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l. O sabá Era um homem grande e preto feito uma rocha, muito frio. ISOBEL GROWDIE, em 1662 Então, depois de terminadas as suas admoestações, o diabo desceu do púlpito e fez todos os presentes se aproximarem para lhe beijar as orelhas, que todos disseram serem frias como gelo; aqueles que nele tocaram acharam seu corpo áspero como um fio grosseiro. AGNES SAMPSON, em 1590 “E, AH, SIM”, disse Jane Smart com seu jeito ao mesmo tempo afobado e decidido; cada esse parecia a pontinha negra de um fósforo recém-apagado mantida rente à pele em uma brincadeira de queimar, como fazem as crianças. “Sukie disse que um homem comprou a mansão Lenox.” “Um homem?”, perguntou Alexandra Spofford, sentindo-se fora de prumo, com a aura tranquila da manhã desequilibrada por aquela palavra assertiva. “De Nova York”, continuou Jane, apressada, quase ladrando a última sílaba, engolindo o erre com sua pronúncia à moda de Massachusetts. “Parece que não tem mulher nem família.” “Ah. Um daqueles.” Ao ouvir a voz setentrional de Jane lhe trazer esse boato de um homossexual vindo de Manhattan para invadi-las, Alexandra sentiu-se dividida ali onde estava, naquele misterioso e irritadiço estado de Rhode Island. Havia nascido no Oeste, onde montanhas brancas e roxas se erguem tentando alcançar as altas e delicadas nuvens, e arbustos arrancados pelo vento rolam tentando alcançar o horizonte. “Sukie não tinha tanta certeza”, disse Jane depressa, moderando os esses. “Ele tem um aspecto bem másculo. Ela ficou impressionada com a quantidade de pelos nas costas das mãos dele. Lá na imobiliária Perley, ele disse que precisava daquele espaço todo porque é inventor e tem um laboratório. E ele tem vários pianos.” Alexandra deu uma risadinha; o ruído, que pouco havia mudado desde sua infância no Colorado, parecia vir não de sua garganta, e sim de um espírito semelhante a um pássaro encarapitado em seu ombro. Na verdade, o telefone estava deixando sua orelha dolorida. E seu antebraço formigava, quase dormente. “Para que tantos pianos?” Isso pareceu deixar Jane ofendida. Sua voz se eriçou feito o pelo de um gato preto, iridescente. Em tom defensivo, ela prosseguiu: “Bom, Sukie só está repetindo o que Marge Perley contou a ela na reunião de ontem à noite do Comitê do Bebedouro.” Esse comitê supervisionava o plantio e, após atos de vandalismo, o replantio de um grande bebedouro de mármore azul para cavalos que era um marco histórico do centro de Eastwick, no cruzamento de duas ruas principais; a cidade tinha o formato de um L, encaixada em volta de um trecho acidentado do litoral da baía de Narrangansett. A Dock Street era a rua comercial da cidade, enquanto a Oak Street, perpendicular, abrigava lindas residências antigas. Marge Perley, cujas horrorosas placas amarelo-canário de “Vende-se” apareciam e desapareciam de árvores e cercas conforme a maré da economia e da moda (durante muitas décadas, Eastwick havia enfrentado uma semirrecessão e um semiostracismo, as pessoas chegavam e saíam da cidade), era uma mulher muito maquiada, de temperamento decidido, que, se de fato fosse uma delas, era uma bruxa inteiramente diferente de Jane, Alexandra e Sukie. Marge tinha marido, um minúsculo e nervoso Homer Perley, sempre a podar sua sebe de forsítias até deixá-la bem rente, e isso fazia diferença. “Os documentos foram assinados em Providence”, explicou Jane, enfatizando o nce com força nos ouvidos de Alexandra. “E com as costas das mãos peludas”, ponderou Alexandra em voz alta. Junto a seu rosto pairava a superfície levemente riscada, descascada e várias vezes repintada de uma porta de armário de cozinha feita de madeira; Alexandra teve consciência da fúria atômica que rodopiava e escorregava sob aquela superfície, qual um redemoinho causado pela vista cansada. Como em uma bola de cristal, viu que iria conhecer e se apaixonar por esse homem, e que nada de bom viria disso. “Ele não tem nome?”, perguntou. “Isso é o mais idiota de tudo”, disse Jane Smart. “Marge contou para Sukie e Sukie me contou, mas alguma coisa afugentou o nome da minha cabeça. É um desses sobrenomes com partícula: ‘van’... ‘von’... ‘de’...” “Que maravilha”, comentou Alexandra já se dilatando, já se expandindo para ser invadida. Um europeu alto e moreno, expulso de seu antigo passado heráldico, viajando sob o peso de uma maldição... “Quando é que ele vai se mudar?” “Ela disse que ele disse que seria em breve. Vai ver já está lá!” A voz de Jane soava alarmada. Alexandra imaginou as sobrancelhas da outra, um pouco fartas demais (em comparação com o resto de seu rosto contraído), erguendo-se para formar semicírculos acima de seus olhos ressentidos, cujo castanho era sempre um_tom mais claro do que a lembrança que se tinha deles. Se Alexandra era a bruxa grandalhona, de estilo exuberante, tentando sempre ser discreta para passar outra impressão e se misturar à paisagem, no fundo um tanto preguiçosa e fundamentalmente fria, Jane era quente, baixinha, concentrada como a ponta de um lápis, enquanto Sukie Rougemont, ocupada o dia inteiro no centro da cidade coletando notícias e sorrindo ao dar bom-dia, tinha uma essência volátil. Foi isso que Alexandra pensou ao desligar. As coisas vêm em trios. E a magia ocorre à nossa volta o tempo todo conforme a natureza procura e encontra as formas inevitáveis, e as coisas cristalinas e orgânicas vão se organizando em ângulos de sessenta graus, uma vez que o triângulo equilátero é a mãe de todas as estruturas. Alexandra voltou então ao preparo de vidros de molho para espaguete, molho para mais espaguete do que ela e os filhos seriam capazes de consumir mesmo que tivessem sido enfeitiçados e condenados a passar cem anos dentro de um conto de fadas italiano, vidros e mais vidros retirados, fumegantes, do panelão azul sarapintado de branco em cima da grelha de metal redonda trêmula e sibilante. Percebeu vagamente que isso era uma espécie de ridículo tributo ao seu atual amante, um encanador de origem italiana. A receita de Alexandra levava cebola, dois dentes de alho picados e salteados por três minutos em azeite quente (nem mais, nem menos; era essa a magia), bastante açúcar para contrabalançar a acidez, uma única cenoura ralada, mais pimenta do que sal; mas a colher de chá de manjericão picado era o que dava ao molho a sua virilidade, e a pitada de beladona proporcionava a libertação sem a qual a virilidade não passa de uma congestão assassina. Tudo isso devia ser acrescentado aos seus próprios tomates, colhidos e guardados em cada peitoril de janela durante as últimas semanas e agora cortados e levados ao liquidificador — desde que, dois verões antes, Joe Marino havia começado a frequentar sua cama, uma absurda fecundidade tomara conta dos pés de tomate plantados no jardim lateral onde o sol do sudoeste batia enviesado por entre as fileiras de salgueiros durante as longas tardes. Os pequenos galhos retorcidos dos tomates, suculentos e descorados como se feitos de um papel verde barato, se quebravam com o peso de tantos frutos; havia algo de frenético em tamanha fertilidade, uma histeria parecida com a de crianças ansiosas para agradar. Dentre todas as plantas, os tomates pareciam as mais humanas, ansiosas e frágeis, vulneráveis à deterioração. Ao colher as polpudas esferas vermelho-alaranjadas, Alexandra tinha a impressão de estar segurando na mão os testículos de um gigantesco amante. Enquanto se atarefava na cozinha, reconhecia o quê de tristemente menstruai em tudo aquilo, o molho parecido com sangue a ser despejado sobre o branco espaguete. As grossas tiras brancas iriam se transformar em sua própria gordura branca. Sua luta feminina contra o próprio peso: aos trinta e oito anos, ela achava isso cada vez menos natural. Será que para atrair o amor ela precisava negar o próprio corpo, como uma santa neurótica de antigamente? A natureza é o indicador e o contexto de toda saúde e, se temos um apetite, ele está lá para ser saciado, satisfazendo assim a ordem cósmica. Mas apesar disso ela às vezes desprezava a si mesma por ser preguiçosa,por ter arrumado um amante de uma ascendência tão reputadamente tolerante em relação à corpulência. Nos poucos anos desde o seu divórcio, os amantes de Alexandra tendiam a ser maridos esparsos cujas esposas, suas donas, lhes permitiam passear de vez em quando. Seu próprio ex-marido, Oswald Spofford, repousava dentro de um vidro com a tampa de rosca bem fechada em uma prateleira alta da cozinha, reduzido a um pó multicolorido. Era a isso que ela o havia reduzido quando seus poderes se revelaram após a mudança de Norwich, Connecticut, para Eastwick. Especialista em cromo, Ozzie fora transferido de uma fábrica de metais naquela cidadezinha montanhosa, com seu excesso de igrejas brancas descascadas, para uma empresa concorrente em um complexo industrial de cimento de quase um quilômetro de comprimento ao sul de Providence, em meio à estranha vastidão industrial daquele pequeno estado. Fazia sete anos que haviam se mudado para lá. Ali, em Rhode Island, seus poderes tinham se expandido como um gás em ambiente a vácuo, e, enquanto o caro Ozzie fazia o trajeto diário de ida e volta do trabalho pela rodovia 4, ela primeiro o reduzira ao tamanho de um mero homem, despindo de seu corpo a armadura de protetor patriarcal graças à maresia corrosiva da beleza maternal de Eastwick, e depois ao tamanho de uma criança, à medida que as suas carências crônicas e a sua igualmente crônica aceitação das soluções por ela propostas o faziam parecer fraco e manipulável. Ele literalmente perdera o contato com o universo em expansão dentro dela. Havia se deixado envolver excessivamente pelas atividades de seus filhos na Liga Juvenil de beisebol e do time de boliche da fábrica de metais. A medida que Alexandra arrumou primeiro um amante, e depois vários, seu marido corno foi reduzido à dimensão e à secura de uma boneca, deitado ao seu lado durante a noite na ampla e receptiva cama como um tronco de árvore pintado adquirido em alguma barraca de beira de estrada, ou um jacaré bebê empalhado. Quando eles de fato se divorciaram, seu antigo mestre e senhor se transformara em pó — matéria no lugar errado, como definira de forma sucinta a mãe de Alexandra tempos antes —, uma espécie de pó multicolorido que ela havia varrido e guardado de lembrança dentro de um vidro. As outras bruxas haviam passado por transformações semelhantes em seus casamentos; o ex-marido de Jane Smart, Sam, estava pendurado no porão da casa de fazenda dela, em meio às ervas secas e poções, sendo ocasionalmente salpicado em algum filtro, uma pitadinha por vez, para dar um sabor picante; e Sukie Rougemont havia plastificado o seu e o usava como jogo americano. Esse último acontecimento havia sido bem recente; Alexandra ainda podia ver Monty em pé nas festas, vestido com seu paletó de madras e sua calça verde vivo, gabando-se dos detalhes da partida de golfe do dia e criticando o vagaroso quarteto feminino que os havia atrasado o dia inteiro sem nunca os convidar a passar na sua frente. Ele detestava mulheres arrogantes — governadoras, histéricas que protestavam contra a guerra, médicas, a primeira-dama, Lady Bird Johnson, e até suas duas filhas, Lynda Bird e Luci Baines. Achava todas elas umas machonas. Quando bostejava, Monty exibia uns dentes incríveis, compridos e muito certinhos mas não falsos, e sem roupa exibia pernas um tanto comoventes, magras e azuladas, bem menos musculosas do que os antebraços bronzeados de golfista. E ele tinha aquelas nádegas franzidas e flácidas que muitas vezes se via no corpo amolecido de mulheres de meia-idade. Monty fora um dos primeiros amantes de Alexandra. Agora, era estranho e estranhamente agradável pousar uma caneca do forte café de Sukie sobre o lustroso jogo americano estampado de madras, deixando nele um círculo marcado. O ar de Eastwick dava poder às mulheres. Alexandra nunca havia provado nada parecido, exceto talvez em um canto de Wyoming, que atravessara de carro com os pais quando tinha mais ou menos onze anos. Eles a haviam deixado descer do carro para fazer xixi ao lado de um arbusto de sálvia e ela pensara, ao ver a terra seca de altitude momentaneamente umedecida pela mancha escura: Não tem importância. Vai evaporar. A natureza absorve tudo. Essa atitude de menina a acompanhara desde então, junto com o aroma doce de sálvia daquele instante à beira da estrada. Eastwick, por sua vez, era beijada pelo mar a cada instante. A Dock Street, com suas elegantes lojas de velas perfumadas e arremates para cordinhas de persiana feitos de vidro artesanal oferecidos aos turistas de verão, seu restaurante antiquado com balcão de alumínio ao lado da padaria, o barbeiro contíguo a uma casa de molduras, a pequena e movimentada redação de jornal e a comprida loja de ferragens administrada por armênios, era indissociável da água salgada que escorria, deslizava e escoava pelas canaletas e entre as estacas sobre as quais a rua havia sido parcialmente construída, de modo que um brilho sinuoso de mar, estriado e cor de água-marinha, cintilava e tremulava nos rostos das matronas da cidade enquanto elas carregavam suco de laranja e leite desnatado, carne para o almoço, pão integral e cigarros com filtro comprados na mercearia Bay Superette. O verdadeiro supermercado, onde se fazia as compras semanais, ficava mais distante do mar, no trecho de Eastwick outrora ocupado por terras agrícolas; ali, no século XVIII, latifundiários aristocratas, donos de grande quantidade de escravos e gado, visitavam uns aos outros a cavalo, com um escravo a galope na frente para abrir sucessivos portões. Agora, nos hectares asfaltados do estacionamento do shopping, a fumaça dos canos de descarga tingia com vapores de chumbo o ar da lembrança oxigenado por campos de repolhos e batatas. Lá onde o milho, esse notável artefato agrícola dos índios, havia brotado durante gerações, pequenas empresas sem janelas chamadas Dataprobe ou Computech fabricavam mistérios, componentes tão pequenos que os operários usavam gorros de plástico para evitar que a caspa caísse dentro das minúsculas peças eletromecânicas. Embora conhecido por ser o menor dos cinquenta estados da federação, Rhode Island ainda assim abriga uma estranha vastidão norte-americana, trechos quase inexplorados em meio a regiões industriais, casas abandonadas e mansões desertas, terrenos vazios atravessados apressadamente por estradas pretas e retas, áreas alagadas que parecem pântanos e praias desertas de ambos os lados da baía, essa imensa cunha de água cravada qual uma estaca até o coração do estado e sua capital de nome religioso, Providence. “Os confins da criação”, “o esgoto da Nova Inglaterra”: era assim que Cotton Mather1 se referia a essa região. Jamais prevista para ser uma entidade independente, povoada por marginais como a herege e condenada Anne Hutchinson, esse território contém uma infinidade de meandros e vincos. Sua placa rodoviária preferida mostra um par de flechas apontando cada qual para um lado. Pobre e pantanosa em alguns trechos, em outros se transformou no parque de diversões dos extremamente ricos. Refúgio de quacres e antinomianos, últimos estágios do puritanismo, é administrada por católicos, cujas chamativas igrejas vitorianas parecem navios de carga em meio a um mar de arquitetura desinteressante. Lá se pode ver uma espécie de mancha metálica verde, entranhada bem fundo nas telhas que datam da época da Grande Depressão, que não existe em nenhum outro lugar. Uma vez atravessada a fronteira do estado, seja em Pawtucket ou Westerly, ocorre uma sutil mudança, um alegre desequilíbrio, um desprezo pelas aparências, uma quimérica falta de interesse. Para lá dos barracos de ripas de madeira abrem-se descampados lunares onde apenas uma venda de beira de estrada oferecendo os fantasmas dos pepinos em conserva do último verão trai a presença ansiosa e perturbadora do homem. Era esse trecho deserto que Alexandra agora percorria de carro para dar uma olhada na velha mansão Lenox. Dentro de sua caminhonete Subaru cor de abóbora, levava consigo seu labrador preto, Carvão. Elahavia deixado os últimos vidros esterilizados de molho esfriando na bancada da cozinha e, usando um ímã do Snoopy, prendera na porta da geladeira um recado para os quatro filhos: LEITE NA GELADEIRA, NEGRESCO NA CAIXA DE PÃO, VOLTO DAQUI A UMA HORA, BEIJOS. Na época em que Roger Williams, fundador de Rhode Island, ainda era vivo, a família Lenox tinha roubado dos chefes da tribo Narrangansett terra suficiente para constituir uma baronia europeia, e, embora um certo major Lenox tivesse morrido heroicamente na Grande Batalha do Pântano durante a Guerra do Rei Felipe, e seu tataraneto Emory tivesse defendido com eloquência a separação entre Nova Inglaterra e os outros estados da União na Convenção de Hartford em 1815, a família de modo geral tivera uma trajetória descendente. Quando Alexandra chegara em Eastwick, já não havia mais nenhum Lenox em South County, com exceção de uma viúva idosa, Abigail, que vivia no estagnado e esquisito vilarejo de Old Wick; ela percorria as ruelas resmungando e se esquivando das pedrinhas lançadas por crianças, que, chamadas pelo chefe de polícia local para se explicar, alegavam estar se defendendo do mau-olhado. As vastas terras do clã haviam sido desmembradas muito tempo antes. O último homem capaz da família mandara construir em uma ilha que os Lenox ainda possuíam, no trecho de pântano salgado atrás da praia de East Beach, uma mansão de tijolos que era uma imitação acanhada mas localmente impactante dos palacianos “chalés” de verão edificados em Newport durante essa época de ouro. Embora uma passarela tivesse sido construída e sua altura repetidamente aumentada por novas importações de cascalho, a mansão sempre sofria com a desvantagem de ficar isolada quando a maré subia, e fora ocupada durante breves períodos desde a década de 1920 por uma sucessão de proprietários que a haviam deixado mergulhar em um estado de decadência. As grandes telhas, algumas avermelhadas, outras de um cinza azulado, despencavam sem que ninguém visse durante as tempestades de inverno e, no verão, despontavam como lápides sem nome em meio à grama alta que ninguém vinha cortar; as modernas e astuciosas calhas e proteções para o pé das portas, todas feitas de cobre, haviam ficado esverdeadas e apodrecido; o intrincado domo octogonal com vista para todas as direções entortara para o lado leste; as imensas chaminés nas duas extremidades da casa, articuladas como feixes de tubos de um órgão ou pescoços muito musculosos, precisavam de cimento novo e estavam perdendo tijolos. Porém, vista de longe, na opinião de Alexandra a silhueta da grande mansão ainda tinha uma grandiosidade bastante impressionante. Ela havia parado o carro no acostamento da rua da praia para admirá-la da outra ponta do quase meio quilômetro de pântano. Era setembro, estação das grandes marés; nessa tarde, o pântano entre aquele ponto e a ilha parecia um lençol d’água tingido de azul-celeste e salpicado pelas extremidades dos juncos já ficando douradas. Faltavam uma ou duas horas para a passarela se tornar intransitável. Agora passava das quatro da tarde; o céu que ocultava o sol estava imóvel e pesado feito um pano. Antigamente, a mansão estaria escondida por uma aleia de olmos que subia prolongando a passarela até a porta da frente, mas as árvores tinham morrido da doença holandesa que costuma acometer a espécie e tudo que restava eram cotos altos privados de seus amplos galhos, parecendo homens envoltos em sudários, curvados como aquela estátua de Balzac sem braço esculpida por Rodin. A casa tinha uma fachada austera, simétrica, com muitas janelas que pareciam um pouco pequenas — sobretudo na fileira do segundo andar que margeava toda a extensão logo abaixo do telhado sem variação: o andar dos criados. Alexandra já havia entrado na casa, anos antes, quando, ainda tentando fazer as coisas que se esperava de uma esposa, acompanhara Ozzie a um concerto beneficente realizado no salão de baile. Lembrava-se de pouca coisa além de uma sequência de cômodos parcamente mobiliados cheirando a maresia, mofo e prazeres esquecidos. O telhado malcuidado tinha o mesmo tom escuro que se espalhava pelo céu vindo do norte — não, o que perturbava o ambiente era mais do que nuvens. Uma fumaça esgarçada e branca subia da chaminé da esquerda. Havia alguém dentro da casa. O homem com pelos nas costas das mãos. O futuro amante de Alexandra. Mais provavelmente, pensou ela, um operário ou vigia contratado por ele. Seus olhos ardiam de tanto se esforçar para ver ao longe, de tanto se concentrar. Assim como o céu, suas entranhas haviam se adensado para formar uma certa escuridão, uma sensação de que ela era uma espectadora patética. Agora o desejo feminino ocupava as páginas de todos os jornais e revistas; a equação sexual havia se invertido à medida que moças de boa família se jogavam em cima de roqueiros abrutalhados, e guitarristas rudes e barbados saídos dos barracos de Liverpool ou de Memphis eram de alguma forma imbuídos de um poder indecente, como sóis negros transformando em bacantes suicidas essas filhas criadas com tanto resguardo. Alexandra pensou em seus tomates, no sumo da violência sob a pele retesada e complacente. Pensou na filha mais velha, sozinha em seu quarto com aqueles tais The Monkees e The Beatles... mas uma coisa era Marcy, outra totalmente diferente era sua mãe estar assim desejosa, apertando os olhos no esforço de ver. Alexandra cerrou os olhos com força, tentando sair do transe. Tornou a entrar no carro junto com Carvão e percorreu o quase um quilômetro de estrada preta e reta até a praia. Depois da temporada, se não houvesse ninguém por perto, era possível andar com um cachorro sem guia. Mas o dia estava quente, e velhos carros e kombis com cortinas nas janelas e listras psicodélicas coalhavam o exíguo estacionamento; além das cabanas para banhistas e da barraquinha de pizza, várias pessoas trajando roupa de banho estavam deitadas de costas com seus rádios, como se o verão e a juventude nunca fossem terminar. Em respeito ao regulamento da praia, Alexandra havia trazido um pedaço de varal no chão do banco de trás. Carvão se remexeu de contrariedade quando ela passou a corda por sua coleira cheia de tachinhas. Todo músculos e ansiedade, o cão a foi puxando pela areia que dificultava os passos. Ela parou para tirar as alpargatas bege, e o cachorro engasgou; ela largou os sapatos atrás de um tufo de grama de praia junto ao final do deque de madeira. Os segmentos de um metro e oitenta do deque haviam sido espalhados por uma recente maré alta, que também deixara em cima da areia plana junto ao mar uma coleção de garrafas de água sanitária, invólucros de absorventes internos e latinhas de cerveja que haviam passado tanto tempo boiando que seus rótulos coloridos tinham se desintegrado; essas latinhas sem rótulo tinham um aspecto assustador — neutras como as bombas que os terroristas fabricam e depois deixam em lugares públicos para derrubar o sistema e assim pôr fim à guerra. Carvão seguiu puxando, e os dois passaram por uma pilha de rochas quadradas incrustadas de cracas que antes faziam parte de um quebra-mar construído quando aquela praia era um parque de diversões para ricos e não um parquinho público explorado além de sua capacidade. As rochas eram de um granito claro sarapintado de preto, e em uma das maiores estava chumbada uma prateleira que os anos haviam carcomido até lhe conferir a mesma fragilidade de uma escultura de Giacometti. O barulho dos rádios dos jovens, um tipo mais aéreo de rocha, flutuava à sua volta enquanto ela caminhava, consciente do próprio peso, do aspecto de bruxa que devia ter com seus pés descalços, seu jeans largo e sua surrada jaqueta de brocado verde, uma jaqueta argelina que ela e Ozzie tinham comprado em Paris na lua de mel, dezessete anos antes. Embora no verão sua pele adquirisse o tom moreno dos ciganos, Alexandra tinha sangue nórdico; seu nome de solteira era Sorensen. Sua mãe havia lhe falado muitas vezes sobre a superstição em relação a trocar a inicial do sobrenome depoisde casada, mas Alexandra na época não ligava para magia e estava louca para ter filhos. Marcy fora concebida em Paris, sobre uma cama de ferro. Alexandra usava os cabelos em uma única trança grossa que descia pelas costas; às vezes prendia a trança na nuca como uma espécie de coluna vertebral. Seus cabelos nunca tinham ostentado o verdadeiro louro platinado de um viking, mas uma cor clara indistinta agora mais embaçada ainda pelos fios grisalhos. A maior parte dos cabelos brancos tinha nascido na frente; os da nuca ainda eram tão finos quanto os das garotas que pegavam sol ali na praia. As pernas lisas e jovens pelas quais ela passava tinham a mesma cor de caramelo, cobertas de penugem clara, e estavam todas alinhadas como em uma atitude de solidariedade. A parte de baixo do biquíni de uma das meninas reluzia sob a luz chapada, esticada e simples como um tambor. Carvão seguia adiante, fuçando, imaginando algum cheiro, algum relento de animal fugidio em meio ao odor de algas da praia. A população de banhistas foi diminuindo. Um jovem casal estava abraçado em um espaço que haviam cavado na areia coalhada de furinhos; o rapaz murmurava na base do pescoço da moça como quem fala em um microfone. Um trio de homens excessivamente musculosos, com os longos cabelos a esvoaçar enquanto pulavam e soltavam grunhidos, jogava frisbee, e somente quando Alexandra deixou de propósito o forte labrador preto puxá-la bem para o meio do grande triângulo do jogo foi que eles cessaram seus golpes e gritos insolentes. Ela pensou ter escutado um “megera” ou “canhão” atrás de si depois de passar, mas talvez tivesse sido uma ilusão auditiva, uma palavra equivocada emitida pelas ondas do mar. Estava se aproximando de onde um muro de concreto erodido encimado por uma hélice de arame farpado enferrujado marcava o fim da praia pública; ali também ainda havia grupos de jovens e de pessoas que buscavam a juventude, e ela não se sentiu à vontade para soltar o pobre Carvão, embora este não parasse de engasgar tentando se libertar da coleira. O seu desejo de correr fazia a corda arder na mão de Alexandra. O mar parecia estranhamente parado — petrificado, marcado apenas por listras leitosas bem lá longe, onde uma pequena e solitária lancha fazia zumbir a caixa de ressonância de sua superfície lisa. Do outro lado de Alexandra, mais perto, ervilhas do mar e kudsonias peludas desciam rastejando das dunas; a praia ali se estreitava e tornava-se íntima, como se podia constatar pelos montinhos de latas, garrafas e madeira queimada, pelos pedaços de caixas de isopor e pelas camisinhas parecendo pequenos cadáveres de água-viva ressequidos. O muro de cimento havia sido pichado com nomes entrelaçados. Por toda parte, a conspurcação havia deixado sua marca, e apenas os passos eram apagados pelo oceano. Em determinado ponto, as dunas ficavam baixas o suficiente para deixar entrever a mansão Lenox, de um ângulo diferente e bem mais distante; as duas chaminés laterais despontavam qual as asas arqueadas de um gavião de cada lado do domo. Alexandra se sentiu irritada e vingativa. Teve a sensação de que as entranhas lhe doíam; sentia-se incomodada pelo entreouvido xingamento de “megera” e pelo xingamento mais amplo e generalizado de toda aquela juventude despreocupada proibindo-a de soltar seu cachorro para que ele, seu amigo e espírito que a acompanhava, pudesse correr livremente. Ela decidiu limpar a praia para si e para Carvão invocando uma tempestade. O tempo interno de cada um sempre tinha relação com o tempo externo; era apenas uma questão de reverter a correnteza, algo que acontecia com relativa facilidade uma vez que o poder tivesse sido atribuído ao polo principal, ou seja, ao seu eu feminino. Muitos dos notáveis poderes de Alexandra advinham dessa simples reapropriação do eu que lhe fora atribuído, só alcançada já quase na meia-idade. Somente depois de um pouco mais velha ela passara a acreditar sinceramente que tinha o direito de existir, que as forças da natureza a haviam criado não como um mero acessório e companheira — uma costela torta, como dizia o tristemente célebre Malleus maleficarum —, mas como o esteio principal da Criação ainda em movimento, como filha de outra filha e mulher cujas filhas, por sua vez, dariam à luz outras filhas. Enquanto Carvão estremecia e gania de medo, Alexandra fechou os olhos e invocou essa imensa parte interior de si mesma — esse continuum que remontava a muitas gerações da humanidade até os ancestrais primatas e, antes deles, os lagartos, peixes e algas que geraram em suas tépidas e microscópicas entranhas o primeiro DNA do planeta recém-nascido, um continuum que, na outra direção, estendia-se até o final de toda vida, assumindo diferentes formas, pulsando, sangrando, adaptando-se ao frio, aos raios ultravioleta, ao sol inchado e cada vez mais fraco —, e ordenou a essas profundezas tão prenhes de si própria que escurecessem, que se condensassem, que gerassem uma interface de relâmpagos entre as altas paredes de ar. E o céu do norte de fato trovejou, um trovejar tão débil que apenas Carvão escutou. As orelhas do cão se retesaram e giraram como se as raízes pregadas ao crânio tivessem criado vida. Mertalia, Musalia, Dophalia: em altas sílabas mudas, ela começou a invocar os nomes proibidos. Onemalia, Zitanseia, Goldaphaira, Dedulsaira. De maneira invisível, Alexandra foi ficando imensa, e em uma espécie de fúria maternal começou a atrair para si todos os montinhos de vegetação daquela calmaria de setembro, e seus olhos se abriram como se dessem uma ordem. Uma rajada de ar frio soprou do norte, a aproximação de uma frente de ar que arrancou dos mastros as insignificantes bandeirolas das distantes cabanas de banhistas. Naquela ponta da praia, onde a multidão de jovens nus era mais densa, um suspiro coletivo de surpresa se fez ouvir, seguido por gritinhos de animação à medida que o vento se intensificava, e o céu para os lados de Providence se revelou possuidor da mesma densidade de uma rocha translúcida e arroxeada. Gheminaiea, Gegropheira, Cedani, Gilthar; Godieb. Na base dessa colina atmosférica, cúmulos-nimbos que segundos antes pareciam inócuos como flores a flutuar em um lago haviam começado a ferver, e suas bordas brilhavam feito mármore em contraste com o ar cada vez mais escuro. A própria visão foi alterada, de modo que a vegetação da praia e as salicórnias rasteiras junto aos pés descalços de Alexandra, cheios de calos e deformados por anos calçando sapatos concebidos pelos desejos dos homens e por noções cruéis de beleza, pareciam desenhados em negativo sobre a areia cuja superfície marcada e cheia de furinhos, subitamente colorida de lilás, parecia se erguer como a pele de uma bolha a inflar com a pressão da mudança atmosférica. Os jovens malcriados tinham visto seu frisbee lhes sair voando das mãos como uma pipa, e corriam para recolher os rádios portáteis e packs de cerveja, os tênis, jeans e camisetas tie-dye. A moça do casal que havia cavado um buraco na areia para se deitar estava inconsolável; ela soluçava enquanto o rapaz, com uma pressa atabalhoada, tentava prender novamente as alças soltas da parte de cima de seu biquíni. Carvão latia para nada, em uma direção e depois na outra, à medida que a queda da pressão atmosférica ia enlouquecendo seus ouvidos. Então o imenso e impenetrável oceano, pouco tempo antes tranquilo até Block Island, sentiu a mudança. Sua superfície se encrespou e se franziu nos pontos em que foi tocada pelas sombras das ondas — e esses pedaços quase encolheram, como algo que se incendeia. O motor da lancha zumbiu mais alto. As velas ao mar haviam desaparecido, e o ar vibrava com a mistura de ruídos dos motores auxiliares resfolegando rumo ao porto. Um breve silêncio entalou na garganta do vento, e então a chuva começou a cair, grandes gotas geladas que feriam como granizo. Os amantes cor de mel passaram por Alexandra, correndo em direção aos carros parados na outra ponta do estacionamento, junto às cabanas de banhistas. O trovão rugiu no alto da colinade ar escuro, diante da qual passavam depressa pequenos pontinhos de cinza mais claro parecendo gansos, oradores gesticulantes, novelos se desenrolando. As grandes gotas que machucavam se transformaram em uma chuva mais fina, mais apertada, que embranqueceu em listras como se o vento as tocasse como as cordas de uma harpa. Alexandra ficou parada enquanto a água fria a cobria; bem lá no fundo de si, continuava a recitar: Ezoill, Musil, Puri, Tamen. A seus pés, Carvão gania; ele havia feito o varal dar várias voltas em torno das pernas da dona. Seu corpo, com os pelos bem grudados aos músculos, reluzia e tremia. Através dos véus de chuva, ela viu que a praia estava deserta. Desamarrou a guia de corda e soltou o cachorro. Mas Carvão continuou encolhido junto a seus tornozelos, alarmado ao ver um raio brilhar uma vez e depois outra: um raio duplo. Alexandra contou os segundos até o barulho do trovão: cinco. Por um cálculo aproximado, isso significava que a tempestade por ela conjurada atingia uma área de pouco mais de três quilômetros de diâmetro, considerando que aqueles raios estavam no centro. O trovão rugia e praguejava de forma desconexa. Pequeníssimos caranguejos de areia sarapintados começaram a emergir de suas tocas às dezenas, e a correr de lado em direção ao mar cheio de espuma. A cor de suas carapaças era tão semelhante à da areia que eles pareciam transparentes. Alexandra tomou coragem e esmagou um deles com a sola do pé descalço. Sacrifício. Sempre é preciso haver sacrifício. Essa era uma das regras da natureza. Ela começou a pular de caranguejo em caranguejo, esmagando-os. Da linha dos cabelos até o queixo, seu rosto estava banhado de chuva, e por causa da agitação de sua aura esse filme líquido continha todas as cores do arco-íris. O relâmpago não parava de tirar seu retrato. Alexandra tinha uma covinha no queixo e outra menor, quase imperceptível, na ponta do nariz; sua beleza austera vinha do candor das sobrancelhas fartas sob as asas de pontas cinzentas dos cabelos afastados simetricamente do rosto para formar a trança, e da cor clara dos olhos levemente protuberantes, cujas íris de um cinza metálico eram empurradas para as bordas como se cada pupila muito preta fosse um ímã ao contrário. Seus lábios tinham uma carnosidade sisuda e cantos bem marcados que lhes davam a aparência de um sorriso. Aos catorze anos, ela já media um metro e setenta e três, e aos vinte pesava cinquenta e quatro quilos e meio; agora seu peso girava em torno de setenta e três quilos. Um dos aspectos libertadores de se tornar uma bruxa fora que ela havia parado de se pesar o tempo todo. Assim como os caranguejos eram transparentes sobre a areia sarapintada, Alexandra, encharcada até os ossos, teve a sensação de ser transparente para a chuva, de estar em comunhão com a chuva, de que a temperatura da água e a do seu sangue haviam se equiparado. O céu acima do mar agora se organizara em listras horizontais embaçadas; o trovão diminuiu para se transformar em murmúrio, e a chuva se tornou um chuvisco morno. Aquele toró nunca iria entrar nos registros meteorológicos. O primeiro caranguejo que ela havia esmagado ainda agitava as patas, como minúsculas penas descoradas agitadas por uma brisa. Carvão, que finalmente havia superado o medo, corria em círculos cada vez maiores, somando suas pegadas de quadrúpede aos desenhos triangulares dos pés das gaivotas, aos arranhões mais delicados dos maçaricos, e às linhas pontilhadas deixadas pelos passos dos caranguejos. Essas pistas que apontavam para outras formas de ser — ser um caranguejo, mover-se diagonalmente nas pontas dos pés com os olhos na ponta de hastes! Ser uma craca, e viver de cabeça para baixo dentro de um pequeno balde dobrável jogando comida em direção à boca! — haviam sido furadas pelas gotas de chuva. A areia encharcada tinha a mesma cor do cimento. As roupas que ela vestia, e até mesmo a sua roupa de baixo, estavam agora grudadas à pele, dando-lhe a sensação de ser uma estátua de Segai, imaculadamente branca, com todos os seus sinuosos tubos e todos os seus ossos lambidos por uma espécie de bruma. Alexandra andou até o final da praia pública agora deserta, foi até o muro encimado pelo arame farpado e voltou. Chegou ao estacionamento e recolheu as alpargatas ensopadas onde as havia deixado, atrás de um arbusto de Ammophila breviligulata. As compridas folhas parecidas com lanças da planta reluziam, depois de terem relaxado as extremidades na chuva. Ela abriu a porta do Subaru e virou-se para gritar por Carvão, que havia sumido nas dunas. “Aqui, Carvão!”, cantarolou aquela mulher imponente e roliça. “Aqui, meu filhote! Aqui, meu anjo!” Aos olhos dos jovens encolhidos dentro das cabanas de banhistas cobertas por telhas cinzentas e debaixo do toldo da barraquinha de pizza (listrada nas cores de tomate e de queijo), com suas toalhas encharcadas e cheias de areia e sua pele vergonhosamente arrepiada, Alexandra pareceu milagrosamente seca, sem sequer um fio da volumosa trança fora do lugar, sem sequer um pedacinho úmido da jaqueta de brocado verde. Foi esse tipo de impressão impossível de ser confirmada que espalhou entre nós, em Eastwick, o boato de bruxaria. Alexandra era artista. Usando poucas ferramentas além de palitos de dente e uma faca rombuda de aço inox, ela beliscava e apertava o barro para dar forma a pequenas esculturas deitadas ou sentadas, sempre mulheres, usando roupas chamativas pintadas sobre o contorno dos corpos nus; as esculturas eram vendidas por quinze ou vinte dólares em duas lojas da cidade chamadas Yapping Fox e Hungry Sheep. Alexandra não fazia ideia de quem as comprava, nem por quê, nem do motivo exato pelo qual as fazia, nem quem lhe dirigia a mão. O dom da escultura havia surgido junto com seus outros poderes, na época em que Ozzie se transformara em poeira colorida. O impulso a acometera certo dia de manhã quando ela estava sentada à mesa da cozinha, com as crianças na escola e a louça já lavada. Nessa primeira manhã, ela havia usado a massa de modelar de um dos filhos, mas depois, em termos de matéria-prima, passou a depender de um caulim de extraordinária pureza que ia buscar em uma pequena barreira perto de Coventry, uma superfície escorregadia de terra branca untuosa no quintal dos fundos da casa de uma viúva idosa, atrás dos escombros cheios de limo de um velho barracão e do chassi de um Buick do pré-guerra igualzinho, por uma assustadora coincidência, ao que outrora o pai de Alexandra dirigia até Salt Lake City, Denver, Albuquerque e as cidades desertas situadas entre elas. Seu pai vendia uniformes profissionais, macacões e calças jeans antes de estas entrarem na moda — antes de se tornarem a roupa do mundo, o uniforme que apaga o passado. Você levava o seu próprio saco de aniagem até Coventry e pagava à viúva doze dólares por saco de caulim. Se os sacos ficassem pesados demais, ela ajudava a carregar; assim como Alexandra, era uma mulher forte. Embora tivesse pelo menos sessenta e cinco anos, tingia os cabelos de uma cor de bronze reluzente e usava terninhos de calça azul-turquesa ou cor de carmim tão justos que a carne sob seu cinto ficava espremida, formando rolos parecidos com linguiças. Isso era agradável. Alexandra lia nisso uma mensagem para si mesma: envelhecer pode ser algo alegre, contanto que se continue forte. A viúva tinha uma risada sonora e usava grandes argolas de ouro nas orelhas, mantendo sempre afastados os cabelos cor de cobre para exibir os brincos. Um ou dois galos perambulavam com seu passo hesitante e altivo pela grama alta do quintal mal cuidado; a parte dos fundos da estreita casa de madeira da mulher havia descascado até expor a madeira cinzenta, embora a parte da frente estivesse pintada de branco. Alexandra, com a traseira do Subaru vergada sob o peso da argila da viúva, sempre voltava dessas visitas reconfortada e animada, acreditando que uma conspiração de mulheres era o que sustentava o mundo. Suas esculturas eram de certa forma primitivas. Sukie, ou talvez Jane, as havia apelidadode “peitudas” — roliços corpos de mulher com dez ou doze centímetros de altura, muitas vezes sem rosto nem pés, encolhidas ou curvadas em poses reclinadas, e mais pesadas do que se esperava quando pegas na mão. As pessoas pareciam achá-las reconfortantes e as levavam embora das lojas em um fluxo regular e oscilante que se intensificava no verão, mas perdurava até mesmo em janeiro. Alexandra esculpia suas formas desnudas, espetando nelas um palito de dentes para fazer o furo do umbigo e nunca se esquecendo de marcar com um discreto traço a fenda da vulva, em protesto contra a falsa lisura daquele pedaço das bonecas com as quais brincara quando criança; depois pintava as roupas, às vezes roupas de banho em tons pastel, outras vezes vestidos incrivelmente justos estampados com bolinhas, asteriscos ou listras onduladas de um mar de história em quadrinhos. Não havia duas esculturas iguais, embora todas fossem irmãs. Esse procedimento era ditado pela sensação de que, assim como roupas eram vestidas a cada manhã para cobrir nossa nudez, da mesma forma elas deveriam ser pintadas, e não esculpidas, naqueles corpos primevos de argila macia e arredondada. Ela assava duas dúzias de esculturas de cada vez em um pequeno forno de cerâmica elétrico sueco em um quartinho contíguo à cozinha, um quartinho inacabado mas com piso de madeira, ao contrário do cômodo seguinte, um depósito com chão de terra batida onde eram guardados velhos vasos de plantas, ancinhos, enxadas, galochas e podões. Autodidata, Alexandra praticava a escultura havia cinco anos — desde antes do divórcio, para o qual, assim como a maioria das manifestações do florescer de seu eu interior, esse ofício havia contribuído. Seus filhos, sobretudo Marcy, mas também Ben e o pequeno Eric, detestavam as peitudas, que consideravam indecentes, e certa vez, em uma agonia movida pela vergonha, haviam esmigalhado uma fornada que estava esfriando; mas agora eles estavam conformados, como se as esculturas fossem irmãos defeituosos. Crianças são feitas de um barro que, até certo ponto, permanece maleável, embora esgares irremediáveis surjam em suas bocas e um verniz de distância endureça seus olhares. Jane Smart também tinha inclinações artísticas — era musicista. Dava aulas de piano para fechar as contas no fim do mês, e às vezes substituía o regente do coral nas igrejas das redondezas, mas sua paixão era o violoncelo; seus sons vibrantes e melancólicos, prenhes com a tristeza do grão da madeira e com a sombra generosa das árvores, emanava em horas tardias e enluaradas das noites quentes pela tela das janelas de sua antiga casa de fazenda que se amontoava, entre muitas outras, nas ruas sinuosas do empreendimento residencial dos anos 1950 chamado Cove Homes. Seus vizinhos nos outros terrenos de mil metros quadrados, marido e mulher, criança e cachorro, andavam de um lado para o outro, despertados pela música, e ponderavam se deveriam ou não chamar a polícia. Raramente o faziam, desanimados e talvez intimidados por algo nu, por um esplendor e uma tristeza contidos na música de Jane. Parecia mais fácil voltar a dormir, ninados pelas escalas simultâneas, primeiro em terças, depois em sextas, dos études de Popper, ou então, vezes sem conta, pelos quatro compassos de semicolcheias ligadas (em que o violoncelo fala quase sozinho) do segundo andante do “Quarteto de cordas nº 15 em lá menor”, de Beethoven. Jane não tinha jeito para jardinagem, e o abandonado emaranhado de rododendros, hortênsias, tuias, bérberis e buxinhos em volta dos alicerces da casa ajudava a abafar o som que saía pelas janelas. Vivia-se uma época de muitos direitos alardeados e de músicas tocadas em público sem nenhum acanhamento, em que até o supermercado tocava sua versão muzak de Satisfaction e I got you, babe, e sempre que dois ou três adolescentes se reuniam o espírito de Woodstock era celebrado. Não era o volume da paixão de Jane que incomodava, e sim seu timbre, em que as notas muitas vezes hesitavam mas acabavam soando no mesmo tom grave e rigoroso. Alexandra associava essas notas sombrias às escuras sobrancelhas de Jane, e à insistência arrebatada em sua voz para obter uma resposta, para escutar uma fórmula capaz de encaixar a vida nos eixos e capturar- lhe o segredo, em vez de seguir vagando, como fazia Alexandra, na crença de que o segredo era onipresente, um elemento sem cheiro que pairava no ar e servia de alimento aos pássaros e às plantas que o vento fazia dançar. Sukie não tinha nada que se atrevesse a chamar de talento artístico, mas adorava a existência social, e havia sido forçada pelas circunstâncias que acompanham o divórcio a escrever para o semanário de Eastwick, chamado Word. Enquanto subia e descia a Dock Street com seu passo célere e cadenciado, os ouvidos atentos a fofocas e refletindo sobre a prosperidade das lojas, as chamativas esculturas de Alexandra na vitrine da Yapping Fox ou um cartaz na loja de ferragens dos armênios, anunciando um concerto de música de câmara que iria acontecer na igreja unitarista e contava com a participação de Jane Smart, violoncelo, lhe causavam a mesma emoção que o cintilar de um vidro do mar no meio da areia da praia ou uma moeda de vinte e cinco cents encontrada reluzindo na calçada suja — um pequeno código soterrado na bagunça da existência cotidiana, um lampejo de comunicação entre o mundo interior e o exterior. Ela adorava as duas amigas, e esse sentimento era recíproco. Nesse dia, depois de datilografar seu relatório sobre as reuniões da véspera do Comitê Fiscal (uma chatice: as mesmas velhas viúvas sem terras implorando por descontos) e do Comitê de Planejamento (sem quorum: Herbie Prinz estava nas Bermudas) na prefeitura, Sukie estava ansiosa por receber Alexandra e Jane em casa para um drinque. As três geralmente se encontravam às quintas-feiras, na casa de uma delas. Sukie morava no centro da cidade, o que era prático para o trabalho, embora sua casinha quadrada de dois andares da década de 1760 praticamente em miniatura, localizada em uma espécie de bequinho em curva que saía da Oak Street e se chamava Hemlock Lane, sequer se comparasse à espaçosa casa de fazenda — seis dormitórios, doze hectares, uma caminhonete, um carro esporte, um jipe, quatro cachorros — em que havia morado com Monty. Mas as amigas faziam isso parecer engraçado, uma espécie de farsa ou interlúdio mágico; em geral, para seus encontros, as três vestiam alguma fantasia estranha e colorida. Usando um xale parse bordado a fio de ouro, Alexandra entrou, abaixando a cabeça, pela porta lateral da cozinha; nas mãos, como dois pesos de ginástica ou indícios manchados de sangue, trazia dois vidros de seu molho de tomate apimentado com manjericão. As bruxas se cumprimentaram com dois beijos no rosto. “Tome, querida; sei que você prefere sabores mais secos e acastanhados, mas...”, disse Alexandra naquela voz de contralto animada que saía bem lá do fundo da garganta como uma russa dizendo byelo. Sukie pegou os dois presentes gêmeos com as próprias mãos, mais esguias, cujas costas frágeis eram cobertas de sardas claras. “Este ano, por algum motivo, os tomates brotaram loucamente”, prosseguiu Alexandra. “Enchi uns cem vidros desse molho, e então, outro dia, saí para o jardim e gritei: ‘Fodam-se, o resto de vocês pode apodrecer!’.” “Eu me lembro do ano das abobrinhas”, disse Sukie, pousando os vidros obedientemente em uma prateleira do armário da qual jamais os tiraria. Como tinha dito Alexandra, Sukie adorava coisas secas de sabor acastanhado: aipo, castanha de caju, pilaf, palitinhos salgados cobertos de sal grosso, pequenos petiscos do mesmo tipo dos que faziam seus ancestrais macacos sobreviverem nas árvores. Quando estava sozinha, ela nunca se sentava para comer, simplesmente ficava em pé mergulhando biscoitos salgados em um pouco de iogurte junto à pia.da cozinha, ou então levava um pacote de salgadinhos de cebola de setenta e nove cents para o quartinho de televisão junto com uma dose caubói de bourbon. “Eu fiz de tudo”, disse ela a Alexandra, saboreandoaquele exagero com as mãos irrequietas a se agitar na periferia do próprio campo de visão. “Pão de abobrinha, sopa de abobrinha, salada, fritada, abobrinha ao forno recheada com carne moída, abobrinha fatiada e frita, abobrinha cortada em palitos para passar no molho, foi uma loucura. Cheguei até a jogar algumas dentro do liquidificador e dizer às crianças para passar no pão em vez de manteiga de amendoim. Monty ficou desesperado; disse que até o cocô dele estava com cheiro de abobrinha.” Embora essa lembrança fosse uma referência implícita e prazerosa a seus dias de casada e de fartura, mencionar um ex-marido era uma leve quebra de protocolo, e acabou com a vontade de rir de Alexandra. Sukie era a mais recentemente divorciada e a mais jovem das três. Era ruiva e magra, com os cabelos soltos nas costas e cortados retos, e os braços compridos cheios de sardas da mesma cor de cedro das lascas de um lápis recém-apontado. Usava pulseiras de cobre e um pentagrama pendurado em uma correntinha fina e barata em volta do pescoço. O que Alexandra, com seus traços pesados, helênicos, de covinhas duplas, mais adorava na aparência da amiga era seu alegre maxilar protuberante de primata: os dentes grandes de Sukie projetavam seu perfil para a frente abaixo do nariz pequenino, criando uma curva, uma saliência sobretudo do lábio superior, que era mais comprido e tinha um formato mais complexo do que o inferior, com um volume de ambos os lados que fazia até mesmo seus silêncios parecerem travessos, como se ela estivesse se divertindo o tempo todo. Seus olhos eram cor de avelã, redondos e bem próximos um do outro. Sukie se movia com desenvoltura em sua cozinha apertada, cheia de objetos abarrotados e com uma pia manchada e minúscula, e por baixo de tudo um cheiro de pobreza remanescente de todas as gerações de Eastwick que tinham morado ali e imposto à casa suas reformas improvisadas nos séculos em que antigas residências rústicas como aquela não eram consideradas charmosas. Com uma das mãos, Sukie pegou em uma prateleira do armário uma lata de amendoim coberto de açúcar, perversamente doce, e com a outra retirou do escorredor forrado de borracha da pia uma tigelinha estampada com ramos de salsa e com uma borda de cobre para servi-los. Com um ruído de caixas sendo abertas, dispôs um punhado de biscoitos salgados sobre uma travessa em volta de uma fatia de queijo gouda com casca vermelha e de um pouco de patê comprado no supermercado e ainda dentro da latinha baixa com o rótulo de um ganso sorridente. A travessa era feita de uma cerâmica grosseira, amarelo-alaranjada, e havia sido gravada e vitrificada com um desenho semelhante a um caranguejo. O signo de Câncer. Alexandra temia o câncer, e via seu emblema por toda parte na natureza — nos arbustos de mirtilo dos locais malcuidados junto às rochas e brejos, nas frutinhas que amadureciam na tuia caída e decomposta do lado de fora das janelas de sua cozinha, nas formigas que carregavam grãos parecidos com colinas cônicas nas rachaduras do asfalto de sua entrada de garagem, em todo tipo de multiplicação cega e irresistível. “O de sempre?”, perguntou Sukie com certa ternura, pois Alexandra, como se fosse mais velha do que na realidade era, havia deixado o corpo cair com um suspiro, sem tirar o xale, na única concavidade convidativa da cozinha: uma antiga poltrona azul de reclinar feia demais para ser posta em qualquer outro lugar; o enchimento vazava pelas costuras, e nos cantos dos braços o atrito de muitos pulsos havia deixado uma mancha cinzenta e brilhante. “Acho que ainda está na hora de beber água tônica”, decidiu Alexandra, pois a tranquilidade que viera junto com sua tempestade de poucos dias antes ainda a acompanhava. “Como anda seu estoque de vodca?” Alguém certa vez lhe dissera que a vodca não só engordava menos como era menos irritante para a parede do estômago do que o gim. A irritação, tanto psíquica quanto física, estava na origem do câncer. Têm câncer aqueles que se permitem estar abertos à ideia do câncer; basta uma única célula enlouquecer. A natureza está sempre no aguardo, esperando você perder a fé para poder desferir o golpe fatal. Sukie abriu ainda mais o sorriso. “Eu sabia que você viria.” Ela exibiu uma garrafa novinha em folha de vodca Gordon’s, com a cabeça cortada de javali a encará-las do rótulo com seu olho cor de laranja e a língua vermelha presa entre os dentes e uma presa curva. Alexandra sorriu ao ver aquele monstro simpático. “Bastante tônica, por favooor. Quantas calorias!” A garrafa de água tônica borbulhou nas mãos de Sukie como em uma reprimenda. Talvez as células cancerosas fossem mais parecidas com bolhas de gás e se infiltrassem na corrente sanguínea, pensou Alexandra. Ela precisava parar de pensar naquilo. “Onde está Jane?”, perguntou. “Ela disse que iria chegar meio tarde. Está ensaiando para aquele concerto na igreja unitarista.” “Com aquele Neff horroroso”, comentou Alexandra. “Com aquele Neff horroroso”, repetiu Sukie, lambendo a água tônica dos dedos e procurando um limão dentro da geladeira vazia. Raymond Neff, homem gordote e efeminado que ainda assim havia conseguido fazer cinco filhos na esposa alemã desleixada, pálida e de óculos, lecionava música na escola de ensino médio. Como a maioria dos bons professores, era um tirano, melífluo e insistente; com seus modos sebosos, queria ir para a cama com todo mundo. Atualmente, quem estava dormindo com ele era Jane. Alexandra havia sucumbido algumas vezes no passado, mas o acontecimento tivera tão pouco impacto sobre ela que talvez Sukie sequer se desse conta de suas vibrações, de sua lembrança. A própria Sukie parecia casta em relação a Neff, mas, afinal de contas, ela estava disponível havia menos tempo. Ser mulher e divorciada em uma cidade pequena era mais ou menos como jogar Banco Imobiliário; depois de algum tempo, você acaba caindo em todas as casas. As duas amigas queriam resgatar Jane que, em uma espécie de pressa indignada, não parava de se vender barato. Quem lhes desagradava era a detestável esposa, com seus cabelos curtos que pareciam ter sido cortados com um podão de jardim, suas expressões erradas pronunciadas com esmero e seu jeito concentrado e de olhos arregalados de escutar cada palavra do que os outros diziam. Quando você vai para a cama com um homem casado, em certo sentido dorme com a mulher dele também, então esta não deveria ser de todo constrangedora. “Jane tem possibilidades tão maravilhosas”, disse Sukie de maneira um tanto automática, enquanto, com movimentos furiosos dignos de um macaco, lutava com a máquina de gelo da geladeira tentando produzir mais alguns cubos. Uma bruxa é capaz de congelar água só com o olhar, mas às vezes o problema é descongelar. Dos quatro cachorros que ela e Monty criavam nos dias de fartura, dois eram esguios weimaraners de pelo marrom-prateado, dos quais ela havia ficado com um, chamado Hank; este agora estava encostado em sua perna na esperança de que ela estivesse se digladiando com a geladeira por sua causa. “Mas ela se desperdiça”, disse Alexandra, completando a frase. “Se desperdiça no sentido antiquado da palavra”, acrescentou, pois esse diálogo estava ocorrendo durante a Guerra do Vietnã e a guerra tinha dado à palavra um novo e estranho significado. “Se ela leva mesmo a música a sério, deveria ir tocar em algum lugar sério, em alguma cidade. Que desperdício, uma pessoa que estudou no conservatório tocar para um bando de peruas velhas e surdas em uma igreja caindo aos pedaços.” “Ela se sente segura aqui”, disse Sukie, como se o mesmo não se aplicasse a elas duas. “Aquela mulher sequer toma banho, já reparou no cheiro que ela tem?”, indagou Alexandra, referindo-se agora não a Jane, mas a Greta Neff, graças a uma sucessão de associações que Sukie não achou difícil acompanhar, pois seus dois corações estavam totalmente alinhados na mesma frequência. “E aqueles óculos de vovó!”, concordou Sukie. “Parece o John Lennon.” Ela fez uma espécie de careta de John Lennon, com um ar solene, olhos tristese lábios finos. “Atcho que podemos beberr nossas — sprechen Sie wass? — bebidaz agorra.” A boca de Greta Neff produzia um horrível ditongo nada norte- americano, uma espécie de distorção da vogal contra seu palato. Tagarelando, as duas levaram as bebidas para o “quartinho”, um pequeno cômodo forrado de papel de parede descascado com uma estampa chamativa e desbotada de trepadeiras e cestos de frutas, e com um teto de gesso abaulado que exibia uma estranha inclinação porque o quartinho ficava meio encaixado debaixo da escada que subia para uma espécie de sótão no primeiro andar. A única janela do cômodo, alta demais para uma mulher conseguir olhar para fora sem estar trepada em um banquinho, tinha vidraças em forma de losango montadas em uma armação de chumbo, feitas de um vidro grosso cheio de bolhas e deformado como fundos de garrafa. “Um cheiro de repolho”, especificou Alexandra, deixando-se cair com seu copo alto e prateado de bebida sobre um pequeno sofá forrado com um tecido bordado de berrantes arabescos puídos, com trepadeiras estilizadas se desfazendo. “Ele tem esse cheiro na roupa”, disse ela, pensando ao mesmo tempo que isso lembrava um pouco Monty e as abobrinhas, e que ela obviamente estava compartilhando com Sukie esse detalhe íntimo para dar a entender que tinha ido para a cama com Neff. Por quê? Não era motivo nenhum para se vangloriar. Mas, pensando bem, era, sim. Como ele tinha suado! Aliás, ela fora para a cama com Monty, também, e nunca sentira cheiro de abobrinha. Um dos aspectos fascinantes de se dormir com o marido alheio era a visão que este proporcionava da própria mulher: ele a via de um jeito que ninguém mais via. Neff via a pobre e feiosa Greta como uma espécie de Heidi esquisita e cheia de fitas, um adorável galhinho de edelvais que ele havia resgatado de um lugar perigosamente alto e romântico (os dois haviam se conhecido em uma cervejaria de Frankfurt quando ele estava servindo na Alemanha Ocidental em vez de ir combater na Coreia), e Monty... Alexandra fitou Sukie com os olhos apertados, tentando se lembrar do que Monty tinha dito a seu respeito. Ele pouco dissera, projeto de cavalheiro que era. Mas certa vez havia deixado escapar, depois de chegar à cama de Alexandra vindo de algum tipo de encontro desagradável no banco, e ainda preocupado, as seguintes palavras: “Ela é uma garota encantadora, mas de certa forma não dá sorte. Não dá sorte para os outros, quer dizer. Acho que para si mesma ela até que dá bastante sorte.” E era verdade: Monty havia perdido boa parte do dinheiro de sua família enquanto estivera casado com Sukie, o que todos haviam atribuído simplesmente à sua própria e pacata estupidez. Ele nunca havia suado a camisa. Sofria daquela deficiência hormonal dos bem-nascidos: uma incapacidade de se relacionar com a perspectiva de um trabalho árduo. Seu corpo era quase imberbe, com as nádegas macias de uma mulher. “Greta deve ser ótima de cama”, ia dizendo Sukie. “Todos aqueles Kinder. Fünf até agora.” Neff havia revelado a Alexandra que Greta era ardente mas exaustiva, que demorava muito para gozar mas estava sempre decidida a fazê-lo. Ela daria uma péssima bruxa: aqueles alemães assassinos. “Precisamos ser simpáticas com ela”, disse Alexandra, voltando ao assunto de Jane. “Quando falamos no telefone ontem, fiquei impressionada ao ver como ela estava brava. Essa mulher está em chamas.” Sukie relanceou os olhos para a amiga, pois o comentário havia soado ligeiramente em falso. Alguma outra história havia começado para Alexandra, algum outro homem. Na fração de segundo que durou o olhar de Sukie, Hank usou a língua pendente de weimaraner cinza para varrer dois biscoitos salgados da travessa de caranguejo, que ela havia posto sobre um baú de pinho muito marcado transformado em mesa de centro por um antiquário. Sukie adorava suas coisas velhas e gastas; havia nelas uma espécie de viço, como uma fantasia de farrapos vestida pela soprano no segundo ato da ópera. A língua de Elank estava voltando pela segunda vez para arrebanhar o queijo quando Sukie viu o movimento com o canto do olho e deu-lhe um tapa no focinho; o nariz do cão era borrachudo, uma borracha dura como pneus de automóvel, de modo que o tapa machucou seus dedos. “Ah, seu sem-vergonha”, disse ela ao cachorro, e então se dirigiu à amiga. “Mais brava do que as outras?” As outras eram elas duas. Sukie deu um gole no bourbon puro. Ela bebia uísque no verão e no inverno, e o motivo, do qual já havia se esquecido, era que um namorado em Cornell certa vez lhe dissera que a cor da bebida realçava os pontinhos dourados de seus olhos verdes. Pelo mesmo motivo fútil, ela tendia a usar roupas em tons de marrom e feitas de camurça, por causa de seu brilho animal. “Ah, sim. Nós duas estamos ótimas”, respondeu a mulher mais corpulenta e mais velha, com a mente a divagar dessa ironia na direção do assunto de sua conversa com Jane: o recém-chegado à cidade que havia se mudado para a mansão Lenox. No entanto, mesmo ao divagar, sua mente, qual um passageiro dentro de um avião que, em meio à sensação de perigo de vida provocada pela decolagem, olha para baixo e fica maravilhado com a precisão e a glória reluzentes da Terra (as casas com telhados e chaminés tão definidos, tão benfeitos, e os lagos parecendo verdadeiros espelhos como nos jardins de Natal que nossos pais haviam arrumado enquanto dormíamos; era tudo verdade, e até os mapas são verdade!), reparou em como Sukie era bonita, com má sorte e tudo, com seu cabelo chamativo todo despenteado e até mesmo os cílios parecendo um pouco desgrenhados depois de um dia inteiro datilografando e procurando a palavra certa sob as luzes ofuscantes, e o corpo tão ereto e esguio vestido com o suéter verde-claro e a saia escura de camurça, a barriga lisa, os seios empinados e altos, as nádegas firmes, e no rosto insolente aquela boca de lábios carnudos tão travessa, generosa, atrevida. “Ah, eu ouvi falar no tal homem!”, exclamou ela depois de ler os pensamentos de Alexandra. “Tenho milhares de coisas para contar, mas queria esperar Jane chegar.” “Eu posso esperar”, disse Alexandra subitamente ressentida, como se de repente uma corrente de ar frio a houvesse atingido, ar frio representado por aquele homem e pelo lugar que ele ocupava em sua mente. “Essa saia é nova?” Ela teve vontade de tocar o pano, de acariciá-lo, de sentir sua textura macia e a coxa firme e esbelta que ele cobria. “Ressuscitei do armário para o outono”, respondeu Sukie. “Na verdade ela é comprida demais, do jeito que as saias estão hoje em dia.” A campainha da cozinha tocou: um som engasgado, entrecortado. “Essa fiação qualquer dia ainda vai pôr fogo na casa”, profetizou Sukie enquanto saía correndo do quartinho. Jane já havia entrado. Estava pálida, e seu rosto contraído de olhos acesos estava sobrecarregado por uma volumosa boina molenga cujo quadriculado berrante combinava com o do cachecol. Ela também estava usando meias caneladas até os joelhos. Jane não era fisicamente radiante como Sukie, e seu corpo todo apresentava pequenas assimetrias, mas mesmo assim ela irradiava uma atração comparável à luz emitida por um filamento retorcido. Seus cabelos eram escuros e sua boca, pequenina, formal, decidida. Ela vinha de Boston, e isso lhe dava uma característica que era impossível não notar. “Aquele Neff é mesmo um cretino”, começou ela depois de pigarrear. “Ele nos fez tocar o Haydn mil vezes. Disse que a minha entonação estava afetada. Afetada. Eu comecei a chorar e o chamei de machista nojento.” Ela escutou as próprias palavras e não conseguiu resistir ao impulso de fazer uma brincadeira. “Devia ter chamado de macho sem jeito, isso sim.” “Eles não conseguem evitar”, disse Sukie em tom casual. “E só sua forma de pedir mais amor. Lexa está tomando seu drinque dietético de sempre, vodca com tônica. Eu estou mergulhada cada vez mais fundo no bourbon.” “Eu não deveria fazer isso, mas estou tão magoada que vou ser uma menina má só desta vez e pedir um martíni.” “Ah, meu bem. Acho que estousem vermute em casa.” “Não tem problema, meu anjo. Basta me servir um gim com gelo em um copo de vinho. Você por acaso não teria um pouquinho de raspas de limão?” A geladeira de Sukie, repleta de gelo, iogurte e aipo, não tinha muita coisa além disso. Ela sempre almoçava na lanchonete Nemo’s no centro da cidade, a três portas da redação do jornal, depois da loja de molduras, do barbeiro e da sala de leitura da Ciência Cristã, e havia adquirido o hábito de fazer ali também sua refeição da noite por causa das fofocas que escutava no burburinho da vida de Eastwick que a cercava na Nemo’s. O pessoal das antigas da cidade se reunia ali, policiais e funcionários da rodovia, pescadores fora de temporada e homens de negócios momentaneamente falidos. “Parece que também não tenho nenhuma laranja”, disse ela, abrindo as duas gavetas de verduras de metal verde grudento. “Mas comprei uns pêssegos na barraquinha da beira da rodovia 4.” “Terei eu a coragem de um pêssego provar?”, entoou Jane, citando T. S. Eliot. “Vestirei uma calça de flanela branca e irei à praia caminhar.” Sukie fez uma careta enquanto observava as mãos agitadas da outra mulher, uma comprida e com tendões salientes de tanto dedilhar as cordas, a outra meio quadrada e frouxa de tanto segurar o arco, usarem um ralador de cenoura cego para cavoucar a casca rosada na parte mais madura do suculento pêssego amarelo. Jane deixou cair dentro do copo a raspa cor-de-rosa; um silêncio sagrado, segredo de qualquer receita, amplificou o pequeno plof. “Não posso começar a tomar gim puro tão cedo na vida”, anunciou Jane com uma satisfação puritana, parecendo mesmo assim agitada e impaciente. Pôs-se a caminhar em direção ao quartinho com aquele seu andar veloz e rígido. Sentindo-se culpada, Alexandra estendeu a mão para desligar a TV, na qual o presidente dos Estados Unidos, homem lúgubre de maxilar cinzento e olhar contrito e desonesto, estava no meio de um pronunciamento de grande importância para a nação. “Oi, coisa mais linda”, entoou Jane com uma voz um pouco alta para o pequeno espaço de teto oblíquo. “Não precisa se levantar, estou vendo que já está toda acomodada. Mas me diga uma coisa... aquela tempestade outro dia foi sua?” A casca de pêssego dentro do cone invertido que continha sua bebida parecia um pedacinho brilhante de carne doente conservado em álcool. “Depois de conversar com você, eu fui à praia”, confessou Alexandra. “Queria ver se aquele tal homem já estava na casa dos Lenox.” “Eu achei mesmo que tinha deixado você perturbada, pobrezinha”, disse Jane. “E ele estava?” “Tinha fumaça saindo pela chaminé. Não cheguei a me aproximar com o carro.” “Pois deveria, e deveria ter dito que era da Comissão dos Charcos”, interveio Sukie. “O boato que anda correndo pela cidade é que ele quer construir um cais e aterrar um trecho grande o bastante da parte de trás da ilha para construir uma quadra de tênis.” “Isso nunca vai ser aprovado”, disse Alexandra a Sukie com uma voz preguiçosa. “E lá que as garças-brancas fazem seus ninhos.” “Não tenha tanta certeza”, foi a resposta. “Aquele imóvel não paga nenhum imposto à prefeitura há muitos anos. Se alguém saldar a dívida, os representantes são capazes de expulsar várias garças.” “Ah, mas que delícia de encontro!”, exclamou Jane, um tanto desesperada, sentindo-se ignorada. Os quatro olhos das amigas se fixaram nela, e ela teve de improvisar. “Greta chegou à igreja logo depois que ele chamou meu Haydn de afetado, e riu”, disse. Sukie imitou uma risada alemã. “Ho, ho, ho.” “Será que eles ainda trepam?”, perguntou-se Alexandra em voz alta, sentindo- se à vontade entre as amigas e deixando a mente divagar e coletar imagens da natureza. “Como será que ele aguenta? Deve ser igual a um chucrute com tesão.” “Não”, retrucou Jane, firme. “Deve ser igual a... como é mesmo aquele troço branco de que eles tanto gostam? Sauerbraten.” “E marinado”, disse Alexandra. “Marinado em vinagre com alho, cebola e louro. E pimenta em grão, acho.” “E sobre esse tipo de coisa que ele conversa com você?”, perguntou Sukie a Jane, irônica. “Nós nunca falamos sobre isso, nem nos momentos mais íntimos”, disse Jane com afetação. “A única coisa que ele jamais me confidenciou sobre o assunto foi que ela precisa trepar uma vez por semana, senão começa a jogar coisas.” “Um poltergeist”, comentou Sukie, encantada. “Uma polterfrau.” “Sério, vocês têm razão”, disse Jane, sem conseguir ver graça nenhuma na piada. “Aquela mulher é mesmo um horror. Tão pedante; tão arrogante; tão nazista. Coitado do Ray, ele é o único a não ver isso.” “Fico me perguntando o quanto ela sabe”, ponderou Alexandra. “Ela não quer saber”, disse Jane, enfatizando a afirmação de modo que o erre da última palavra se arrastou. “Se soubesse, talvez tivesse que tomar alguma atitude a respeito.” “Como, por exemplo, libertá-lo”, contribuiu Sukie. “Aí nós todas teríamos de lidar com ele”, disse Alexandra, imaginando aquele homem gordote e moreno como um tornado, um voraz reservatório natural de desejo. O desejo vinha em recipientes totalmente fora de proporção. “Aguente firme, Greta!”, intrometeu-se Jane, finalmente entendendo a graça da conversa. As três deram risada. A porta lateral bateu com um barulho solene, e passos lentos subiram a escada. Não era um poltergeist, e sim um dos filhos de Sukie chegando em casa da escola depois de ter ficado retido por alguma atividade extracurricular. A televisão do andar de cima ganhou vida com seu reconfortante zumbido de robô. Gulosa, Sukie havia enfiado um punhado excessivamente grande de castanhas salgadas na boca; pressionou a mão espalmada contra o queixo para evitar que caíssem pedaços. Ainda rindo, cuspiu algumas migalhas. “Ninguém quer ouvir sobre o tal homem novo?” “Não especialmente”, disse Alexandra. “Os homens não são a resposta, não foi isso que concluímos?” Sukie já havia percebido muitas vezes que, na presença de Jane, o jeito de Alexandra mudava e ela se tornava um pouco difícil. Quando estava sozinha com Sukie, ela não tentara disfarçar o interesse por aquele homem novo. As duas tinham em comum uma certa satisfação com o próprio corpo, que com frequência fora chamado de bonito, e Alexandra era suficientemente mais velha (seis anos) para se colocar, quando estavam juntas, em um papel de certa maneira maternal: Sukie espevitada e tagarela, Lexa preguiçosa e sibilina. Quando as três se juntavam, Alexandra tinha tendência a dominar, mostrando-se um pouco emburrada e inerte, obrigando as outras duas a irem até ela. “Eles não são a resposta”, disse Jane Smart. “Mas talvez sejam a pergunta.” Só restava um terço do gim dentro de seu copo. O pedaço de casca de pêssego era um bebê esperando para ser lançado seco para o mundo. Do outro lado dos losangos embaçados, melros encerravam ruidosamente o dia, preparando o crepúsculo. Sukie se levantou para fazer um pronunciamento. “Ele é rico”, disse, “e tem quarenta e dois anos. Nunca se casou e é de Nova York, de uma das antigas famílias holandesas. Obviamente foi uma criança- prodígio no piano, e além disso é inventor. Todo o grande salão da ala leste, onde ainda fica a mesa de bilhar, e a área de lavanderia abaixo do salão vão ser o laboratório dele, com várias daquelas pias de aço inox, tubos de ensaio e coisas assim, e na ala oeste, onde os Lenox tinham aquela espécie de estufa, um jardim de inverno, ele quer mandar pôr uma enorme banheira rebaixada no piso, com um sistema de som embutido nas paredes.” Seus olhos redondos, bem verdes à luz do fim do dia, brilhavam com a insanidade de tudo aquilo. “Joe Marino foi contratado para fazer o serviço de encanador e estava falando sobre isso ontem à noite depois que a reunião ficou sem quorum porque Herbie Prinz viajou para as Bermudas sem avisar ninguém. Joe estava uma pilha de nervos: orçamento sem limites, só material da melhor qualidade, que se dane o custo. Uma banheira de teca com dois metros e meio de diâmetro, e o cara não gosta de pisar em cerâmica, então o piso inteiro vai ser feito com umaardósia lisa especial que é preciso mandar vir do Tennessee.” “Ele parece esnobe”, disse Jane. “E esse esbanjador tem nome?”, perguntou Alexandra, pensando em como Sukie, além de ser colunista de fofocas, também era romântica, e pensando se uma segunda vodca com água tônica iria deixá-la com dor de cabeça depois, quando estivesse sozinha em sua imensa e antiga casa de fazenda e a única companhia para seu espírito totalmente desperto fosse a respiração regular dos filhos adormecidos, o coçar incansável de Carvão e a visão pesarosa da lua. No Oeste, um coiote uivaria nos confins da paisagem lilás e, mais longe ainda, um trem transcontinental passaria puxando seus quilômetros rastejantes de vagões, e esses ruídos guiariam seu espírito janela afora e dissolveriam sua insônia na noite delicada e coalhada de estrelas. Ali, no acidentado e encharcado Leste, tudo era muito próximo; os barulhos da noite cercavam sua casa feito um arbusto cheio de espinhos. Até mesmo aquelas mulheres, ali na aconchegante pequena toca de Sukie, estavam muito juntas, de modo que cada pelo preto do leve buço de Jane e a penugem arrepiada cor de âmbar, sensível à eletricidade estática, dos compridos antebraços de Sukie faziam os olhos de Alexandra coçarem. Ela sentia inveja daquele homem, inveja do fato de que sua simples sombra bastasse para deixar suas amigas tão empolgadas, amigas que em outras quintas-feiras ficavam empolgadas apenas com ela, com seus poderes preguiçosos de rainha que se espalhavam feito o poder de um felino de parar de ronronar e partir para a matança. Nessas quintas-feiras, as três amigas conjuravam os fantasmas das vidinhas de Eastwick e os faziam zumbir e rodopiar pelo ar cada vez mais escuro. Se estivessem com a disposição adequada e já no terceiro drinque, eram capazes de criar acima de si um vórtice de poder que era como uma tenda que se erguia até o firmamento, e saber bem no fundo de seus corpos quem estava doente, quem estava se afundando em dívidas, quem era amado, quem estava desesperado, quem estava ardendo de desejo, quem estava dormindo para se refugiar da má sorte da vida; mas isso não iria acontecer nesse dia. Algo as estava perturbando. “O nome, que engraçado...”, dizia Sukie, erguendo os olhos para a luz que se esvaía pela janela de armação de metal. Não conseguia ver através dos altos losangos de vidro embaçado, mas podia visualizar nitidamente a única árvore de seu quintal dos fundos, uma pereira jovem e esguia saturada de peras, formas pesadas e amarelas suspensas como joias cenográficas penduradas em uma criança. Todos os dias agora recendiam a feno e fruta madura, e as pequenas e pálidas flores tardias dos ásteres reluziam no acostamento da estrada feito lixo. “Estava todo mundo dizendo o nome dele ontem à noite, e eu já tinha escutado Marge Perley me dizer, está na ponta da língua...” “Da minha também”, disse Jane. “Droga. O nome tem uma daquelas palavrinhas no meio.” “De, da, do”, sugeriu Alexandra, sem resultado. As três bruxas se calaram ao perceber que, de língua amarrada, estavam elas próprias sob o feitiço de alguém mais poderoso. Darryl van Horne compareceu ao concerto de música de câmara na igreja unitarista domingo à noite, um homem grande e moreno, com cabelos cacheados oleosos que lhe escondiam as orelhas quase por inteiro e se embolavam na parte de trás, deixando sua cabeça, vista de perfil, parecida com uma caneca de cerveja dotada de uma alça monstruosamente grossa. Ele usava uma calça de flanela cinza, meio frouxa atrás dos joelhos, e um paletó de tweed Harris com cotoveleiras e um curioso e intrincado desenho verde e preto. Uma camisa de oxford de botões cor-de-rosa, do tipo que se usava nos anos 1950, e sapatos fechados estranhamente pequenos e pontudos completavam o traje. Ele estava disposto a marcar presença. “Então é você a escultora da cidade”, disse ele a Alexandra no salão de festas da igreja, durante o coquetel oferecido após o concerto para os músicos e seus amigos, organizado em volta de um ponche sem álcool de uma cor verde artificial. A igreja era uma pequena construção razoavelmente atraente em estilo greek revival, com uma varanda estreita margeada por colunas dóricas e uma torre baixa octogonal, situada em Cocumscussoc Way, saindo da Elm e atrás da Oak, erguida pelos congregacionalistas em 1823, mas que, uma geração mais tarde, havia sucumbido à maré unitarista da década de 1840. Mesmo nesses nossos tempos enevoados e tardios de declínio doutrinário, o interior continuava decorado aqui e ali com algumas cruzes, e o salão de festas exibia em uma das paredes uma grande flâmula de feltro, confeccionada pelos alunos da escola dominical, com a cruz egípcia tau, hieróglifo que significa “vida”, cercada pelos quatro símbolos alquímicos triangulares dos elementos. A categoria “músicos e amigos” incluía todo mundo menos Van Horne, que mesmo assim adentrou o salão. As pessoas sabiam quem ele era; isso aumentava a animação. Quando ele falava, sua voz ressoava de um jeito que não combinava muito com os movimentos da boca e do maxilar, e essa impressão de um elemento artificial em algum ponto de seu aparelho fonador era reforçada pelo estranho deslizamento, pela impressão de remendo transmitida por seus traços e pelo excesso de saliva que ele produzia ao falar, o que o obrigava a parar de vez em quando para esfregar com violência os cantos da boca com a manga do paletó. No entanto, ele tinha a segurança dos cultos e abastados, e se abaixou bastante para tornar a conversa com Alexandra mais íntima. “São só umas coisinhas de nada”, disse Alexandra, sentindo-se subitamente mignon e recatada ao lado daquele gigante moreno de ar intimidador. Era a fase do mês em que ela estava particularmente sensível à aura dos outros. A daquele fascinante desconhecido tinha o mesmo lustro preto amarronzado da pelagem molhada de um castor e erguia-se, tesa, atrás de sua cabeça. “Minhas amigas as chamam de minhas peitudas”, disse ela, esforçando-se para não corar. O esforço a fez se sentir um pouco tonta no meio de toda aquela gente. Não estava acostumada com multidões nem com homens novos. “Umas coisinhas de nada”, repetiu Van Horne. “Mas tão poderosas”, disse ele, enxugando os lábios. “Tão cheias de seiva psíquica, sabe, quando você segura uma delas na mão. Fiquei até sem fôlego. Comprei todas que estavam à venda naquela loja... como é mesmo o nome? ‘Noisy Sheep’, alguma coisa assim...” “Yapping Fox”, disse ela, corrigindo o nome da loja. “Ou pode ter sido também na Hungry Sheep, a duas portas do lado oposto da barbearia, se algum dia o senhor quiser cortar o cabelo.” “Nunca, se puder evitar. Cortar o cabelo tira minha força. Minha mãe costumava me chamar de Sansão. Mas, sim, foi em uma dessas duas lojas. Comprei todas as que eles tinham para mostrar para um amigo meu, um cara incrível, muito tranquilo, que tem uma galeria de arte em Nova York, bem na rua 57. Não cabe a mim prometer o que quer que seja para você, Alexandra... tudo bem se eu a chamar assim? Mas, se você puder começar a criar em uma escala maior, aposto que eu seria capaz de conseguir uma exposição dos seus trabalhos. Talvez você nunca chegue a ser nenhuma Marisol, mas poderia muito bem ser outra Niki de Saint-Phalle. Sabe, aquela das ‘Nanas’. Essas sim têm escala. Quer dizer, ela se soltou mesmo, não está só de brincadeira.” Com algum alívio, Alexandra concluiu que aquele homem lhe despertava razoável antipatia. Era insistente, indelicado e boquirroto. O fato de ele ter comprado todas as suas esculturas na Flungry Sheep lhe dava a mesma sensação de um estupro, e ela agora teria de assar uma nova fornada antes do que havia planejado. A pressão causada por aquela personalidade fizera piorar a cólica que ela já sentia pela manhã ao acordar, dias antes da data marcada; esse era um dos sintomas do câncer: ciclo menstruai irregular. Além disso, ela trouxera consigo do Leste um lamentável resquício do preconceito regional contra índios e chicanos e, aos seus olhos, Darryl van Horne não parecia limpo.
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