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J Updike As Bruxas de Aestwick

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l.	O	sabá
Era	um	homem	grande	e	preto	feito	uma	rocha,	muito	frio.
ISOBEL	GROWDIE,	em	1662
Então,	depois	de	terminadas	as	suas	admoestações,
o	diabo	desceu	do	púlpito	e	fez	todos	os	presentes	se
aproximarem	para	lhe	beijar	as	orelhas,
que	todos	disseram	serem	frias	como	gelo;
aqueles	que	nele	tocaram	acharam
seu	corpo	áspero	como	um	fio	grosseiro.
AGNES	SAMPSON,	em	1590
“E,	AH,	SIM”,	disse	Jane	Smart	com	seu	jeito	ao	mesmo	tempo	afobado	e
decidido;	cada	esse	parecia	a	pontinha	negra	de	um	fósforo	recém-apagado
mantida	rente	à	pele	em	uma	brincadeira	de	queimar,	como	fazem	as	crianças.
“Sukie	disse	que	um	homem	comprou	a	mansão	Lenox.”
“Um	homem?”,	perguntou	Alexandra	Spofford,	sentindo-se	fora	de	prumo,
com	a	aura	tranquila	da	manhã	desequilibrada	por	aquela	palavra	assertiva.
“De	Nova	York”,	continuou	Jane,	apressada,	quase	ladrando	a	última	sílaba,
engolindo	o	erre	com	sua	pronúncia	à	moda	de	Massachusetts.	“Parece	que	não
tem	mulher	nem	família.”
“Ah.	Um	daqueles.”	Ao	ouvir	a	voz	setentrional	de	Jane	lhe	trazer	esse	boato
de	um	homossexual	vindo	de	Manhattan	para	invadi-las,	Alexandra	sentiu-se
dividida	ali	onde	estava,	naquele	misterioso	e	irritadiço	estado	de	Rhode	Island.
Havia	nascido	no	Oeste,	onde	montanhas	brancas	e	roxas	se	erguem	tentando
alcançar	as	altas	e	delicadas	nuvens,	e	arbustos	arrancados	pelo	vento	rolam
tentando	alcançar	o	horizonte.
“Sukie	não	tinha	tanta	certeza”,	disse	Jane	depressa,	moderando	os	esses.
“Ele	tem	um	aspecto	bem	másculo.	Ela	ficou	impressionada	com	a	quantidade	de
pelos	nas	costas	das	mãos	dele.	Lá	na	imobiliária	Perley,	ele	disse	que	precisava
daquele	espaço	todo	porque	é	inventor	e	tem	um	laboratório.	E	ele	tem	vários
pianos.”
Alexandra	deu	uma	risadinha;	o	ruído,	que	pouco	havia	mudado	desde	sua
infância	no	Colorado,	parecia	vir	não	de	sua	garganta,	e	sim	de	um	espírito
semelhante	a	um	pássaro	encarapitado	em	seu	ombro.	Na	verdade,	o	telefone
estava	deixando	sua	orelha	dolorida.	E	seu	antebraço	formigava,	quase	dormente.
“Para	que	tantos	pianos?”
Isso	pareceu	deixar	Jane	ofendida.	Sua	voz	se	eriçou	feito	o	pelo	de	um	gato
preto,	iridescente.	Em	tom	defensivo,	ela	prosseguiu:
“Bom,	Sukie	só	está	repetindo	o	que	Marge	Perley	contou	a	ela	na	reunião	de
ontem	à	noite	do	Comitê	do	Bebedouro.”	Esse	comitê	supervisionava	o	plantio	e,
após	atos	de	vandalismo,	o	replantio	de	um	grande	bebedouro	de	mármore	azul
para	cavalos	que	era	um	marco	histórico	do	centro	de	Eastwick,	no	cruzamento	de
duas	ruas	principais;	a	cidade	tinha	o	formato	de	um	L,	encaixada	em	volta	de	um
trecho	acidentado	do	litoral	da	baía	de	Narrangansett.	A	Dock	Street	era	a	rua
comercial	da	cidade,	enquanto	a	Oak	Street,	perpendicular,	abrigava	lindas
residências	antigas.	Marge	Perley,	cujas	horrorosas	placas	amarelo-canário	de
“Vende-se”	apareciam	e	desapareciam	de	árvores	e	cercas	conforme	a	maré	da
economia	e	da	moda	(durante	muitas	décadas,	Eastwick	havia	enfrentado	uma
semirrecessão	e	um	semiostracismo,	as	pessoas	chegavam	e	saíam	da	cidade),	era
uma	mulher	muito	maquiada,	de	temperamento	decidido,	que,	se	de	fato	fosse	uma
delas,	era	uma	bruxa	inteiramente	diferente	de	Jane,	Alexandra	e	Sukie.	Marge
tinha	marido,	um	minúsculo	e	nervoso	Homer	Perley,	sempre	a	podar	sua	sebe	de
forsítias	até	deixá-la	bem	rente,	e	isso	fazia	diferença.	“Os	documentos	foram
assinados	em	Providence”,	explicou	Jane,	enfatizando	o	nce	com	força	nos
ouvidos	de	Alexandra.
“E	com	as	costas	das	mãos	peludas”,	ponderou	Alexandra	em	voz	alta.	Junto	a
seu	rosto	pairava	a	superfície	levemente	riscada,	descascada	e	várias	vezes
repintada	de	uma	porta	de	armário	de	cozinha	feita	de	madeira;	Alexandra	teve
consciência	da	fúria	atômica	que	rodopiava	e	escorregava	sob	aquela	superfície,
qual	um	redemoinho	causado	pela	vista	cansada.	Como	em	uma	bola	de	cristal,
viu	que	iria	conhecer	e	se	apaixonar	por	esse	homem,	e	que	nada	de	bom	viria
disso.	“Ele	não	tem	nome?”,	perguntou.
“Isso	é	o	mais	idiota	de	tudo”,	disse	Jane	Smart.	“Marge	contou	para	Sukie	e
Sukie	me	contou,	mas	alguma	coisa	afugentou	o	nome	da	minha	cabeça.	É	um
desses	sobrenomes	com	partícula:	‘van’...	‘von’...	‘de’...”
“Que	maravilha”,	comentou	Alexandra	já	se	dilatando,	já	se	expandindo	para
ser	invadida.	Um	europeu	alto	e	moreno,	expulso	de	seu	antigo	passado	heráldico,
viajando	sob	o	peso	de	uma	maldição...	“Quando	é	que	ele	vai	se	mudar?”
“Ela	disse	que	ele	disse	que	seria	em	breve.	Vai	ver	já	está	lá!”	A	voz	de	Jane
soava	alarmada.	Alexandra	imaginou	as	sobrancelhas	da	outra,	um	pouco	fartas
demais	(em	comparação	com	o	resto	de	seu	rosto	contraído),	erguendo-se	para
formar	semicírculos	acima	de	seus	olhos	ressentidos,	cujo	castanho	era	sempre
um_tom	mais	claro	do	que	a	lembrança	que	se	tinha	deles.	Se	Alexandra	era	a
bruxa	grandalhona,	de	estilo	exuberante,	tentando	sempre	ser	discreta	para	passar
outra	impressão	e	se	misturar	à	paisagem,	no	fundo	um	tanto	preguiçosa	e
fundamentalmente	fria,	Jane	era	quente,	baixinha,	concentrada	como	a	ponta	de	um
lápis,	enquanto	Sukie	Rougemont,	ocupada	o	dia	inteiro	no	centro	da	cidade
coletando	notícias	e	sorrindo	ao	dar	bom-dia,	tinha	uma	essência	volátil.	Foi	isso
que	Alexandra	pensou	ao	desligar.	As	coisas	vêm	em	trios.	E	a	magia	ocorre	à
nossa	volta	o	tempo	todo	conforme	a	natureza	procura	e	encontra	as	formas
inevitáveis,	e	as	coisas	cristalinas	e	orgânicas	vão	se	organizando	em	ângulos	de
sessenta	graus,	uma	vez	que	o	triângulo	equilátero	é	a	mãe	de	todas	as	estruturas.
Alexandra	voltou	então	ao	preparo	de	vidros	de	molho	para	espaguete,	molho
para	mais	espaguete	do	que	ela	e	os	filhos	seriam	capazes	de	consumir	mesmo
que	tivessem	sido	enfeitiçados	e	condenados	a	passar	cem	anos	dentro	de	um
conto	de	fadas	italiano,	vidros	e	mais	vidros	retirados,	fumegantes,	do	panelão
azul	sarapintado	de	branco	em	cima	da	grelha	de	metal	redonda	trêmula	e
sibilante.	Percebeu	vagamente	que	isso	era	uma	espécie	de	ridículo	tributo	ao	seu
atual	amante,	um	encanador	de	origem	italiana.	A	receita	de	Alexandra	levava
cebola,	dois	dentes	de	alho	picados	e	salteados	por	três	minutos	em	azeite	quente
(nem	mais,	nem	menos;	era	essa	a	magia),	bastante	açúcar	para	contrabalançar	a
acidez,	uma	única	cenoura	ralada,	mais	pimenta	do	que	sal;	mas	a	colher	de	chá
de	manjericão	picado	era	o	que	dava	ao	molho	a	sua	virilidade,	e	a	pitada	de
beladona	proporcionava	a	libertação	sem	a	qual	a	virilidade	não	passa	de	uma
congestão	assassina.	Tudo	isso	devia	ser	acrescentado	aos	seus	próprios	tomates,
colhidos	e	guardados	em	cada	peitoril	de	janela	durante	as	últimas	semanas	e
agora	cortados	e	levados	ao	liquidificador	—	desde	que,	dois	verões	antes,	Joe
Marino	havia	começado	a	frequentar	sua	cama,	uma	absurda	fecundidade	tomara
conta	dos	pés	de	tomate	plantados	no	jardim	lateral	onde	o	sol	do	sudoeste	batia
enviesado	por	entre	as	fileiras	de	salgueiros	durante	as	longas	tardes.	Os
pequenos	galhos	retorcidos	dos	tomates,	suculentos	e	descorados	como	se	feitos
de	um	papel	verde	barato,	se	quebravam	com	o	peso	de	tantos	frutos;	havia	algo
de	frenético	em	tamanha	fertilidade,	uma	histeria	parecida	com	a	de	crianças
ansiosas	para	agradar.	Dentre	todas	as	plantas,	os	tomates	pareciam	as	mais
humanas,	ansiosas	e	frágeis,	vulneráveis	à	deterioração.	Ao	colher	as	polpudas
esferas	vermelho-alaranjadas,	Alexandra	tinha	a	impressão	de	estar	segurando	na
mão	os	testículos	de	um	gigantesco	amante.	Enquanto	se	atarefava	na	cozinha,
reconhecia	o	quê	de	tristemente	menstruai	em	tudo	aquilo,	o	molho	parecido	com
sangue	a	ser	despejado	sobre	o	branco	espaguete.	As	grossas	tiras	brancas	iriam
se	transformar	em	sua	própria	gordura	branca.	Sua	luta	feminina	contra	o	próprio
peso:	aos	trinta	e	oito	anos,	ela	achava	isso	cada	vez	menos	natural.	Será	que	para
atrair	o	amor	ela	precisava	negar	o	próprio	corpo,	como	uma	santa	neurótica	de
antigamente?	A	natureza	é	o	indicador	e	o	contexto	de	toda	saúde	e,	se	temos	um
apetite,	ele	está	lá	para	ser	saciado,	satisfazendo	assim	a	ordem	cósmica.	Mas
apesar	disso	ela	às	vezes	desprezava	a	si	mesma	por	ser	preguiçosa,por	ter
arrumado	um	amante	de	uma	ascendência	tão	reputadamente	tolerante	em	relação
à	corpulência.
Nos	poucos	anos	desde	o	seu	divórcio,	os	amantes	de	Alexandra	tendiam	a
ser	maridos	esparsos	cujas	esposas,	suas	donas,	lhes	permitiam	passear	de	vez
em	quando.	Seu	próprio	ex-marido,	Oswald	Spofford,	repousava	dentro	de	um
vidro	com	a	tampa	de	rosca	bem	fechada	em	uma	prateleira	alta	da	cozinha,
reduzido	a	um	pó	multicolorido.	Era	a	isso	que	ela	o	havia	reduzido	quando	seus
poderes	se	revelaram	após	a	mudança	de	Norwich,	Connecticut,	para	Eastwick.
Especialista	em	cromo,	Ozzie	fora	transferido	de	uma	fábrica	de	metais	naquela
cidadezinha	montanhosa,	com	seu	excesso	de	igrejas	brancas	descascadas,	para
uma	empresa	concorrente	em	um	complexo	industrial	de	cimento	de	quase	um
quilômetro	de	comprimento	ao	sul	de	Providence,	em	meio	à	estranha	vastidão
industrial	daquele	pequeno	estado.	Fazia	sete	anos	que	haviam	se	mudado	para	lá.
Ali,	em	Rhode	Island,	seus	poderes	tinham	se	expandido	como	um	gás	em
ambiente	a	vácuo,	e,	enquanto	o	caro	Ozzie	fazia	o	trajeto	diário	de	ida	e	volta	do
trabalho	pela	rodovia	4,	ela	primeiro	o	reduzira	ao	tamanho	de	um	mero	homem,
despindo	de	seu	corpo	a	armadura	de	protetor	patriarcal	graças	à	maresia
corrosiva	da	beleza	maternal	de	Eastwick,	e	depois	ao	tamanho	de	uma	criança,	à
medida	que	as	suas	carências	crônicas	e	a	sua	igualmente	crônica	aceitação	das
soluções	por	ela	propostas	o	faziam	parecer	fraco	e	manipulável.	Ele	literalmente
perdera	o	contato	com	o	universo	em	expansão	dentro	dela.	Havia	se	deixado
envolver	excessivamente	pelas	atividades	de	seus	filhos	na	Liga	Juvenil	de
beisebol	e	do	time	de	boliche	da	fábrica	de	metais.	A	medida	que	Alexandra
arrumou	primeiro	um	amante,	e	depois	vários,	seu	marido	corno	foi	reduzido	à
dimensão	e	à	secura	de	uma	boneca,	deitado	ao	seu	lado	durante	a	noite	na	ampla
e	receptiva	cama	como	um	tronco	de	árvore	pintado	adquirido	em	alguma	barraca
de	beira	de	estrada,	ou	um	jacaré	bebê	empalhado.	Quando	eles	de	fato	se
divorciaram,	seu	antigo	mestre	e	senhor	se	transformara	em	pó	—	matéria	no
lugar	errado,	como	definira	de	forma	sucinta	a	mãe	de	Alexandra	tempos	antes	—,
uma	espécie	de	pó	multicolorido	que	ela	havia	varrido	e	guardado	de	lembrança
dentro	de	um	vidro.
As	outras	bruxas	haviam	passado	por	transformações	semelhantes	em	seus
casamentos;	o	ex-marido	de	Jane	Smart,	Sam,	estava	pendurado	no	porão	da	casa
de	fazenda	dela,	em	meio	às	ervas	secas	e	poções,	sendo	ocasionalmente
salpicado	em	algum	filtro,	uma	pitadinha	por	vez,	para	dar	um	sabor	picante;	e
Sukie	Rougemont	havia	plastificado	o	seu	e	o	usava	como	jogo	americano.	Esse
último	acontecimento	havia	sido	bem	recente;	Alexandra	ainda	podia	ver	Monty
em	pé	nas	festas,	vestido	com	seu	paletó	de	madras	e	sua	calça	verde	vivo,
gabando-se	dos	detalhes	da	partida	de	golfe	do	dia	e	criticando	o	vagaroso
quarteto	feminino	que	os	havia	atrasado	o	dia	inteiro	sem	nunca	os	convidar	a
passar	na	sua	frente.	Ele	detestava	mulheres	arrogantes	—	governadoras,
histéricas	que	protestavam	contra	a	guerra,	médicas,	a	primeira-dama,	Lady	Bird
Johnson,	e	até	suas	duas	filhas,	Lynda	Bird	e	Luci	Baines.	Achava	todas	elas	umas
machonas.	Quando	bostejava,	Monty	exibia	uns	dentes	incríveis,	compridos	e
muito	certinhos	mas	não	falsos,	e	sem	roupa	exibia	pernas	um	tanto	comoventes,
magras	e	azuladas,	bem	menos	musculosas	do	que	os	antebraços	bronzeados	de
golfista.	E	ele	tinha	aquelas	nádegas	franzidas	e	flácidas	que	muitas	vezes	se	via
no	corpo	amolecido	de	mulheres	de	meia-idade.	Monty	fora	um	dos	primeiros
amantes	de	Alexandra.	Agora,	era	estranho	e	estranhamente	agradável	pousar	uma
caneca	do	forte	café	de	Sukie	sobre	o	lustroso	jogo	americano	estampado	de
madras,	deixando	nele	um	círculo	marcado.
O	ar	de	Eastwick	dava	poder	às	mulheres.	Alexandra	nunca	havia	provado
nada	parecido,	exceto	talvez	em	um	canto	de	Wyoming,	que	atravessara	de	carro
com	os	pais	quando	tinha	mais	ou	menos	onze	anos.	Eles	a	haviam	deixado	descer
do	carro	para	fazer	xixi	ao	lado	de	um	arbusto	de	sálvia	e	ela	pensara,	ao	ver	a
terra	seca	de	altitude	momentaneamente	umedecida	pela	mancha	escura:	Não	tem
importância.	Vai	evaporar.	A	natureza	absorve	tudo.	Essa	atitude	de	menina	a
acompanhara	desde	então,	junto	com	o	aroma	doce	de	sálvia	daquele	instante	à
beira	da	estrada.	Eastwick,	por	sua	vez,	era	beijada	pelo	mar	a	cada	instante.	A
Dock	Street,	com	suas	elegantes	lojas	de	velas	perfumadas	e	arremates	para
cordinhas	de	persiana	feitos	de	vidro	artesanal	oferecidos	aos	turistas	de	verão,
seu	restaurante	antiquado	com	balcão	de	alumínio	ao	lado	da	padaria,	o	barbeiro
contíguo	a	uma	casa	de	molduras,	a	pequena	e	movimentada	redação	de	jornal	e	a
comprida	loja	de	ferragens	administrada	por	armênios,	era	indissociável	da	água
salgada	que	escorria,	deslizava	e	escoava	pelas	canaletas	e	entre	as	estacas	sobre
as	quais	a	rua	havia	sido	parcialmente	construída,	de	modo	que	um	brilho	sinuoso
de	mar,	estriado	e	cor	de	água-marinha,	cintilava	e	tremulava	nos	rostos	das
matronas	da	cidade	enquanto	elas	carregavam	suco	de	laranja	e	leite	desnatado,
carne	para	o	almoço,	pão	integral	e	cigarros	com	filtro	comprados	na	mercearia
Bay	Superette.	O	verdadeiro	supermercado,	onde	se	fazia	as	compras	semanais,
ficava	mais	distante	do	mar,	no	trecho	de	Eastwick	outrora	ocupado	por	terras
agrícolas;	ali,	no	século	XVIII,	latifundiários	aristocratas,	donos	de	grande
quantidade	de	escravos	e	gado,	visitavam	uns	aos	outros	a	cavalo,	com	um
escravo	a	galope	na	frente	para	abrir	sucessivos	portões.	Agora,	nos	hectares
asfaltados	do	estacionamento	do	shopping,	a	fumaça	dos	canos	de	descarga	tingia
com	vapores	de	chumbo	o	ar	da	lembrança	oxigenado	por	campos	de	repolhos	e
batatas.	Lá	onde	o	milho,	esse	notável	artefato	agrícola	dos	índios,	havia	brotado
durante	gerações,	pequenas	empresas	sem	janelas	chamadas	Dataprobe	ou
Computech	fabricavam	mistérios,	componentes	tão	pequenos	que	os	operários
usavam	gorros	de	plástico	para	evitar	que	a	caspa	caísse	dentro	das	minúsculas
peças	eletromecânicas.
Embora	conhecido	por	ser	o	menor	dos	cinquenta	estados	da	federação,
Rhode	Island	ainda	assim	abriga	uma	estranha	vastidão	norte-americana,	trechos
quase	inexplorados	em	meio	a	regiões	industriais,	casas	abandonadas	e	mansões
desertas,	terrenos	vazios	atravessados	apressadamente	por	estradas	pretas	e	retas,
áreas	alagadas	que	parecem	pântanos	e	praias	desertas	de	ambos	os	lados	da
baía,	essa	imensa	cunha	de	água	cravada	qual	uma	estaca	até	o	coração	do	estado
e	sua	capital	de	nome	religioso,	Providence.	“Os	confins	da	criação”,	“o	esgoto
da	Nova	Inglaterra”:	era	assim	que	Cotton	Mather1	se	referia	a	essa	região.
Jamais	prevista	para	ser	uma	entidade	independente,	povoada	por	marginais	como
a	herege	e	condenada	Anne	Hutchinson,	esse	território	contém	uma	infinidade	de
meandros	e	vincos.	Sua	placa	rodoviária	preferida	mostra	um	par	de	flechas
apontando	cada	qual	para	um	lado.	Pobre	e	pantanosa	em	alguns	trechos,	em
outros	se	transformou	no	parque	de	diversões	dos	extremamente	ricos.	Refúgio	de
quacres	e	antinomianos,	últimos	estágios	do	puritanismo,	é	administrada	por
católicos,	cujas	chamativas	igrejas	vitorianas	parecem	navios	de	carga	em	meio	a
um	mar	de	arquitetura	desinteressante.	Lá	se	pode	ver	uma	espécie	de	mancha
metálica	verde,	entranhada	bem	fundo	nas	telhas	que	datam	da	época	da	Grande
Depressão,	que	não	existe	em	nenhum	outro	lugar.	Uma	vez	atravessada	a
fronteira	do	estado,	seja	em	Pawtucket	ou	Westerly,	ocorre	uma	sutil	mudança,	um
alegre	desequilíbrio,	um	desprezo	pelas	aparências,	uma	quimérica	falta	de
interesse.	Para	lá	dos	barracos	de	ripas	de	madeira	abrem-se	descampados
lunares	onde	apenas	uma	venda	de	beira	de	estrada	oferecendo	os	fantasmas	dos
pepinos	em	conserva	do	último	verão	trai	a	presença	ansiosa	e	perturbadora	do
homem.
Era	esse	trecho	deserto	que	Alexandra	agora	percorria	de	carro	para	dar	uma
olhada	na	velha	mansão	Lenox.	Dentro	de	sua	caminhonete	Subaru	cor	de
abóbora,	levava	consigo	seu	labrador	preto,	Carvão.	Elahavia	deixado	os
últimos	vidros	esterilizados	de	molho	esfriando	na	bancada	da	cozinha	e,	usando
um	ímã	do	Snoopy,	prendera	na	porta	da	geladeira	um	recado	para	os	quatro
filhos:
LEITE	NA	GELADEIRA,	NEGRESCO	NA	CAIXA	DE	PÃO,	VOLTO	DAQUI	A	UMA	HORA,
BEIJOS.
Na	época	em	que	Roger	Williams,	fundador	de	Rhode	Island,	ainda	era	vivo,
a	família	Lenox	tinha	roubado	dos	chefes	da	tribo	Narrangansett	terra	suficiente
para	constituir	uma	baronia	europeia,	e,	embora	um	certo	major	Lenox	tivesse
morrido	heroicamente	na	Grande	Batalha	do	Pântano	durante	a	Guerra	do	Rei
Felipe,	e	seu	tataraneto	Emory	tivesse	defendido	com	eloquência	a	separação
entre	Nova	Inglaterra	e	os	outros	estados	da	União	na	Convenção	de	Hartford	em
1815,	a	família	de	modo	geral	tivera	uma	trajetória	descendente.	Quando
Alexandra	chegara	em	Eastwick,	já	não	havia	mais	nenhum	Lenox	em	South
County,	com	exceção	de	uma	viúva	idosa,	Abigail,	que	vivia	no	estagnado	e
esquisito	vilarejo	de	Old	Wick;	ela	percorria	as	ruelas	resmungando	e	se
esquivando	das	pedrinhas	lançadas	por	crianças,	que,	chamadas	pelo	chefe	de
polícia	local	para	se	explicar,	alegavam	estar	se	defendendo	do	mau-olhado.	As
vastas	terras	do	clã	haviam	sido	desmembradas	muito	tempo	antes.	O	último
homem	capaz	da	família	mandara	construir	em	uma	ilha	que	os	Lenox	ainda
possuíam,	no	trecho	de	pântano	salgado	atrás	da	praia	de	East	Beach,	uma	mansão
de	tijolos	que	era	uma	imitação	acanhada	mas	localmente	impactante	dos
palacianos	“chalés”	de	verão	edificados	em	Newport	durante	essa	época	de	ouro.
Embora	uma	passarela	tivesse	sido	construída	e	sua	altura	repetidamente
aumentada	por	novas	importações	de	cascalho,	a	mansão	sempre	sofria	com	a
desvantagem	de	ficar	isolada	quando	a	maré	subia,	e	fora	ocupada	durante	breves
períodos	desde	a	década	de	1920	por	uma	sucessão	de	proprietários	que	a
haviam	deixado	mergulhar	em	um	estado	de	decadência.	As	grandes	telhas,
algumas	avermelhadas,	outras	de	um	cinza	azulado,	despencavam	sem	que
ninguém	visse	durante	as	tempestades	de	inverno	e,	no	verão,	despontavam	como
lápides	sem	nome	em	meio	à	grama	alta	que	ninguém	vinha	cortar;	as	modernas	e
astuciosas	calhas	e	proteções	para	o	pé	das	portas,	todas	feitas	de	cobre,	haviam
ficado	esverdeadas	e	apodrecido;	o	intrincado	domo	octogonal	com	vista	para
todas	as	direções	entortara	para	o	lado	leste;	as	imensas	chaminés	nas	duas
extremidades	da	casa,	articuladas	como	feixes	de	tubos	de	um	órgão	ou	pescoços
muito	musculosos,	precisavam	de	cimento	novo	e	estavam	perdendo	tijolos.
Porém,	vista	de	longe,	na	opinião	de	Alexandra	a	silhueta	da	grande	mansão	ainda
tinha	uma	grandiosidade	bastante	impressionante.	Ela	havia	parado	o	carro	no
acostamento	da	rua	da	praia	para	admirá-la	da	outra	ponta	do	quase	meio
quilômetro	de	pântano.
Era	setembro,	estação	das	grandes	marés;	nessa	tarde,	o	pântano	entre	aquele
ponto	e	a	ilha	parecia	um	lençol	d’água	tingido	de	azul-celeste	e	salpicado	pelas
extremidades	dos	juncos	já	ficando	douradas.	Faltavam	uma	ou	duas	horas	para	a
passarela	se	tornar	intransitável.	Agora	passava	das	quatro	da	tarde;	o	céu	que
ocultava	o	sol	estava	imóvel	e	pesado	feito	um	pano.	Antigamente,	a	mansão
estaria	escondida	por	uma	aleia	de	olmos	que	subia	prolongando	a	passarela	até	a
porta	da	frente,	mas	as	árvores	tinham	morrido	da	doença	holandesa	que	costuma
acometer	a	espécie	e	tudo	que	restava	eram	cotos	altos	privados	de	seus	amplos
galhos,	parecendo	homens	envoltos	em	sudários,	curvados	como	aquela	estátua	de
Balzac	sem	braço	esculpida	por	Rodin.	A	casa	tinha	uma	fachada	austera,
simétrica,	com	muitas	janelas	que	pareciam	um	pouco	pequenas	—	sobretudo	na
fileira	do	segundo	andar	que	margeava	toda	a	extensão	logo	abaixo	do	telhado
sem	variação:	o	andar	dos	criados.	Alexandra	já	havia	entrado	na	casa,	anos
antes,	quando,	ainda	tentando	fazer	as	coisas	que	se	esperava	de	uma	esposa,
acompanhara	Ozzie	a	um	concerto	beneficente	realizado	no	salão	de	baile.
Lembrava-se	de	pouca	coisa	além	de	uma	sequência	de	cômodos	parcamente
mobiliados	cheirando	a	maresia,	mofo	e	prazeres	esquecidos.	O	telhado
malcuidado	tinha	o	mesmo	tom	escuro	que	se	espalhava	pelo	céu	vindo	do	norte
—	não,	o	que	perturbava	o	ambiente	era	mais	do	que	nuvens.	Uma	fumaça
esgarçada	e	branca	subia	da	chaminé	da	esquerda.	Havia	alguém	dentro	da	casa.
O	homem	com	pelos	nas	costas	das	mãos.
O	futuro	amante	de	Alexandra.
Mais	provavelmente,	pensou	ela,	um	operário	ou	vigia	contratado	por	ele.
Seus	olhos	ardiam	de	tanto	se	esforçar	para	ver	ao	longe,	de	tanto	se	concentrar.
Assim	como	o	céu,	suas	entranhas	haviam	se	adensado	para	formar	uma	certa
escuridão,	uma	sensação	de	que	ela	era	uma	espectadora	patética.	Agora	o	desejo
feminino	ocupava	as	páginas	de	todos	os	jornais	e	revistas;	a	equação	sexual
havia	se	invertido	à	medida	que	moças	de	boa	família	se	jogavam	em	cima	de
roqueiros	abrutalhados,	e	guitarristas	rudes	e	barbados	saídos	dos	barracos	de
Liverpool	ou	de	Memphis	eram	de	alguma	forma	imbuídos	de	um	poder
indecente,	como	sóis	negros	transformando	em	bacantes	suicidas	essas	filhas
criadas	com	tanto	resguardo.	Alexandra	pensou	em	seus	tomates,	no	sumo	da
violência	sob	a	pele	retesada	e	complacente.	Pensou	na	filha	mais	velha,	sozinha
em	seu	quarto	com	aqueles	tais	The	Monkees	e	The	Beatles...	mas	uma	coisa	era
Marcy,	outra	totalmente	diferente	era	sua	mãe	estar	assim	desejosa,	apertando	os
olhos	no	esforço	de	ver.
Alexandra	cerrou	os	olhos	com	força,	tentando	sair	do	transe.	Tornou	a	entrar
no	carro	junto	com	Carvão	e	percorreu	o	quase	um	quilômetro	de	estrada	preta	e
reta	até	a	praia.
Depois	da	temporada,	se	não	houvesse	ninguém	por	perto,	era	possível	andar
com	um	cachorro	sem	guia.	Mas	o	dia	estava	quente,	e	velhos	carros	e	kombis
com	cortinas	nas	janelas	e	listras	psicodélicas	coalhavam	o	exíguo
estacionamento;	além	das	cabanas	para	banhistas	e	da	barraquinha	de	pizza,
várias	pessoas	trajando	roupa	de	banho	estavam	deitadas	de	costas	com	seus
rádios,	como	se	o	verão	e	a	juventude	nunca	fossem	terminar.	Em	respeito	ao
regulamento	da	praia,	Alexandra	havia	trazido	um	pedaço	de	varal	no	chão	do
banco	de	trás.	Carvão	se	remexeu	de	contrariedade	quando	ela	passou	a	corda	por
sua	coleira	cheia	de	tachinhas.	Todo	músculos	e	ansiedade,	o	cão	a	foi	puxando
pela	areia	que	dificultava	os	passos.	Ela	parou	para	tirar	as	alpargatas	bege,	e	o
cachorro	engasgou;	ela	largou	os	sapatos	atrás	de	um	tufo	de	grama	de	praia	junto
ao	final	do	deque	de	madeira.	Os	segmentos	de	um	metro	e	oitenta	do	deque
haviam	sido	espalhados	por	uma	recente	maré	alta,	que	também	deixara	em	cima
da	areia	plana	junto	ao	mar	uma	coleção	de	garrafas	de	água	sanitária,	invólucros
de	absorventes	internos	e	latinhas	de	cerveja	que	haviam	passado	tanto	tempo
boiando	que	seus	rótulos	coloridos	tinham	se	desintegrado;	essas	latinhas	sem
rótulo	tinham	um	aspecto	assustador	—	neutras	como	as	bombas	que	os	terroristas
fabricam	e	depois	deixam	em	lugares	públicos	para	derrubar	o	sistema	e	assim
pôr	fim	à	guerra.	Carvão	seguiu	puxando,	e	os	dois	passaram	por	uma	pilha	de
rochas	quadradas	incrustadas	de	cracas	que	antes	faziam	parte	de	um	quebra-mar
construído	quando	aquela	praia	era	um	parque	de	diversões	para	ricos	e	não	um
parquinho	público	explorado	além	de	sua	capacidade.	As	rochas	eram	de	um
granito	claro	sarapintado	de	preto,	e	em	uma	das	maiores	estava	chumbada	uma
prateleira	que	os	anos	haviam	carcomido	até	lhe	conferir	a	mesma	fragilidade	de
uma	escultura	de	Giacometti.	O	barulho	dos	rádios	dos	jovens,	um	tipo	mais
aéreo	de	rocha,	flutuava	à	sua	volta	enquanto	ela	caminhava,	consciente	do
próprio	peso,	do	aspecto	de	bruxa	que	devia	ter	com	seus	pés	descalços,	seu
jeans	largo	e	sua	surrada	jaqueta	de	brocado	verde,	uma	jaqueta	argelina	que	ela
e	Ozzie	tinham	comprado	em	Paris	na	lua	de	mel,	dezessete	anos	antes.	Embora
no	verão	sua	pele	adquirisse	o	tom	moreno	dos	ciganos,	Alexandra	tinha	sangue
nórdico;	seu	nome	de	solteira	era	Sorensen.	Sua	mãe	havia	lhe	falado	muitas
vezes	sobre	a	superstição	em	relação	a	trocar	a	inicial	do	sobrenome	depoisde
casada,	mas	Alexandra	na	época	não	ligava	para	magia	e	estava	louca	para	ter
filhos.	Marcy	fora	concebida	em	Paris,	sobre	uma	cama	de	ferro.
Alexandra	usava	os	cabelos	em	uma	única	trança	grossa	que	descia	pelas
costas;	às	vezes	prendia	a	trança	na	nuca	como	uma	espécie	de	coluna	vertebral.
Seus	cabelos	nunca	tinham	ostentado	o	verdadeiro	louro	platinado	de	um	viking,
mas	uma	cor	clara	indistinta	agora	mais	embaçada	ainda	pelos	fios	grisalhos.	A
maior	parte	dos	cabelos	brancos	tinha	nascido	na	frente;	os	da	nuca	ainda	eram
tão	finos	quanto	os	das	garotas	que	pegavam	sol	ali	na	praia.	As	pernas	lisas	e
jovens	pelas	quais	ela	passava	tinham	a	mesma	cor	de	caramelo,	cobertas	de
penugem	clara,	e	estavam	todas	alinhadas	como	em	uma	atitude	de	solidariedade.
A	parte	de	baixo	do	biquíni	de	uma	das	meninas	reluzia	sob	a	luz	chapada,
esticada	e	simples	como	um	tambor.
Carvão	seguia	adiante,	fuçando,	imaginando	algum	cheiro,	algum	relento	de
animal	fugidio	em	meio	ao	odor	de	algas	da	praia.	A	população	de	banhistas	foi
diminuindo.	Um	jovem	casal	estava	abraçado	em	um	espaço	que	haviam	cavado
na	areia	coalhada	de	furinhos;	o	rapaz	murmurava	na	base	do	pescoço	da	moça
como	quem	fala	em	um	microfone.	Um	trio	de	homens	excessivamente
musculosos,	com	os	longos	cabelos	a	esvoaçar	enquanto	pulavam	e	soltavam
grunhidos,	jogava	frisbee,	e	somente	quando	Alexandra	deixou	de	propósito	o
forte	labrador	preto	puxá-la	bem	para	o	meio	do	grande	triângulo	do	jogo	foi	que
eles	cessaram	seus	golpes	e	gritos	insolentes.	Ela	pensou	ter	escutado	um
“megera”	ou	“canhão”	atrás	de	si	depois	de	passar,	mas	talvez	tivesse	sido	uma
ilusão	auditiva,	uma	palavra	equivocada	emitida	pelas	ondas	do	mar.	Estava	se
aproximando	de	onde	um	muro	de	concreto	erodido	encimado	por	uma	hélice	de
arame	farpado	enferrujado	marcava	o	fim	da	praia	pública;	ali	também	ainda
havia	grupos	de	jovens	e	de	pessoas	que	buscavam	a	juventude,	e	ela	não	se
sentiu	à	vontade	para	soltar	o	pobre	Carvão,	embora	este	não	parasse	de	engasgar
tentando	se	libertar	da	coleira.	O	seu	desejo	de	correr	fazia	a	corda	arder	na	mão
de	Alexandra.	O	mar	parecia	estranhamente	parado	—	petrificado,	marcado
apenas	por	listras	leitosas	bem	lá	longe,	onde	uma	pequena	e	solitária	lancha
fazia	zumbir	a	caixa	de	ressonância	de	sua	superfície	lisa.	Do	outro	lado	de
Alexandra,	mais	perto,	ervilhas	do	mar	e	kudsonias	peludas	desciam	rastejando
das	dunas;	a	praia	ali	se	estreitava	e	tornava-se	íntima,	como	se	podia	constatar
pelos	montinhos	de	latas,	garrafas	e	madeira	queimada,	pelos	pedaços	de	caixas
de	isopor	e	pelas	camisinhas	parecendo	pequenos	cadáveres	de	água-viva
ressequidos.	O	muro	de	cimento	havia	sido	pichado	com	nomes	entrelaçados.	Por
toda	parte,	a	conspurcação	havia	deixado	sua	marca,	e	apenas	os	passos	eram
apagados	pelo	oceano.
Em	determinado	ponto,	as	dunas	ficavam	baixas	o	suficiente	para	deixar
entrever	a	mansão	Lenox,	de	um	ângulo	diferente	e	bem	mais	distante;	as	duas
chaminés	laterais	despontavam	qual	as	asas	arqueadas	de	um	gavião	de	cada	lado
do	domo.	Alexandra	se	sentiu	irritada	e	vingativa.	Teve	a	sensação	de	que	as
entranhas	lhe	doíam;	sentia-se	incomodada	pelo	entreouvido	xingamento	de
“megera”	e	pelo	xingamento	mais	amplo	e	generalizado	de	toda	aquela	juventude
despreocupada	proibindo-a	de	soltar	seu	cachorro	para	que	ele,	seu	amigo	e
espírito	que	a	acompanhava,	pudesse	correr	livremente.	Ela	decidiu	limpar	a
praia	para	si	e	para	Carvão	invocando	uma	tempestade.	O	tempo	interno	de	cada
um	sempre	tinha	relação	com	o	tempo	externo;	era	apenas	uma	questão	de	reverter
a	correnteza,	algo	que	acontecia	com	relativa	facilidade	uma	vez	que	o	poder
tivesse	sido	atribuído	ao	polo	principal,	ou	seja,	ao	seu	eu	feminino.	Muitos	dos
notáveis	poderes	de	Alexandra	advinham	dessa	simples	reapropriação	do	eu	que
lhe	fora	atribuído,	só	alcançada	já	quase	na	meia-idade.	Somente	depois	de	um
pouco	mais	velha	ela	passara	a	acreditar	sinceramente	que	tinha	o	direito	de
existir,	que	as	forças	da	natureza	a	haviam	criado	não	como	um	mero	acessório	e
companheira	—	uma	costela	torta,	como	dizia	o	tristemente	célebre	Malleus
maleficarum	—,	mas	como	o	esteio	principal	da	Criação	ainda	em	movimento,
como	filha	de	outra	filha	e	mulher	cujas	filhas,	por	sua	vez,	dariam	à	luz	outras
filhas.	Enquanto	Carvão	estremecia	e	gania	de	medo,	Alexandra	fechou	os	olhos	e
invocou	essa	imensa	parte	interior	de	si	mesma	—	esse	continuum	que	remontava
a	muitas	gerações	da	humanidade	até	os	ancestrais	primatas	e,	antes	deles,	os
lagartos,	peixes	e	algas	que	geraram	em	suas	tépidas	e	microscópicas	entranhas	o
primeiro	DNA	do	planeta	recém-nascido,	um	continuum	que,	na	outra	direção,
estendia-se	até	o	final	de	toda	vida,	assumindo	diferentes	formas,	pulsando,
sangrando,	adaptando-se	ao	frio,	aos	raios	ultravioleta,	ao	sol	inchado	e	cada	vez
mais	fraco	—,	e	ordenou	a	essas	profundezas	tão	prenhes	de	si	própria	que
escurecessem,	que	se	condensassem,	que	gerassem	uma	interface	de	relâmpagos
entre	as	altas	paredes	de	ar.	E	o	céu	do	norte	de	fato	trovejou,	um	trovejar	tão
débil	que	apenas	Carvão	escutou.	As	orelhas	do	cão	se	retesaram	e	giraram	como
se	as	raízes	pregadas	ao	crânio	tivessem	criado	vida.	Mertalia,	Musalia,
Dophalia:	em	altas	sílabas	mudas,	ela	começou	a	invocar	os	nomes	proibidos.
Onemalia,	Zitanseia,	Goldaphaira,	Dedulsaira.	De	maneira	invisível,	Alexandra
foi	ficando	imensa,	e	em	uma	espécie	de	fúria	maternal	começou	a	atrair	para	si
todos	os	montinhos	de	vegetação	daquela	calmaria	de	setembro,	e	seus	olhos	se
abriram	como	se	dessem	uma	ordem.	Uma	rajada	de	ar	frio	soprou	do	norte,	a
aproximação	de	uma	frente	de	ar	que	arrancou	dos	mastros	as	insignificantes
bandeirolas	das	distantes	cabanas	de	banhistas.	Naquela	ponta	da	praia,	onde	a
multidão	de	jovens	nus	era	mais	densa,	um	suspiro	coletivo	de	surpresa	se	fez
ouvir,	seguido	por	gritinhos	de	animação	à	medida	que	o	vento	se	intensificava,	e
o	céu	para	os	lados	de	Providence	se	revelou	possuidor	da	mesma	densidade	de
uma	rocha	translúcida	e	arroxeada.	Gheminaiea,	Gegropheira,	Cedani,	Gilthar;
Godieb.	Na	base	dessa	colina	atmosférica,	cúmulos-nimbos	que	segundos	antes
pareciam	inócuos	como	flores	a	flutuar	em	um	lago	haviam	começado	a	ferver,	e
suas	bordas	brilhavam	feito	mármore	em	contraste	com	o	ar	cada	vez	mais	escuro.
A	própria	visão	foi	alterada,	de	modo	que	a	vegetação	da	praia	e	as	salicórnias
rasteiras	junto	aos	pés	descalços	de	Alexandra,	cheios	de	calos	e	deformados	por
anos	calçando	sapatos	concebidos	pelos	desejos	dos	homens	e	por	noções	cruéis
de	beleza,	pareciam	desenhados	em	negativo	sobre	a	areia	cuja	superfície
marcada	e	cheia	de	furinhos,	subitamente	colorida	de	lilás,	parecia	se	erguer
como	a	pele	de	uma	bolha	a	inflar	com	a	pressão	da	mudança	atmosférica.	Os
jovens	malcriados	tinham	visto	seu	frisbee	lhes	sair	voando	das	mãos	como	uma
pipa,	e	corriam	para	recolher	os	rádios	portáteis	e	packs	de	cerveja,	os	tênis,
jeans	e	camisetas	tie-dye.	A	moça	do	casal	que	havia	cavado	um	buraco	na	areia
para	se	deitar	estava	inconsolável;	ela	soluçava	enquanto	o	rapaz,	com	uma
pressa	atabalhoada,	tentava	prender	novamente	as	alças	soltas	da	parte	de	cima
de	seu	biquíni.	Carvão	latia	para	nada,	em	uma	direção	e	depois	na	outra,	à
medida	que	a	queda	da	pressão	atmosférica	ia	enlouquecendo	seus	ouvidos.
Então	o	imenso	e	impenetrável	oceano,	pouco	tempo	antes	tranquilo	até	Block
Island,	sentiu	a	mudança.	Sua	superfície	se	encrespou	e	se	franziu	nos	pontos	em
que	foi	tocada	pelas	sombras	das	ondas	—	e	esses	pedaços	quase	encolheram,
como	algo	que	se	incendeia.	O	motor	da	lancha	zumbiu	mais	alto.	As	velas	ao	mar
haviam	desaparecido,	e	o	ar	vibrava	com	a	mistura	de	ruídos	dos	motores
auxiliares	resfolegando	rumo	ao	porto.	Um	breve	silêncio	entalou	na	garganta	do
vento,	e	então	a	chuva	começou	a	cair,	grandes	gotas	geladas	que	feriam	como
granizo.	Os	amantes	cor	de	mel	passaram	por	Alexandra,	correndo	em	direção
aos	carros	parados	na	outra	ponta	do	estacionamento,	junto	às	cabanas	de
banhistas.	O	trovão	rugiu	no	alto	da	colinade	ar	escuro,	diante	da	qual	passavam
depressa	pequenos	pontinhos	de	cinza	mais	claro	parecendo	gansos,	oradores
gesticulantes,	novelos	se	desenrolando.	As	grandes	gotas	que	machucavam	se
transformaram	em	uma	chuva	mais	fina,	mais	apertada,	que	embranqueceu	em
listras	como	se	o	vento	as	tocasse	como	as	cordas	de	uma	harpa.	Alexandra	ficou
parada	enquanto	a	água	fria	a	cobria;	bem	lá	no	fundo	de	si,	continuava	a	recitar:
Ezoill,	Musil,	Puri,	Tamen.	A	seus	pés,	Carvão	gania;	ele	havia	feito	o	varal	dar
várias	voltas	em	torno	das	pernas	da	dona.	Seu	corpo,	com	os	pelos	bem
grudados	aos	músculos,	reluzia	e	tremia.	Através	dos	véus	de	chuva,	ela	viu	que	a
praia	estava	deserta.	Desamarrou	a	guia	de	corda	e	soltou	o	cachorro.
Mas	Carvão	continuou	encolhido	junto	a	seus	tornozelos,	alarmado	ao	ver	um
raio	brilhar	uma	vez	e	depois	outra:	um	raio	duplo.	Alexandra	contou	os	segundos
até	o	barulho	do	trovão:	cinco.	Por	um	cálculo	aproximado,	isso	significava	que	a
tempestade	por	ela	conjurada	atingia	uma	área	de	pouco	mais	de	três	quilômetros
de	diâmetro,	considerando	que	aqueles	raios	estavam	no	centro.	O	trovão	rugia	e
praguejava	de	forma	desconexa.	Pequeníssimos	caranguejos	de	areia	sarapintados
começaram	a	emergir	de	suas	tocas	às	dezenas,	e	a	correr	de	lado	em	direção	ao
mar	cheio	de	espuma.	A	cor	de	suas	carapaças	era	tão	semelhante	à	da	areia	que
eles	pareciam	transparentes.	Alexandra	tomou	coragem	e	esmagou	um	deles	com	a
sola	do	pé	descalço.	Sacrifício.	Sempre	é	preciso	haver	sacrifício.	Essa	era	uma
das	regras	da	natureza.	Ela	começou	a	pular	de	caranguejo	em	caranguejo,
esmagando-os.	Da	linha	dos	cabelos	até	o	queixo,	seu	rosto	estava	banhado	de
chuva,	e	por	causa	da	agitação	de	sua	aura	esse	filme	líquido	continha	todas	as
cores	do	arco-íris.	O	relâmpago	não	parava	de	tirar	seu	retrato.	Alexandra	tinha
uma	covinha	no	queixo	e	outra	menor,	quase	imperceptível,	na	ponta	do	nariz;	sua
beleza	austera	vinha	do	candor	das	sobrancelhas	fartas	sob	as	asas	de	pontas
cinzentas	dos	cabelos	afastados	simetricamente	do	rosto	para	formar	a	trança,	e
da	cor	clara	dos	olhos	levemente	protuberantes,	cujas	íris	de	um	cinza	metálico
eram	empurradas	para	as	bordas	como	se	cada	pupila	muito	preta	fosse	um	ímã	ao
contrário.	Seus	lábios	tinham	uma	carnosidade	sisuda	e	cantos	bem	marcados	que
lhes	davam	a	aparência	de	um	sorriso.	Aos	catorze	anos,	ela	já	media	um	metro	e
setenta	e	três,	e	aos	vinte	pesava	cinquenta	e	quatro	quilos	e	meio;	agora	seu	peso
girava	em	torno	de	setenta	e	três	quilos.	Um	dos	aspectos	libertadores	de	se
tornar	uma	bruxa	fora	que	ela	havia	parado	de	se	pesar	o	tempo	todo.
Assim	como	os	caranguejos	eram	transparentes	sobre	a	areia	sarapintada,
Alexandra,	encharcada	até	os	ossos,	teve	a	sensação	de	ser	transparente	para	a
chuva,	de	estar	em	comunhão	com	a	chuva,	de	que	a	temperatura	da	água	e	a	do
seu	sangue	haviam	se	equiparado.	O	céu	acima	do	mar	agora	se	organizara	em
listras	horizontais	embaçadas;	o	trovão	diminuiu	para	se	transformar	em
murmúrio,	e	a	chuva	se	tornou	um	chuvisco	morno.	Aquele	toró	nunca	iria	entrar
nos	registros	meteorológicos.	O	primeiro	caranguejo	que	ela	havia	esmagado
ainda	agitava	as	patas,	como	minúsculas	penas	descoradas	agitadas	por	uma
brisa.	Carvão,	que	finalmente	havia	superado	o	medo,	corria	em	círculos	cada	vez
maiores,	somando	suas	pegadas	de	quadrúpede	aos	desenhos	triangulares	dos	pés
das	gaivotas,	aos	arranhões	mais	delicados	dos	maçaricos,	e	às	linhas	pontilhadas
deixadas	pelos	passos	dos	caranguejos.	Essas	pistas	que	apontavam	para	outras
formas	de	ser	—	ser	um	caranguejo,	mover-se	diagonalmente	nas	pontas	dos	pés
com	os	olhos	na	ponta	de	hastes!	Ser	uma	craca,	e	viver	de	cabeça	para	baixo
dentro	de	um	pequeno	balde	dobrável	jogando	comida	em	direção	à	boca!	—
haviam	sido	furadas	pelas	gotas	de	chuva.	A	areia	encharcada	tinha	a	mesma	cor
do	cimento.	As	roupas	que	ela	vestia,	e	até	mesmo	a	sua	roupa	de	baixo,	estavam
agora	grudadas	à	pele,	dando-lhe	a	sensação	de	ser	uma	estátua	de	Segai,
imaculadamente	branca,	com	todos	os	seus	sinuosos	tubos	e	todos	os	seus	ossos
lambidos	por	uma	espécie	de	bruma.	Alexandra	andou	até	o	final	da	praia	pública
agora	deserta,	foi	até	o	muro	encimado	pelo	arame	farpado	e	voltou.	Chegou	ao
estacionamento	e	recolheu	as	alpargatas	ensopadas	onde	as	havia	deixado,	atrás
de	um	arbusto	de	Ammophila	breviligulata.	As	compridas	folhas	parecidas	com
lanças	da	planta	reluziam,	depois	de	terem	relaxado	as	extremidades	na	chuva.
Ela	abriu	a	porta	do	Subaru	e	virou-se	para	gritar	por	Carvão,	que	havia
sumido	nas	dunas.	“Aqui,	Carvão!”,	cantarolou	aquela	mulher	imponente	e	roliça.
“Aqui,	meu	filhote!	Aqui,	meu	anjo!”	Aos	olhos	dos	jovens	encolhidos	dentro	das
cabanas	de	banhistas	cobertas	por	telhas	cinzentas	e	debaixo	do	toldo	da
barraquinha	de	pizza	(listrada	nas	cores	de	tomate	e	de	queijo),	com	suas	toalhas
encharcadas	e	cheias	de	areia	e	sua	pele	vergonhosamente	arrepiada,	Alexandra
pareceu	milagrosamente	seca,	sem	sequer	um	fio	da	volumosa	trança	fora	do
lugar,	sem	sequer	um	pedacinho	úmido	da	jaqueta	de	brocado	verde.	Foi	esse	tipo
de	impressão	impossível	de	ser	confirmada	que	espalhou	entre	nós,	em	Eastwick,
o	boato	de	bruxaria.
Alexandra	era	artista.	Usando	poucas	ferramentas	além	de	palitos	de	dente	e
uma	faca	rombuda	de	aço	inox,	ela	beliscava	e	apertava	o	barro	para	dar	forma	a
pequenas	esculturas	deitadas	ou	sentadas,	sempre	mulheres,	usando	roupas
chamativas	pintadas	sobre	o	contorno	dos	corpos	nus;	as	esculturas	eram
vendidas	por	quinze	ou	vinte	dólares	em	duas	lojas	da	cidade	chamadas	Yapping
Fox	e	Hungry	Sheep.	Alexandra	não	fazia	ideia	de	quem	as	comprava,	nem	por
quê,	nem	do	motivo	exato	pelo	qual	as	fazia,	nem	quem	lhe	dirigia	a	mão.	O	dom
da	escultura	havia	surgido	junto	com	seus	outros	poderes,	na	época	em	que	Ozzie
se	transformara	em	poeira	colorida.	O	impulso	a	acometera	certo	dia	de	manhã
quando	ela	estava	sentada	à	mesa	da	cozinha,	com	as	crianças	na	escola	e	a	louça
já	lavada.	Nessa	primeira	manhã,	ela	havia	usado	a	massa	de	modelar	de	um	dos
filhos,	mas	depois,	em	termos	de	matéria-prima,	passou	a	depender	de	um	caulim
de	extraordinária	pureza	que	ia	buscar	em	uma	pequena	barreira	perto	de
Coventry,	uma	superfície	escorregadia	de	terra	branca	untuosa	no	quintal	dos
fundos	da	casa	de	uma	viúva	idosa,	atrás	dos	escombros	cheios	de	limo	de	um
velho	barracão	e	do	chassi	de	um	Buick	do	pré-guerra	igualzinho,	por	uma
assustadora	coincidência,	ao	que	outrora	o	pai	de	Alexandra	dirigia	até	Salt	Lake
City,	Denver,	Albuquerque	e	as	cidades	desertas	situadas	entre	elas.	Seu	pai
vendia	uniformes	profissionais,	macacões	e	calças	jeans	antes	de	estas	entrarem
na	moda	—	antes	de	se	tornarem	a	roupa	do	mundo,	o	uniforme	que	apaga	o
passado.	Você	levava	o	seu	próprio	saco	de	aniagem	até	Coventry	e	pagava	à
viúva	doze	dólares	por	saco	de	caulim.	Se	os	sacos	ficassem	pesados	demais,	ela
ajudava	a	carregar;	assim	como	Alexandra,	era	uma	mulher	forte.	Embora	tivesse
pelo	menos	sessenta	e	cinco	anos,	tingia	os	cabelos	de	uma	cor	de	bronze
reluzente	e	usava	terninhos	de	calça	azul-turquesa	ou	cor	de	carmim	tão	justos	que
a	carne	sob	seu	cinto	ficava	espremida,	formando	rolos	parecidos	com	linguiças.
Isso	era	agradável.	Alexandra	lia	nisso	uma	mensagem	para	si	mesma:	envelhecer
pode	ser	algo	alegre,	contanto	que	se	continue	forte.	A	viúva	tinha	uma	risada
sonora	e	usava	grandes	argolas	de	ouro	nas	orelhas,	mantendo	sempre	afastados
os	cabelos	cor	de	cobre	para	exibir	os	brincos.	Um	ou	dois	galos	perambulavam
com	seu	passo	hesitante	e	altivo	pela	grama	alta	do	quintal	mal	cuidado;	a	parte
dos	fundos	da	estreita	casa	de	madeira	da	mulher	havia	descascado	até	expor	a
madeira	cinzenta,	embora	a	parte	da	frente	estivesse	pintada	de	branco.
Alexandra,	com	a	traseira	do	Subaru	vergada	sob	o	peso	da	argila	da	viúva,
sempre	voltava	dessas	visitas	reconfortada	e	animada,	acreditando	que	uma
conspiração	de	mulheres	era	o	que	sustentava	o	mundo.
Suas	esculturas	eram	de	certa	forma	primitivas.	Sukie,	ou	talvez	Jane,	as	havia
apelidadode	“peitudas”	—	roliços	corpos	de	mulher	com	dez	ou	doze
centímetros	de	altura,	muitas	vezes	sem	rosto	nem	pés,	encolhidas	ou	curvadas	em
poses	reclinadas,	e	mais	pesadas	do	que	se	esperava	quando	pegas	na	mão.	As
pessoas	pareciam	achá-las	reconfortantes	e	as	levavam	embora	das	lojas	em	um
fluxo	regular	e	oscilante	que	se	intensificava	no	verão,	mas	perdurava	até	mesmo
em	janeiro.	Alexandra	esculpia	suas	formas	desnudas,	espetando	nelas	um	palito
de	dentes	para	fazer	o	furo	do	umbigo	e	nunca	se	esquecendo	de	marcar	com	um
discreto	traço	a	fenda	da	vulva,	em	protesto	contra	a	falsa	lisura	daquele	pedaço
das	bonecas	com	as	quais	brincara	quando	criança;	depois	pintava	as	roupas,	às
vezes	roupas	de	banho	em	tons	pastel,	outras	vezes	vestidos	incrivelmente	justos
estampados	com	bolinhas,	asteriscos	ou	listras	onduladas	de	um	mar	de	história
em	quadrinhos.	Não	havia	duas	esculturas	iguais,	embora	todas	fossem	irmãs.
Esse	procedimento	era	ditado	pela	sensação	de	que,	assim	como	roupas	eram
vestidas	a	cada	manhã	para	cobrir	nossa	nudez,	da	mesma	forma	elas	deveriam
ser	pintadas,	e	não	esculpidas,	naqueles	corpos	primevos	de	argila	macia	e
arredondada.	Ela	assava	duas	dúzias	de	esculturas	de	cada	vez	em	um	pequeno
forno	de	cerâmica	elétrico	sueco	em	um	quartinho	contíguo	à	cozinha,	um
quartinho	inacabado	mas	com	piso	de	madeira,	ao	contrário	do	cômodo	seguinte,
um	depósito	com	chão	de	terra	batida	onde	eram	guardados	velhos	vasos	de
plantas,	ancinhos,	enxadas,	galochas	e	podões.	Autodidata,	Alexandra	praticava	a
escultura	havia	cinco	anos	—	desde	antes	do	divórcio,	para	o	qual,	assim	como	a
maioria	das	manifestações	do	florescer	de	seu	eu	interior,	esse	ofício	havia
contribuído.	Seus	filhos,	sobretudo	Marcy,	mas	também	Ben	e	o	pequeno	Eric,
detestavam	as	peitudas,	que	consideravam	indecentes,	e	certa	vez,	em	uma	agonia
movida	pela	vergonha,	haviam	esmigalhado	uma	fornada	que	estava	esfriando;
mas	agora	eles	estavam	conformados,	como	se	as	esculturas	fossem	irmãos
defeituosos.	Crianças	são	feitas	de	um	barro	que,	até	certo	ponto,	permanece
maleável,	embora	esgares	irremediáveis	surjam	em	suas	bocas	e	um	verniz	de
distância	endureça	seus	olhares.
Jane	Smart	também	tinha	inclinações	artísticas	—	era	musicista.	Dava	aulas
de	piano	para	fechar	as	contas	no	fim	do	mês,	e	às	vezes	substituía	o	regente	do
coral	nas	igrejas	das	redondezas,	mas	sua	paixão	era	o	violoncelo;	seus	sons
vibrantes	e	melancólicos,	prenhes	com	a	tristeza	do	grão	da	madeira	e	com	a
sombra	generosa	das	árvores,	emanava	em	horas	tardias	e	enluaradas	das	noites
quentes	pela	tela	das	janelas	de	sua	antiga	casa	de	fazenda	que	se	amontoava,
entre	muitas	outras,	nas	ruas	sinuosas	do	empreendimento	residencial	dos	anos
1950	chamado	Cove	Homes.	Seus	vizinhos	nos	outros	terrenos	de	mil	metros
quadrados,	marido	e	mulher,	criança	e	cachorro,	andavam	de	um	lado	para	o
outro,	despertados	pela	música,	e	ponderavam	se	deveriam	ou	não	chamar	a
polícia.	Raramente	o	faziam,	desanimados	e	talvez	intimidados	por	algo	nu,	por
um	esplendor	e	uma	tristeza	contidos	na	música	de	Jane.	Parecia	mais	fácil	voltar
a	dormir,	ninados	pelas	escalas	simultâneas,	primeiro	em	terças,	depois	em
sextas,	dos	études	de	Popper,	ou	então,	vezes	sem	conta,	pelos	quatro	compassos
de	semicolcheias	ligadas	(em	que	o	violoncelo	fala	quase	sozinho)	do	segundo
andante	do	“Quarteto	de	cordas	nº	15	em	lá	menor”,	de	Beethoven.	Jane	não	tinha
jeito	para	jardinagem,	e	o	abandonado	emaranhado	de	rododendros,	hortênsias,
tuias,	bérberis	e	buxinhos	em	volta	dos	alicerces	da	casa	ajudava	a	abafar	o	som
que	saía	pelas	janelas.	Vivia-se	uma	época	de	muitos	direitos	alardeados	e	de
músicas	tocadas	em	público	sem	nenhum	acanhamento,	em	que	até	o
supermercado	tocava	sua	versão	muzak	de	Satisfaction	e	I	got	you,	babe,	e
sempre	que	dois	ou	três	adolescentes	se	reuniam	o	espírito	de	Woodstock	era
celebrado.	Não	era	o	volume	da	paixão	de	Jane	que	incomodava,	e	sim	seu
timbre,	em	que	as	notas	muitas	vezes	hesitavam	mas	acabavam	soando	no	mesmo
tom	grave	e	rigoroso.	Alexandra	associava	essas	notas	sombrias	às	escuras
sobrancelhas	de	Jane,	e	à	insistência	arrebatada	em	sua	voz	para	obter	uma
resposta,	para	escutar	uma	fórmula	capaz	de	encaixar	a	vida	nos	eixos	e	capturar-
lhe	o	segredo,	em	vez	de	seguir	vagando,	como	fazia	Alexandra,	na	crença	de	que
o	segredo	era	onipresente,	um	elemento	sem	cheiro	que	pairava	no	ar	e	servia	de
alimento	aos	pássaros	e	às	plantas	que	o	vento	fazia	dançar.
Sukie	não	tinha	nada	que	se	atrevesse	a	chamar	de	talento	artístico,	mas
adorava	a	existência	social,	e	havia	sido	forçada	pelas	circunstâncias	que
acompanham	o	divórcio	a	escrever	para	o	semanário	de	Eastwick,	chamado
Word.	Enquanto	subia	e	descia	a	Dock	Street	com	seu	passo	célere	e	cadenciado,
os	ouvidos	atentos	a	fofocas	e	refletindo	sobre	a	prosperidade	das	lojas,	as
chamativas	esculturas	de	Alexandra	na	vitrine	da	Yapping	Fox	ou	um	cartaz	na
loja	de	ferragens	dos	armênios,	anunciando	um	concerto	de	música	de	câmara	que
iria	acontecer	na	igreja	unitarista	e	contava	com	a	participação	de	Jane	Smart,
violoncelo,	lhe	causavam	a	mesma	emoção	que	o	cintilar	de	um	vidro	do	mar	no
meio	da	areia	da	praia	ou	uma	moeda	de	vinte	e	cinco	cents	encontrada	reluzindo
na	calçada	suja	—	um	pequeno	código	soterrado	na	bagunça	da	existência
cotidiana,	um	lampejo	de	comunicação	entre	o	mundo	interior	e	o	exterior.	Ela
adorava	as	duas	amigas,	e	esse	sentimento	era	recíproco.	Nesse	dia,	depois	de
datilografar	seu	relatório	sobre	as	reuniões	da	véspera	do	Comitê	Fiscal	(uma
chatice:	as	mesmas	velhas	viúvas	sem	terras	implorando	por	descontos)	e	do
Comitê	de	Planejamento	(sem	quorum:	Herbie	Prinz	estava	nas	Bermudas)	na
prefeitura,	Sukie	estava	ansiosa	por	receber	Alexandra	e	Jane	em	casa	para	um
drinque.	As	três	geralmente	se	encontravam	às	quintas-feiras,	na	casa	de	uma
delas.	Sukie	morava	no	centro	da	cidade,	o	que	era	prático	para	o	trabalho,
embora	sua	casinha	quadrada	de	dois	andares	da	década	de	1760	praticamente	em
miniatura,	localizada	em	uma	espécie	de	bequinho	em	curva	que	saía	da	Oak
Street	e	se	chamava	Hemlock	Lane,	sequer	se	comparasse	à	espaçosa	casa	de
fazenda	—	seis	dormitórios,	doze	hectares,	uma	caminhonete,	um	carro	esporte,
um	jipe,	quatro	cachorros	—	em	que	havia	morado	com	Monty.	Mas	as	amigas
faziam	isso	parecer	engraçado,	uma	espécie	de	farsa	ou	interlúdio	mágico;	em
geral,	para	seus	encontros,	as	três	vestiam	alguma	fantasia	estranha	e	colorida.
Usando	um	xale	parse	bordado	a	fio	de	ouro,	Alexandra	entrou,	abaixando	a
cabeça,	pela	porta	lateral	da	cozinha;	nas	mãos,	como	dois	pesos	de	ginástica	ou
indícios	manchados	de	sangue,	trazia	dois	vidros	de	seu	molho	de	tomate
apimentado	com	manjericão.
As	bruxas	se	cumprimentaram	com	dois	beijos	no	rosto.
“Tome,	querida;	sei	que	você	prefere	sabores	mais	secos	e	acastanhados,
mas...”,	disse	Alexandra	naquela	voz	de	contralto	animada	que	saía	bem	lá	do
fundo	da	garganta	como	uma	russa	dizendo	byelo.	Sukie	pegou	os	dois	presentes
gêmeos	com	as	próprias	mãos,	mais	esguias,	cujas	costas	frágeis	eram	cobertas
de	sardas	claras.	“Este	ano,	por	algum	motivo,	os	tomates	brotaram	loucamente”,
prosseguiu	Alexandra.	“Enchi	uns	cem	vidros	desse	molho,	e	então,	outro	dia,	saí
para	o	jardim	e	gritei:	‘Fodam-se,	o	resto	de	vocês	pode	apodrecer!’.”
“Eu	me	lembro	do	ano	das	abobrinhas”,	disse	Sukie,	pousando	os	vidros
obedientemente	em	uma	prateleira	do	armário	da	qual	jamais	os	tiraria.	Como
tinha	dito	Alexandra,	Sukie	adorava	coisas	secas	de	sabor	acastanhado:	aipo,
castanha	de	caju,	pilaf,	palitinhos	salgados	cobertos	de	sal	grosso,	pequenos
petiscos	do	mesmo	tipo	dos	que	faziam	seus	ancestrais	macacos	sobreviverem	nas
árvores.	Quando	estava	sozinha,	ela	nunca	se	sentava	para	comer,	simplesmente
ficava	em	pé	mergulhando	biscoitos	salgados	em	um	pouco	de	iogurte	junto	à
pia.da	cozinha,	ou	então	levava	um	pacote	de	salgadinhos	de	cebola	de	setenta	e
nove	cents	para	o	quartinho	de	televisão	junto	com	uma	dose	caubói	de	bourbon.
“Eu	fiz	de	tudo”,	disse	ela	a	Alexandra,	saboreandoaquele	exagero	com	as
mãos	irrequietas	a	se	agitar	na	periferia	do	próprio	campo	de	visão.	“Pão	de
abobrinha,	sopa	de	abobrinha,	salada,	fritada,	abobrinha	ao	forno	recheada	com
carne	moída,	abobrinha	fatiada	e	frita,	abobrinha	cortada	em	palitos	para	passar
no	molho,	foi	uma	loucura.	Cheguei	até	a	jogar	algumas	dentro	do	liquidificador	e
dizer	às	crianças	para	passar	no	pão	em	vez	de	manteiga	de	amendoim.	Monty
ficou	desesperado;	disse	que	até	o	cocô	dele	estava	com	cheiro	de	abobrinha.”
Embora	essa	lembrança	fosse	uma	referência	implícita	e	prazerosa	a	seus	dias
de	casada	e	de	fartura,	mencionar	um	ex-marido	era	uma	leve	quebra	de
protocolo,	e	acabou	com	a	vontade	de	rir	de	Alexandra.	Sukie	era	a	mais
recentemente	divorciada	e	a	mais	jovem	das	três.	Era	ruiva	e	magra,	com	os
cabelos	soltos	nas	costas	e	cortados	retos,	e	os	braços	compridos	cheios	de
sardas	da	mesma	cor	de	cedro	das	lascas	de	um	lápis	recém-apontado.	Usava
pulseiras	de	cobre	e	um	pentagrama	pendurado	em	uma	correntinha	fina	e	barata
em	volta	do	pescoço.	O	que	Alexandra,	com	seus	traços	pesados,	helênicos,	de
covinhas	duplas,	mais	adorava	na	aparência	da	amiga	era	seu	alegre	maxilar
protuberante	de	primata:	os	dentes	grandes	de	Sukie	projetavam	seu	perfil	para	a
frente	abaixo	do	nariz	pequenino,	criando	uma	curva,	uma	saliência	sobretudo	do
lábio	superior,	que	era	mais	comprido	e	tinha	um	formato	mais	complexo	do	que	o
inferior,	com	um	volume	de	ambos	os	lados	que	fazia	até	mesmo	seus	silêncios
parecerem	travessos,	como	se	ela	estivesse	se	divertindo	o	tempo	todo.	Seus
olhos	eram	cor	de	avelã,	redondos	e	bem	próximos	um	do	outro.	Sukie	se	movia
com	desenvoltura	em	sua	cozinha	apertada,	cheia	de	objetos	abarrotados	e	com
uma	pia	manchada	e	minúscula,	e	por	baixo	de	tudo	um	cheiro	de	pobreza
remanescente	de	todas	as	gerações	de	Eastwick	que	tinham	morado	ali	e	imposto
à	casa	suas	reformas	improvisadas	nos	séculos	em	que	antigas	residências
rústicas	como	aquela	não	eram	consideradas	charmosas.	Com	uma	das	mãos,
Sukie	pegou	em	uma	prateleira	do	armário	uma	lata	de	amendoim	coberto	de
açúcar,	perversamente	doce,	e	com	a	outra	retirou	do	escorredor	forrado	de
borracha	da	pia	uma	tigelinha	estampada	com	ramos	de	salsa	e	com	uma	borda	de
cobre	para	servi-los.	Com	um	ruído	de	caixas	sendo	abertas,	dispôs	um	punhado
de	biscoitos	salgados	sobre	uma	travessa	em	volta	de	uma	fatia	de	queijo	gouda
com	casca	vermelha	e	de	um	pouco	de	patê	comprado	no	supermercado	e	ainda
dentro	da	latinha	baixa	com	o	rótulo	de	um	ganso	sorridente.	A	travessa	era	feita
de	uma	cerâmica	grosseira,	amarelo-alaranjada,	e	havia	sido	gravada	e
vitrificada	com	um	desenho	semelhante	a	um	caranguejo.	O	signo	de	Câncer.
Alexandra	temia	o	câncer,	e	via	seu	emblema	por	toda	parte	na	natureza	—	nos
arbustos	de	mirtilo	dos	locais	malcuidados	junto	às	rochas	e	brejos,	nas	frutinhas
que	amadureciam	na	tuia	caída	e	decomposta	do	lado	de	fora	das	janelas	de	sua
cozinha,	nas	formigas	que	carregavam	grãos	parecidos	com	colinas	cônicas	nas
rachaduras	do	asfalto	de	sua	entrada	de	garagem,	em	todo	tipo	de	multiplicação
cega	e	irresistível.
“O	de	sempre?”,	perguntou	Sukie	com	certa	ternura,	pois	Alexandra,	como	se
fosse	mais	velha	do	que	na	realidade	era,	havia	deixado	o	corpo	cair	com	um
suspiro,	sem	tirar	o	xale,	na	única	concavidade	convidativa	da	cozinha:	uma
antiga	poltrona	azul	de	reclinar	feia	demais	para	ser	posta	em	qualquer	outro
lugar;	o	enchimento	vazava	pelas	costuras,	e	nos	cantos	dos	braços	o	atrito	de
muitos	pulsos	havia	deixado	uma	mancha	cinzenta	e	brilhante.
“Acho	que	ainda	está	na	hora	de	beber	água	tônica”,	decidiu	Alexandra,	pois
a	tranquilidade	que	viera	junto	com	sua	tempestade	de	poucos	dias	antes	ainda	a
acompanhava.	“Como	anda	seu	estoque	de	vodca?”
Alguém	certa	vez	lhe	dissera	que	a	vodca	não	só	engordava	menos	como	era
menos	irritante	para	a	parede	do	estômago	do	que	o	gim.	A	irritação,	tanto
psíquica	quanto	física,	estava	na	origem	do	câncer.	Têm	câncer	aqueles	que	se
permitem	estar	abertos	à	ideia	do	câncer;	basta	uma	única	célula	enlouquecer.	A
natureza	está	sempre	no	aguardo,	esperando	você	perder	a	fé	para	poder	desferir
o	golpe	fatal.
Sukie	abriu	ainda	mais	o	sorriso.
“Eu	sabia	que	você	viria.”	Ela	exibiu	uma	garrafa	novinha	em	folha	de	vodca
Gordon’s,	com	a	cabeça	cortada	de	javali	a	encará-las	do	rótulo	com	seu	olho	cor
de	laranja	e	a	língua	vermelha	presa	entre	os	dentes	e	uma	presa	curva.
Alexandra	sorriu	ao	ver	aquele	monstro	simpático.
“Bastante	tônica,	por	favooor.	Quantas	calorias!”
A	garrafa	de	água	tônica	borbulhou	nas	mãos	de	Sukie	como	em	uma
reprimenda.	Talvez	as	células	cancerosas	fossem	mais	parecidas	com	bolhas	de
gás	e	se	infiltrassem	na	corrente	sanguínea,	pensou	Alexandra.	Ela	precisava
parar	de	pensar	naquilo.
“Onde	está	Jane?”,	perguntou.
“Ela	disse	que	iria	chegar	meio	tarde.	Está	ensaiando	para	aquele	concerto	na
igreja	unitarista.”
“Com	aquele	Neff	horroroso”,	comentou	Alexandra.
“Com	aquele	Neff	horroroso”,	repetiu	Sukie,	lambendo	a	água	tônica	dos
dedos	e	procurando	um	limão	dentro	da	geladeira	vazia.
Raymond	Neff,	homem	gordote	e	efeminado	que	ainda	assim	havia	conseguido
fazer	cinco	filhos	na	esposa	alemã	desleixada,	pálida	e	de	óculos,	lecionava
música	na	escola	de	ensino	médio.	Como	a	maioria	dos	bons	professores,	era	um
tirano,	melífluo	e	insistente;	com	seus	modos	sebosos,	queria	ir	para	a	cama	com
todo	mundo.	Atualmente,	quem	estava	dormindo	com	ele	era	Jane.	Alexandra
havia	sucumbido	algumas	vezes	no	passado,	mas	o	acontecimento	tivera	tão
pouco	impacto	sobre	ela	que	talvez	Sukie	sequer	se	desse	conta	de	suas
vibrações,	de	sua	lembrança.	A	própria	Sukie	parecia	casta	em	relação	a	Neff,
mas,	afinal	de	contas,	ela	estava	disponível	havia	menos	tempo.	Ser	mulher	e
divorciada	em	uma	cidade	pequena	era	mais	ou	menos	como	jogar	Banco
Imobiliário;	depois	de	algum	tempo,	você	acaba	caindo	em	todas	as	casas.	As
duas	amigas	queriam	resgatar	Jane	que,	em	uma	espécie	de	pressa	indignada,	não
parava	de	se	vender	barato.	Quem	lhes	desagradava	era	a	detestável	esposa,	com
seus	cabelos	curtos	que	pareciam	ter	sido	cortados	com	um	podão	de	jardim,	suas
expressões	erradas	pronunciadas	com	esmero	e	seu	jeito	concentrado	e	de	olhos
arregalados	de	escutar	cada	palavra	do	que	os	outros	diziam.	Quando	você	vai
para	a	cama	com	um	homem	casado,	em	certo	sentido	dorme	com	a	mulher	dele
também,	então	esta	não	deveria	ser	de	todo	constrangedora.
“Jane	tem	possibilidades	tão	maravilhosas”,	disse	Sukie	de	maneira	um	tanto
automática,	enquanto,	com	movimentos	furiosos	dignos	de	um	macaco,	lutava	com
a	máquina	de	gelo	da	geladeira	tentando	produzir	mais	alguns	cubos.	Uma	bruxa	é
capaz	de	congelar	água	só	com	o	olhar,	mas	às	vezes	o	problema	é	descongelar.
Dos	quatro	cachorros	que	ela	e	Monty	criavam	nos	dias	de	fartura,	dois	eram
esguios	weimaraners	de	pelo	marrom-prateado,	dos	quais	ela	havia	ficado	com
um,	chamado	Hank;	este	agora	estava	encostado	em	sua	perna	na	esperança	de	que
ela	estivesse	se	digladiando	com	a	geladeira	por	sua	causa.
“Mas	ela	se	desperdiça”,	disse	Alexandra,	completando	a	frase.	“Se
desperdiça	no	sentido	antiquado	da	palavra”,	acrescentou,	pois	esse	diálogo
estava	ocorrendo	durante	a	Guerra	do	Vietnã	e	a	guerra	tinha	dado	à	palavra	um
novo	e	estranho	significado.	“Se	ela	leva	mesmo	a	música	a	sério,	deveria	ir	tocar
em	algum	lugar	sério,	em	alguma	cidade.	Que	desperdício,	uma	pessoa	que
estudou	no	conservatório	tocar	para	um	bando	de	peruas	velhas	e	surdas	em	uma
igreja	caindo	aos	pedaços.”
“Ela	se	sente	segura	aqui”,	disse	Sukie,	como	se	o	mesmo	não	se	aplicasse	a
elas	duas.
“Aquela	mulher	sequer	toma	banho,	já	reparou	no	cheiro	que	ela	tem?”,
indagou	Alexandra,	referindo-se	agora	não	a	Jane,	mas	a	Greta	Neff,	graças	a	uma
sucessão	de	associações	que	Sukie	não	achou	difícil	acompanhar,	pois	seus	dois
corações	estavam	totalmente	alinhados	na	mesma	frequência.
“E	aqueles	óculos	de	vovó!”,	concordou	Sukie.	“Parece	o	John	Lennon.”	Ela
fez	uma	espécie	de	careta	de	John	Lennon,	com	um	ar	solene,	olhos	tristese
lábios	finos.	“Atcho	que	podemos	beberr	nossas	—	sprechen	Sie	wass?	—
bebidaz	agorra.”	A	boca	de	Greta	Neff	produzia	um	horrível	ditongo	nada	norte-
americano,	uma	espécie	de	distorção	da	vogal	contra	seu	palato.
Tagarelando,	as	duas	levaram	as	bebidas	para	o	“quartinho”,	um	pequeno
cômodo	forrado	de	papel	de	parede	descascado	com	uma	estampa	chamativa	e
desbotada	de	trepadeiras	e	cestos	de	frutas,	e	com	um	teto	de	gesso	abaulado	que
exibia	uma	estranha	inclinação	porque	o	quartinho	ficava	meio	encaixado	debaixo
da	escada	que	subia	para	uma	espécie	de	sótão	no	primeiro	andar.	A	única	janela
do	cômodo,	alta	demais	para	uma	mulher	conseguir	olhar	para	fora	sem	estar
trepada	em	um	banquinho,	tinha	vidraças	em	forma	de	losango	montadas	em	uma
armação	de	chumbo,	feitas	de	um	vidro	grosso	cheio	de	bolhas	e	deformado	como
fundos	de	garrafa.
“Um	cheiro	de	repolho”,	especificou	Alexandra,	deixando-se	cair	com	seu
copo	alto	e	prateado	de	bebida	sobre	um	pequeno	sofá	forrado	com	um	tecido
bordado	de	berrantes	arabescos	puídos,	com	trepadeiras	estilizadas	se
desfazendo.	“Ele	tem	esse	cheiro	na	roupa”,	disse	ela,	pensando	ao	mesmo	tempo
que	isso	lembrava	um	pouco	Monty	e	as	abobrinhas,	e	que	ela	obviamente	estava
compartilhando	com	Sukie	esse	detalhe	íntimo	para	dar	a	entender	que	tinha	ido
para	a	cama	com	Neff.	Por	quê?	Não	era	motivo	nenhum	para	se	vangloriar.	Mas,
pensando	bem,	era,	sim.	Como	ele	tinha	suado!	Aliás,	ela	fora	para	a	cama	com
Monty,	também,	e	nunca	sentira	cheiro	de	abobrinha.	Um	dos	aspectos	fascinantes
de	se	dormir	com	o	marido	alheio	era	a	visão	que	este	proporcionava	da	própria
mulher:	ele	a	via	de	um	jeito	que	ninguém	mais	via.	Neff	via	a	pobre	e	feiosa
Greta	como	uma	espécie	de	Heidi	esquisita	e	cheia	de	fitas,	um	adorável	galhinho
de	edelvais	que	ele	havia	resgatado	de	um	lugar	perigosamente	alto	e	romântico
(os	dois	haviam	se	conhecido	em	uma	cervejaria	de	Frankfurt	quando	ele	estava
servindo	na	Alemanha	Ocidental	em	vez	de	ir	combater	na	Coreia),	e	Monty...
Alexandra	fitou	Sukie	com	os	olhos	apertados,	tentando	se	lembrar	do	que
Monty	tinha	dito	a	seu	respeito.	Ele	pouco	dissera,	projeto	de	cavalheiro	que	era.
Mas	certa	vez	havia	deixado	escapar,	depois	de	chegar	à	cama	de	Alexandra
vindo	de	algum	tipo	de	encontro	desagradável	no	banco,	e	ainda	preocupado,	as
seguintes	palavras:
“Ela	é	uma	garota	encantadora,	mas	de	certa	forma	não	dá	sorte.	Não	dá	sorte
para	os	outros,	quer	dizer.	Acho	que	para	si	mesma	ela	até	que	dá	bastante	sorte.”
E	era	verdade:	Monty	havia	perdido	boa	parte	do	dinheiro	de	sua	família
enquanto	estivera	casado	com	Sukie,	o	que	todos	haviam	atribuído	simplesmente
à	sua	própria	e	pacata	estupidez.	Ele	nunca	havia	suado	a	camisa.	Sofria	daquela
deficiência	hormonal	dos	bem-nascidos:	uma	incapacidade	de	se	relacionar	com
a	perspectiva	de	um	trabalho	árduo.	Seu	corpo	era	quase	imberbe,	com	as
nádegas	macias	de	uma	mulher.
“Greta	deve	ser	ótima	de	cama”,	ia	dizendo	Sukie.	“Todos	aqueles	Kinder.
Fünf	até	agora.”
Neff	havia	revelado	a	Alexandra	que	Greta	era	ardente	mas	exaustiva,	que
demorava	muito	para	gozar	mas	estava	sempre	decidida	a	fazê-lo.	Ela	daria	uma
péssima	bruxa:	aqueles	alemães	assassinos.
“Precisamos	ser	simpáticas	com	ela”,	disse	Alexandra,	voltando	ao	assunto
de	Jane.	“Quando	falamos	no	telefone	ontem,	fiquei	impressionada	ao	ver	como
ela	estava	brava.	Essa	mulher	está	em	chamas.”
Sukie	relanceou	os	olhos	para	a	amiga,	pois	o	comentário	havia	soado
ligeiramente	em	falso.	Alguma	outra	história	havia	começado	para	Alexandra,
algum	outro	homem.	Na	fração	de	segundo	que	durou	o	olhar	de	Sukie,	Hank	usou
a	língua	pendente	de	weimaraner	cinza	para	varrer	dois	biscoitos	salgados	da
travessa	de	caranguejo,	que	ela	havia	posto	sobre	um	baú	de	pinho	muito	marcado
transformado	em	mesa	de	centro	por	um	antiquário.	Sukie	adorava	suas	coisas
velhas	e	gastas;	havia	nelas	uma	espécie	de	viço,	como	uma	fantasia	de	farrapos
vestida	pela	soprano	no	segundo	ato	da	ópera.	A	língua	de	Elank	estava	voltando
pela	segunda	vez	para	arrebanhar	o	queijo	quando	Sukie	viu	o	movimento	com	o
canto	do	olho	e	deu-lhe	um	tapa	no	focinho;	o	nariz	do	cão	era	borrachudo,	uma
borracha	dura	como	pneus	de	automóvel,	de	modo	que	o	tapa	machucou	seus
dedos.
“Ah,	seu	sem-vergonha”,	disse	ela	ao	cachorro,	e	então	se	dirigiu	à	amiga.
“Mais	brava	do	que	as	outras?”
As	outras	eram	elas	duas.	Sukie	deu	um	gole	no	bourbon	puro.	Ela	bebia
uísque	no	verão	e	no	inverno,	e	o	motivo,	do	qual	já	havia	se	esquecido,	era	que
um	namorado	em	Cornell	certa	vez	lhe	dissera	que	a	cor	da	bebida	realçava	os
pontinhos	dourados	de	seus	olhos	verdes.	Pelo	mesmo	motivo	fútil,	ela	tendia	a
usar	roupas	em	tons	de	marrom	e	feitas	de	camurça,	por	causa	de	seu	brilho
animal.
“Ah,	sim.	Nós	duas	estamos	ótimas”,	respondeu	a	mulher	mais	corpulenta	e
mais	velha,	com	a	mente	a	divagar	dessa	ironia	na	direção	do	assunto	de	sua
conversa	com	Jane:	o	recém-chegado	à	cidade	que	havia	se	mudado	para	a
mansão	Lenox.	No	entanto,	mesmo	ao	divagar,	sua	mente,	qual	um	passageiro
dentro	de	um	avião	que,	em	meio	à	sensação	de	perigo	de	vida	provocada	pela
decolagem,	olha	para	baixo	e	fica	maravilhado	com	a	precisão	e	a	glória
reluzentes	da	Terra	(as	casas	com	telhados	e	chaminés	tão	definidos,	tão
benfeitos,	e	os	lagos	parecendo	verdadeiros	espelhos	como	nos	jardins	de	Natal
que	nossos	pais	haviam	arrumado	enquanto	dormíamos;	era	tudo	verdade,	e	até	os
mapas	são	verdade!),	reparou	em	como	Sukie	era	bonita,	com	má	sorte	e	tudo,
com	seu	cabelo	chamativo	todo	despenteado	e	até	mesmo	os	cílios	parecendo	um
pouco	desgrenhados	depois	de	um	dia	inteiro	datilografando	e	procurando	a
palavra	certa	sob	as	luzes	ofuscantes,	e	o	corpo	tão	ereto	e	esguio	vestido	com	o
suéter	verde-claro	e	a	saia	escura	de	camurça,	a	barriga	lisa,	os	seios	empinados
e	altos,	as	nádegas	firmes,	e	no	rosto	insolente	aquela	boca	de	lábios	carnudos	tão
travessa,	generosa,	atrevida.
“Ah,	eu	ouvi	falar	no	tal	homem!”,	exclamou	ela	depois	de	ler	os	pensamentos
de	Alexandra.	“Tenho	milhares	de	coisas	para	contar,	mas	queria	esperar	Jane
chegar.”
“Eu	posso	esperar”,	disse	Alexandra	subitamente	ressentida,	como	se	de
repente	uma	corrente	de	ar	frio	a	houvesse	atingido,	ar	frio	representado	por
aquele	homem	e	pelo	lugar	que	ele	ocupava	em	sua	mente.	“Essa	saia	é	nova?”
Ela	teve	vontade	de	tocar	o	pano,	de	acariciá-lo,	de	sentir	sua	textura	macia	e
a	coxa	firme	e	esbelta	que	ele	cobria.
“Ressuscitei	do	armário	para	o	outono”,	respondeu	Sukie.	“Na	verdade	ela	é
comprida	demais,	do	jeito	que	as	saias	estão	hoje	em	dia.”
A	campainha	da	cozinha	tocou:	um	som	engasgado,	entrecortado.
“Essa	fiação	qualquer	dia	ainda	vai	pôr	fogo	na	casa”,	profetizou	Sukie
enquanto	saía	correndo	do	quartinho.	Jane	já	havia	entrado.	Estava	pálida,	e	seu
rosto	contraído	de	olhos	acesos	estava	sobrecarregado	por	uma	volumosa	boina
molenga	cujo	quadriculado	berrante	combinava	com	o	do	cachecol.	Ela	também
estava	usando	meias	caneladas	até	os	joelhos.	Jane	não	era	fisicamente	radiante
como	Sukie,	e	seu	corpo	todo	apresentava	pequenas	assimetrias,	mas	mesmo
assim	ela	irradiava	uma	atração	comparável	à	luz	emitida	por	um	filamento
retorcido.	Seus	cabelos	eram	escuros	e	sua	boca,	pequenina,	formal,	decidida.
Ela	vinha	de	Boston,	e	isso	lhe	dava	uma	característica	que	era	impossível	não
notar.
“Aquele	Neff	é	mesmo	um	cretino”,	começou	ela	depois	de	pigarrear.	“Ele
nos	fez	tocar	o	Haydn	mil	vezes.	Disse	que	a	minha	entonação	estava	afetada.
Afetada.	Eu	comecei	a	chorar	e	o	chamei	de	machista	nojento.”	Ela	escutou	as
próprias	palavras	e	não	conseguiu	resistir	ao	impulso	de	fazer	uma	brincadeira.
“Devia	ter	chamado	de	macho	sem	jeito,	isso	sim.”
“Eles	não	conseguem	evitar”,	disse	Sukie	em	tom	casual.	“E	só	sua	forma	de
pedir	mais	amor.	Lexa	está	tomando	seu	drinque	dietético	de	sempre,	vodca	com
tônica.	Eu	estou	mergulhada	cada	vez	mais	fundo	no	bourbon.”
“Eu	não	deveria	fazer	isso,	mas	estou	tão	magoada	que	vou	ser	uma	menina
má	só	desta	vez	e	pedir	um	martíni.”
“Ah,	meu	bem.	Acho	que	estousem	vermute	em	casa.”
“Não	tem	problema,	meu	anjo.	Basta	me	servir	um	gim	com	gelo	em	um	copo
de	vinho.	Você	por	acaso	não	teria	um	pouquinho	de	raspas	de	limão?”
A	geladeira	de	Sukie,	repleta	de	gelo,	iogurte	e	aipo,	não	tinha	muita	coisa
além	disso.	Ela	sempre	almoçava	na	lanchonete	Nemo’s	no	centro	da	cidade,	a
três	portas	da	redação	do	jornal,	depois	da	loja	de	molduras,	do	barbeiro	e	da
sala	de	leitura	da	Ciência	Cristã,	e	havia	adquirido	o	hábito	de	fazer	ali	também
sua	refeição	da	noite	por	causa	das	fofocas	que	escutava	no	burburinho	da	vida	de
Eastwick	que	a	cercava	na	Nemo’s.	O	pessoal	das	antigas	da	cidade	se	reunia	ali,
policiais	e	funcionários	da	rodovia,	pescadores	fora	de	temporada	e	homens	de
negócios	momentaneamente	falidos.
“Parece	que	também	não	tenho	nenhuma	laranja”,	disse	ela,	abrindo	as	duas
gavetas	de	verduras	de	metal	verde	grudento.	“Mas	comprei	uns	pêssegos	na
barraquinha	da	beira	da	rodovia	4.”
“Terei	eu	a	coragem	de	um	pêssego	provar?”,	entoou	Jane,	citando	T.	S.
Eliot.	“Vestirei	uma	calça	de	flanela	branca	e	irei	à	praia	caminhar.”	Sukie	fez
uma	careta	enquanto	observava	as	mãos	agitadas	da	outra	mulher,	uma	comprida	e
com	tendões	salientes	de	tanto	dedilhar	as	cordas,	a	outra	meio	quadrada	e	frouxa
de	tanto	segurar	o	arco,	usarem	um	ralador	de	cenoura	cego	para	cavoucar	a	casca
rosada	na	parte	mais	madura	do	suculento	pêssego	amarelo.	Jane	deixou	cair
dentro	do	copo	a	raspa	cor-de-rosa;	um	silêncio	sagrado,	segredo	de	qualquer
receita,	amplificou	o	pequeno	plof.	“Não	posso	começar	a	tomar	gim	puro	tão
cedo	na	vida”,	anunciou	Jane	com	uma	satisfação	puritana,	parecendo	mesmo
assim	agitada	e	impaciente.	Pôs-se	a	caminhar	em	direção	ao	quartinho	com
aquele	seu	andar	veloz	e	rígido.
Sentindo-se	culpada,	Alexandra	estendeu	a	mão	para	desligar	a	TV,	na	qual	o
presidente	dos	Estados	Unidos,	homem	lúgubre	de	maxilar	cinzento	e	olhar
contrito	e	desonesto,	estava	no	meio	de	um	pronunciamento	de	grande	importância
para	a	nação.
“Oi,	coisa	mais	linda”,	entoou	Jane	com	uma	voz	um	pouco	alta	para	o
pequeno	espaço	de	teto	oblíquo.	“Não	precisa	se	levantar,	estou	vendo	que	já	está
toda	acomodada.	Mas	me	diga	uma	coisa...	aquela	tempestade	outro	dia	foi	sua?”
A	casca	de	pêssego	dentro	do	cone	invertido	que	continha	sua	bebida	parecia
um	pedacinho	brilhante	de	carne	doente	conservado	em	álcool.
“Depois	de	conversar	com	você,	eu	fui	à	praia”,	confessou	Alexandra.
“Queria	ver	se	aquele	tal	homem	já	estava	na	casa	dos	Lenox.”
“Eu	achei	mesmo	que	tinha	deixado	você	perturbada,	pobrezinha”,	disse	Jane.
“E	ele	estava?”
“Tinha	fumaça	saindo	pela	chaminé.	Não	cheguei	a	me	aproximar	com	o
carro.”
“Pois	deveria,	e	deveria	ter	dito	que	era	da	Comissão	dos	Charcos”,	interveio
Sukie.	“O	boato	que	anda	correndo	pela	cidade	é	que	ele	quer	construir	um	cais	e
aterrar	um	trecho	grande	o	bastante	da	parte	de	trás	da	ilha	para	construir	uma
quadra	de	tênis.”
“Isso	nunca	vai	ser	aprovado”,	disse	Alexandra	a	Sukie	com	uma	voz
preguiçosa.	“E	lá	que	as	garças-brancas	fazem	seus	ninhos.”
“Não	tenha	tanta	certeza”,	foi	a	resposta.	“Aquele	imóvel	não	paga	nenhum
imposto	à	prefeitura	há	muitos	anos.	Se	alguém	saldar	a	dívida,	os	representantes
são	capazes	de	expulsar	várias	garças.”
“Ah,	mas	que	delícia	de	encontro!”,	exclamou	Jane,	um	tanto	desesperada,
sentindo-se	ignorada.	Os	quatro	olhos	das	amigas	se	fixaram	nela,	e	ela	teve	de
improvisar.	“Greta	chegou	à	igreja	logo	depois	que	ele	chamou	meu	Haydn	de
afetado,	e	riu”,	disse.
Sukie	imitou	uma	risada	alemã.
“Ho,	ho,	ho.”
“Será	que	eles	ainda	trepam?”,	perguntou-se	Alexandra	em	voz	alta,	sentindo-
se	à	vontade	entre	as	amigas	e	deixando	a	mente	divagar	e	coletar	imagens	da
natureza.	“Como	será	que	ele	aguenta?	Deve	ser	igual	a	um	chucrute	com	tesão.”
“Não”,	retrucou	Jane,	firme.	“Deve	ser	igual	a...	como	é	mesmo	aquele	troço
branco	de	que	eles	tanto	gostam?	Sauerbraten.”
“E	marinado”,	disse	Alexandra.	“Marinado	em	vinagre	com	alho,	cebola	e
louro.	E	pimenta	em	grão,	acho.”
“E	sobre	esse	tipo	de	coisa	que	ele	conversa	com	você?”,	perguntou	Sukie	a
Jane,	irônica.
“Nós	nunca	falamos	sobre	isso,	nem	nos	momentos	mais	íntimos”,	disse	Jane
com	afetação.	“A	única	coisa	que	ele	jamais	me	confidenciou	sobre	o	assunto	foi
que	ela	precisa	trepar	uma	vez	por	semana,	senão	começa	a	jogar	coisas.”
“Um	poltergeist”,	comentou	Sukie,	encantada.	“Uma	polterfrau.”
“Sério,	vocês	têm	razão”,	disse	Jane,	sem	conseguir	ver	graça	nenhuma	na
piada.	“Aquela	mulher	é	mesmo	um	horror.	Tão	pedante;	tão	arrogante;	tão
nazista.	Coitado	do	Ray,	ele	é	o	único	a	não	ver	isso.”
“Fico	me	perguntando	o	quanto	ela	sabe”,	ponderou	Alexandra.
“Ela	não	quer	saber”,	disse	Jane,	enfatizando	a	afirmação	de	modo	que	o	erre
da	última	palavra	se	arrastou.	“Se	soubesse,	talvez	tivesse	que	tomar	alguma
atitude	a	respeito.”
“Como,	por	exemplo,	libertá-lo”,	contribuiu	Sukie.
“Aí	nós	todas	teríamos	de	lidar	com	ele”,	disse	Alexandra,	imaginando	aquele
homem	gordote	e	moreno	como	um	tornado,	um	voraz	reservatório	natural	de
desejo.	O	desejo	vinha	em	recipientes	totalmente	fora	de	proporção.
“Aguente	firme,	Greta!”,	intrometeu-se	Jane,	finalmente	entendendo	a	graça	da
conversa.
As	três	deram	risada.
A	porta	lateral	bateu	com	um	barulho	solene,	e	passos	lentos	subiram	a
escada.	Não	era	um	poltergeist,	e	sim	um	dos	filhos	de	Sukie	chegando	em	casa
da	escola	depois	de	ter	ficado	retido	por	alguma	atividade	extracurricular.	A
televisão	do	andar	de	cima	ganhou	vida	com	seu	reconfortante	zumbido	de	robô.
Gulosa,	Sukie	havia	enfiado	um	punhado	excessivamente	grande	de	castanhas
salgadas	na	boca;	pressionou	a	mão	espalmada	contra	o	queixo	para	evitar	que
caíssem	pedaços.	Ainda	rindo,	cuspiu	algumas	migalhas.
“Ninguém	quer	ouvir	sobre	o	tal	homem	novo?”
“Não	especialmente”,	disse	Alexandra.	“Os	homens	não	são	a	resposta,	não
foi	isso	que	concluímos?”
Sukie	já	havia	percebido	muitas	vezes	que,	na	presença	de	Jane,	o	jeito	de
Alexandra	mudava	e	ela	se	tornava	um	pouco	difícil.	Quando	estava	sozinha	com
Sukie,	ela	não	tentara	disfarçar	o	interesse	por	aquele	homem	novo.	As	duas
tinham	em	comum	uma	certa	satisfação	com	o	próprio	corpo,	que	com	frequência
fora	chamado	de	bonito,	e	Alexandra	era	suficientemente	mais	velha	(seis	anos)
para	se	colocar,	quando	estavam	juntas,	em	um	papel	de	certa	maneira	maternal:
Sukie	espevitada	e	tagarela,	Lexa	preguiçosa	e	sibilina.	Quando	as	três	se
juntavam,	Alexandra	tinha	tendência	a	dominar,	mostrando-se	um	pouco
emburrada	e	inerte,	obrigando	as	outras	duas	a	irem	até	ela.
“Eles	não	são	a	resposta”,	disse	Jane	Smart.	“Mas	talvez	sejam	a	pergunta.”
Só	restava	um	terço	do	gim	dentro	de	seu	copo.	O	pedaço	de	casca	de	pêssego	era
um	bebê	esperando	para	ser	lançado	seco	para	o	mundo.	Do	outro	lado	dos
losangos	embaçados,	melros	encerravam	ruidosamente	o	dia,	preparando	o
crepúsculo.
Sukie	se	levantou	para	fazer	um	pronunciamento.
“Ele	é	rico”,	disse,	“e	tem	quarenta	e	dois	anos.	Nunca	se	casou	e	é	de	Nova
York,	de	uma	das	antigas	famílias	holandesas.	Obviamente	foi	uma	criança-
prodígio	no	piano,	e	além	disso	é	inventor.	Todo	o	grande	salão	da	ala	leste,	onde
ainda	fica	a	mesa	de	bilhar,	e	a	área	de	lavanderia	abaixo	do	salão	vão	ser	o
laboratório	dele,	com	várias	daquelas	pias	de	aço	inox,	tubos	de	ensaio	e	coisas
assim,	e	na	ala	oeste,	onde	os	Lenox	tinham	aquela	espécie	de	estufa,	um	jardim
de	inverno,	ele	quer	mandar	pôr	uma	enorme	banheira	rebaixada	no	piso,	com	um
sistema	de	som	embutido	nas	paredes.”	Seus	olhos	redondos,	bem	verdes	à	luz	do
fim	do	dia,	brilhavam	com	a	insanidade	de	tudo	aquilo.	“Joe	Marino	foi
contratado	para	fazer	o	serviço	de	encanador	e	estava	falando	sobre	isso	ontem	à
noite	depois	que	a	reunião	ficou	sem	quorum	porque	Herbie	Prinz	viajou	para	as
Bermudas	sem	avisar	ninguém.	Joe	estava	uma	pilha	de	nervos:	orçamento	sem
limites,	só	material	da	melhor	qualidade,	que	se	dane	o	custo.	Uma	banheira	de
teca	com	dois	metros	e	meio	de	diâmetro,	e	o	cara	não	gosta	de	pisar	em
cerâmica,	então	o	piso	inteiro	vai	ser	feito	com	umaardósia	lisa	especial	que	é
preciso	mandar	vir	do	Tennessee.”
“Ele	parece	esnobe”,	disse	Jane.
“E	esse	esbanjador	tem	nome?”,	perguntou	Alexandra,	pensando	em	como
Sukie,	além	de	ser	colunista	de	fofocas,	também	era	romântica,	e	pensando	se	uma
segunda	vodca	com	água	tônica	iria	deixá-la	com	dor	de	cabeça	depois,	quando
estivesse	sozinha	em	sua	imensa	e	antiga	casa	de	fazenda	e	a	única	companhia
para	seu	espírito	totalmente	desperto	fosse	a	respiração	regular	dos	filhos
adormecidos,	o	coçar	incansável	de	Carvão	e	a	visão	pesarosa	da	lua.	No	Oeste,
um	coiote	uivaria	nos	confins	da	paisagem	lilás	e,	mais	longe	ainda,	um	trem
transcontinental	passaria	puxando	seus	quilômetros	rastejantes	de	vagões,	e	esses
ruídos	guiariam	seu	espírito	janela	afora	e	dissolveriam	sua	insônia	na	noite
delicada	e	coalhada	de	estrelas.	Ali,	no	acidentado	e	encharcado	Leste,	tudo	era
muito	próximo;	os	barulhos	da	noite	cercavam	sua	casa	feito	um	arbusto	cheio	de
espinhos.	Até	mesmo	aquelas	mulheres,	ali	na	aconchegante	pequena	toca	de
Sukie,	estavam	muito	juntas,	de	modo	que	cada	pelo	preto	do	leve	buço	de	Jane	e
a	penugem	arrepiada	cor	de	âmbar,	sensível	à	eletricidade	estática,	dos
compridos	antebraços	de	Sukie	faziam	os	olhos	de	Alexandra	coçarem.	Ela	sentia
inveja	daquele	homem,	inveja	do	fato	de	que	sua	simples	sombra	bastasse	para
deixar	suas	amigas	tão	empolgadas,	amigas	que	em	outras	quintas-feiras	ficavam
empolgadas	apenas	com	ela,	com	seus	poderes	preguiçosos	de	rainha	que	se
espalhavam	feito	o	poder	de	um	felino	de	parar	de	ronronar	e	partir	para	a
matança.	Nessas	quintas-feiras,	as	três	amigas	conjuravam	os	fantasmas	das
vidinhas	de	Eastwick	e	os	faziam	zumbir	e	rodopiar	pelo	ar	cada	vez	mais	escuro.
Se	estivessem	com	a	disposição	adequada	e	já	no	terceiro	drinque,	eram	capazes
de	criar	acima	de	si	um	vórtice	de	poder	que	era	como	uma	tenda	que	se	erguia
até	o	firmamento,	e	saber	bem	no	fundo	de	seus	corpos	quem	estava	doente,	quem
estava	se	afundando	em	dívidas,	quem	era	amado,	quem	estava	desesperado,
quem	estava	ardendo	de	desejo,	quem	estava	dormindo	para	se	refugiar	da	má
sorte	da	vida;	mas	isso	não	iria	acontecer	nesse	dia.	Algo	as	estava	perturbando.
“O	nome,	que	engraçado...”,	dizia	Sukie,	erguendo	os	olhos	para	a	luz	que	se
esvaía	pela	janela	de	armação	de	metal.
Não	conseguia	ver	através	dos	altos	losangos	de	vidro	embaçado,	mas	podia
visualizar	nitidamente	a	única	árvore	de	seu	quintal	dos	fundos,	uma	pereira
jovem	e	esguia	saturada	de	peras,	formas	pesadas	e	amarelas	suspensas	como
joias	cenográficas	penduradas	em	uma	criança.	Todos	os	dias	agora	recendiam	a
feno	e	fruta	madura,	e	as	pequenas	e	pálidas	flores	tardias	dos	ásteres	reluziam	no
acostamento	da	estrada	feito	lixo.	“Estava	todo	mundo	dizendo	o	nome	dele	ontem
à	noite,	e	eu	já	tinha	escutado	Marge	Perley	me	dizer,	está	na	ponta	da	língua...”
“Da	minha	também”,	disse	Jane.	“Droga.	O	nome	tem	uma	daquelas
palavrinhas	no	meio.”
“De,	da,	do”,	sugeriu	Alexandra,	sem	resultado.
As	três	bruxas	se	calaram	ao	perceber	que,	de	língua	amarrada,	estavam	elas
próprias	sob	o	feitiço	de	alguém	mais	poderoso.
Darryl	van	Horne	compareceu	ao	concerto	de	música	de	câmara	na	igreja
unitarista	domingo	à	noite,	um	homem	grande	e	moreno,	com	cabelos	cacheados
oleosos	que	lhe	escondiam	as	orelhas	quase	por	inteiro	e	se	embolavam	na	parte
de	trás,	deixando	sua	cabeça,	vista	de	perfil,	parecida	com	uma	caneca	de	cerveja
dotada	de	uma	alça	monstruosamente	grossa.	Ele	usava	uma	calça	de	flanela
cinza,	meio	frouxa	atrás	dos	joelhos,	e	um	paletó	de	tweed	Harris	com
cotoveleiras	e	um	curioso	e	intrincado	desenho	verde	e	preto.	Uma	camisa	de
oxford	de	botões	cor-de-rosa,	do	tipo	que	se	usava	nos	anos	1950,	e	sapatos
fechados	estranhamente	pequenos	e	pontudos	completavam	o	traje.	Ele	estava
disposto	a	marcar	presença.
“Então	é	você	a	escultora	da	cidade”,	disse	ele	a	Alexandra	no	salão	de	festas
da	igreja,	durante	o	coquetel	oferecido	após	o	concerto	para	os	músicos	e	seus
amigos,	organizado	em	volta	de	um	ponche	sem	álcool	de	uma	cor	verde
artificial.	A	igreja	era	uma	pequena	construção	razoavelmente	atraente	em	estilo
greek	revival,	com	uma	varanda	estreita	margeada	por	colunas	dóricas	e	uma
torre	baixa	octogonal,	situada	em	Cocumscussoc	Way,	saindo	da	Elm	e	atrás	da
Oak,	erguida	pelos	congregacionalistas	em	1823,	mas	que,	uma	geração	mais
tarde,	havia	sucumbido	à	maré	unitarista	da	década	de	1840.	Mesmo	nesses
nossos	tempos	enevoados	e	tardios	de	declínio	doutrinário,	o	interior	continuava
decorado	aqui	e	ali	com	algumas	cruzes,	e	o	salão	de	festas	exibia	em	uma	das
paredes	uma	grande	flâmula	de	feltro,	confeccionada	pelos	alunos	da	escola
dominical,	com	a	cruz	egípcia	tau,	hieróglifo	que	significa	“vida”,	cercada	pelos
quatro	símbolos	alquímicos	triangulares	dos	elementos.	A	categoria	“músicos	e
amigos”	incluía	todo	mundo	menos	Van	Horne,	que	mesmo	assim	adentrou	o
salão.	As	pessoas	sabiam	quem	ele	era;	isso	aumentava	a	animação.	Quando	ele
falava,	sua	voz	ressoava	de	um	jeito	que	não	combinava	muito	com	os
movimentos	da	boca	e	do	maxilar,	e	essa	impressão	de	um	elemento	artificial	em
algum	ponto	de	seu	aparelho	fonador	era	reforçada	pelo	estranho	deslizamento,
pela	impressão	de	remendo	transmitida	por	seus	traços	e	pelo	excesso	de	saliva
que	ele	produzia	ao	falar,	o	que	o	obrigava	a	parar	de	vez	em	quando	para
esfregar	com	violência	os	cantos	da	boca	com	a	manga	do	paletó.	No	entanto,	ele
tinha	a	segurança	dos	cultos	e	abastados,	e	se	abaixou	bastante	para	tornar	a
conversa	com	Alexandra	mais	íntima.
“São	só	umas	coisinhas	de	nada”,	disse	Alexandra,	sentindo-se	subitamente
mignon	e	recatada	ao	lado	daquele	gigante	moreno	de	ar	intimidador.	Era	a	fase
do	mês	em	que	ela	estava	particularmente	sensível	à	aura	dos	outros.	A	daquele
fascinante	desconhecido	tinha	o	mesmo	lustro	preto	amarronzado	da	pelagem
molhada	de	um	castor	e	erguia-se,	tesa,	atrás	de	sua	cabeça.	“Minhas	amigas	as
chamam	de	minhas	peitudas”,	disse	ela,	esforçando-se	para	não	corar.	O	esforço	a
fez	se	sentir	um	pouco	tonta	no	meio	de	toda	aquela	gente.	Não	estava	acostumada
com	multidões	nem	com	homens	novos.
“Umas	coisinhas	de	nada”,	repetiu	Van	Horne.	“Mas	tão	poderosas”,	disse
ele,	enxugando	os	lábios.	“Tão	cheias	de	seiva	psíquica,	sabe,	quando	você
segura	uma	delas	na	mão.
Fiquei	até	sem	fôlego.	Comprei	todas	que	estavam	à	venda	naquela	loja...
como	é	mesmo	o	nome?	‘Noisy	Sheep’,	alguma	coisa	assim...”
“Yapping	Fox”,	disse	ela,	corrigindo	o	nome	da	loja.	“Ou	pode	ter	sido
também	na	Hungry	Sheep,	a	duas	portas	do	lado	oposto	da	barbearia,	se	algum	dia
o	senhor	quiser	cortar	o	cabelo.”
“Nunca,	se	puder	evitar.	Cortar	o	cabelo	tira	minha	força.	Minha	mãe
costumava	me	chamar	de	Sansão.	Mas,	sim,	foi	em	uma	dessas	duas	lojas.
Comprei	todas	as	que	eles	tinham	para	mostrar	para	um	amigo	meu,	um	cara
incrível,	muito	tranquilo,	que	tem	uma	galeria	de	arte	em	Nova	York,	bem	na	rua
57.	Não	cabe	a	mim	prometer	o	que	quer	que	seja	para	você,	Alexandra...	tudo
bem	se	eu	a	chamar	assim?	Mas,	se	você	puder	começar	a	criar	em	uma	escala
maior,	aposto	que	eu	seria	capaz	de	conseguir	uma	exposição	dos	seus	trabalhos.
Talvez	você	nunca	chegue	a	ser	nenhuma	Marisol,	mas	poderia	muito	bem	ser
outra	Niki	de	Saint-Phalle.	Sabe,	aquela	das	‘Nanas’.	Essas	sim	têm	escala.	Quer
dizer,	ela	se	soltou	mesmo,	não	está	só	de	brincadeira.”
Com	algum	alívio,	Alexandra	concluiu	que	aquele	homem	lhe	despertava
razoável	antipatia.	Era	insistente,	indelicado	e	boquirroto.	O	fato	de	ele	ter
comprado	todas	as	suas	esculturas	na	Flungry	Sheep	lhe	dava	a	mesma	sensação
de	um	estupro,	e	ela	agora	teria	de	assar	uma	nova	fornada	antes	do	que	havia
planejado.	A	pressão	causada	por	aquela	personalidade	fizera	piorar	a	cólica	que
ela	já	sentia	pela	manhã	ao	acordar,	dias	antes	da	data	marcada;	esse	era	um	dos
sintomas	do	câncer:	ciclo	menstruai	irregular.	Além	disso,	ela	trouxera	consigo
do	Leste	um	lamentável	resquício	do	preconceito	regional	contra	índios	e
chicanos	e,	aos	seus	olhos,	Darryl	van	Horne	não	parecia	limpo.

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