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JOSEFINA ÁLVARES DE AZEVEDO

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#56
Seja bem-vindo ao Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias.
Eu sou Sabrina Siqueira. Este é o primeiro episódio que faço sem a parceria da minha cachorrinha Mafalda, que se foi semana passada. Eu to sentindo uma falta imensa, porque ela era minha companhia do dia inteiro. 
A minha semana foi triste, mas teve um acontecimento feliz: na quinta passada eu finalmente ganhei a minha primeira dose da vacina. Viva a ciência, viva o SUS, viva a pesquisa, viva as universidades públicas e abaixo com os governos que querem privatizar as universidades e manter os pobres ignorantes e miseráveis. Acabei não fazendo foto da minha vacina porque eu tava triste pela minha perda, mas a alegria de ser metade imunizada é grande. E pensar que esse fim de semana agora teve ex-atleta e youtuber fazendo stories afirmando ser contra a vacina, que vai tomar só porque quer viajar o mundo e é obrigatório. Que ignorância. Gente, não perde tempo seguindo ou escutando esse tipo de gente má, vem seguir e escutar o Literatura Oral, que aqui é pró vida! Agora to na contagem regressiva pela segunda dose da vacina!
No último episódio li a minha crônica “A polícia e o cortiço”, publicada no site paralelo 29. Hoje vou falar sobre uma autora que fiquei sabendo a partir do instagram @contosdesamsara, da escritora e pesquisadora de literatura Michele Fernandes. Trata-se de Josefina Álvares de Azevedo. Isso mesmo, o sobrenome de Manuel Antônio, autor de Lira dos Vinte anos, Macário e Noite na Taverna, esse último um livro de contos que foi tema do episódio #21 do Literatura Oral. 
Josefina Álvares de Azevedo ficou esquecida e eu fico muito feliz em saber da existência dela e mais feliz porque ela usava a escrita como forma de afirmação da capacidade feminina de ocupar espaços de poder na sociedade. Eu fico me perguntando quantas outras escritoras mulheres não ficaram silenciadas, algumas com mais talento que alguns homens que nós acabamos estudando, e elas ficaram esquecidas, não tiveram seu talento reconhecido por serem mulheres.
A obra mais famosa de Josefina foi a peça teatral “O voto feminino”, uma comédia em 1 ato. Ela também foi proprietária de um jornal no final do século XIX, chamado “A família”. Na época em que escreve essa peça, o voto feminino estava sendo debatido na sociedade de forma polêmica. Mais de um século depois da redação da peça a participação das mulheres na vida política nacional continua baixa. 
O local de nascimento de Josefina é incerto. Alguns dizem que foi no Recife, em Pernambuco, em 1851, e outros pesquisadores atestam que foi em Itaboraí, RJ. O parentesco com Manuel Antônio também não é certo, com as hipóteses de que era ou uma irmã bastarda ou prima do escritor. 
Ela fundou o jornal “A família” em São Paulo, em 1878, e isso também é uma peculiaridade, porque se não era usual uma mulher ser escritora e defender a participação feminina na vida pública, ou pelo menos isso não entrou para a história como algo recorrente, também não era comum uma mulher empreendedora, empresária. Em 1889 a sede do jornal foi deslocada para o RJ, e durou até 1897, sendo um periódico combativo. Nas páginas do seu jornal, Josefina defendia a educação feminina para se alcançar a emancipação da mulher. O jornal foi considerado radical porque propunha mudanças sociais. No século XIX, o mundo público era, por excelência, masculino. Mulheres eram mantidas analfabetas, na grande maioria, treinadas para serem esposas e mães, para coordenarem o lar. 
O jornal dela tinha um subtítulo, “Jornal literário dedicado à educação da mãe de família”, mas mudou sua linha editorial e perdeu esse subtítulo com o advento da República. Josefina tinha entendimento da importância da participação da mulher como eleitora. O que a gente pode ver no seguinte editorial, escrito em novembro de 1889: “Qual o destino que lhe reservam no conflito da vida nacional? [...] é necessário que a mulher, também como ser pensante, como parte importantíssima da grande alma nacional, como uma individualidade emancipada, seja admitida ao pleito em que vão ser postos em jogo os destinos da pátria. [...]. À mulher como ao homem deve competir a faculdade de preponderar na representação da pátria. Queremos o direito de intervir nas eleições, de eleger e ser eleitas, como os homens, em igualdade de condições. Ou estaremos fora do regime das leis criadas pelos homens, ou teremos também o direito de legislar para todas. Fora disso, a igualdade é uma utopia, senão um sarcasmo atirado a todas nós”. Percebam o entendimento que ela tinha da importância da mulher não só votar, como de ser elegível. E é esse o tema da peça O voto feminino. 
Josefina usa seu jornal como um veículo panfletário, não apenas a favor do voto feminino, mas como instrumento para convencer suas leitoras a se tornarem veículos de propagação desse ideal. Os jornais da época, administrados por homens, faziam críticas às tentativas das mulheres em participar do pleito. Publicavam charges dizendo que se as mulheres pudessem votar, escolheriam os candidatos pela aparência, numa tentativa de desmerecer a inteligência e a capacidade feminina em identificar a melhor proposta. E essa ideia de que mulheres não são tão capazes permanece. Ela aparece nos salários mais baixos pagos às mulheres, naqueles insultos no trânsito quando percebem que é uma mulher dirigindo e dizem “tinha que ser mulher pra fazer essa barbeiragem”! Já ouviram isso? O pior é que às vezes quem diz também é mulher. O machismo tá enraizado na nossa cultura. 
Todo trabalho de Josefina teve como objetivo a emancipação social da mulher. Reivindicava para as mulheres uma educação sólida e desenvolvida, que lhes preparasse com dignidade a desempenhar altas funções de Estado. Ela dizia em seus artigos que, para o Brasil estar ao lado das nações mais civilizadas do mundo, era necessário preparar a mulher não para ornamento de sala, mas para ser imprescindível no engrandecimento da pátria e, consequentemente, da família. Quer dizer, ela associava a participação da mulher na vida pública a uma melhora de desempenho da mulher como mãe e dona de casa, que era a única esfera de circulação onde os homens permitiam a liderança feminina, dentro de casa. 
Além de escrever em defesa dos direitos femininos, Josefina dava espaço em seu jornal para mulheres: articulistas, escritoras, poetisas e educadoras. Eu achei interessante o dado de que não só o “A família” como outros jornais femininos do século XIX eram editados no RS, por uma colaboradora de Josefina, chamada Revocata de Melo. O RS hoje me parece um lugar tão atrasado, mas algum dia já teve mulheres esclarecidas então. Existia uma rede de cooperação entre mulheres de diferentes Estados brasileiros para a execução desses jornais, e contavam também com colaboradoras internacionais. Mas, em alguns artigos, Josefina se ressentia que as questões importantes abordadas no jornal dela não despertassem nas senhoras brasileiras o interesse que era de se esperar, e preferissem as publicações de futilidades, de moldes de corte e costura e quebra-cabeças. Nenhuma novidade! Até hoje a gente escuta mulheres machistas falarem mal das reivindicações feministas. 
A peça O voto feminino acontece durante a mudança de regime do governo, sendo escrita em abril de 1890. É uma comédia de um ato, que pode ser classificada como comédia de costumes, escrita com a intenção de desmascarar o ridículo e a fragilidade da ideia de que a mulher foi feita apenas para os arranjos da casa. A peça também tem o intuito de preparar a sociedade para os avanços de um novo tempo de liberdade e maior igualdade entre os sexos, que poderia surgir com o regime republicano. 
Josefina aborda a questão do sufrágio feminino com humor. O enredo é sobre um embate entre os gêneros, representado por 3 casais, dois ricos e um casal de empregados. Homens e mulheres defendem seu ponto de vista sobre o assunto. A ação se passa na sala da casa de Anastácio, ex-ministro do Império, cujos despachos eram escritos pela mulher e pela filha, denunciandoa capacidade das duas para exercer um cargo no governo e a fraqueza intelectual dele. A esposa de Anastácio, Inês, e a filha Esmeralda, são as mulheres instruídas e desejosas de exercer a cidadania, votando e sendo elegíveis. Elas já escreviam os despachos e discursos dos maridos políticos e fica a sugestão de que se não fosse por elas, eles não teriam capacidade de ser ministro e deputado. 
A criada da casa, Joaquina, escuta a conversa e se empolga com a possibilidade de ter também um cargo público. Mas, pela falta de instrução, Joaquina interpreta de forma errada que o voto feminino faria uma inversão de papéis entre os gêneros, que os homens teriam que ficar em casa costurando e que as mulheres governariam o mundo. Como ela não tem o esclarecimento das outras duas, Joaquina não consegue vislumbrar um mundo de maior igualdade entre os gêneros, em que homens e mulheres poderiam escolher governantes, exercer cargos públicos e ambos, por que não, poderiam cuidar da casa. E assim é como pensavam alguns dos críticos ao voto feminino, diziam que as mulheres estavam querendo tomar o lugar dos homens e inverter os papéis sociais. Ao compor a personagem Joaquina pensando dessa forma, personagem que é menos estudada, menos culta, a escritora Josefina está chamando os críticos do voto feminino de pouco esclarecidos também. 
As personagens estão à espera da decisão do governo sobre a possibilidade do voto feminino. Há uma sétima personagem, Florêncio, que é um advogado amigo da família. Ele representa um homem sensato, culto e consciente, tem ideias avançadas a respeito da situação social das mulheres, o perfil ideal para defender o sufrágio feminino no Congresso. Essa personagem é criada para demonstrar explícita e racionalmente a coerência das opiniões defendidas por Josefina. Defende as ideias da autora não somente junto as outras personagens, mas principalmente perante o público. 
Josefina apoiou seu enredo numa consulta que de fato aconteceu a um ministro de nome Alvim, que deu uma resposta negativa quanto a regulamentar o alistamento feminino para o pleito, no RJ. A peça demonstra o medo dos homens numa inversão de papéis, em eles ter que ficar em casa costurando e lavando, e as mulheres poderiam estar livres para ter honras e posições. Quer dizer, de certa forma, as personagens masculinas admitem que as mulheres viviam numa semiescravidão, existindo para servir aos homens da família, procriar e organizar a casa, e que esse papel é ruim. A peça termina como havia acontecido na vida: com o indeferimento do ministro ao pedido de inclusão do público feminino na função eleitoral. A última fala é da personagem Esmeralda, de que ainda resta a elas um recurso, a Constituinte. Essa era provavelmente também a esperança da autora Josefina na Primeira República do Brasil. 
A peça sofreu críticas da imprensa da época, mas essa reação por parte dos homens foi sinal de sucesso, pois significa que a peça atingiu seu propósito de perturbar a ordem estabelecida e desnudar os argumentos contra a inserção feminina na esfera pública. 
Josefina desafiou o patriarcado. Não por acaso, sua obra foi varrida pra debaixo do tapete da história. Assim como Josefina, imagina quantas outras mulheres talentosas não ficaram silenciadas. Eu fico contente de falar sobre uma delas aqui, de levar ao conhecimento de quem ainda não sabia sobre Josefina Álvares de Azevedo. Se tu souber de alguma outra escritora que ficou à margem do mundo literário, me fala que eu quero comentar sobre esses trabalhos aqui no Literatura Oral. 
Josefina escolheu escrever sobre temas sociais, que poderiam causar impacto na sociedade, bem diferente do seu parente Manuel Antônio, que escreveu sobre morte, depressão, romantismo, e ficou famoso, associado à segunda geração do Romantismo brasileiro, ou geração ultrarromântica. Veja bem o que a história escolheu preservar e o que foi deixado de lado. O Manuel Antônio a agente estuda, cai em concursos e tudo. E da Josefina, quem aqui já tinha ouvido falar?
O direito feminino ao voto só aconteceu no Brasil durante o século XX. No RN em 1927 e no restante do território nacional em 1932. 
No ano seguinte da redação e primeira encenação da peça, em 1891, Josefina lança o livro A mulher moderna: trabalhos de propaganda, com uma coletânea de seus trabalhos pela emancipação social da mulher. Ali ela publica a peça O voto feminino e artigos sobre o direito do voto, artigos sobre a emancipação da mulher, artigos sobre divórcio e casamento civil, protesto sobre o decreto que proibiu o acesso das mulheres ao ensino superior e “respostas”, com réplicas a outros jornalistas contrários a suas ideias. 
Em 1897, Josefina publica Galeria Ilustre – Mulheres célebres, com biografias de mulheres notáveis e mundialmente conhecidas. Esse tipo de coletânea biográfica já existia, principalmente para homens célebres, e quando apareciam mulheres eram damas de caridade, filhas obedientes, mulheres religiosas. Mas Josefina escolheu exemplos que evidenciam papéis sociais ativos, como Joana D’Arc e a rainha Isabel da Espanha. Obviamente que esse volume escrito por Josefina não foi adotado pelo sistema escolar para ser usado em escolas primárias femininas. Josefina foi ousada contra uma ordem social que estabelecia rigidamente quais eram os papéis permitidos às mulheres de forma a não deixá-las ultrapassar as fronteiras do privado. 
Eu não encontrei a peça O voto feminino, de Josefina Álvares de Azevedo, no site do domínio público. Poderia estar lá, disponível para download. E poderia ter os contos da autora também, que eu acabei não encontrando nenhum. 
Fico contente de ter sabido dessa autora, não só por poder falar em uma escritora mulher que ficou esquecida, mas por ela ser uma mulher empenhada em fazer valer o direito de cidadãs mulheres, muitas das quais na época ficavam contra ela e contra suas ideias de progresso. Como agora, que feministas defendem direitos mesmo de mulheres que se posicionam contrárias ao feminismo. Ano que vem tem eleição. Quando forem votar, mulheres, pensem no quanto foi trabalhoso conseguir o direito de voto. Pensem em quantas mulheres tiveram que defender esse nosso direito, e não votem nulo ou branco. Posicionem-se. Lembrem da Josefina e se informem sobre os candidatos, talvez se candidatem também. Ainda existe muito pouca mulher interessada em política. No Brasil, desde 1995 existe uma lei que determina cotas para mulheres dentro dos partidos, mas isso não vem se refletindo em candidatas eleitas. É um processo. E nem sempre significa que uma candidata faça mais pelos direitos das mulheres que um candidato, não necessariamente. 
Pra escrever esse roteiro eu busquei informações no artigo “Josefina Álvares de Azevedo e a peça teatral O voto feminino: A escrita como instrumento de luta”, de Mônica Karawejczyk, publicado na Revista Travessias, em 2018. Na dissertação de Letras Literatura “O florete e a máscara – Josephina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX”, de Valéria Andrade Souto-Maior, defendida na UFSC, em 1995. E no e-book de Michele Machado Fernandes, através de quem eu soube da Josefina pela conta do instagram @contosdesamsara. O e-book faz parte de um projeto chamado “O que contam as mulheres?” e pode ser conseguido grátis na bio dessa conta de instagram. Aproveita pra seguir a Michele e também pra seguir o @literaturaoral, e já aproveita e te inscreve no meu canal do youtube também, que não custa nada e ajuda muito!
Valéria Souto-Maior coloca Josefina ao lado de Nísia Floresta, como as vozes femininas mais fortes a se pronunciarem no Brasil pela conquista dos direitos das mulheres, principalmente no tocante à necessidade de instrução formal feminina. Sobre a Nísia Floresta já falei aqui no Literatura Oral, no episódio #41. 
Então eu deixo a leitura da peça O voto feminino, de Josefina Álvares de Azevedo, como sugestão de leitura. Por hoje fico por aqui. Fiquem bem e até o próximo episódio do Literatura Oral.

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