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978-85-66980-03-5 m un do co nt em po ra ne oe di co es .co m Um dos grandes aprendizados que tivemos com nosso supervisor no Programa de Pós-graduação da UNIRIO, Prof. Dr. Zeca Ligiéro, foi a prática de reunir mensalmente os pesquisadores do NEPAA - Núcleo de Estudos da Performance Afro Ameríndia - para que eles apresentassem o estado de suas pesquisas uns para os outros; seja através de exposição oral ou na forma de uma celebração festiva de um sarau. Assim, foi criado o GESTO - Grupo de Especialização em Teatro do Oprimido - uma espécie de “clube de bicagem” de orientandos do Teatro do Oprimido onde todos opinavam e auxiliavam as investigações entre si, com a missão de difundir as ideias e pensamentos boaleanos sobre as funções sociais, educativas, terapêuticas, políticas e artísticas do TO – hoje praticado em mais de setenta países. Em cinco anos, o GESTO cresceu e passou a propor novas ações, cursos e atividades dentro e fora da UNIRIO, oferecendo as disciplinas Introdução ao Teatro do Oprimido (para alunos dos cursos de graduação) e “De Brecht a Boal” e “Estudos de Teatro do Oprimido” (para a pós-graduação da escola de teatro) e um evento internacional denominado Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade. Este livro reúne artigos, ensaios e parte de pesquisas de mestrado e doutorado (produzidas pelos investigadores que criaram ou ajudaram a criar o GESTO na UNIRIO) que tratam de estudos da metodologia criada pelo brasileiro Augusto Boal, buscando compreender a sua dinâmica interna, propondo desdobramentos da mesma. São leituras e interpretações preciosas de como se deu o desenvolvimento das ramifi cações da Árvore do Teatro do Oprimido, da construção da Estética do Oprimido, da função e formação de um Curinga, da importância da especifi cidade do Laboratório Madalenas e, ainda, ensaios teóricos sobre o pensamento e a prática do seu criador, memória e fatos ocorridos nos trinta anos de história do Centro de Teatro do Oprimido narrados por curingas que trabalharam diretamente com Boal e também por pesquisadores colaboradores do NEPAA. Equipe GESTO T ᴇᴀᴛrᴏ ᴅᴏ O ᴘriᴍiᴅᴏ ᴇ U niᴠᴇrsiᴅᴀᴅᴇ: experim entos, ensaios e investigações O GESTO - Grupo de Especialização em Teatro do Oprimido (TO) formado pelos professores-pesquisadores Cachalote Mattos, Jussara Trindade, Flavio Sanctum, Helen Sarapeck e Licko Turle (foto acima) tem por objetivo a formação aprofundada na teoria e prática do TO em diálogo com outros autores e metodologias que visam a emancipação e a autonomia do cidadão. Desde 2011, o GESTO mantém Cursos de Extensão e disciplinas em Teatro do Oprimido direcionadas a graduação e pós graduação em parcerias com organizações e universidades brasileiras e estrangeiras. A partir de 2012, o GESTO organiza as Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade, evento acadêmico que reúne, anualmente, para comunicações, discussões e refl exões, pesquisadores e praticantes da metodologia criada por Augusto Boal. O livro Teatro do Oprimido e Universidade – Experimentos, Ensaios e Investigações é parte da história do longo caminho de entrada do pensamento criativo de Augusto Boal na universidade brasileira. Se ele havia entrado individualmente por obra de pesquisadores isolados, nós apresentamos este livro, como um marco de entrada de Boal como um coletivo, o GESTO - Grupo de Especialização em Teatro do Oprimido, criado dentro do NEPAA - Núcleo de Estudos das Performances Afro Ameríndias da UNIRIO - como uma contribuição para todos aqueles que fazem teatro de resistência, que buscam uma pedagogia para os tempos das mudanças necessárias, para transformar a maneira arcaica como a educação tem sido tratada no Brasil e lutar contra aqueles que querem torná-la ainda mais retrógada, sem partido! ZECA LIGIÉRO, artista, encenador, criador e coordenador do Núcleo de Estudos das Performances Afro-ameríndias – NEPAA, pesquisador do PPGAC-UNIRIO. Copyright © 2016, Mundo Contemporâneo Edições Editora Léa Carvalho Capa Design: MaLu Santos Foto: Luiz Moura Projeto gráfi co MaLu Santos Gislene Espera CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T248 Teatro do oprimido e universidade : experimentos, ensaios e investigações / Cachalote Mattos... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Metanoia, 2016. 338 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografi a ISBN 9788566980035 1. Teatro e sociedade. 2. Teatro - Aspectos psicológicos. 3. Teatro - Brasil História - séc. XX. I. Mattos, Cachalote. II. Vannucci, Alessandra. III. Sanctum, Flávio. IV. Chiari, Gabriela. V. Sarapeck, Helen. VI. Trindade, Jussara. VII. Turle, Licko. VIII. Ligiéro, Zeca. 16-36694 CDD: 792.0981 CDU: 792(81) Ficha Catalográfi ca elaborada pela bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da Editora poderá ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocó- pia, gravação, etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados. www.metanoiaeditora.com Rua Santiago, 319/102 - Penha Rio de Janeiro - RJ - Cep: 21020-400 faleconosco@metanoiaeditora.com 21 3256-7539 | 21 4106-5024 Associada: Liga Brasileira de Editoras - www.libre.org.br Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) - www.snel.org.br Impresso no Brasil “Ao nosso primeiro e eter o mest e, Aug sto Boal.” SUMÁRIO ALFABETIZAÇÃO TEATRAL: O ENCONTRO DO TEATRO POPULAR COM A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 15 A ESTÉTICA DO OPRIMIDO: 33 LABORATÓRIO MADALENAS TEATRO DAS OPRIMIDAS 89 MINHA CASA NA ÁRVORE UM MEMORIAL DE EXPERIÊNCIAS COM O TEATRO DO OPRIMIDO 145 OS CURINGAS DE BOAL 247 O TEATRO DO BOAL E A COMUNIDADE EMANCIPADA 313 NOTAS SOBRE A CRIAÇÃO DO GESTO 327 PREFÁCIO 9 LICKO TURLE O JOGO (DE IMAGEM) NO TEATRO FÓRUM CACHALOTE MATTOS GABRIELA CHIARI HELEN SARAPECK FLAVIO SANCTUM ALESSANDRA VANNUCCI JUSSARA TRINDADE BOAL NA UNIVERSIDADE ZECA LIGIÉRO PREFÁCIO BOAL NA UNIVERSIDADE ZECA LIGIÉRO1 A primeira vez que vi Boal foi em 1985, na New York University. Eu havia chegado nos EUA para fazer o mestrado. Richard Schechner, que era meu orientador na época e, também, amigo pessoal dele, comentou que na- quele momento ele estava no terceiro piso do prédio, ministrando um curso para os alunos de Interpretação. Fui até lá e fi quei no fundo da sala, assistin- do um pouco da aula. Boal gesticulava e se expressava muito bem em inglês; fi quei admirado, porque eu ainda tinha difi culdades com aquela língua. Não esperei a aula terminar, e por pura timidez, não fui falar com ele, que parecia muito à vontade com o grupo de estudantes norte-americanos, e com a fun- ção de professor universitário. Alguns dias depois, quando fui até a livraria da NYU comprar os livros recomendados para o meu curso, observei que havia, na estante reservada aos cursos de graduação e pós em teatro, vários livros de Boal. Lembro-me da capa de, pelo menos, dois deles: Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas e 200 jogos e exercícios para atores e não atores com vontade de dizer algo através do teatro, ambos em versões inglesas. No fi nal da década de 1980, as ideias de Boal já estavam, defi nitivamente, inseridas no meio universitário norte-americano. O mesmo ocorria na França e na Inglaterra, como pude verifi car muitos anos depois. 1. ar sta, encenador, criador e coordenador do Núcleo de Estudos das Performances Afro-ame- ríndias – NEPAA, pesquisador do PPGAC-UNIRIO. 10 No fi nal da década de 90, quando eu estava organizando com Diana Taylor (então coordenadora do Departamento de Performance Studies da NYU) o primeiro encontro de Performance e Política das Américas a ser realizado na UNIRIO (2000), ela apresentou-me a lista dos artistas brasi- leiros que julgavaserem imprescindíveis para o nosso Encuentro, e frisou: “não pode faltar Augusto Boal!” Percebi que em nenhum momento ela pensava no trabalho do dramaturgo ou do encenador, mas em sua pedago- gia voltada para o ativismo político característico primeira fase do Teatro do Oprimido, cujo curso ele oferecia anualmente na NYU. Além disso, este era também um dos tópicos mais importantes daquele encontro. O Teatro do Oprimido fez-se, então, presente pela primeira vez na UNIRIO através de nosso evento. Boal fez questão de que sua participação pessoal ocorresse na sede do Centro de Teatro do Oprimido, para promover in- ternacionalmente esse centro de pesquisa. Mas, logo na abertura, ele nos visitou. Em 2000, quando iniciou o Encuentro de Performances, fi nalmente apertei a mão de Augusto Boal; por coincidência, na entrada da UNIRIO onde ele, ainda muito jovem, fi zera a Faculdade de Engenharia Química. O local havia sofrido mudanças radicais e abrigava, agora, uma das mais importantes escolas de teatro do Brasil, oriunda do antigo Conservatório de Teatro, que hoje pertence ao Centro de Letras e Artes da UNIRIO. A Escola de Teatro, tradicionalmente voltada para o ensino do teatro ortodoxo, até aquela época não conhecia o Teatro do Oprimido (embora tivesse em seu quadro de professores nomes como o de José Renato, um dos fundadores do Teatro de Arena, e de alguns estudiosos do chamado Moderno Teatro Brasileiro), que ainda era visto como algo de menor rele- vância dentro da carreira do eminente dramaturgo e diretor, ou como um conjunto de experiências cênicas de certo modo “contaminadas” pelo seu excessivo engajamento político. Em 2004, o meu convite para dar uma aula no curso Teatro e Co- munidade do Programa de Pós-Graduação - PPGAC, fez Boal pisar pela primeira vez numa sala de aula da UNIRIO (Sala Roberto de Cleto), quan- do nos ofereceu uma deslumbrante palestra, publicada na sua totalidade no livro Teatro e Dança como Experiência Comunitária, o qual organizei em parceria com os pesquisadores Victor Hugo Adler e Narciso Laranjeira (Editora EDUERJ, 2009). Teatro do O prim ido e U niversidade 11 Depois disso, ele voltaria à Escola de Teatro em 2008, durante as co- memorações dos 10 anos do NEPAA, e protagonizou com Amir Haddad um memorável encontro, num debate que tive o prazer de coordenar. No período compreendido entre estes dois eventos, começamos a planejar a vinda do seu acervo pessoal para UNIRIO, fato que começou a se consoli- dar nos últimos meses antes da sua morte, mas somente concluído no ano posterior. Mas por razões diversas, muitas foram as difi culdades da implantação do Acervo de Boal na UNIRIO: a falta de apoio institucional, o desco- nhecimento da importância do trabalho internacional, a morosidade da burocracia; enfi m, quando tínhamos feito o levantamento de todo o ma- terial, separado em pastas, digitalizado grande parte de fotos e vídeos, e o projeto arquitetônico traçado (mesmo a contragosto da própria diretoria da Biblioteca), a família Boal entendeu que seria melhor retirar o acervo da UNIRIO e alocá-lo em outra instituição, para maior rapidez na digitaliza- ção das fotos e documentos. Em princípio, o Acervo iria para a Fundação Darci Ribeiro, e por fi m foi para a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O fato é que, decorridos pouco mais de dois anos da morte de Boal, sua memória física seguia outro curso, diferente do desejado por ele e por nosso grupo de pesquisadores. Paradoxalmente, outro acervo vivo, deixado pela morte do grande mestre, os curingas e ex-curingas do Centro do Teatro do Oprimido (res- ponsáveis igualmente pelo desenvolvimento do Teatro do Oprimido e da Estética do Oprimido, os seus coautores como pensava e escreveu seu criador), foram se aproximando pouco a pouco da UNIRIO e, então, eu pude entender porque Boal a escolhera para depositar o seu acervo, sua memória. Ele imaginava que seria aqui o local ideal para serem travadas as grandes discussões em torno das suas praticas mais recentes. Pois o Tea- tro do Oprimido, segundo Richard Schechner (prefácio do livro Augusto Boal: Arte, Pedagogia e Política de Zeca Ligiéro, Licko Turle e Clara de Andrade, Editora Mauad, 2013), é a grande contribuição de Boal para o teatro universal. Mesmo sem a referência pedagógica e fundamentação fi losófi ca do cria- dor do método, seus discípulos quiseram dar continuidade científi ca de suas próprias práticas. Boal, além dos livros, deixou um legado signifi cativo sobre processos libertários em práticas coletivas de teatro e de criação artís- tica em geral. E como sabemos, ao longo dos anos o pensamento de Boal 12 apresentou mudanças substantivas, provocadas por seus sucessivos exílios e pelos contextos sociais dos países em que viveu. Daí, minhas pesquisas se diversifi caram, pois o meu próprio trabalho de passou a ser infl uenciado por esta aproximação; e um leito de orientação foi se abrindo para o fl uir de pesquisadores ligados ao pensamento boaliano. Eu já havia trabalhado com Licko Turle, um dos mais importantes co- labores de Boal e um dos criadores do Centro de Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro, em sua primeira formação (1986). Licko havia entrado no curso de mestrado, mas abandonara a defesa da dissertação em função de controvérsias com sua orientadora, que não era simpática ao Teatro do Oprimido. Eu o encorajei para terminar o mestrado, assumindo a orien- tação da sua pesquisa, intitulada Teatro do Oprimido e Negritude: O processo de construção de O pregador (defendida em 2003 e publicada em 2015 pela E-papers). Depois de ter investigado o grupo Tá na Rua, de Amir Haddad, sob minha orientação no seu doutorado, com a tese “Teatro de Rua é Arte Pública: uma proposta de construção conceitual” (2007), Licko retomou a sua pesquisa sobre o TO, e com uma bolsa da FAPERJ - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - realizou seu pós-doutoramento como professor residente no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas de Pós-Doc sob a minha supervisão, passou a dividir comigo as orientações dos alunos pesquisadores/curingas que foram formados diretamente por Augusto Boal no CTO. A primeira defesa com orientação conjunta foi a da Gabriela Chiari com a dissertação Laboratório Madalenas - Teatro das Oprimidas: Ino- vação Pedagógica para o Gênero Feminino, que abordou a questão do grupo feminista “Madalenas”. Depois, foi o doutoramento de Flavio Sanc- tum - O Curinga como dinâmica nos processos pedagógicos, artísticos e políticos do Teatro do Oprimido (2016) - no qual ele se propôs a dis- cutir a importância da fi gura do curinga dentro do Teatro do Oprimido, desenvolvendo suas pesquisas em Moçambique e na Índia. A partir daí, Helen Sarapeck e Cachalote Mattos, antigos colabores de Boal, trouxeram respectivamente os fundamentos do Teatro do Oprimido por meio do sim- bolismo da Árvore do TO e a aplicação prática da Estética do Oprimido. Helen escreveu Abraçando a Árvore do Teatro do Oprimido: pesqui- sa e memorial de experiências com o símbolo do método. Cachalote Teatro do O prim ido e U niversidade 13 Mattos, apresentou a dissertação “A Estética do Oprimido de Augusto Boal no processo de criação de imagem do espetáculo de Teatro-Fórum Cor do Brasil”, ambas defendidas em 2016. Toda a historia do Teatro do Oprimido e o NEPAA, cruza também com a própria história da pesquisadora, encenadora e professora Drª Alessandra Vannucci, italiana que deslumbrada pela vivência do Teatro do Oprimido vem para o Brasil estudar com o próprio Boal, e em seu anseio acadêmico resolve fazer o mestrado na UNIRIO (justamente no ano em que criei o NEPAA). Anos depois, torna-se uma das criadoras do Laboratório Madalenas do TO. Aqui, neste livro, Alessandra retorna para o lugar onde sempre esteve, com sua pesquisa viva e um profundo entendimento da criação e do pen- samento fi losófi co de Boal. Este livro é, portanto, parte do longo caminho de entradaao pensa- mento criativo de Boal na universidade brasileira. Se ele havia entrado individualmente no espaço acadêmico por obra de pesquisadores individu- ais - como foi o caso de Antônia Pereira na Universidade Federal da Bahia, ou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul pelo trabalho incansável de Silvia Balestreri - apresentamos este livro como um marco da entrada de Augusto Boal como um coletivo: o GESTO - Grupo de Especializa- ção em Teatro do Oprimido, criado no contexto do NEPAA - Núcleo de Estudos das Performances Afro Ameríndias da UNIRIO - como uma contribuição para todos aqueles que fazem um teatro de resistência, que buscam uma pedagogia para os tempos das mudanças necessárias, para transformar a maneira arcaica como a educação tem sido tratada no Brasil e lutar contra aqueles que querem torná-la ainda mais retrógada, “sem partido”! Este ensaio tenta identifi car a experiência pontual que possibilitou a Au-gusto Boal desenvolver a sua pedagogia teatral – o Teatro do Oprimi- do - uma vez que encontramos duas linhas explicativas para o seu suposto “nascimento”: a) a estreita relação entre o pensamento de Paulo Freire e o de Boal; e, b) as histórias contadas por Boal a respeito de seus encontros com um camponês nordestino, um operário do ABC paulista e uma indígena peruana analfabeta que o fazem, segundo ele mesmo, “descobrir” o método. Ambas vertentes procuram estabelecer elos ou evidências para um possível ponto de partida para a criação do Teatro do Oprimido1. Contudo, elas não levam em conta uma importante experiência pedagógica, realizada no Peru em 1973, da qual Boal foi convidado a participar coordenando o Setor de Teatro Popular. Refi ro-me à experiência prática proporcionada pela Opera- ção Alfabetização Integral – ALFIN, mais especifi camente pela educadora Estela Liñares, e a metodologia singular por ela empregada no Setor de Foto- grafi a (um dos vários setores do Programa). Nesta, câmeras fotográfi cas eram entregues aos alfabetizandos para que respondessem, por meio de imagens fo- tográfi cas, às questões levantadas por Liñares e sua equipe durante o processo de alfabetização. Deste modo, seria possível a produção de “foto-respostas” através de uma articulação entre a linguagem visual, a tecnologia do campo fotográfi co e o desenvolvimento do senso crítico sobre a realidade. Através do 1. Daqui por diante será grifado TO. ALFABETIZAÇÃO TEATRAL: O encontro do Teatro Popular com a Pedagogia do Oprimido LICKO TURLE 16 uso do equipamento, o mundo do alfabetizando pode ser revelado, analisa- do e, se possível, transformado por ele mesmo – mais importante objetivo a ser alcançado dentro das ideias veiculadas pela Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, para quem a alfabetização não pode existir em separado do desenvolvimento da consciência política. No Setor de Fotografi a, portanto, os alunos não aprendiam apenas a conhecer e manipular técnicas mas, sobretudo, a treinar o olhar sobre o mundo à sua volta, fazendo da máquina fotográfi ca um meio privilegiado de produção ao qual podiam, agora, ter acesso. Ou seja, os alunos eram elevados à condição não mais de meros consumidores de ideias, mas de produtores de um discurso emancipatório, libertador. O contato de Boal com esta metodologia original foi o que, a meu ver, permitiu ao brasileiro criar o seu sistema teatral, que ele descreve em seu livro-conceito, O Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, publicado imediatamente após o fato acontecido. Por que seria isso, importante? Creio que, embora válidas, as duas correntes acima citadas tendem a induzir, tanto aos artistas-ativistas quanto aos jovens pesquisadores, a pular uma etapa importante no processo de compreensão e interpretação desta pedagogia teatral, levando-os ou a seguir um caminho puramente teórico trilhado por alguns estudiosos do marxismo e da pedagogia freireana, ou a reduzir uma proposta de grande complexidade, racionalmente construída, ao mero acaso fortuito desvelado por fatos (maravilhosamente ilustrados pelo fi ccionista Boal2, diga-se de passagem), a nosso ver, utilizados somen- te como exemplifi cação para fazer com que o não especialista, ou seja, o “não-ator”, se aproprie dos meios-de-produção do teatro – seu objetivo político. Tânia Baraúna faz um estudo comparativo entre as teorias e práticas de Freire e Boal e afi rma que “Efectivamente la principal creación de Augusto Boal há sido el Teatro do Oprimido, que nace del encuentro entre el tea- tro popular y la pedagogia del oprimido de Paulo Freire.” (BARAÚNA & MOTOS, 2009, p. 55) 2. Não podemos esquecer que os primeiros estudos de Boal foram sobre a obra de Constan n Stanislavski que, de uma forma ou de outra, é um romance fi ccional onde personagens “vi- vem” histórias e aventuras durante um curso de formação teatral. Teatro do O prim ido e U niversidade 17 Em sua tese, a pesquisadora quer provar que existe uma relação direta entre os dois, mesmo que um jamais tenha trabalhado diretamente com o outro, e que Boal nunca tenha feito alguma referência direta sobre Freire em seus livros. Em busca de aproximar o pensamento dos dois, Tânia co- menta uma entrevista que Boal lhe concedeu: En la entrevista que realicé a Boal declaró que su metodologia incor- pora aspectos de la de Freire, a quien admira y respeta y com el que coinciden la utilización de los constructos oprimido y opresor, pero también de otras fuentes.” (...) Declaró que compatieron ideologias similares em sus atividades y em sus vidas, aunque nunca realizaron ningún proyeto em común. En este sentido manifestó que “...el Tea- tro del Oprimido incorpora de la metodologia de Freire la propuesta de que cada persona construya su conocimiento com libertad, com autonomia y com um método aberto que permita a cada uno poder construir su caminho ...” .(BARAÚNA & MOTOS, 2009, p.79-80) Clara Andrade, em O Exílio de Augusto Boal, ao pesquisar a obra do teatrólogo no exílio, segue a segunda corrente quanto à explicação sobre onde, como e quais as condições para o surgimento do método, ressaltando também os fatos relatados pelo próprio Boal: o do camponês nordestino Virgílio, o do operário “fura-greve” Magro em Santo André e, ainda, o epi- sódio da mulher peruana que entra no lugar da protagonista, durante um espetáculo que usava a técnica da dramaturgia simultânea. E cita o próprio Boal, que explica a “descoberta” do T.O. por meio de três “encontros”. Boal afi rma assim não ter criado o Teatro do Oprimido, mas sim, des- coberto o Teatro do Oprimido. Para ele, a descoberta se deu a partir de três momentos decisivos: o encontro com o camponês Virgílio no início da década de 60, citado anteriormente, o Seminário de Dra- maturgia em Santo André e, fi nalmente, o evento que acabamos de narrar no Peru, onde teria enfi m começado “a verdadeira democracia do Teatro do Oprimido”: “O Nordeste me alertou, Santo André me mostrou o problema; Chaclaclayo, a solução”. (BOAL, 2000ª, p.197 in ANDRADE, 2014, p. 66) Flávio Sanctum também “recorta” estes episódios reforçando a ideia de “descoberta” com o signifi cado de “achado”, “encontrado ao acaso”. Após recontar a história do camponês Virgílio durante a turnê do Teatro de Are- na pelo Nordeste, apresenta a história da peruana. 18 Numa apresentação de seu elenco na cidade peruana de Chaclacayo, uma senhora gorda, que estava na plateia, sugeriu que uma atitude fosse tomada pelo opressor (...). Boal sentiu o rosto rubro e infl ama- do; sugeriu que a própria mulher entrasse em cena e representasse o papel da esposa oprimida. Quem sabe assim, ela se colocando no lugar da protagonista, fi caria “clara” a sua proposta. A mulher subiu e não só conversou claramente, mas agindo como se vivesse a opressão, agarrou o marido pelo colarinho e com um cabo de vassoura na mão mandou-o pegar a sua comida, pois ELA estava com fome. Naquele momento o Teatro-forum foi descoberto! (SANCTUM, 2012, p. 36-37) Rosamaria GiattiCarneiro também entende que o T.O. é construído no Peru e, em sua leitura, interpreta que o método nasce por causa do episódio da senhora gorda indígena e vaticina: “O Teatro do Oprimido nasceu em uma cidade peruana, Chaclacayo, em 1974, a partir de um epi- sódio especial, assim relatado:” (CARNEIRO, 2012, p. 167). E também cita Boal para justifi car esta sua interpretação: ... no Peru, nasceu o teatro-fórum e sistematizei o teatro-imagem. O teatro do Oprimido virou livro. (...) Meu teatro seria, daí, por diante, o teatro das perguntas. Sócrates, maiêutico. Quem deveria respon- der seriam os espect-atores!” (BOAL, 2000, p. 298, in CARNEIRO, 2012, p. 167) Com certeza, estes episódios levam Boal a pensar, a teorizar sobre sua prática. O da “senhora gorda peruana” o auxilia a desenvolver o teatro- -fórum enquanto técnica teatral, mas o que procuramos não é o momento de vislumbre da metodologia, ou de uma técnica em particular, ainda que esta seja a referência emblemática do método em questão e, sim, aquele em que se defi ne a pedagogia - um ideário fi losófi co sobre um modo de ensinar. Nessa perspectiva, o teatro-fórum é uma dentre várias técnicas dessa meto- dologia – que, por sua vez, se situa dentro de um corpo teórico-fi losófi co mais amplo, um pensamento norteador sobre o ensino do teatro; enfi m, um ideário que articula teoria e prática – ou seja, uma práxis. Para Boal, o teatro é um instrumento de libertação contra a opressão (uma “arma”, como afi rmará mais tarde em O teatro como arte marcial) e o teatro-fórum é apenas uma das várias técnicas (meios) criadas para atingir esse objetivo. Teatro do O prim ido e U niversidade 19 Boal, o pedagogo, nos mostra em seus livros os primeiros passos, o ca- minho a ser percorrido. É necessário refazer o seu percurso, encontrando e elucidando as evidências por meio das quais ele nos deixa perceber o início do processo de construção do método. Estes episódios ao longo da sua biografi a são marcas que o engenheiro Boal usa para demarcar o tempo- -espaço fundante onde irá construir os alicerces de seu objeto. São somente analogias explicativas utilizadas como estratégia de ensino para apresentar ao aprendiz, de modo direto e objetivo, sem lançar mão de jargões acadê- micos, os princípios marxistas que pretende disseminar. Para Néstor Garcia Canclini, a sistematização do método de Boal, que segundo ele tem seus primórdios nas experiências com o Teatro Invisí- vel em 1971 na Argentina, vai se consolidar defi nitivamente com a sua participação na Operação ALFIN, quando preparou alfabetizadores para utilizarem a linguagem teatral como recurso de alfabetização. Essas experiências de Boal alcançaram, em 1973, uma organização sistemática e uma reformulação radical das bases do trabalho dramá- tico, graças a sua participação na Operação Alfabetizadora Integral, iniciada pelo governo peruano. Essa Operação fundamentou-se em dois pressupostos: em primeiro lugar, levando-se em conta o enorme número de línguas e dialetos falados no Peru, alfabetizava-se na lín- gua materna e em castelhano, sem forçar o abandono da primeira em benefício da segunda; além disso, procurava-se alfabetizar em todas as linguagens possíveis, especialmente as artísticas, como teatro, foto- grafi a, marionetes, cinema e jornalismo. Se os homens se expressam e se comunicam em muitas linguagens, por que lhes dar apenas a opor- tunidade de desenvolver a forma escrita? Se, nas classes populares, a linguagem corporal é tão importante para a comunicação, por que não empregar os recursos teatrais para expandir esse campo expressi- vo? (CANCLINI, 1980, p. 167) Em Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas, a proposta de uma “Poética do Oprimido” está dividida em duas partes: A. Uma experiência de Teatro Popular no Peru; e, B. O Sistema “Coringa”. Na introdução da primeira parte, Boal já informa que o seu contato com Paulo Freire não é direto, mas, se dá na própria prática do uso da Pedagogia do Oprimido desenvolvida por uma equipe da qual fez parte, e que atuava em setores artísticos como fotografi a, bonecos, serigrafi a, gravação de áudio, imprensa popular e teatro. Agradece à sua colaboradora, a professora peruana Alicia 20 Saco, que deu continuidade ao processo supervisionando os alfabetizado- res e visitando seus locais de trabalho pelo interior do Peru. Esta experiência foi realizada com a inestimável colaboração de Alice Saco, dentro do Programa de Alfabetização Integral (ALFIN) dirigido por Alfonso Lizarzaburu, e com a participação, nos diversos setores, de Estela Liñares, Luis Garrido Lecca, Ramón Vilcha e Jesus Ruiz Durand, entre outros, nas cidades de Lima e Chaclacayo. O método de alfabetização utilizado por ALFIN era, naturalmente, inspirado em Paulo Freire – março, Buenos Aires, 1974. ( BOAL, p. 122. 2013) Este trecho demonstra que o convite feito na ocasião a Boal para parti- cipar do projeto não foi aleatório, mas deu-se em função da estreita relação ideológica que o seu trabalho já estabelecia com a pedagogia de Freire e a corrente de pensamento latino-americano naquele momento. Em uma pesquisa de campo que realizei no Peru em junho de 2013, entrevistei a professora Alicia Saco, citada por Boal como sua assistente no setor de Teatro. Aqui, ela fala sobre a coordenação do projeto e o sistema político do Peru, à época, o que criou um ambiente favorável para a parti- cipação de Boal na Operação: Então, Boal foi convidado para que trouxesse suas ideias, seu método e eu fui contratada para ser sua assistente. Ele tinha 45 anos quando veio aqui. O projeto ALFIN estava baseado na Pedagogia do Oprimi- do de Paulo Freire, por isto Boal fazia parte. Havia o setor de jornal, da radio, tudo! Lembro-me que nós não trabalhávamos diretamente com os analfabetos, mas, sim, com os alfabetizadores. Concentramos em Chaclacayo, uma pequena cidade fora de Lima e, ali, vivemos por algum tempo imersos no trabalho de treinar os alfabetizadores através de diversas ofi cinas, uma era a de teatro! Fazíamos ofi cinas com os futuros alfabetizadores para que aprendessem teatro imagem, teatro jornal e o teatro-foro que começava a se desenhar. Os alfabeti- zadores aprendiam o método e iam para o interior de Peru alfabetizar. Boal fi cou conosco por três meses, depois, eu assumi o programa. O meu trabalho era viajar aos locais onde estavam os alfabetizadores e ver como trabalhavam e auxiliá-los diretamente. Na época, havia no Peru, um governo militar politicamente “Ni-Ni” (nem ...nem...) nem socialista, nem capitalista, mas tinha elementos dos dois como o fi ló- sofo Augusto Salazar que coordenava o Programa ALFIN. Eu cheguei no ALFIN depois que Boal já havia sido contratado, não sei como chegaram a ele. (Entrevista concedida ao autor) Teatro do O prim ido e U niversidade 21 Boal fora indicado para atuar no ALFIN pelo jornalista brasileiro Paulo Cannabrava Filho que trabalhou no Ministério de Educação do Peru, onde integrou a equipe do ministro, o fi lósofo Augusto Salazar Bondy, elabora- dor do plano “Estratégia para Alfabetización Integral” (Operación Alfi n). Cannabrava projetou e coordenou a execução do Projeto de Difusão da Operación Alfi n entre os anos 1973 e1975. Em seu artigo “Augusto Boal - O subversivo maravilhoso”, publicado na revista virtual “Outras Palavras” em 8 de setembro de 2014, por conta da estreia do espetáculo Crônicas de Nuestra América no Rio de Janeiro, conta como isto ocorreu: Quando o governo revolucionário de Velasco Alvarado, no Peru, iniciou a reforma na educação, na realidade uma revolução cultural que começava com uma estratégia de alfabetização e outra de educa- ção, sugeri a Salazar Bondy que convidasse Boal para nos ajudar na formação dos quadros que formariam o contingente de educadores. Salazar Bondy, educador, fi lósofo, epistemologista, era o executivo do Ministério de Educação, e quem tocava o principal projeto da re- volução peruana: a formação do homem novo. Forammomentos ma- ravilhosos, conviver com Salazar Bondy, assim como poder interagir com lideranças de uma cultura milenar como a andina. Sei que essa experiência infl uenciou profundamente o Boal. Foi aí que, aplicando a técnica do Teatro Invisível, criou o Teatro Fórum para trabalhar os confl itos intererrelacionais. (CANNABRAVA, 2014) Boal foi convidado, então, diretamente pelo intelectual Augusto Salazar Bondy, para treinar os alfabetizadores oriundos da rede de promotores so- ciais do SINAMOS - Sistema Nacional de Apoio à Mobilização Social - do governo revolucionário chefi ado pelo general Juan Velasco Alvarado. Este militar afi rmava, peremptoriamente, que o regime que ele criara para a re- volução no Peru não era nem capitalista, nem socialista - o que lhe rendeu o apelido de governo Ni-Ni (em espanhol). Rezende Carvalho nos informa que o idealizador da Operação ALFIN, o peruano Augusto Salazar Bondy (1925-1974), foi um dos protagonistas da polêmica sobre a existência ou não de uma fi losofi a latino-americana - lançada em meados do século XIX, pelo pensador argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1884) – que foi retomada e travada em 1968-1969 entre o fi lósofo mexicano Leopoldo Zea (1911-2004) e o peruano a partir da publicação, em 1968, do seu livro intitulado ¿Existe una fi losofía de nuestra América? E o de Zea, publicado no ano seguinte, La fi losofía americana como fi losofía sin más. 22 Segundo o pesquisador, Salazar Bondy buscou identifi car a expressão de uma fi losofi a original, genuína ou peculiar, conforme a defi nição que deu a esses termos partindo da descrição de alguns expoentes do pensamento his- pano-americano como o boliviano Guillermo Francovich, os panamenhos Diego Dominguez Caballero e Ricaurte Soler, o mexicano Abelardo Villegas e o uruguaio Arturo Ardao, entre outros. Após analisar as posições contrárias e favoráveis à existência de uma fi losofi a hispano-americana, Bondy formula uma resposta ao título do seu próprio livro. Esta, sintetizada em um con- junto de pontos que vão do diagnóstico do problema à prescrição de sua solução, aponta as condições para se desenvolver um pensamento genuíno e original na Hispano-América, que dependeria do fi m da condição de sub- desenvolvimento e de dominação a que, segundo ele, estavam submetidas as sociedades dos países desta região sócio-cultural-econômica. A polêmica indicou um caminho para o movimento latino-americano da história das ideias em direção à fi losofi a da história latino-americana e, progressivamente, à fi losofi a da libertação, o que se pode denominar como uma nova orientação comprometida com a causa da libertação da América Latina, em razão de sua histórica condição de dependência. Para Castro-Pozo, Outra questão de ordem diz respeito ao estatuto epistemológico do TO, isto é, pode-se apreciar que o TO é nomeado indistintamente de método, meto- dologia ou técnica. Porém o que seria uma impropriedade conceitual adveio de uma práxis engajada, desvendando a tragédia humana do terceiro mun- do, que se fi lia a um horizonte gnosiológico do oprimido. Nesse paradigma inscrevem-se obras pioneiras tais como Pedagogia do Oprimido [1968*]3, de Paulo Freire; Teoria da Libertação [1971]*, de Gustavo Gutierrez; Psico- terapia do Oprimido, de Alfredo Moff att [1974]*; Filosofi a do Oprimido, de Enrique Dussel [1972]*; e, nas artes cênicas a projeção deste paradigma é sistematizada no livro O Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas, de Augusto Boal.”[1974]* (CASTRO-POZO, 2011, p. 16) Baseado nas ideias da Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, Sa- lazar desenvolveu e implementou o seu plano de alfabetização. Em dois anos e meio foram alfabetizados 250 mil camponeses e operários pe- ruanos. Segundo o educador-alfabetizador Alfonso Lizarzaburu (diretor do ALFIN, também citado por Boal), a formação dos promotores de 3. * As datas foram inseridas pelo autor com o obje vo de demonstrar o intervalo temporal de sua publicação. Teatro do O prim ido e U niversidade 23 base/alfabetizadores se realizavam em duas fases: a inicial e a de aper- feiçoamento. A fase inicial de caráter teórico-prático se realizava dentro da modalidade de internato ou concentração no Centro Vocacional de Huampaní, em Chaclacayo, distante 25 quilômetros de Lima. Os obje- tivos desta fase eram três, sendo um deles o aprendizado e manejo dos meios de comunicação social, tradicionais (rádio, televisão, jornal) e não tradicionais (bonecos, teatro popular, gravação de áudio, fotomontagem, serigrafi a, imprensa popular, etc.), com o propósito de serem utilizados como instrumento de analise critica da realidade social dos alfabetizandos (desmontagem ideológica) e como meios de expressão de suas próprias mensagens e discursos (Área de Comunicação Dialógica). O curso de formação se realizava dentro das seguintes formas de traba- lho: Grupos de Discussão, Ofi cinas de Expressão Criativa, Laboratórios de Análise Crítica e Atividades Artísticas e Recreativas. O trabalho no setor de expressões criativas tinha por objetivo possibilitar que os alfabetizadores conhecessem diferentes técnicas que os permitissem implantar o Método ALFIN. O trabalho era feito em grupos, organizados em cinco ofi cinas: fotografi a, gravação, teatro popular, bonecos e serigrafi a. Pretendia-se que o conhecimento destas técnicas respondesse, simultaneamente, à necessi- dade de instrumentalizar os alfabetizadores em sua comunicação com a comunidade no processo pedagógico, e que as técnicas fossem também apropriadas pela população. Foram formados, em três cursos, cerca de 750 alfabetizadores, com uma média de 250, por curso. Concluída a fase inicial da formação, os alfabetizadores e coordenadores de campo se dirigiam para suas zonas de operação e começava a segunda parte: o trabalho de campo, sob a supervisão e orientação dos coordenado- res. Assim, foi implementado o plano ALFIN, com Boal desenvolvendo o setor de teatro popular. Alicia Saco atuou como sua assistente e, posterior- mente, como supervisora da segunda fase da formação, acompanhando e orientando os alfabetizadores no uso das técnicas desenvolvidas na imersão em Chaclacayo. Boal maneja e concebe o Teatro do Oprimido, fruto de uma criação inovadora, inédita, no âmbito terminológico-conceitual dando-lhe aporte genuíno e original a partir de uma análise comparativa com os experimen- tos dos outros setores: Neste trabalho, quero tão somente relatar o que foi minha partici- pação no setor de teatro e contar todas as experiências que fi zemos, 24 considerando o teatro como linguagem, apto para ser utilizado por qualquer pessoa, tenha ou não atitudes artísticas. Quero mostrar, através de exemplos práticos, como pode o teatro ser posto a serviço dos oprimidos, para que estes se expressem e para que, ao utiliza- rem essa nova linguagem, descubram igualmente novos conteúdos. (BOAL, 2013, p. 123). Aqui Boal já esboça a ideia de que o teatro está ao alcance de todos e não somente para artistas com formação, ou seja, profi ssionais. Também aponta que, para ele, o teatro é um meio, não um fi m em si. O teatro como caminho para “descobrir novos conteúdos”, ou seja, para aprender coisas novas. Para explicar como o método de alfabetização de Paulo Freire - a Peda- gogia do Oprimido - era utilizado por cada setor do ALFIN, Boal descreve a prática de Estela Liñares no setor de fotografi a: Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revolucionários devem transferir ao povo os meios de produção teatral, para que o povo os utilize à sua maneira e para os seus fi ns. O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la! Como deve, porém, ser feita esta transferência? Quero começar, dan- do o exemplo do que fez Estela Liñares no setor de fotografi a do ALFIN. Qual seria a velha maneira de se utilizar a fotografi a num plano de alfabetização? Sem dúvidas seria fotografar coisas, ruas, pes- soas, panoramas, comércio, etc., mostrar estas fotos aoalfabetizandos e discutí-las. Quem tiraria as fotos? Os alfabetizadores, capacitadores, instrutores. Mas quando se trata de entregar ao povo os meios de produção, deve-se entregar, nesse caso, a máquina fotográfi ca! Assim se fez no ALFIN. Entregava-se [Estela] uma máquina às pessoas do grupo que se estava alfabetizando, ensinava-se a todos a utilizá-la e se faziam propostas: “Nós vamos fazer perguntas a vocês. Nossas per- guntas vão ser feitas em castelhano, e vocês vão nos responder. Mas vocês não podem responder em castelhano: vocês têm que “falar” em fotografi a. Nós vamos perguntar coisas na língua castelhana, que é uma linguagem. E vocês vão nos responder em fotografi a, que tam- bém é uma linguagem. (BOAL, 2013, p. 124) Após relatar as várias fotos-respostas produzidas pelos alfabetizandos, Boal passa a fazer a analogia, da experiência com a máquina fotográfi ca como meio de produção da fotografi a, com o corpo humano - para ele o Teatro do O prim ido e U niversidade 25 meio de produção do teatro. Nasceria, aí, o Teatro do Oprimido? Sigamos o raciocínio de Boal: É fácil dar uma máquina fotográfi ca a uma pessoa que jamais tirou uma foto, dizer-lhe por onde deve olhar para poder enfocar e que botão deve apertar. Basta isso e os meios de produção da fotografi a estarão nas mãos desta pessoa. Mas como proceder no caso específi co do teatro? Os meios de expressão da fotografi a estão constituídos pela máquina fotográfi ca, que é relativamente fácil de manejar, mas os meios de produção do teatro estão constituídos pelo próprio homem, que já não é tão fácil de manejar. Podemos afi rmar que a primeira invenção do vocabulário teatral é o corpo humano, principal fonte de som e movimento. Por isso , para que se possa dominar os meios de produção teatral, deve-se , primeiramente, conhecer o próprio corpo, para poder depois torná-lo mais expressivo. Só depois de conhecer o próprio corpo e ser capaz de torna-lo mais expressivo, o “espectador” estará habilitado a praticar formas teatrais que, por etapas, ajudem- -no a liberar-se de sua condição de “espectador” e assumir a de “ator”, deixando de ser objeto e passando a ser sujeito, convertendo-se de testemunha em protagonista. (BOAL, 2013, p. 128) Aqui, Boal revela um insight. Através da fotografi a, ele percebe que é possível construir uma lógica de aprendizagem (uma metodologia, por- tanto) para se obter o conhecimento do teatro, enquanto produto a ser “analisado” e “produzido” pelo homem do povo. A partir desta dedução, Boal passa a sistematizar, através de um plano geral, a estratégia de conversão do espectador em ator - cerne do Teatro do Oprimido – como sujeito produtor do seu próprio discurso. Ressalta a função do historicismo na tomada de consciência do próprio corpo e da cultura, no sentido do pensamento fi losófi co latino-americano de independência, desenvolvendo o texto teórico-metodológico da Poética do Oprimido. Elabora um esquema dividido em quatro etapas: I - Co- nhecimento do corpo, II - Tornar o corpo expressivo, III - Teatro como linguagem e IV – Teatro como discurso.4 4. No chamado “arsenal” do Teatro do Oprimido, estas etapas serão renomeadas como “cate- gorias” e “técnicas”. 26 Ao observar e participar da experiência no setor de fotografi a em que era utilizada a metodologia de Paulo Freire, Boal percebe que é possível aplicar a mesma lógica na construção de um teatro popular, em que os meios-de- -produção são entregues aos operários e camponeses para produzirem as “armas”, ferramentas necessárias para levar a cabo a revolução. E a partir da análise do funcionamento da máquina fotográfi ca começa a se desenvol- ver um novo sistema, reutilizando diversas práticas oriundas do Seminário de Dramaturgia e Laboratório de Interpretação que produziram o “Sistema Curinga” dentro do Teatro de Arena, também aplicadas por ele em 1973. O ato de transferir para o teatro uma experiência realizada com um aparato técnico é totalmente científi co; e não é simples. Mas, lembremos que Boal teve uma sólida formação acadêmica como engenheiro químico e conhecia normas e procedimentos técnicos necessários para validar cien- tifi camente uma invenção, uma descoberta científi ca. O primeiro apontamento que o cientista Boal faz na “experiência de teatro popular no Peru” é defi nir que o meio de produção teatral é o corpo humano; logo, este precisa ser apropriado pelo artista-trabalhador porque, do contrário, esta “máquina” (re)produzirá a serviço do capital e da ex- ploração pelo opressor. É este, o primeiro fundamento do método que norteará o quadro geral do T.O.; não à toa, um dos exercícios mais aplica- dos no início de uma ofi cina do método é a “máquina de ritmos” (BOAL, 1998, p.129), na qual o corpo humano se expressa, em termos de movi- mento e som, como uma peça mecânica que se articula com outras peças, reproduzindo uma máquina em ação, acrescida de uma emoção e, depois, um tema próprio aos participantes. Boal desenvolve a sua teoria durante todo o exílio, passando pelo Chile, Argentina, Portugal e França, mas só irá retomar e aplicar a experiência do Peru em 1986, noutro projeto chamado Programa Especial de Edu- cação – PEE (muito similar à Operação de Alfabetização Integral, de Salazar Bondy), nos chamados Centros de Integrados de Educação Pública Brasil – os CIEPs. O PEE foi desenvolvido no ambiente da democracia trabalhista de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, recém-eleito governador deste estado brasileiro nas primeiras eleições diretas durante a vigência da Lei da Anistia (lenta, gradual e irrestrita) feita ainda sob o regime militar. O idealizador e coordenador do programa também era um intelectual, o antropólogo e vice-governador Darcy Ribeiro, que convidou Boal a fazer parte da equipe treinando os chamados “animadores culturais” - mais uma semelhança com os promotores sociais do SINAMUS que atuaram como alfabetizadores no ALFIN. Teatro do O prim ido e U niversidade 27 Darcy Ribeiro cria em 1984 o PEE - Programa Especial de Educação, que teve por base a construção de 500 CIEP’s - Centros Integrados de Educa- ção Pública - projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Os estudantes dos CIEPs tinham acesso, além dos conteúdos regulares da Educação Básica, a aulas práticas e orientações sobre temas culturais diversos, enriquecidos com o saber e o conhecimento produzido e transmitido oralmente em sua própria comunidade: capoeira, samba, danças dramáticas, confecção de pipas, de instrumentos musicais, cortejos festivos, uso de ervas medicinais, brinquedos populares criados por mestres da cultura popular e artistas de diferentes linguagens; enfi m, animadores culturais e seus saberes. Cada unidade do PEE possuía em seus quadros três deles, chegando a um total de mil e quinhentos profi ssionais organizados em polos regionais, cujos projetos funcionavam em sistema de rede. Darcy Ribeiro havia promovido, durante o seu exílio na França, reuni- ões com professores, artistas e intelectuais, entre eles Augusto Boal, que na ocasião apresentara a ele o Plano Piloto da Fábrica de Teatro Popular, título que nos remete inevitavelmente ao seu texto “Uma Experiência de Tea- tro Popular no Peru” e à estratégia de apropriação dos meios-de-produção ao Teatro Popular. Em 1986, 13 anos depois, a experiência no “Setor do Teatro” do ALFIN sairia fi nalmente do laboratório e iria para a linha de produção de uma fábrica de teatro popular produzindo obras artísticas com temas populares. Os trinta primeiros artistas-operários da “fábrica” foram os animadores culturais dos CIEPs de diversas regiões do estado do Rio de Janeiro, que produziram cinco espetáculos de teatro-forum com os temas: Gravidez na Adolescência, Loucura, Violência Policial x Preconceito Racial, Violência Sexual Intrafamiliar e a Ausência de Incentivo à Cultura Popular. Estes es- petáculos foram apresentados nos refeitórios dos CIEPs, transformados em salas teatrais para alunos, professores ecomunidade do entorno das escolas. Para mim, no primeiro número do jornal da Fábrica de Teatro Popular, Boal faz alusão indireta a experiência que teve na Operação ALFIN, ao organizar a sua ‘fábrica’ por setores, como fez Salazar Bondy: Se chegar a ser feita, a Fábrica justifi cará seu nome. Terá uma Linha de Montagem pela qual passarão as Unidades de Montagem. Cada Uni- dade será constituída por um pequeno grupo, de 10 a 20 ou 25 pessoas, que receberão treinamento específi co nos diferentes setores: seminário de Dramaturgia, Laboratório de Interpretação e Atelier de Cenografi a. Estes 28 Setores, por sua vez, poderão funcionar em base permanente com outros participantes mais constantes. Assim, cada Setor formaria animadores em cursos rápidos e também especialistas, em tempo indeterminado. (BOAL apud TURLE, 2014, p. 32, grifos do autor) Assim como o ALFIN, a “fábrica” não fi cou aberta muito tempo devido às oscilações políticas no país que causaram o fi m do PEE, mas ela deixou um produto concreto fundamental para a difusão do T.O. no Brasil e no mundo: o Centro de Teatro do Oprimido. A experiência pontual propiciada pela Operação ALFIN, com Estela Liñares e os outros artistas que tentavam aplicar a Pedagogia do Oprimido de Freire através de linguagens artísticas para a alfabetização de adultos, foi tão marcante para Boal que ele a retomaria em 2001, com a equipe do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro. Segundo o cenógrafo Cachalote Mattos e o pedagogo Flavio Sanctum5 que participaram desta reedição da experiência, Boal compra máquinas fo- tográfi cas descartáveis e pede “foto-respostas” para os alunos de um projeto social chamado Mãos à Arte, fi nanciado pelo governo brasileiro. Nele, os alunos fotografam suas próprias mãos trabalhando com técnicas de ilumi- nação cênica, fi gurinos, cenografi a. Estas fotos-respostas são analisadas por todo o grupo de alunos em refl exão coletiva, para a conscientização do uso do meio de produção teatral, que é o corpo humano. A partir daí, Boal começa a desenvolver uma série de novos jogos e exercícios baseados em várias linguagens artísticas dentro do tripé SOM-PALAVRA-IMAGEM, aos quais irá denominar “Estética do Oprimido”. Será esta a base da Árvore do Teatro do Oprimido (BOAL, 2013, p. 15-16), título de seu último livro, publicado post-morten, confi rmando que ele manteve até o fi m da vida o aprendizado da experiência do Peru viva em sua memória, como raiz nu- triente de seu método. Sempre lamentamos que nos países pobres, e entre os pobres dos pa- íses ricos, seja tão elevado o número de pré-cidadãos fragilizados por não saberem ler nem escrever; o analfabetismo é usado pelas classes clãs e castas dominantes como severa arma de isolamento, repressão, opressão e exploração. 5. Curingas integrantes do CTO, à época bolsistas do projeto social Mãos à Arte. Teatro do O prim ido e U niversidade 29 Mais lamentável é o fato que de que também não saibam falar, ver, nem ouvir. Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez estética. Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da produção de sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as formas de Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à condição de espectadores. (BOAL, 2009, p. 15) No mesmo livro, a equipe do CTO publica um texto que nos permite interpretar que Boal manteve a mesma metodologia, já adaptada aos dias de hoje, para o treinamento dos alfabetizadores “multiplicadores”, utiliza- do no ALFIN: A pesquisa da Estética do Oprimido foi constituída por meio da ex- perimentação prática em laboratórios teatrais e da sistematização te- óricas em seminários. Encontros quinzenais com a equipe do CTO, semestrais com multiplicadores de diversas regiões do Brasil, e labo- ratórios ampliados com participação internacional. Nos laboratórios experimentávamos entre nós para depois repassar- mos aos multiplicadores em formação, que assumiam a tarefa de pra- ticar junto a grupos comunitários no Brasil, Guiné-Bissau, Moçam- bique e Angola Estas práticas retornavam para a análise coletiva por meio de relatórios de atividades, alimentando um diálogo permanen- te entre Boal, Curingas e Multiplicadores. Surgiram exercícios, jogos e técnicas para potencializar o uso da ima- gem, do som e da palavra. A criação – de poesias, músicas desenhos, pinturas, danças, esculturas, e espetáculos – ratifi cava o novo conceito e impulsionava radicalmente a habilidade dos integrantes dos grupos em criar metáforas, em apresentar a realidade a partir de suas próprias perspectivas. (Equipe do Centro de Teatro do Oprimido in BOAL, 2009, 11-12) Por fi m, este ensaio tentou fotografar os diferentes ângulos do nas- cimento do Teatro do Oprimido durante a experiência de alfabetização integral realizada no Peru, com o objetivo de capturar o exato instante em que se revela a visão científi ca de seu criador. Boal faz uso do substantivo “descoberta” ao narrar episódios que o aju- daram a processar um raciocínio lógico na sua criação. Em seu sentido dicionário, a palavra descoberta possui vários signifi cados, como por exem- plo: “invenção”, “invento”, ação ou resultado de descobrir, de conhecer ou 30 fazer conhecer o que não era conhecido; aquilo que se descobriu, por in- venção, por pesquisa ou por acaso e, ainda, achado engenhoso ou solução inteligente para algo. O mais provável é que Boal tenha, conscientemente, escrito para um público não acadêmico, ou seja, para o povo. Afi nal, trata-se de um “arse- nal” de “exercícios e jogos para atores e não atores dizerem algo através do teatro [...] (operário, camponês, estudante, paroquiano, empregado públi- co, todos)” (BOAL, 1985, p. 9), por ele criado com a clara preocupação de socializar seu pensamento e de democratizar uma descoberta científi ca. De qualquer maneira, a sua escrita poética, metafórica e romanceada nos deixou pistas, fragmentos, rastros e vestígios que cabem, a nós, desve- larmos. Teatro do O prim ido e U niversidade 31 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANDRADE, Clara de. O Exílio de Augusto Boal: refl exões sobre um tea- tro sem fronteiras. Rio de Janeiro: 7Letras. 2014. BARAÚNA e MOTOS, Tânia e Tomás. De freire a Boal – Pedagogia do Oprimido – Teatro do Oprimido. Ciudad Real: Ñaque Editora, 2009. BOAL, Augusto. Teatro Legislativo: versão beta. – Rio de Janeiro: Civili- zação Brasileira, 1996. _____________. 200 Exercícios e Jogos para o ator e o não-ator com von- tade de dizer algo através do teatro. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. _____________.Jogos para atores e não-atores. 14ª Edição. Revista e am- pliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. ____________ . Hamlet e o fi lho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. _____________.Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. São Pau- lo: Cosac Naify, 2013. _____________.Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond/FU- NARTE, 2009. CANNABRAVA FILHO, Paulo. 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Teatro do Oprimido e Negritude: A utilização do tetro- -forum na questão racial. Rio de Janeiro: E-papers, 2014. Augusto Boal sistematizou sua metodologia teatral - o Teatro do Opri-mido - onde de forma bem direta incentiva a democratização, a multi- plicação e a produção teatral baseado, simplesmente, no conceito de que o teatro é parte essencial do ser humano e, sendo assim, todo mundo é capaz de fazer teatro. Em “Jogos para Atores e não Atores”, o autor defi ne que: O Teatro do Oprimido é teatro na acepção mais arcaica da palavra: todos os seres humanos são atores, porque agem, e espectadores, por- que observam. Somos todos espect-atores. O teatro do Oprimido é uma forma de teatro, entre todas as outras. A linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, e a mais essencial. Sobre o palco, atores fazem exatamente aquilo que fazemos na vida cotidiana, a toda hora em todo lugar. Os atores falam, andam, exprimem ideias e revelam paixões, exatamente como todos nós em nossas vidas no corriqueiro dia-a-dia. (Boal, 2006, p. ix). O Teatro do Oprimido é um teatro com forte característica política e social, tratando de questões de confl ito entre oprimidos e opressores, onde a dramaturgia nasce de histórias reais contadas pelos próprios oprimidos. Ao longo da primeira fase do TO, os espetáculos de Teatro-Fórum gerados pelo método, muitas vezes, partiam da estética realista, que reproduzia o formato televisivo da maioria das novelas brasileiras e do cotidiano, não atingindo plenamente o seu objetivo de ativar a plateia que poderia ocorrer A ESTÉTICA DO OPRIMIDO O jogo (de imagem) no teatro fórum CACHALOTE MATTOS 34 com maior potência se todos os elementos necessários para o espetáculo fossem desenvolvidos a partir de sua própria estética. Em entrevista com Claudete Felix e Licko Turle (fundadores do Centro de Teatro do Oprimido), uma das primeiras peças de Teatro-Fórum mon- tadas após a volta de Boal ao Brasil (1986) depois do exílio, foi “A Família”, dentro do projeto “Fábrica de Teatro Popular”, para trinta animadores cultu- rais. Segundo eles, esse espetáculo possuía essa estética realista na encenação, no fi gurino e no cenário, tendo, na fi cha técnica, cenógrafo e fi gurinista, pro- fi ssionais contratados para pensar o espaço e a imagem da cena. A utilização desse tipo de estrutura realista foi observada também em encontros, mostras e festivais de Teatro Fórum no exterior como, por exemplo, nas obras dirigi- das por Julian Boal e Adrian Jackson em um festival de teatro na Áustria em (2009). Estes espetáculos chamaram à atenção porque os atores entravam com roupas do cotidiano e todos os objetos eram usados de forma realista. Flávio Sanctum em seu livro “A Estética de Boal” também comenta sobre essa estrutura realista nas cenas de Teatro-Fórum: Nas primeiras peças de Teatro-Fórum, por exemplo, somente a utili- zação de uma mesa e duas cadeiras eram necessárias para transmitir ao público a ideia proposta pelo grupo. Posso dizer que não havia uma preocupação “estética” com os espetáculos como a utilização de elementos cênicos ou cenários elaborados, fi gurinos estilizados, inter- pretações teatralizadas e o caminho das encenações se aproximava de um realismo extremado. (Sanctum, 2012, p. 69) A partir do ano de 2001, as obras do CTO passam a ser desenvolvidas de forma diferente. Realizando experiências envolvendo todos os curingas da instituição e participantes dos grupos de TO, Boal passou a utilizar jogos que misturavam palavra, imagem e som – ou seja , a multilingua- gem do teatro, das artes visuais e plásticas, poesia, música e fotografi a para potencializar sensorialmente a equipe e provocar a criação e a execução de uma estética própria. Para exemplifi car, utilizo como referência o espetáculo “Coisas do Gênero”, criado em 2004 pelos curingas do CTO. Este apresentava um momento de transição, porque ainda existia a função do cenógrafo, mas já havia uma participação do elenco na produção de imagens para o espetácu- lo. A peça falava sobre opressão feminina e tinha como cenário uma grande escultura de três metros de altura, na forma de uma representação da mu- lher com os seios de fora, vestida na parte de baixo de ‘palha da costa’, Teatro do O prim ido e U niversidade 35 representando a mãe terra, “o início de tudo”, onde de seu ventre nascem alguns orixás do Candomblé. Por último, surge a Orixá Nanã balançando uma criança. Em seguida, desse ventre, nascem a mulher e o homem. O espetáculo segue mostrando as opressões ocorridas contra a mulher desde a infância, representada por determinação de cores conhecidas socialmente para representar o gênero masculino e o feminino (azul para menino e rosa para menina) até a vida adulta com o assédio sexual no trabalho. O espetáculo trouxe uma proposta de estrutura de encenação nada realista, baseando-se somente nada imagem, eliminando o texto. Espetáculo Coisas do Gênero. Da esquerda para direita: Claudia Simone, Helen Sarapeck e Flavio Sanctum. Foto: Noélia Alburquerque Até esse momento (2001), existia a fi gura do cenógrafo, do fi gurinista, do especialista com formação acadêmica6 ou então acontecia um treina- mento específi co para pensar e realizar cenários, adereços e fi gurinos. 6. Examinando arquivos de material de divulgação no CTO, podemos observar que vários ou- tros profi ssionais atuaram nessa parte de imagem entre 1986 e 2001. Atuaram como cenó- grafo por lá: Luiz Vaz, que além de cenógrafo era curinga; Zé Luiz, especialista em bonecos e Regina Primo. 36 Em 1998, inicio um curso de cenografi a no próprio CTO. O projeto chamava-se “Mãos à Arte”. Funcionava de segunda a sexta, das 07 h as 12 h e teve duração de seis meses. Os alunos recebiam uma pequena ajuda de custo para despesas com passagens e alimentação. No currículo: aulas de Teatro do Oprimido, criatividade aplicada, geografi a cultural, cenotéc- nica, eletricidade, corte e costura, criação de cenografi a, criação de luz e fi gurino. Nos primeiros dois meses do curso, todos participavam de todas as aulas e, a partir do terceiro, optavam por uma ofi cina técnica específi ca. Fiz toda a formação básica e depois, optei por cenografi a. Após o fi m do curso, Bárbara Santos me convidou para fazer uma espécie de teste: criar um cenário para o grupo Marias do Brasil, um GTO7 formado por empre- gadas domésticas. Nesse momento tive a minha primeira oportunidade de criação, de pôr em prática tudo o que havia aprendido. Criei uma cozinha toda feita de papelão, onde todos os objetos desse ambiente saiam de um único ponto. O fogão era a base de onde saiam a geladeira, o micro-ondas, a pia, os armários e as panelas. A partir desse cenário, passei a ser colabo- rador do Centro de Teatro do Oprimido, respondendo pela cenografi a e fi cando nessa função durante os dois anos seguintes: 1998 e 1999. Passo a ser responsável pela cenografi a de quase todos os grupos da ins- tituição. Em 2000, ingresso na Universidade de Belas Artes para estudar cenografi a pela UFRJ, e continuo responsável pelos cenários dos grupos. A partir de 2001, com a proposta da Estética do Oprimido, esse papel de cenógrafo dentro do CTO foi se diluindo e os grupos passaram a criar as próprias imagens da cena, apropriando-se cada vez mais dos meios de produção. Dessa maneira, ocorreu o começo da implantação da Estética do Oprimido dentro do CTO. Nas fi chas técnicas dos espetáculos, meu nome deixa de aparecer como cenógrafo e passa a aparecer como consultor de imagem. Nesse período, multiplicam-se as experiências com jogos de imagem, palavra e som em laboratórios periódicos, muitas vezes facilitados por Augusto Boal. Nesses espaços, Boal sugeria um jogo, que ele extraia de al- gum lugar, ou tinha aprendido com outra cultura ou até mesmo um jogo adaptado ou inventado por ele para tal fi nalidade. Em seguida, explicava o passo a passo, as regras do jogo. Os participantes jogavam e ele observava tomandonota de tudo. Ao fi nal começava uma rodada de avaliação e de impressões dos participantes. Se fosse fundamental, modifi cações eram 7. GTO- São grupos de Teatro do Oprimido Teatro do O prim ido e U niversidade 37 feitas e o jogo era repetido o quanto fosse necessário para compreensão dos participantes. Depois de testada a funcionalidade dos jogos para aquela fi nalidade, es- tes eram sistematizados. Boal escrevia o passo a passo da versão que o grupo achava mais efi ciente para que no futuro outras pessoas pudessem aplicar o jogo somente lendo o enunciado. Em uma segunda etapa, os jogos eram aplicados com os grupos existentes no CTO e em projetos de capacitação e os resultados voltavam para Boal em forma de relatórios e, se fosse preciso, faziam-se mais modifi cações. Durante todos os anos junto ao CTO, foi possível observar uma meto- dologia viva que, a cada momento, era repensada pelo seu criador por meio de laboratórios experimentais, sistematização de novas ideias e aplicação direta com os grupos comunitários. Assim se deu até 2009, ano de sua morte. Por exemplo, entre as novas ideias, Boal investigava a possibilidade de passar ou transformar uma cena de “Arco-Íris do Desejo”, que trata de opressões intrapessoais para Teatro-Fórum, que fala de opressões recorren- tes na sociedade. Tendo em vista que mesmo essas opressões sendo ditas internalizadas e pessoais, nascem em um contexto social. Para isso, estava experimentando jogos como “Luta de boxe” e “O Tira na Cabeça”, ambos do livro “O Arco-Íris do Desejo”. O CTO e Boal buscavam investigar uma plasticidade visual, musical e cênica em seus espetáculos de Teatro-Fórum, vislumbrando uma estética teatral diferenciada do realismo habitual para as produções de Teatro do Oprimido combatendo a opinião de muitos críticos, onde ‘o Teatro do Oprimido se limitava a uma ferramenta social e política para discutir te- mas dos oprimidos com a sociedade, deixando de lado recursos técnicos e artísticos’. Boal afi rmava que “o Teatro do Oprimido é Teatro” feito pelo oprimido, com o oprimido e para o oprimido, por isso não fazia sentido que a produção artística – desenvolvida através da imagem, do som e da palavra – fosse fruto do trabalho de especialistas. Os próprios oprimidos deveriam dominar os meios de produção envolvidos na obra teatral. Segundo Boal: Para que seja praticado massivamente é necessário que compreenda- mos que a atividade artística é natural a todos os homens e a todas as mulheres. São as repressões que sofremos ao sermos “educados” que 38 nos limitam e estreitam nossa capacidade de expressão. As crianças dançam, cantam e pintam. Depois, com a repressão que sofrem na família, na escola, no trabalho, convencem-se de que não são bailari- nos, nem cantores, nem pintores. Porém, devemos compreender que todos os homens são capazes de fazer tudo aquilo que um homem é capaz de fazer. É claro nem todos o farão com a mesma maestria, mas todos poderão fazê-lo! Todo mundo pode fazer teatro - até mesmo os atores! O teatro pode ser feito em todos os lugares - até mesmo dentro dos teatros! (Boal, 1979, p. 19) É neste contexto que Augusto Boal propõe “A Estética do Oprimi- do”, uma metodologia que utiliza jogos e exercícios estéticos e teatrais no campo da Palavra, da Imagem, e do Som, que têm como objetivo poten- cializar sensível e esteticamente os participantes com intuito de provocar o protagonismo criativo através de apropriação dos meios de produção artís- tica. Desenvolver potencialidades criativas e intelectuais para lutar contra a opressão de uma estética hegemônica imposta pela classe dominante e pelos grandes meios de comunicação. Para isto traz para o Teatro do Opri- mido a prática de outras linguagens artísticas, como pintura, escultura, poesia, música, dança, fotografi a. Mas de onde teria nascido essa ideia? O que teria motivado Boal a in- cluir tal proposta dentro do Teatro do Oprimido? O Professor Doutor Licko Turle, (um dos fundadores do CTO, junto com Boal), na conferên- cia de abertura das III Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade - Sociedade, Diversidade e Comunidade (na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em agosto de 2015), denominada “Alfabetização Teatral: uma fotografi a da experiência de Augusto Boal, no projeto ALFIN no Peru”, defende a tese de que a Estética do Oprimi- do teria como base a experiência vivida por Boal, em 1973, no Projeto ALFIN, no Peru, apoiando-se nas teorias da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, que dizia “Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode fi car distante dos oprimidos” (FREIRE, 1994. p. 40). Segundo Turle, nesse projeto existia o Setor de Comunicação onde eram ministrados cursos que visavam a apropriação dos meios de produção das diferentes formas de comunicação popular como imprensa, fotogra- fi a, bonecos, gravação e teatro popular (este último coordenado Augusto Teatro do O prim ido e U niversidade 39 Boal). Como o plano de alfabetização seguia os princípios da Pedagogia do Oprimido, todo o setor de comunicação também experimentava a transmissão e o domínio das técnicas de produção a partir da ótica e do conteúdo do ‘oprimido’ tendo como ponto de partida a sua realidade e a possibilidade de transforma-la. Licko Turle, comenta que: Para Nestor Garcia Canclini, a sistematização do método de Boal, que segundo ele tem seus primórdios nas experiências com o Tea- tro Invisível em 1971 na Argentina, vai se consolidar defi nitivamen- te com a sua participação na Operação ALFIN, quando preparou alfabetizadores para utilizarem a linguagem teatral como recurso de alfabetização. (Turle, 2015) Essas experiências de Boal alcançaram, em 1973, uma organização sistemática e uma reformulação radical das bases do trabalho dramá- tico, graças a sua participação na Operação Alfabetizadora Integral, iniciada pelo governo peruano”. Essa Operação fundamentou-se em dois pressupostos: em primeiro lugar, levando-se em conta o enorme número de línguas e dialetos falados no Peru, alfabetizava-se na lín- gua materna e em castelhano, sem forçar o abandono da primeira em benefício da segunda; além disso, procurava-se alfabetizar em todas as linguagens possíveis, especialmente as artísticas, como teatro, foto- grafi a, marionetes, cinema e jornalismo. Se os homens se expressam e se comunicam em muitas linguagens, por que lhes dar apenas a opor- tunidade de desenvolver a forma escrita? Se, nas classes populares, a linguagem corporal é tão importante para a comunicação, por que não empregar os recursos teatrais para expandir esse campo expressi- vo? (CANCLINI, 1980, p. 167). Concordo com Turle, que esta teria sido a experiência no Peru, com atividades estéticas complementares ao teatro, um embrião para a criação da Estética do Oprimido. A experiência pontual propiciada pela Operação ALFIN, com Estela Liñares e os outros artistas que tentavam aplicar a Pedagogia do Opri- mido de Freire através de linguagens artísticas para a alfabetização de adultos, foi tão marcante para Boal que ele a retomaria em 2001, com a equipe do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro. (Turle, 2014). Em comunicação pessoal, Zeca Ligiéro questiona este ponto de vista de uma tomada de consciência apenas decorrente de uma pratica didática e 40 pedagógica exclusiva dentro do âmbito Boal/Freire, complementando com uma outra perspectiva de outras práticas artísticas e culturais que acontece- ram no mundo e na América Latina: Entre 1973, data do projeto ALFIN e 2001, início da pesquisa prá- tica com a Estética do Oprimido no CTO, são decorridos quase 30 anos, e por que durante todos esses anos essa proposta pedagógica envolvendo as outras artes ao teatro fi cou adormecida na prática de Boal? O que o levou a incorporar algo parecido aos Workshops de artes da década de 60 conhecidos nas escolas de arte como técnicas de expressão corporal ou expressão artísticas e que por sua vez, aindaeram oferecidas como disciplinas complementares em escolas ofi ciais de licenciatura em teatro, e mesmo em grandes eventos como os ha- ppenings em museus como o MAM, Parque Laje, do Rio etc. (Entre- vista em sala de aula 15/09/2015). Segundo Zeca Ligiéro no livro “Augusto Boal, Arte, Pedagogia e Polí- tica”, Boal, dentro de um contínuo processo de ensino e aprendizado ao longo de três décadas, transforma a criação original intitulada “Teatro do Oprimido” aos poucos em “Estética do Oprimido” (2013: 15-17), a partir de apropriação de técnicas variadas de outros pensadores como as técnicas realistas russas, técnicas de dramaturgia da língua inglesa, técnicas do tea- tro épico de Brecht e infl uência de Piscator, entre outros. Esses contatos, segundo Zeca Ligiéro, fazem parte de um rico processo de transformação de um artista em pedagogo, solidifi cando uma metodologia de investi- gação do sensível, misturando várias linguagens artísticas nos campos da Imagem, da Palavra e do Som. Com certeza, como lembra Ligiéro, a ideia de uma experimentação de uma totalidade artística em aéreas diversifi cadas como possibilidade de en- tender mais a fundo as opressões humanas, fi cou no pensamento de Boal, recebeu infl uência de vários outros pensadores e aguardou um momento e um ambiente fértil para ser desenvolvida. Boal viveu, entre 1971 e 1986, exilado, mudando de pais com a família para terras estrangeiras. Em 1986, Boal volta ao Brasil e até 2000, dedicou seu tempo a construção, a multi- plicação e a consagração do TO no Brasil, uma vez que a repressão proibia a difusão de suas ideias no país, especialmente nas escola de teatro. E talvez por isso não tenha posto em prática de forma sistematizada suas ideias so- bre as artes integradas, a multilinguagem. Teatro do O prim ido e U niversidade 41 Este ambiente fértil surge no ano de 2001 (quando o CTO dinamizava e coordenava sete GTOs estáveis com atividades continuadas e executava vários projetos de multiplicação do método em diversos estados brasileiros), e permite a Boal por em prática o que na teoria já estava incorporado em seu pensamento passando do campo das ideias para o campo da prática. No livro Teatro do Oprimido Raízes e Asas - Uma Teoria da Práxis de Bárbara Santos, a autora defende que: Como em todos os ramos do Teatro do Oprimido, também o pro- cesso de pesquisa, desenvolvimento e sistematização da Estética do Oprimido foi fruto de uma necessidade concreta imposta pela cir- cunstância do trabalho objetivo (Santos, 2016, p.304) As necessidades que surgiram com a constância das práticas com os grupos, foram determinantes no processo de sistematização da proposta. Respondendo as necessidades reais, observadas ao longo dos processos de investigação. Apesar do livro “A Estética do Oprimido” já ter sido publicado como uma versão embrionária denominada: Th e Aesthetics of Oppressed. Trad. Adrian Jackson. Londres/Nova York, Routledge, 2006, “A Estética do Oprimido”, versão fi nal, é um livro teórico publicado após a sua morte e, talvez por isto, tenha uma proposta de prática muito pequena desenvolvida entre as paginas 198 e 211, o que, ao contrário dos outros livros anteriores dedicados ao TO. “A Estética do Oprimido” vai em busca da subjetividade do indivíduo em um processo de auto - descoberta, através da experimentação de lingua- gens artísticas e, por ter essa característica mais subjetiva e aberta, abre uma imensa possibilidade de investigação. Foi essa abertura de possibilidades deixadas por Augusto Boal que se debruçam as experimentações nas áreas da imagem, palavra e som que acompanhei ao longo do meu trabalho junto ao CTO. Boal amplia, na “Estética do Oprimido”, antigos conceitos afi rmando que qualquer pessoa pode, além do papel de ator na cena, ser artista e experimentar o pensamento sensível em várias áreas artísticas: pintura, es- cultura, poesia, música, fotografi a, indo, portanto, além da atuação, como era planejado originalmente no seu Teatro do Oprimido: “Em algum mo- mento escrevi que Ser humano é ser Teatro. Devo ampliar o conceito: 42 Ser humano é ser artista! Arte e Estética são instrumentos da libertação” (BOAL: 2009, p.19). Boal retoma o conceito de estética enquanto pensamento sensível de- senvolvido, pelo fi lósofo alemão Alexandre Baumgarten como uma forma de pensar o não-verbal - a estética é a Ciência do Conhecimento Sensível. Mas Boal discorda do fi lósofo alemão de que esse seja um conhecimen- to inferior: “Esse não é um arquivo morto, mero registro de informações sensoriais, mas sim um dinâmico orquestrador das novas informações com as já recebidas e hierarquizadas, com as carências e desejos do sujeito”. (BOAL: 2009, p. 26). Essa fundamentação prática e teórica se deu por meio de laboratórios experimentais, onde os integrantes do CTO lhe davam retorno em forma de relatórios refl exivos e leitura do material textual que Boal produzia para escrever seu livro, analisando as outras três etapas. Como podemos obser- var na mensagem do e-mail abaixo: Curingas Acabei de rever completamente a primeira parte da Estética do Oprimido. Gostaria que vocês a lessem antes que eu mande para o editor. Mergulho agora na segunda parte. A terceira é o Projeto Prometeu. Eu tinha pedido a vocês e aos Multiplicadores Criativos do nosso último seminário que me mandassem informações sobre Ações Concre- tas, fatos relevantes, recentes ou antigos, que tenham que ver com a nossa prática. Ninguém mandou nada. Reitero: peço a vocês que: 1.Mandem; 2.Peçam aos Multiplicadores que mandem - eu não sei como enviar para eles, qual a lista, etc., porque suponho que estão em listas diferentes. Elucidem-me. Obrigado, Augusto Boal (19/09/2008). Nos laboratórios experimentais, conduzidos diretamente por Boal, parti- cipavam todos os curingas e mais alguns multiplicadores convidados. Nesses Teatro do O prim ido e U niversidade 43 encontros eram testados jogos e exercícios que serviam para potencializar a capacidade de criação e refl exão estética dos participantes. Além de verifi car quais os jogos do arsenal já existentes no livro “Jogos para Atores e não Ato- res” poderiam ser utilizados ou combinados com outros jogos para serem aplicados em ofi cinas com os GTOs, também eram testados novos jogos. Depois dos laboratórios, cada curinga aplicava os jogos e exercícios em ofi cinas abertas e projetos pontuais, analisando seu funcionamento para um próximo encontro com Boal. Participei diretamente de todos os projetos do CTO com os GTOs, em várias regiões do país e do mundo, assessorando todos os curingas na parte estética e pude perceber formas diferentes de aplicação da proposta, planejamento das ofi cinas e investi- gação do processo. O e-mail de Bárbara Santos, então coordenadora da instituição, à equipe de um dos projetos revela o quanto a sistematização da proposta se dava na prática, no dia a dia, com os grupos. A inclusão de atividades da Estética no Curso II de capacitação do projeto TO de Ponto a Ponto tinha como objetivo oferecer uma vivência para os Multiplicadores, para que eles pudessem entender melhor o TO como um todo e ter uma experiência pessoal com a Estética. Por ser um curso de formação de Multiplicadores, temos a expectativa de criar condi- ções para que haja a Multiplicação. Aqui começam as questões, pelo menos as minhas. O processo de Multiplicação precisa de uma formação mais ou menos estruturada, mas como oferecer algo estruturado durante o processo de estrutura- ção? Estamos em pleno processo de experimentação já fazendo curso de Multiplicação. Talvez tenhamos colocado muitas atividades da Estética dentro desse programa do Curso II, o que difi culta a atenção específi ca às questões relativas ao processo de produção do espetáculo de Teatro-Fórum, questão fundamental para os e as Multiplicadoras a esta altura do desenvolvimento do projeto (...)
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