que tínhamos, e também com suas provações 
e seu sofrimento. Ela morreu quando eu tinha cerca de sete 
anos, em uma das fazendas de meu senhor perto do 
Moinho de Lee. Não me deixaram estar presente durante 
sua doença, sua morte nem enterro. Ela tinha se ido antes 
que eu soubesse qualquer coisa sobre o fato. Sem nunca ter 
desfrutado (por qualquer extensão de tempo considerável) 
de sua presença tranquila, seu cuidado terno e vigilante, 
recebi a notícia de sua morte como provavelmente teria 
recebido a da morte de um estranho. 
Tendo sido levada desse modo súbito, ela me deixou 
sem a menor indicação de quem era meu pai. O murmúrio 
de que meu senhor era meu pai pode ou não ser verdade; e, 
verdade ou mentira, teve pouca consequência para mim, já 
que (fato odioso que ainda é praticado) os escravagistas 
estabeleceram por lei que as crianças de mulheres escravas 
devem em todos os casos seguir na condição de suas mães. 
Isso se fez obviamente para atender à sua luxúria e 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
40 
gratificar seus desejos perversos com o lucro além do 
prazer, pois através desse arranjo o senhor é, em muitos 
casos, mestre e pai de seus escravos. 
Conheço desses casos, e vale a pena ressaltar que esses 
escravos invariavelmente sofrem mais e têm que enfrentar 
mais provações do que os outros. Eles são, em primeiro 
lugar, uma constante ofensa à senhora. Ela está sempre 
disposta a encontrar defeitos neles, e nada do que fazem a 
agrada; ela prefere vê-los sob a chibata, especialmente, 
quando suspeita que seu marido favorece seu filho mulato 
mais do que os outros escravos negros. O senhor é, com 
frequência, compelido a vender esse tipo de escravo por 
deferência aos sentimentos de sua esposa. E, cruel como 
possa parecer a alguém um pai vender os próprios filhos a 
mercadores de carne humana, é com frequência a coisa 
mais humana que ele pode fazer, pois, a menos que isso 
aconteça, ele tem que não apenas açoitá-los ele próprio, 
mas também tem que assistir um filho seu amarrar o irmão, 
poucas nuances mais escuro que ele, e fazer o chicote 
sangrento cantar em suas costas nuas. E, se mostrar que 
desaprova esse estado de coisas, isso é associado à sua 
parcialidade como pai, o que só torna as coisas piores, 
tanto para si como para o escravo que tentou proteger ou 
defender. 
Cada ano traz consigo multidões desse tipo de escravo. 
Foi com certeza pensando nesse fato que um grande 
estadista do sul previu a queda da escravatura pelas leis 
inevitáveis da população. Se essa profecia algum dia for 
cumprida ou não, está claro que um tipo de gente muito 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
41 
diferente daquele que foi trazido da África para este país 
está sendo gerado no sul, e mantido na escravidão. Se seu 
incremento não fizer mais nada, pelo menos enfraquece o 
argumento de que Deus amaldiçoou Ham5, e que, por isso, 
a escravidão Americana é correta. Se os descendentes de 
Ham são os únicos a poderem ser escravizados, de acordo 
com a escritura, então é certo que a escravidão no sul logo 
não poderá ser considerada bíblica, porque todos os anos 
são postos no mundo milhares de filhos que, como eu, têm 
pais brancos, geralmente seus senhores. 
Eu tive dois senhores. O sobrenome do primeiro era 
Anthony. Eu não lembro seu primeiro nome. Ele era 
geralmente chamado Capitão Anthony – título que, eu 
presumo, adquiriu ao comandar um barco na baía do 
Chesapeake. Ele não era considerado um senhor de 
escravos rico. Tinha duas ou três fazendas, e em torno de 
trinta escravos. Suas fazendas e escravos ficavam ao 
encargo de um feitor. O nome desse feitor era Plummer. O 
Sr. Plummer era um bêbado miserável, um boca-suja e um 
monstro selvagem. Ele sempre andava armado de um 
chicote e um bastão pesado. Houve vezes em que ele 
cortava e talhava as cabeças das mulheres de tal forma que 
 
5 [NT] A maldição de Ham (em Português foi traduzido como ‘Cão’) 
confunde-se com a maldição de Canaã, que Noé, ofendido por ter sido 
contido por seus filhos ao dançar nu e embriagado em sua tenda, lançou 
sobre a linhagem de seu filho Cão (Canaã era filho de Cão): “E disse: Maldito 
seja Canaã, servo dos servos seja aos seus irmãos.” (Gênese, 09:25) O argumento, 
que permitia à sociedade americanaconciliar a prática da escravidão com o 
cristianismo, era baseado na ideia de que os escravos eram descendentes de 
Canaã, e, portanto, deveriam servir ao resto da humanidade. Douglass 
aponta que a miscigenação invalida esse pretexto. 
https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/9
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
42 
o próprio senhor se enraivecia com a sua crueldade, e 
ameaçava açoitá-lo se ele não se aprumasse. O Senhor, 
entretanto, não era um escravista piedoso. Era preciso 
muita barbárie por parte do feitor para afetá-lo. Ele era um 
homem cruel, endurecido por uma vida inteira de 
escravagista. Às vezes, ele parecia sentir bastante prazer ao 
açoitar um escravo. Eu era acordado com frequência ao 
alvorecer por gritos de partir o coração – de uma tia minha, 
que ele costumava amarrar a uma viga e açoitar suas costas 
nuas até que ela estivesse literalmente coberta de sangue. 
As palavras, lágrimas ou súplicas de sua vítima 
ensanguentada não pareciam tocar seu coração de aço, nem 
dissuadi-lo de seu violento propósito. Quanto mais ela 
gritava, mais forte ele açoitava; e ele batia mais onde o 
sangue corresse mais rápido. Ele a açoitava para fazê-la 
gritar, e para que ela se calasse; e não parava de bater com o 
chicote, já coberto de sangue coagulado, até que a fadiga o 
tomasse. Lembro da primeira vez em que testemunhei essa 
cena horrível. Foi o primeiro de uma série de ultrajes em 
que viria a testemunhar e tomar parte. Me atingiu com uma 
força tremenda. Era o portão de sangue, a entrada no 
inferno da escravidão, que eu estava prestes a atravessar. 
Foi um espetáculo terrível. Quisera poder colocar no papel 
o que senti ao presenciá-lo. 
Esse fato se sucedeu pouco depois que fui morar com 
meu antigo senhor, e de acordo com as circunstâncias que 
se seguem: tia Hester saiu uma noite – para onde ou para 
quê eu não sei – e estava ausente quando meu senhor 
desejou sua presença. Ele tinha ordenado que ela não saísse 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
43 
à noite, e a avisara de que não queria pegá-la na companhia 
de um jovem, pertencente ao coronel Lloyd, que estava 
interessado nela. Esse jovem se chamava Ned Roberts, mas 
era conhecido como o Ned do Lloyd. A razão por que o 
senhor se interessava por ela era é fácil de adivinhar. Ela 
era uma mulher de porte nobre e proporções graciosas, 
tendo poucas iguais e pouquíssimas superiores, na 
aparência, entre as mulheres negras e brancas de nossa 
vizinhança. 
Tia Hester não havia apenas desobedecido suas ordens 
ao sair, mas havia estado na companhia de Ned do Lloyd, 
circunstância que, percebi pelo que ele disse enquanto a 
açoitava, era a pior de seus crimes. Se ele fosse um homem 
virtuoso, poderíamos pensar que estava interessado em 
resguardar a inocência de minha tia, mas os que o 
conheciam sabiam que não era o caso. Antes de começar a 
flagelar a tia Hester, ele a levou à cozinha e a despiu até a 
cintura, deixando seu pescoço, ombros e costas desnudos. 
Ele, então, ordenou que ela cruzasse suas mãos, chamando-
a de ‘cadela maldita’6, e as amarrou ao gancho. Ela estava 
 
6 [NT] No original, “d——d b—-h” – Douglass era, como a convenção da 
época ditava, avesso aos xingamentos e às blasfêmias, de modo que, nesta e 
em outras ocasiões em que há a menção à linguagem rude, trata-se de uma 
estimativa, um jogo de adivinhação. Como a proposta desta obra não é a de 
uma tradução literal, não é de grande consequência para o todo, mas é 
interessante fazer saber o leitor que Douglass tinha este cuidado – como um 
ex-escravo, buscando convencer a elite branca americana da injustiça da 
escravidão, dispondo de qualidades raríssimas aos de sua mesma condição, 
que eram educação e cultura, ele não estava obrigado apenas a demonstrar 
suas altas qualidades, mas também a se ater ao mais alto grau de moral e 
respeitabilidade. Em muitos sentidos, da mesma forma que um embaixador 
representa seu país. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
44 
pronta para o propósito infernal que ele tinha em mente; 
seus braços estavam esticados para cima, de forma que ela 
se sustinha na ponta dos pés. Ele então disse a ela: “Agora, 
sua cadela maldita, eu vou lhe ensinar a desobedecer 
minhas ordens!”; e, depois de enrolar as mangas da camisa, 
começou a deitar nela o chicote pesado. Logo o sangue 
morno e vermelho (entre os gritos lancinantes e as horríveis 
imprecações) caía às gotas no chão. Fiquei tão mortificado 
e horrorizado com aquilo que presenciei que me escondi 
em um armário, e não ousei sair de lá até muito depois que 
tudo tinha terminado. Nunca havia visto nada assim antes. 
Sempre vivi com a minha avó nas cercanias da plantação, 
onde ela tinha sido colocada para criar os filhos das 
mulheres mais novas, então nunca tinha estado próximo 
das cenas sangrentas que aconteciam seguido na fazenda. 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
45 
 
 
 
 
CAPÍTULO II 
 
 
 
 
A família de meu senhor era constituída de dois filhos, 
Andrew e Richard; uma filha, Lucretia, junto com o esposo, 
capitão Thomas Auld. Eles moravam em uma casa próxima 
à fazenda do coronel Edward Lloyd. Meu senhor era 
funcionário e superintendente a serviço do coronel Lloyd. 
Ele era o que se poderia chamar de ‘o feitor dos feitores’. 
Passei dois anos de minha infância nessa fazenda, com a 
família de meu antigo senhor. Foi lá que presenciei o 
violento caso descrito no capítulo anterior; e, já que foi 
nessa fazenda que tive meus primeiros contatos com a 
escravatura, vou descrever como ela era, e de que forma se 
tratavam os escravos lá. A fazenda fica a cerca de vinte 
quilômetros ao norte de Easton, no condado de Talbot, e é 
situada à margem do rio Miles. As principais culturas de lá 
eram tabaco, milho e trigo. Eram produzidas em grande 
abundância, suficiente para permitir, juntamente com a 
produção das outras fazendas, o emprego constante de uma 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
46 
corveta7 grande, que levava a carga para o mercado em 
Baltimore. Essa corveta tinha o nome de Sally Lloyd, em 
homenagem a uma das filhas do coronel. O afilhado de 
meu senhor, capitão Auld, era o mestre dessa nave, que, 
fora ele, era tripulada por escravos do coronel. Seus nomes 
eram Peter, Isaac, Rich e Jake. Eles eram tidos em alta 
conta entre os escravos, e vistos como os privilegiados da 
fazenda, uma vez que não era pouca coisa, aos olhos de um 
escravo, ter a permissão de conhecer Baltimore. 
O coronel Lloyd tinha entre trezentos e quatrocentos 
escravos em sua fazenda, e era dono de mais um grande 
número nas fazendas que possuía na vizinhança. Os nomes 
das fazendas mais próximas de onde eu me encontrava 
eram Wye Town e New Design. “Wye Town” era 
administrada por um homem chamado Noah Willis. New 
Design, por um homem chamado Sr. Towsend. Os feitores 
dessas e do resto das vinte fazendas eram dirigidos pelos 
administradores da fazenda do coronel. Esse era o lugar 
onde os negócios importantes aconteciam, o centro do 
governo de todas as vinte fazendas. Todas as disputas entre 
os administradores eram resolvidas lá. Se um escravo era 
condenado por um delito grave, e se tornasse intratável ou 
demonstrasse determinação em fugir, ele era levado 
imediatamente para lá, severamente castigado, colocado a 
bordo da corveta, levado para Baltimore e vendido para 
Austin Woolfork, ou algum outro mercador de escravos, 
como uma advertência para o restante dos escravos. 
 
7 [NT] Barco ágil de médio porte (menor que uma fragata), geralmente de 
cerca de 30 metros de comprimento e três velas, com uma capacidade de 
carga de cerca de 40 toneladas. 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
47 
Era lá também que os escravos de todas as outras 
fazendas recebiamsua ração mensal de comida e as roupas 
do ano. Os homens e as mulheres recebiam de comida, 
mensalmente, três quilos e meio de porco ou peixe, e 25kg 
de farelo de milho8. Sua roupa anual consistia de duas 
camisas de linho grosso, um par de calças do mesmo 
material, um casaco, um par de calças para o inverno, feitas 
de tecido preto rústico, um par de meias e um par de 
sapatos, todo o conjunto não custando mais que sete 
dólares. A ração das crianças era dada às suas mães, ou às 
mulheres velhas que tomavam conta delas. As crianças que 
não podiam trabalhar nos campos não ganhavam sapatos, 
meias, casacos ou calças; apenas duas camisas de linho 
grosso por ano. Quando elas se gastavam, ficavam nuas até 
o próximo dia de distribuição. Crianças quase nuas, de sete 
a dez anos, eram comuns em todas as estações do ano. 
Os escravos não tinham camas, a menos que se possa 
chamar de cama um cobertor rústico – e só os homens e as 
mulheres adultos os tinham. Isso, entretanto, não era 
considerado uma grande privação. Sentiam menos a 
necessidade de camas do que a necessidade de tempo em 
que dormir, pois, quando o dia de trabalho no campo 
terminava, boa parte deles tinha o que lavar, costurar e 
cozinhar, sem nenhum dos instrumentos necessários para 
fazer essas coisas – de forma que boa parte das horas de 
sono eram consumidas no preparo para o trabalho do dia 
 
8 [NT] No original, um bushel de milho e oito libras de porco ou peixe, mas 
se preferiu traduzir as unidades de medida para dar ao leitor brasileiro uma 
ideia mais precisa das medidas, uma vez que aqui se adota o sistema 
métrico. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
48 
vindouro. Quando este era concluído, os velhos e os 
jovens, homens e mulheres, casados e solteiros, caíam lado 
a lado na cama comum – o chão úmido e frio – cada um se 
cobrindo com os míseros cobertores, e ali dormiam até que 
fossem chamados para os campos no dia seguinte pela 
corneta do cuidador. Quando ela soava todos tinham de 
levantar e se dirigir ao campo, sem demora – e ai daqueles 
que não ouvissem essa chamada matinal para os campos, 
porque os que não fossem despertos pela audição seriam 
pelo tato, sem distinção de sexo ou idade. O Sr. Severo9, o 
feitor, costumava ficar à porta da senzala, armado com uma 
vara de nogueira e um chicote pesado, pronto a açoitar 
qualquer um que fosse infeliz o suficiente para não ouvir 
ou que fosse, por qualquer outra razão, impedido de sair 
para o campo ao som da corneta. 
O nome do Sr. Severo era muito apropriado: era um 
homem cruel. Já o vi açoitar uma mulher até o sangue 
correr, durante meia hora seguida; e isso em meio às suas 
crianças que choravam, implorando para que libertasse a 
mãe. Ele parecia ter prazer em manifestar sua diabólica 
barbárie, e, além de ser cruel, era um praguejador terrível. 
Sua fala era capaz de gelar o sangue nas veias e arrepiar os 
cabelos de um homem comum. Eram poucas as sentenças 
que escapavam de sua boca que não começassem ou 
terminassem em alguma imprecação horrenda. O campo 
 
9 [NT] Não se buscou, nesta tradução, adaptar também os nomes das 
personagens, uma vez que dar o nome aos bois (ou, mais ao ponto, aos 
escravistas) era um dos pontos da biografia de Douglass. Mas nesse caso se 
julgou apropriado fazê-lo, uma vez que o texto comenta o nome. No 
original: Mr. Severe. 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
49 
era o lugar para se testemunhar sua crueldade e 
profanidade, pois sua presença o tornava um lugar de 
sangue e de blasfêmia. Do nascer ao pôr do sol, ele estava 
amaldiçoando, furioso, cortando e golpeando, em meio aos 
escravos do campo, da maneira mais temível. Sua carreira 
foi curta. Ele morreu logo após eu ter chegado à fazenda 
do coronel Lloyd – e morreu como viveu, entoando 
maldições amargas e imprecações horrendas com seus 
últimos suspiros. Sua morte foi considerada resultado da 
misericórdia divina, pelos escravos. 
O Sr. Severo foi substituído pelo Sr. Hopkins. Ele era 
um homem muito diferente – menos cruel, menos profano 
e fazia menos barulho que o Sr. Severo. Sua atividade não 
se caracterizou por nenhuma demonstração extraordinária 
de crueldade. Ele açoitava, mas parecia não ter prazer nisso. 
Era considerado pelos escravos como um bom feitor. 
A fazenda do coronel Lloyd parecia com uma vila do 
interior. Todas as operações mecânicas das fazendas eram 
realizadas ali. O conserto dos sapatos, a serralheria, a 
carpintaria, os reparos em carroças, o feitio de pipas, a 
tessitura e a moedura de cereais, todas eram operações 
realizadas pelos escravos da fazenda. O lugar inteiro tinha 
um aspecto dinâmico e progressista, diferente das fazendas 
vizinhas. O número de casas, também, ajudava nessa 
impressão de vantagem em relação às vizinhas. Era 
chamada de A Fazenda do Casarão10. Poucos privilégios 
 
10 [NT] Embora a tradição literal fosse justamente ‘Casa Grande’, que era 
usada no Brasil, não quis empregar o mesmo vocábulo para não confundir 
o leitor dando a ideia de uma única casa grande - as fazendas em questão 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
50 
pareciam maiores para os escravos das fazendas do entorno 
do que fazer mandados para a Fazenda do Casarão. Era 
associado com grandeza em suas mentes. Um deputado 
não estaria mais feliz de sua eleição para o Congresso 
Americano do que um escravo de uma das fazendas ao 
redor de sua eleição para fazer mandados para o Casarão. 
Eles entendiam isso como evidência da confiança de seus 
cuidadores; e era por isso, além do desejo constante de 
estar longe do campo e do chicote do feitor, que 
consideravam o serviço para o Casarão um grande 
privilégio pelo qual valia a pena uma vida regrada. Quem 
recebia essa honra com maior frequência era chamado de o 
mais confiável e esperto dos indivíduos. Aqueles que 
competiam por esse posto buscavam diligentemente 
agradar seus feitores, como aqueles que buscam cargos de 
confiança nos partidos políticos buscam agradar e iludir o 
povo. O mesmo tipo de caráter que vemos nos escravos 
dos partidos políticos podia ser percebido nos escravos do 
coronel Lloyd. 
Os escravos escolhidos para irem ao Casarão buscar a 
ração mensal deles e de seus colegas escravos eram 
particularmente entusiásticos. Pelo caminho, eles faziam as 
matas velhas e densas reverberar com suas canções por 
quilômetros, mostrando, ao mesmo tempo, a mais elevada 
alegria e a mais profunda tristeza. Eles compunham 
enquanto caminhavam, sem cuidar o tempo ou o tom. O 
pensamento que viesse saía – se não em palavras, em som, 
 
tinham cada uma sua ‘casa grande’ e sua ‘senzala’ – o Casarão, no caso, era 
conhecido por ter a Casa Grande maior do que as vizinhas. 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
51 
e com frequência em ambos. Eles, às vezes, cantavam o 
sentimento mais patético no tom mais arrebatado, e o 
sentimento mais extasiado no tom mais patético. Em todas 
as suas canções, eles embrenhavam alguma coisa sobre a 
Fazenda do Casarão, especialmente quando estavam 
deixando a sua própria. Então, cantavam mais exaltados as 
palavras: 
 
“Estou indo embora para a Fazenda do Casarão! 
Oh, sim! Oh, sim! Oh!” 
 
Isso virava num refrão, em meio a palavras que 
pareceriam a muitos uma besteirada sem sentido, mas, que 
mesmo assim, eram plenas de sentido para eles. Sempre 
achei que escutar aquelas canções faria mais para convencer 
algumas mentes do caráter hórrido da escravidão do que a 
leitura de volumes inteiros de filosofia sobre o assunto. 
Enquanto escravo, eu nunca entendi o significado 
profundo daquelascanções rudes e, aparentemente, 
incoerentes. Eu estava dentro do círculo, e assim não via 
nem ouvia da forma que aqueles que estão por fora são 
capazes. Aquelas canções contavam a história de uma 
angústia que estava, então, totalmente além de minha parca 
compreensão; eram notas altas, longas e profundas, que 
respiravam com as queixas e as súplicas de almas cheias, 
pesadas, transbordando da mais amarga aflição. Cada nota 
era um clamor contra a escravidão e uma súplica a Deus 
para que os livrasse das correntes. Ouvir aquelas notas 
selvagens sempre me abateu o espírito, me enchendo com 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
52 
uma tristeza inexprimível. Com frequência, me encontrei 
em lágrimas ao ouvi-las. A mera memória daquelas canções, 
até agora, me aflige, e mesmo enquanto escrevo estas 
memórias, uma expressão do meu sentimento já correu seu 
caminho, descendo pela minha face. É a essas canções que 
atribuo a minha primeira, fugidia, compreensão do caráter 
desumanizante da escravidão. Eu não consigo me livrar 
dessa ideia. Essas canções ainda me seguem, para aumentar 
meu ódio à escravatura, e atiçar minha compaixão por 
meus irmãos acorrentados. Se alguém desejar ser marcado 
com os efeitos esmagadores da escravidão, que vá até a 
fazenda do coronel Lloyd e, no dia da ração, se embrenhe 
nas matas de pinheiros. Lá, em silêncio, escute os sons que 
vão passar pelas câmaras de sua alma – e se mesmo assim 
não ficar marcado pela vida, será apenas porque “não há 
carne neste coração obstinado”. 
Eu fico abismado ao ouvir com frequência, desde que 
vim do norte, pessoas falando das canções dos escravos 
como um sinal de sua satisfação e contentamento. É 
impossível conceber um engano maior. Os escravos cantam 
mais quanto mais são infelizes. A canção do escravo 
representa as tristezas em seu coração – ele se alivia com 
elas, da mesma maneira como um coração partido só se 
alivia com as lágrimas. Ao menos, essa é a minha 
experiência. Seguido tenho cantado para afogar a minha 
mágoa, mas raramente para expressar minha felicidade. 
Chorar de alegria, cantar de alegria, também não eram 
comuns para mim enquanto estava na goela da escravidão. 
O canto de um proscrito, naufragado em uma ilha 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
53 
desolada, pode ser considerado uma evidência tão grande 
de contentamento e felicidade quanto o canto de um 
escravo; as canções de um e do outro vêm da mesma 
emoção. 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
54 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
55 
 
 
 
 
CAPÍTULO III 
 
 
 
 
O coronel Lloyd mantinha um jardim grande e muito 
bem cultivado, que demandava os cuidados de quatro 
homens, fora o jardineiro-chefe (o Sr. M’Durmond). Esse 
jardim era provavelmente a maior atração do lugar. 
Durante os meses de verão, vinha gente de perto e de longe 
(de Baltimore, Easton e Annapolis) para ver. Era cheio de 
todo tipo de frutas, desde a resistente maçã do norte até a 
delicada laranja do sul. Esse jardim era fonte de alguns 
problemas na fazenda. Suas frutas excelentes eram uma 
tentação considerável para os enxames de garotos famintos, 
bem como para os escravos mais velhos do coronel, pois 
eram poucos os que tinham virtude ou manha suficientes 
para resisti-lo. Não se passava um dia de verão sem que um 
escravo fosse açoitado por roubar frutas, e o coronel tinha 
de recorrer a todo tipo de estratagema para manter os 
escravos longe do jardim. O último, e mais bem sucedido, 
desses estratagemas era cobrir a cerca com piche – se um 
escravo fosse pego manchado de piche, era prova suficiente 
de que ou ele tinha entrado no jardim, ou tinha tentado 
entrar. Em todo caso, era severamente açoitado pelo 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
56 
jardineiro-chefe. Esse plano funcionou bem: os escravos 
desenvolveram tanto medo do piche quanto do chicote, 
pois perceberam que era impossível tocá-lo sem se sujar. 
O coronel também tinha um esplêndido apeiro11. Seu 
estábulo e galpões para carroça pareciam com as cocheiras 
dos estabelecimentos das cidades grandes. Os cavalos 
tinham as melhores figuras e o mais puro sangue. Seu 
galpão continha três magníficas carruagens, três ou quatro 
cabriolés, além de carroças e caleches do mais alto estilo. 
Esse estabelecimento estava sob os cuidados de dois 
escravos – o velho Barney e o jovem Barney, pai e filho. 
Cuidar desses estabelecimentos era a única coisa que 
faziam; mas isso não era um trabalho fácil, pois o coronel 
Lloyd era mais exigente com o manejo de seus cavalos do 
que com qualquer outra coisa. A menor desatenção era 
imperdoável, e punida da maneira mais severa pelos 
cuidadores. Se o coronel suspeitasse de qualquer omissão 
no trato de seus cavalos – como frequentemente 
suspeitava, o que fazia o ofício do jovem e velho Barney 
uma atividade muito sofrida –, não havia desculpa que os 
salvasse. Eles nunca sabiam quando estavam a salvo do 
açoite; com frequência, eram mais castigados quando não 
mereciam, e escapavam do castigo quando o mereciam 
mais. Tudo dependia da aparência dos cavalos e do estado 
mental do coronel quando estes eram levados a ele para o 
uso. Se um cavalo não se movesse rápido o suficiente, ou 
não mantivesse a cabeça suficientemente erguida, era culpa 
 
11 [NT] Ou arreamento, ou arreios; conjunto de rédeas, selas, barrigueira, 
cincha, etc. necessário à montaria ou ao aparelhamento do animal a um 
veículo. 
Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano 
57 
de seus guardadores. Era triste estar próximo da porta do 
estábulo e ouvir as reclamações contra os guardadores 
quando os cavalos eram levados de volta. “Não deram 
atenção apropriada a este cavalo; ele não foi propriamente 
raspado e escovado, ou não se alimentou bem; sua 
forragem estava muito seca ou muito úmida; ele comeu 
cedo ou tarde demais; passou frio ou calor; comeu feno 
demais e pouco grão, ou grão demais e pouco feno; em vez 
do velho Barney cuidar dele pessoalmente, deixou seu filho 
fazer o trabalho.” A todas essas acusações, não importava 
quão injustas fossem, o escravo não podia dizer uma 
palavra – o coronel não admitiria que um escravo o 
contradissesse; quando ele falava, um escravo deveria ficar 
em pé, escutar e tremer, e isso era literalmente o que 
acontecia. Eu já vi o coronel Lloyd fazer o velho Barney 
(que tinha entre cinquenta e sessenta anos de idade) 
descobrir sua cabeça calva, ajoelhar no chão úmido e 
receber nos ombros nus e gastos pela fadiga mais de trinta 
chibatadas de uma só vez. O coronel Lloyd tinha três 
genros, o Sr. Winder, o Sr. Nicholson e o Sr. Lowndes. 
Todos eles viviam no Casarão, e tinham o privilégio de 
açoitar os escravos quando quisessem, desde o velho 
Barney até William Wilkes, o cocheiro. Já vi Winder fazer 
um dos servos da casa ficar distante o suficiente para tocar 
só com a ponta do chicote, de modo que cada açoitada 
levantava enormes vergões em suas costas. 
Descrever a opulência do coronel Lloyd seria como 
descrever as riquezas de Jó. Ele tinha entre dez e quinze 
servos na casa. Diziam que ele tinha mil escravos, e 
Leonardo Poglia Vidal (tradução) 
58 
acredito que não seja exagero; ele tinha tantos que não os 
conhecia quando via, e nem os escravos das fazendas do 
entorno o conheciam. Dizem que um dia, ao cavalgar pela 
estrada, encontrou um negro e perguntou, do jeito comum 
de se dirigir aos negros nas estradas públicas do sul: 
“Então, garoto, a quem você pertence?” “Ao coronel 
Lloyd”, respondeu o escravo. “Bem, e o coronel te trata 
bem?” “Não, senhor”, respondeu ele. “Quê, ele faz você 
trabalhar demais?” “Sim, senhor.” “E você não tem comida 
o suficiente?” “Sim, senhor, o pouco de comida que ele me 
dá é suficiente12.” 
O coronel, depois de descobrir o lugar a que o escravo

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