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Código Logístico Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6369-7 H istória M edieval M ateus Sokolow ski IESDE BRASIL S/A 2018 História Medieval Mateus Sokolowski Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Capa: IESDE BRASIL S/A. Imagens da capa: Paul Petey/Alex_Bond/iStockphoto. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S674h Sokolowski, Mateus História medieval / Mateus Sokolowski. - [2. ed.] - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018. 170 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6369-7 1. Idade Média - História. 2. Civilização medieval. 3. Histó- ria - Estudo e ensino. I. Título. 17-46164 CDD: 940.1CDU: 94(4)”0476/1492” © 2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Apresentação Nas próximas páginas iremos embarcar em uma viagem por mais de mil anos de história, que se inicia com a queda do Império Romano do Ocidente (476) e vai até a tomada de Constantinopla pelos turcos oto- manos (1453). Mais do que isso, discutiremos a importância desses mar- cos, para descobrir que as coisas não mudam do dia para a noite, mas se constroem por meio de processos, continuidades e rupturas do período anterior (Idade Antiga) ao posterior (Idade Moderna). O espaço geográfi- co abordado neste livro é o Ocidente latino, mas, para compreensão desse contexto, foi fundamental abordar os estudos sobre Bizâncio e sobre o Islã. Trataremos aqui sobre o que “não foi a Idade Média” e sobre o que realmente foram as sociedades feudais e suas instituições, como a cavala- ria e a Igreja. Estudaremos a importância das cidades, o florescimento da arte e da cultura e sobre como o homem medieval superou os desafios de seu tempo. No decorrer desta obra iremos superar os preconceitos e a incom- preensão que ronda a Idade Média, para descobrir o que ela nos deixou de mais valioso: a busca pela compreensão e convivência com as diferen- ças. Afinal, todas as eras são feitas de luz e trevas, e não cabe a nós julgar ou projetar as trevas de nosso tempo no passado, mas sim compreender esse período pela perspectiva de que, se o homem medieval foi capaz de superar-se e vencer paradigmas que pareciam intransponíveis, nós, por meio do conhecimento e do respeito pelas diferenças, também somos ca- pazes de modificar o nosso tempo. Esta obra é dedicada a Babcia (Irena Sokolowski) e Dziadzio (Leopoldo Antonio Sokolowski, in memoriam), professores exemplares e inspiração para vida! Bons estudos! Sobre o autor Mateus Sokolowski Mestre e graduado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de História no Ensino Superior. Pesquisador e profes- sor de música medieval. Fundador da banda Mandala Folk, na qual atua ativamente como músico. É também produtor cultural, tendo atuado em diversas produções e eventos, abordando sempre a relação entre a música e a história. 6 História Medieval SumárioSumário 1 O que não é Idade Média 9 1.1 A importância de se estudar a Idade Média hoje 10 1.2 Uma discussão cronológica e espacial do período Medieval 12 1.3 História medieval no Brasil: um balanço crítico da historiografia nacional 15 1.4 Os preconceitos em relação à Idade Média 16 2 O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições 23 2.1 A teoria dos dois gládios: o espiritual e o temporal e a formação da sociedade feudal 24 2.2 Oratore, belatore e laboratore 28 2.3 A importância das relações feudo-vassálicas: senhor (proteção e benefício) e vassalo (fidelidade e serviço) 32 3 A cavalaria medieval 39 3.1 Cavalaria e literatura 40 3.2 A Reconquista cristã na Península Ibérica 43 3.3 As Cruzadas 46 4 A fé cristã 55 4.1 As heresias 56 4.2 As ordens religiosas da Igreja 60 4.3 A hierarquia da Igreja 63 5 A cidade medieval 69 5.1 Os marginais de uma nova sociedade urbana 70 5.2 O crescimento das cidades e o reconhecimento da burguesia 73 5.3 Maravilhas da Idade Média: os castelos e as catedrais 77 História Medieval 7 SumárioSumário 6 A Baixa Idade Média 85 6.1 Um debate a respeito do ano 1000 86 6.2 O outono da Idade Média 89 6.3 A peste negra e a Guerra dos Cem Anos 92 7 Arte e cultura material no Medievo 101 7.1 O estilo românico 102 7.2 Arte gótica 109 7.3 Os trovadores e o amor cortês 112 8 O Islã 119 8.1 Maomé e o nascimento do Islã 120 8.2 A expansão do mundo islâmico: os califados Omíada e Abássida 124 8.3 Xiitas e sunitas 128 8.4 Falsafa: a filosofia árabe 129 8.5 O Al-Andaluz 130 9 Bizâncio 139 9.1 O surgimento de um império na cidade de Constantino 140 9.2 Religião e Cisma 144 9.3 Estruturas políticas e econômicas 147 9.4 Arte e cultura 151 10 Continuidade e rupturas: a chegada dos tempos modernos 157 10.1 Idade Média, Renascimento e a chegada dos tempos modernos 158 10.2 Transformações estruturais na Baixa Idade Média 160 10.3 As fontes medievais e o ensino de História 162 História Medieval 9 1 O que não é Idade Média Neste primeiro capítulo iniciaremos nosso estudo a respeito de mais de mil anos de história medieval. Para que isso seja possível, é necessário que façamos um recorte espacial e temporal, além de dividir esse período tão extenso em temáticas. Escolhemos iniciar o assunto esclarecendo os erros mais comuns que cometemos ao abordar esse período, chamado equivocadamente de “Idade das Trevas”. Afinal, ao superar nossos preconceitos em relação ao tema, tornamo-nos capacitados para nos debruçar sobre os livros e as fontes históricas, a fim de definir nossos próprios recortes e questões sobre esse período tão fascinante e negligenciado por boa parte das institui- ções universitárias brasileiras. O que não é Idade Média1 História Medieval10 1.1 A importância de se estudar a Idade Média hoje Quando as caravelas portuguesas avistaram as terras brasileiras, elas traziam em sua tripulação homens que tinham a herança de uma cultura medieval. Portugal e Espanha ha- viam vivido a Reconquista cristã na Península Ibérica, um processo histórico iniciado com uma série de batalhas no século VIII, marcado também pela convivência e pela negocia- ção com o Al-Andaluz, domínio muçulmano na região. Esse processo só chegaria ao fim em 1492, com a conquista do Reino de Granada, último reduto muçulmano na Península Ibérica, pelos reis católicos. É fundamental compreendermos esse período, para poder en- tender a mentalidade guerreira desses homens que desembarcaram nas Américas. A religião católica, o culto aos santos, a música modal somada à poesia carregada de paralelismos1 ecoam ainda hoje na literatura de cordel, no movimento armorial e nas típicas canções regionais do Brasil, testemunhando tal herança. Ademais, observando atentamente a religiosidade popular, verificamos a presença da crença em São Jorge, também popula- rizado na música Jorge da Capadócia, de Jorge Ben Jor. “Jorge é da Capadócia, salve Jorge”, canta ele. Você sabia que São Jorge já era muito cultuado no Império Bizantino? Sabia que a Capadócia é uma região próxima a Bizâncio2 atualmente pertencente à Turquia? Essas seriam apenas amostras de como é importante conhecer a cultura medieval para conhecer melhor não só o Brasil, mas o mundo em que vivemos. É comum que questões ur- gentes e cada vez mais atuais recorram à Idade Média em busca de explicações. Na Europa, discute-se o Brexit, a legitimidade da própria união Europeia e os conflitos com a Turquia. As políticas públicas em relação a refugiados e imigrantes provocam debates acalorados que constantemente necessitam da História para desatar esses nós. Evoca-se a Idade Média para discutir a legitimidade de tais políticas e, no Brasil, temas como religião e preconceito cla- mam por uma maior profundidade nos debates. Somado a isso, é imprescindível que todos nós conheçamos outras realidadesespaciais e temporais. Os historiadores, durante sua formação, devem também conhecer o trabalho de im- portantes medievalistas franceses, espanhóis e italianos que muito contribuíram para avanços no estudo da História em toda parte do mundo. Georges Duby e Jacques Le Goff, por exemplo, membros da Escola dos Annales contribuíram para trazer à tona conceitos de imaginário e mentalidade, categorias de estudo que certamente revolucio- naram a historiografia. Hoje, mais do que nunca, é importante que os professores convidem seus alunos a compreender como as ideias são forjadas e acabam por se transformar ao longo do tempo. Em tempos em que o terrorismo provoca medo na sociedade, por meio da história medieval 1 Repetição simétrica e rítmica de palavras muito utilizada na poesia dos trovadores medievais. 2 O endereço a seguir é do Bizantística, um portal dedicado ao Império Bizantino. Indicamos especial- mente a leitura do artigo sobre os santos guerreiros bizantinos, disponível em: <https://imperiobizantino. com.br/2012/07/16/santos-guerreiros-bizantinos-martires-guerreiros-e-orixas/>. Acesso em: 4 set. 2017. O que não é Idade Média História Medieval 1 11 pode-se compreender o contexto de surgimento de muitos conceitos aplicados hoje por gru- pos extremistas. Por exemplo, o conceito de Jihad foi cunhado no período medieval, signi- ficando a luta pela fé, similar ao conceito de Guerra Santa e Cruzadas, empregado pelos reinos cristãos. Recentemente, as propostas de alteração da BNCC – a Base Nacional Comum Curricular no Brasil – provocaram intensos debates sobre a importância de se manter o estudo da Idade Média no currículo. Um dos argumentos no documento publicado pelo Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR (Nemed) é de que o Brasil não está isolado e separado de tradições culturais medievais. A eliminação da Idade Média do currículo causaria prejuízos incomensu- ráveis ao desenvolvimento da noção, de tempo e espaço. Centrar o estudo da História em ape- nas um só contexto, ou país, pode desembocar num estudo puramente ideológico. Segundo a carta escrita pelo Nemed, A História, nesta proposta, perde a sua dimensão de vivido e inviabiliza a sua reflexão crítica enquanto parte de algo que existiu e nos toca até hoje. Ao im- por recortes contextuais arbitrários e focos específicos perde-se a compreensão do todo em detrimento da visão mecanicista da parte. Os processos históricos desaparecem e destacam-se apenas as construções predominando nesta proposta a concepção de História contada, o que em mentes juvenis com pouca vivência pode dar a impressão de se estar tratando de uma sociedade imaginada numa realidade ficcional. A História perde ainda, nesta proposta, a sua dimensão uni- versal, pois os homens são universais e não continentais ou nacionais. Antes de haver nações já havia processos históricos. (UFPR, 2015) Nesse sentido, nos perguntamos: como podemos estudar os conceitos de império, colônia, república ou democracia sem discutir os processos históricos nos quais eles foram pensados? Sabemos que uma História sem passado, cronologia e estudo das diferenças não pode ser chamada de História. Por isso a importância de se estudar História Antiga e Medieval, visto que esses períodos são fundamentais para a compreensão do momento em que vivemos. No século XXI, filmes, jogos e séries despertam a curiosidade dos jovens e da população em geral, e é importante que eles saibam situar e organizar cronologicamente e espacial- mente Atenas, Esparta, Florença, Roma, Paris, conhecendo os processos históricos dessas regiões. Aqueles que tentam problematizar a História sem uma cronologia oferecem visões deturpadas, equivocadas e que, infelizmente, encontram-se presentes em muitos de nossos manuais do Ensino Médio, constituindo, portanto, anacronismos que enfraquecem a História e que reduzem os esforços de gerações de historiadores brasileiros que defendiam exatamente a pluralidade de opções e pensamentos que apresentam a Antiguidade, o Medievo, a Modernidade e a Contemporaneidade em espaços que vão do Mediterrâneo em direção à Europa, à África, à Ásia e à América. (UFPR, 2015) Não podemos ignorar o estudo do Magreb e da Península Ibérica, cuja convivência entre muçulmanos e cristãos ao longo de sete séculos testemunhou muitas trocas culturais, assim como disputas. Os portugueses que chegaram ao Brasil já haviam entrado em contato O que não é Idade Média1 História Medieval12 com a cultura africana e traziam em si elementos étnicos e culturais daquele continente. É possível mostrar aos nossos alunos do Ensino Médio que a paz já foi alcançada entre mu- çulmanos e cristãos que compartilhavam o mesmo território – tal estudo certamente teria grande impacto no mundo em que vivemos. Ademais, o estudo da mentalidade de Cruzada pode ajudar a compreender a expan- são marítima portuguesa e o descobrimento do Brasil, não só como um projeto econômico, como aparece recorrentemente nos livros didáticos. Como ficaria uma geração de brasileiros sem conhecer o Ocidente latino, Bizâncio e o mundo muçulmano? A Idade Média foi muito mais que um período intermediário entre e antiguidade e modernidade. Foi a época da música dos trovadores, um tempo marcado por contradições entre os prazeres do carnaval e as privações da quaresma. São Tomás de Aquino, por exem- plo, desaconselhava o uso litúrgico da música instrumental porque provocava um deleite tão intenso que perturbava a concentração dos fiéis. Nesse tempo, em que os padrões de beleza eram radicalmente diferentes e a forma de se viver tão distinta da nossa, temos a oportunidade de repensar nossos próprios padrões com a consciência de que eles irão ine- vitavelmente, e da mesma forma, ser alterados no decorrer do tempo. Um dos objetivos do estudo da História é, justamente, descobrir que as mudanças são possíveis e que os paradigmas se alteram ao longo do tempo. Se deixarmos de estudar Idade Média, inevitavelmente esses objetivos deixarão de ser cumpridos. O homem medieval via o mundo como uma floresta repleta de perigos e as regiões remotas separadas por oceanos habitados por monstros marinhos. Essa visão de mundo, tomada pela ideia do maravilhoso, fazia-se presente na iconografia medieval, que ignorava a fronteira entre o mundo natural e o sobrenatural. O homem e a mulher medieval atribuíam um significado místico à natureza e possuíam uma visão de mundo em muitos aspectos radicalmente diferente das nossas, sendo, portanto, muito importante que nós estudemos esse período para descobrir o que herdamos dele e em que medida ele é radicalmente diferente do nosso. 1.2 Uma discussão cronológica e espacial do período Medieval Certo dia um romano foi dormir antigo e acordou medieval. Mil anos depois, num dia comum, um lavrador medieval arou a terra, foi dormir e acordou moderno. Essas colocações certamente não fazem sentido. As datas servem como uma guia, um roteiro, mas não são limites definitivos. Segundo o escritor italiano Umberto Eco (2010), estamos muito acostu- mados a delimitar a Idade Média com a dissolução do Império Romano, que, fundindo a cultura latina e tendo o cristianismo como aglutinante, deu origem ao que hoje chamamos de Europa, com suas nações e instituições. Tal concepção propõe a data de 476 d.C. para marcar o fim do Império Romano do Ocidente, quando o rei vândalo Odoacro, dos Hérulos, depõe o último imperador null O que não é Idade Média História Medieval 1 13 romano, Rómulo Augusto, como o marco de início da Idade Média, que iria até a data de 1492, quando Colombo chega nas Américas – mesmo ano em que os reis católicos finalizam o processo de Reconquista cristã na Península Ibérica, com a conquista de Granada ao sul. Mas essas não são as únicas datas que podem ser utilizadas para marcar o início e o fim da Idade Média. É possível marcar o fim desse período com a queda de Constantinopla para os turcos otomanos, em 1453. De qualquer modo, teremos cerca de 1.016 anos de História,ou seja, trata-se de um longo período. Se observarmos de outra perspectiva, ao longo da própria Idade Média existe a mesma distância temporal que nos separa hoje dela. Ou seja, como esperar que ao longo de todo esse tempo não houvesse mudanças no pensamento e na forma de se ver o mundo? Portanto, cabe questionar se a Idade Média foi tão uniforme como imaginamos, durante esses 1.016 anos. Caso estudemos a fundo a obra de grandes pensadores da Idade Média, como Santo Agostinho (354-430) e sua obra Cidade de Deus, e São Tomás de Aquino (1225-1274), com a Suma teológica, podemos ver que o pensamento dos dois tem conexões importantes. No entanto, com mil anos de história separando esses dois pensadores, devemos entender que essas obras foram escritas em contextos completamente diferentes e devem ser lidas de acordo com suas especificidades. Na realidade, nós temos muitas “idades médias”. A começar pela divisão clássica, ela é separada pela Alta Idade Média (queda do Império Romano até o ano 1000) e pela Baixa Idade Média (do ano 1000 até 1492). Tal divisão é uma convenção entre os historia- dores devido às profundas mudanças de mentalidade que ocorreram com a passagem do milênio no ano 1000. Outra divisão didática adotada é a espacial, separando os conteúdos da Idade Média em dois grupos: Oriental e Ocidental. O termo Oriental aqui é digno de debate. Edward Said (2012) nos mostra que o termo orientalismo deve ser discutido, uma vez que tudo que não é parte da Europa Ocidental pode ser encarado como exótico, uni- forme, perigoso e de difícil compreensão, uma visão altamente tendenciosa e distorcida da realidade. Nesse sentido, a história da China, do Japão, do Tibete e da Índia medieval clama por uma abordagem mais profunda. Neste livro, procuraremos informar sobre o recorte tradicional, que inclui a história dos povos árabes e do império bizantino e suas relações com o Ocidente. Mas deixamos aqui o convite aos futuros pesquisadores para se debruçarem sobre esses temas tão carentes de estudos no Brasil. Acreditamos que, ainda assim, em meio a um contexto tão heterogêneo, podemos en- contrar uma unidade em três pilares da Idade Média na Europa, a confluência da tradição romana com a tradição germânica, aglutinada pelo cristianismo. Na Alta Idade Média, te- mos a ascensão do Reino Franco, que ocorreu de 482 a 814. Clóvis conseguiu unir os francos sob seu domínio, mas via a necessidade de obter terras e rendas para premiar e manter a lealdade de seus guerreiros. Com a conversão do Reino Franco ao cristianismo, os francos passam a ser vistos como defensores da cristandade contra os muçulmanos. Tal oposição é fundamental para compreender as relações de poder da época, pois o Império Carolíngio restaurou uma espécie de ordem política no Ocidente latino que não existia mais desde o fim do Império Romano do Ocidente. Por outro lado, essa identidade cristã realmente se null null null null null null null null null O que não é Idade Média1 História Medieval14 manifestava no difícil embate com o outro, o muçulmano, e, na maioria das vezes, tal iden- tidade se fragmentou devido às partilhas hereditárias e demandas locais. Nesse contexto de medo constante dos ataques frequentes dos vikings e sarracenos, existia, portanto, a necessidade de proteção que irá caracterizar o feudalismo. Os reis via- javam pessoalmente para fazer valer seus direitos e possuíam ainda um sistema adminis- trativo descentralizado; o império germânico segue em relação estrita e conflituosa com o papado, marcando as relações do poder na Alta Idade Média. Ao fim desse período, a par- tir do século IX a população de Europa encontrava-se provavelmente mais reduzida desde a queda do Império Romano, e as estradas estavam deterioradas e em péssimo estado. Chegamos, então, ao período conhecido como a Baixa Idade Média. A própria expres- são Baixa Idade Média, segundo Guimarães (2010), não parece muito gloriosa, pois já passa uma ideia de decadência e, de fato, foi um período de crises e transformações, principalmen- te nos séculos XIV e XV, quando muitos padeceram de peste, fome e sofreram com a Guerra dos Cem Anos. O homem medieval teve de lidar com esses desafios e conquistou alguns progressos nas condições de higiene e inovações no campo. Nos séculos XI e XII, houve um expressivo aumento populacional após a crise do ano mil e nesse mesmo período ocorre- ram a fundação e o crescimento de diversas cidades que acompanhavam o surgimento da burguesia. A Igreja se fortaleceu criando novas ordens de frades, como os franciscanos e dominicanos no século XIII. Mas foi em 1453 que, no Oriente, encerraram-se mil anos de autonomia política bizanti- na com o fim do Império Romano do Oriente. Muitos historiadores propõem ainda uma lon- ga Idade Média, que se desdobraria até os séculos XVIII e XIX, argumentando que os modos de se pensar e ver mundo se mantiveram autenticamente medievais. Segundo Guimarães: Não há consenso, apenas há convite à reflexão, discussão de critérios e ideo- logias. O que pode ser considerado um marco? Quem o considera? Sob qual perspectiva? Se se insiste em 1453, é preciso levantar o significado de um aconte- cimento, a conquista dos turcos otomanos, numa chave de ruptura com o mundo e nascimento de outro. (GUIMARÃES, 2010, p. 131) Outro marco importantíssimo foi a expansão ultramarina, que permitiu à Europa che- gar ao Novo Mundo. Essa tecnologia, que esteve em gestação durante a Idade Média, daria forma às caravelas na Idade Moderna, período em que, pela primeira vez na História, o Ocidente ultrapassou o Oriente em termos tecnológicos. A Guerra dos Cem Anos, que se iniciou no século XIV, também viria a ser um im- portante acontecimento. Ela abalaria a posição privilegiada da cavalaria, tão fortemen- te enraizada na mentalidade medieval como um símbolo de escudo da cristandade, pois os cavaleiros não podiam vencer facilmente os arqueiros ou enfrentar abertamen- te os canhões de guerra. Tais situações alterariam profundamente o papel da nobreza e o poder real. Dessa forma, verifica-se que todos os períodos da História estão inter-relacionados e que devemos estar preparados para conhecer suas continuidades e rupturas, sem impor recortes antes de realmente compreendê-los. null null null null null O que não é Idade Média História Medieval 1 15 1.3 História medieval no Brasil: um balanço crítico da historiografia nacional Os estudos medievais no Brasil receberam muita influência dos historiadores franceses, principalmente os membros da Escola dos Annales, que contribuíram muito para novas for- mas de se entender a Idade Média, por meio de uma perspectiva de estudos da mentalidade e do imaginário da época. No entanto, cada vez mais os historiadores brasileiros têm se in- teressado pela história da Península Ibérica, que possui suas especificidades geográficas em relação à história da França medieval, geralmente tomada como paradigma para o estudo da cristandade latina. Por isso, é fundamental que os estudiosos tenham em mente que nem sempre os estudos sobre uma região da Europa podem ser aplicados inadvertidamente a outras realidades. Com esse cuidado, o diálogo entre historiadores brasileiros, portugueses e franceses pode ser muito profícuo. Cada vez mais a digitalização de documentos permite que historiadores da América Latina se debrucem sobre fontes medievais. As obras literárias, nesse sentido, são privilegia- das em relação à cultura material, por motivos óbvios. Desde o começo do crescimento dos estudos medievais acadêmicos no Brasil, a partir de meados de 1980, houve uma marcante influência francesa, pois a Escola dos Annales estava em seu auge. O medievalista Hilário Franco Júnior foi um dos muitos responsáveis pelo avanço desses estudos no Brasil, sendo inclusive orientado por Jacques Le Goff em seu pós-doutorado. Posteriormente, diversos programas de pós-graduação do país se voltaram a um passado medieval português, con- forme demonstraa maioria das pesquisas realizadas. Isso se deu, provavelmente, porque temos um passado e um idioma comum compartilhados. A herança ibérica, com sua tradição medieval frequentemente ressignificada no Brasil, e o papel desempenhado pela Igreja católica na história do país também são pontos que con- tribuem para o interesse sobre a trajetória dessa instituição. Em levantamento realizado no banco de teses da Capes3, encontramos os trabalhos mais recentes do Brasil que demonstram o avanço dos estudos medievais. Poderíamos listar todas as obras e autores importantes, mas isso tornaria nosso livro um grande banco de dados, tarefa que não nos compete aqui. Citamos, portanto, alguns dos expressivos grupos de pesquisa ativos atualmente, como, por exemplo, o Nemed, o Leme, o Vivarium, o Neve, além de pequenos grupos espalhados em centros estaduais, como os da UEM/UEL4. Além disso, a criação da Abrem5 em 1996 fortaleceu os estudos medievais no Brasil, contribuindo para um crescimento das obras publicadas em língua portuguesa, no entanto, 3 Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/>. Acesso em: 30 set. 2017. 4 Para saber mais sobre esse trabalho, acesse os endereços eletrônicos desses grupos, disponíveis em: <http://nemed.he.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2017. <http://www.leme-medieval.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2017. <https://vivarium.vpeventos.com/#/>. Acesso em: 5 set. 2017. <http://neve2012.blogspot.com.br/>. Acesso em: 5 set. 2017. 5 Associação Brasileira de Estudos Medievais. Disponível em: <http://www.abrem.org.br>. Acesso em: 5 set. 2017. O que não é Idade Média1 História Medieval16 ainda é necessário recorrermos a autores estrangeiros. Esse diálogo entre autores nacionais e internacionais é vital para construção da pesquisa na área6. Além desses grupos de pesquisa, existe nas universidades um crescente interesse pela música e pela cultura medievais, comprovado pelos surgimento de grupos que realizam execuções de cantigas, como o conjunto Música Antiga, da UFF, fundado em 1982 e ativo até os dias de hoje, e também por pesquisadores do Nemed. Esses exemplos evidenciam o interesse dos discentes e docentes pela execução performática da música, contrafactum7, bem como na recuperação desses temas, cuja divulgação ao vivo ou em meios de comunicação tem a capacidade de estimular novas pesquisas e despertar o interesse do grande público8. 1.4 Os preconceitos em relação à Idade Média O método socrático, criado por Sócrates na Antiguidade Clássica, é uma técnica de in- vestigação filosófica feita em forma de diálogo, na qual o professor conduz o aluno a um processo de reflexão e descoberta de novos valores. O método consiste em duas etapas. Na primeira, utiliza-se a ironia – nesse momento busca-se questionar o conhecimento prévio que se tem sobre determinada matéria. Por meio de variados questionamentos, o indivíduo percebe que seu conhecimento sobre determinado assunto pode estar equivocado, estando apto para a segunda etapa: a maiêutica, o momento no qual se dá à luz novas ideias. Tal método é muito interessante para o estudo da Idade Média. Num curso de licencia- tura em História, por exemplo, os futuros professores devem estar preparados para, antes de abordar os conteúdos de Idade Média, conhecer os preconceitos que os alunos podem ter em relação ao tema e, em seguida, explicar os conteúdos com uma base mais sólida. Umberto Eco, ao escrever sua obra Idade Média: bárbaros cristãos e muçulmanos, por exemplo, abordou a importância de se combater os principais mitos e preconceitos em relação à Idade Média antes de se construir um conhecimento sobre ela, e hoje mais do que nunca isso é importante. Para o autor, devemos combater a ideia de Dark Ages, ou Idade das Trevas. É claro que as pessoas viviam em ambientes escuros, florestas e compartimen- tos estreitos e mal iluminados, mas, por outro lado, não podemos esquecer das festas, das 6 No Brasil, não podemos deixar de citar os pesquisadores: Fatima Regina Fernandes e Marcella Lopes Guimarães (UFPR), Renata Cristina de Souza Nascimento (UFG), Adriana Mocelim (PUCPR), Aline Dias da Silveira (UFRGS), Ricardo Costa (UFES), Vânia Leite Fróes (UFF) e José Rivair Macedo (UFRGS), que colocam o país na vanguarda dos estudos medievais. Além disso, os estudos interdis- ciplinares se mostram essenciais, pois não há dúvida de que a música e a literatura podem contribuir imensamente para a História. As cantigas medievais, por exemplo, já foram também examinadas por estudiosos da área de Letras no Brasil, como os pesquisadores Osvaldo Ceschin (USP), Ângela Vaz Leão (UFMG) e Paulo Roberto Sodré (UFES); entre outros que trazem importantes contribuições para a leitura interdisciplinar das fontes. 7 Contrafactum é a substituição de um texto por outro sem mudança significativa na música ou utiliza- ção de uma mesma melodia para diferentes textos. 8 Para mais informações, recomenda-se a leitura de: SOKOLOWSKI, Mateus. Aspectos da cavalaria nas cantigas de Santa Maria de Afonso X (1252-1284). 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. O que não é Idade Média História Medieval 1 17 roupas coloridas, das iluminuras dos livros e das catedrais góticas plenamente iluminadas pela luz de sol que entrava pelos vitrais (ECO, 2010). Aliás, você sabia que o termo Idade Média surgiu com o advento do humanismo? Tratava- se de um movimento que, inspirado na civilização greco-romana, idealizava a Antiguidade, desprezando o milênio imediatamente posterior. Daí o uso de tal termo: um período que es- tava no meio da Renascença, para separá-la da Antiguidade Clássica. Tal colocação é fácil de desmistificar a partir do momento em que percebemos que só foi possível ter acesso às obras da Antiguidade porque elas foram preservadas pelos monges copistas medievais. Tradutores árabes desempenharam um papel fundamental ao traduzir e preservar a obra de Aristóteles, por exemplo, e hoje, provavelmente, não teríamos acesso a essa obra se não fosse por eles. Um erro comum é pensar que os medievais desprezavam a ciência da Antiguidade: na realidade, eles a preservaram e a compreendiam com base em uma perspectiva cristã. Certamente a Idade Média não ignorou a cultura clássica. Havia sede de conhecimento; pesquisadores, curiosos e monges que dedicaram a vida para ter acesso a manuscritos rarís- simos. Os textos clássicos eram lidos por meio de sua interpretação cristã típica do contexto, mas o fato é que a Idade Média não rejeitou a ciência da Antiguidade, como defendeu o positivismo do século XIX (ECO, 2010). Se, por um lado, temos muitas pessoas que pensam na Idade Média como mil anos de intolerância, caça às bruxas, ou, ainda, meramente como um conteúdo de livros da es- cola, onde se decora a lista de impostos pagos pelos camponeses ao senhor feudal, temos, por outro lado, a idealização da Idade Média pelos jogos de videogame e lançamentos do cinema e da TV inspirados nessa cultura, trazendo castelos mágicos e dragões que frequentemente surgem na mente das pessoas quando falamos dessa época. Certo é que o maravilhoso era muito presente nesse período, mas não podemos imaginar que os cas- telos pareciam palácios cheios de torres. Eles eram rústicos e serviam como fortificações e não ofereciam nenhum conforto moderno. O Romantismo resgatou a ideia de cavalei- ros e princesas morando em castelos que também não condiz com a realidade medieval. Segundo Umberto Eco (2010), o castelo feudal consiste numa estrutura de madeira em um terreno elevado e rodeado por uma trincheira, simples assim. Ainda que tais ideias sejam úteis para despertar o interesse do público sobre o tema, é necessário desmistificá-las. Outra ideia comum quando se pensa a Idade Média é a de que foi um período em que ninguém ousava viajar ou partir da região onde morava. Claro que haviam florestas den- sas e estradas em péssimo estado, mas casos como o de Marco Polo comprovamo alcance do comércio das repúblicas marítimas italianas e o gosto que se tinha pelo desconhecido. Outros exemplos são os relatos das viagens dos vikings que alcançaram a Groelândia, o sul da Itália e a Rússia. Não podemos nos esquecer da importância da fé no período medieval. As catedrais e suas relíquias constituíam verdadeiros centros de peregrinações, e até os mais pobres trilha- vam o Caminho de Santiago e sonhavam com a possibilidade de um dia fazer uma peregri- nação a Jerusalém. O que não é Idade Média1 História Medieval18 Apesar de a Inquisição ter sido criada na Idade Média, foi na Idade Moderna que se aprimoraram os instrumentos e métodos de tortura utilizados para se obter as confissões. Ao contrário do que se pensa, foi nesse mesmo recorte temporal do Renascimento e do humanismo que se bateu o recorde de mulheres queimadas na fogueira por suspeita de bru- xaria. Embora em menor número, na Idade Média pessoas também foram queimadas na fo- gueira, não somente por motivos religiosos, mas também por motivos políticos (ECO, 2010). A condenação de Joana d’Arc, em 1431, durante a Guerra dos Cem Anos, é um exemplo disso. Durante a disputa entre França e Inglaterra, Joana foi capturada e queimada viva sob o argumento de ter praticado heresia; todavia, dado o contexto de disputa pelos territórios na França, reconheceu-se que sua execução foi política. Anos mais tarde, ela seria santificada e perdoada pelo papa. Convém lembrar que cerca de 100 anos depois haveria um processo da Inquisição con- tra Galileu, em plena Idade Moderna, e em 1600 seria queimado Giordano Bruno, acusa- do de heresia. Já o Martelo das Feiticeiras, escritos pelos dominicanos alemães Kraemer e Sprenger em 1487, constituía um manual verdadeiramente cruel de torturas a serem reali- zadas para obter a confissão de hereges e bruxas, o qual esteve em pleno uso após o fim da Idade Média. Nesse livro as mulheres eram apontadas como as únicas capazes de bruxaria. Nesse mesmo século XV, tivemos personagens como Savoranola: pregador inflexível que em pleno Renascimento promovia a queima de livros e de obras de arte em suas fogueiras da vaidade, sendo desacreditado e finalmente condenado, mas somente ao fim de sua vida. Tais acontecimentos da Idade Moderna nos fazem refletir sobre a tolerância e pluralidade de pensamento que existira outrora na Idade Média e sobre as continuidades e rupturas desse período, justificando o argumento de que não foi exclusividade do período medieval quei- mar pessoas na fogueira, assim como não foi um período de atrasos – muito pelo contrário. Nós também tivemos trevas na Idade Média: medo, peste, intolerância, fanatismo e fome. Mas foi dela que herdamos a luz das catedrais, os moinhos movidos a água ou a vento, as abadias românicas, as universidades, a carta de crédito, a letra de câmbio, a chaminé, o papel, os algarismos árabes, as cartas de jogar, o jogo xadrez e os óculos, bem como a preser- vação de todos os grandes pensadores da Antiguidade, entre outras inúmeras contribuições. Conclusão A ideia difundida pelos humanistas de que a Idade Média foi meramente um período intermediário entre o apogeu da Antiguidade e os progressos da Idade Moderna viria a privar esse período de seu próprio valor. Nesse sentido, a Idade Média seria tomada como a Idade das Trevas, ou Dark Ages, uma época marcada pela miséria humana, barbárie, anar- quia e violência. Infelizmente tal concepção ainda persiste nos dias de hoje: muitas vezes, para se referir a um comportamento atrasado ou preconceituoso, atribui-se o adjetivo medie- val a essas atitudes. O que não é Idade Média História Medieval 1 19 Devemos estar alerta para superar essas construções históricas e abordar esse contexto de uma maneira mais objetiva e menos preconceituosa. Também precisamos perceber os avanços que ocorreram na Idade Média, o ordenamento de sua sociedade, sua coletividade e solidariedade, cuidando para não idealizar o período e tomá-lo como um sonho de nobres cavaleiros e belas donzelas conforme muitos filmes apresentam. Ao lado disso, há de se rever a sua periodização e não se apegar a conceitos estanques, como “fato histórico”, “classe” e “modo de produção” para analisar o homem desse perío- do. A Idade Média emergiu da desagregação do Império Romano do Ocidente, marcada pela deposição de Rómulo Augusto em 476, mas deve-se ter cuidado ao utilizar esse marco: o período medieval não se iniciou da noite para o dia. Além disso, hoje se discute a ideia de uma longa Idade Média, pois as mudanças na mentalidade ocorrem com longos processos, e é possível perceber continuidades do pensamento medieval cristão no desenrolar dos tem- pos modernos. Convidamos o leitor a compreender a Idade Média com base nesses concei- tos de processo, continuidades e rupturas, e superar a visão preconceituosa desse contexto. Afinal, estudamos para compreender o homem e sua conjuntura de vida, e não para julgá-lo indiscriminadamente por meio de um olhar anacrônico. Ampliando seus conhecimentos O trecho do livro de Jacques Le Goff e Nicolas Truong que reproduzimos a seguir ilustra a importância dos estudos dos medievalistas para toda a historiografia. Afinal, foram eles que se debruçaram sobre temas inéditos, como, por exemplo, a história do corpo humano. Essa leitura também nos ajuda a compreender como a mentalidade cristã estava presente no cotidiano dos homens, além de nos preparar para o próximo capítulo, no qual estudaremos as três ordens do feudalismo: a dos “Oratore”, que oravam, os “Belatore”, que guerreavam, e os “Laboratore”, que trabalhavam. A Igreja fazia parte da primeira ordem e viria a exercer sua influência sobre o corpo e espírito das pessoas. Uma história do corpo na Idade Média (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 34-35) [...] Provavelmente não é por acaso que o único fundador e representante da escola histórica chamada dos Annales que se interessou pela questão do corpo tenha sido um historiador da Idade Média, bem como um dos inte- lectuais mais sensíveis às convulsões do mundo contemporâneo: Marc Bloch [...] o desvio pela história do corpo na Idade Média pode permitir compreender um pouco melhor nosso tempo, tanto por suas convergên- cias surpreendentes como por suas irredutíveis divergências. [...] O que não é Idade Média1 História Medieval20 Na Idade Média o corpo é, reiteremos, o lugar de um paradoxo. Por um lado, o cristianismo não cessa de reprimi-lo. “O corpo é a abominável roupa da alma”, diz o papa Gregório, o Grande. Por outro, ele é glori- ficado, sobretudo por meio do corpo padecente de Cristo, sacralizado na Igreja, corpo místico de Cristo. “O corpo é o tabernáculo do Espírito Santo”, diz Paulo. A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado ori- ginal – transformado na Idade Média em pecado sexual- quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão. A vida coti- diana dos homens da Idade Média oscila entre a Quaresma e o Carnaval, um combate imortalizado por Pieter Bruegel no célebre quadro de 1559, O Combate do Carnaval e da Quaresma. De um lado, o magro, do outro, o gordo. De um lado, o jejum e a abstinência, do outro, banquetes e gula. Essa oscilação tem a ver, provavelmente, com o lugar central que o corpo ocupa no imaginário e na realidade da Idade Média. As três ordens que compõem a sociedade tripartite medieval, oratores (aqueles que rezam), bel/atores (aqueles que combatem) e laboratores (aqueles que trabalham), são em parte definidas por sua relação com o corpo. Os corpos sadios dos padres, que não devem ser nem mutilados nem estropiados; os corpos dos guerreiros, enobrecidos por suas proezas de guerra; os corpos dos trabalhadores, esgotados pela labuta. As relações entre a alma e o corpo são, por sua vez, dialéticas, dinâmicas, e não antagônicas [...] Atividades 1. Por queé importante superar os preconceitos que cerceiam a Idade Média nos dias de hoje? 2. De acordo com o trecho do livro de Jacques Le Goff e Truong (2006), explique o pen- samento da Idade Média em relação ao corpo humano. 3. O que significa dizer que existem muitas “idades médias”? 4. Segundo o capítulo lido, qual é a necessidade de se manter o estudo da Idade Média no Ensino Médio? O que não é Idade Média História Medieval 1 21 Referências ECO, Umberto (Org.). Idade Média: bárbaros, cristãos e muçulmanos. v. 1. Portugal: Dom Quixote, 2010. GUIMARÃES. Marcella Lopes. Cultura na Baixa Idade Média. In. GIMENEZ, José Carlos. História Medial II: a Baixa Idade Média – História e conhecimento. Maringá: EdUEM, 2010. LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. UFPR – Universidade Federal do Paraná. Núcleo de Estudos Mediterrânicos. NEMED sobre o BNCC História especialmente o Ensino Médio. 2015. Disponível em <http://nemed.he.com.br/nemed-sobre- -o-bncc-historia-especialmente-o-ensino-medio/>. Acesso em: 5 set. 2017. SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Ixtlan, 2012. SOKOLOWSKI, Mateus. Aspectos da cavalaria nas cantigas de Santa Maria de Afonso X (1252- 1284). 2016. 158 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 20016. Disponível em: <http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/ handle/1884/43798/R%20-%20D%20-%20MATEUS%20SOKOLOWSKI.pdf?sequence=1&isAllowe- d=y?>. Acesso em: 5 set. 2017. Resolução 1. Superar tais preconceitos é importante para que se conheça verdadeiramente a Idade Média. É necessário superar a visão romântica desse período que não condiz com a realidade, bem como superar a perspectiva de Dark Ages, que vê a Idade Média como um período obscuro, pois tal visão é puramente ideológica e desatualizada historiograficamente. 2. O trecho do livro de Jacques Le Goff e Truong nos mostra a importância que os au- tores medieavalistas têm para a historiografia porque eles se debruçam sobre temas que demais pesquisadores não prestam atenção, tal como a história do corpo huma- no. Isso vai ao encontro da proposta do capítulo, que busca ressaltar a importância de se estudar a Idade Média. Além disso, o texto expõe a pluralidade do pensamento medieval e seus paradoxos: ao mesmo tempo em que se vivia com intensidade os prazeres da vida, acreditava-se no asceticismo cristão e na renúncia ao corpo como uma forma de se aproximar de Deus. Tais contradições são marcas do período, que não pode ser entendido como uniforme. 3. Tivemos a Alta Idade Média e Baixa Idade Média, Idade Média oriental e ocidental. Fato é que a Idade Média não é um período exclusivo da Europa. Além disso, os recortes temporais devem ser cotextualizados, relativizados e justificados. Existem estudos que apontam para uma longa Idade Média, que vai até o século XIX. Tais perspectivas devem ser debatidas dentro da proposta de que o período tem continui- dades e ruputras e de que as coisas não mudam do dia para a noite. O que não é Idade Média1 História Medieval22 4. É vital para o aluno desenvolver uma cronologia e uma contextualização adequada da história do mundo e conhecer outras culturas e temporalidades para desenvolver um pensamento crítico em relação ao mundo que vive, ao descobrir que outras cul- turas já passaram por alterações em seus paradigmas e modos de vida. História Medieval 23 2 O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições Após definirmos os equívocos mais comuns cometidos ao se abordar o período medieval, chegou a hora de aprofundarmos um pouco mais nossa discussão. Para tanto, vamos contextualizar as principais instituições desse período e conhecer as três ordens do feudalismo. Sabe-se que o homem medieval não se autodenominava feudal; tal termo, segundo Hilário Franco Júnior (1983), foi concebido somente no século XVIII. Esse sistema surgiu das ruínas do Império Romano para atender às demandas de uma nova realidade que estava em gestação desde o início da Idade Média, atin- gindo seu amadurecimento nos séculos X ao XIII, para, nos séculos seguintes, sofrer seu processo de desestruturação. Devido às variações e especificidades de cada região, seria mais correto dizermos, então – no plural –, sociedades feudais. null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições2 História Medieval24 2.1 A teoria dos dois gládios: o espiritual e o temporal e a formação da sociedade feudal Muito mais do que uma simples exploração dos camponeses pelo clero e pela nobreza, o feudalismo foi um longo processo. Para Alain Guerreau (2006, p. 440), a própria noção de Europa feudal estava interligada ao conceito de dominium, que constituía numa relação so- cial original marcada pela simultânea dominação dos homens e de suas terras pelo senhor, tratando-se, portanto, de uma relação de natureza desigual, diferente do período posterior, quando o mercado se tornou a instituição dominante. Por isso a dificuldade dos historiado- res ao abordarem o período medieval, afinal, palavras como moeda, comércio e religião pos- suíam um sentido radicalmente distinto dos quais lhes atribuímos nos dias de hoje. Para nos ajudar a compreender melhor esse contexto tão distante do nosso, Franco Júnior (1983, p. 9) desenvolveu tópicos que são comuns a todas as sociedades feudais, a saber: • ruralização da sociedade; • enrijecimento da hierarquia social; • fragmentação do poder central; • desenvolvimento das relações de dependência social; • privatização da defesa; • clericalização da sociedade; • transformações na mentalidade. A seguir, discutiremos cada um deles. Com a ruralização da sociedade, a terra tornou-se a maior fonte de riqueza e po- der e, desde o início da dinastia Merovíngia, era concedida como forma de pagamen- to pelos serviços prestados ao rei. Essa concessão tornou-se hereditária com o tempo, o que levaria a uma fragmentação do poder real e, consequentemente, ao isolamento de grupos humanos nos feudos, onde se buscava a segurança e o sustento viabilizados por meio dos indivíduos mais poderosos. Para Franco Júnior (1983), seria a instituição das relações de suserania e vassalagem que iria moldar essas sociedades, conforme veremos adiante. A difusão desse sistema deu-se desde Carlos Magno, pois a autoridade do impera- dor dependia em muito da fidelidade de seus servidores pessoais, nessa dinastia que daria procedência ao Sacro Império Romano-Germânico. Carlos Magno, após sua coroação, dedicou-se à organização de seus domínios, por meio de uma atividade legislativa que procurava não abolir a organização política que existia pre- viamente. Disso resultou uma complexa articulação que compreendia: os condados, dota- dos de consistência territorial e dirigidos pelos condes, que aliavam às funções militares as judiciárias; e os ducados, regiões maiores que tinham uma forte base étnica, principalmente null null null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições História Medieval 2 25 dos saxões. Ao fim, os homens de confiança do reino acabavam assumindo importantes car- gos públicos e tornavam-se vassalos do imperador. Assim, a fidelidade desses indivíduos era garantida com a concessão de feudos e títulos de nobreza. A organização do império era completada, também, pela presença de uma corte, estável na estrutura, mas itinerante para fazer valer suas determinações. No entanto, a dissolução do Império Carolíngio impli- caria na divisão desses centros de poder, marcando uma nova concepção de poder régio, muito mais ligada a uma concepção territorial e baseada na divisão do reino em ducados (RAIOLA, 2010, p. 179). Nessa conjuntura de fragmentação política, a Igreja se destacava por sua proposta de integração e pela incrível capacidade de unir todos sob o ideal cristão. A palavra católico vem do latim e significa universal, e foi justamente essa abrangência que a fez superar o poderdos senhores feudais, uma vez que se encarregaria do eterno, enquanto os camponeses e a nobreza se encarregariam do mundano e transitório, conforme os dizeres: “Dai a Cesar o que é de Cesar, a Deus o que é de Deus”. Alain Guerreau (2006) afirmou que foi a ecclesia (Igreja) a instituição predominante no sistema feudal, definindo-a de forma muito precisa: Entendemos por instituição uma forma social de organização pensada como es- tável e perene fundada sobre regras de funcionamento, explícitas, distribuindo a seus membros ou aos indivíduos relacionados a ela papéis diferenciados, ar- ticulados uns aos outros. A ecclesia era uma instituição dominante na medida em que todos os seus habitantes da Europa Medieval estavam obrigatoriamente relacionados com ela. (GUERREAU, 2006, p. 447) Devemos lembrar que o cristianismo se estabeleceu como instituição nos séculos fi- nais do Império Romano. Enquanto este sucumbia em crises, a Igreja católica fortaleceu-se. A perseguição aos cristãos encerrou-se com Constantino I, que, por meio do Édito de Milão, promoveu a liberdade religiosa em 313 d.C. A partir de 380 d.C., com o imperador Teodósio, o cristianismo transformou-se na religião oficial do império. Segundo Franco Júnior (1983), foi a partir desse contexto que os bispos começaram a alargar sua atuação, substituindo aos poucos a magistratura civil; dessa forma, a Igreja fortalecia suas raízes na sociedade. Ao lado disso, as doações contribuíram enormemente para o crescimento do seu poder econômico e, já no século V, o celibato clerical impedia a alienação ou divisão dos bens. Chegando ao século IX, a Igreja tinha em seu poder 1/3 das terras cultiváveis da Europa (FRANCO JÚNIOR, 1983). Disso advém a importância do de- bate sobre os dois gládios1 na Idade Média. Sabe-se que a espada temporal era considerada do imperador ou dos reis até a Reforma gregoriana (embora se considerasse que ela deveria ser usada em prol da Igreja) e que Carlos Magno chegou a ser chamado de rector ecclesiae (condutor da Igreja). 1 Gládio era uma espada romana de dois gumes que simbolizava o poder real. O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições2 História Medieval26 Figura 1 – Modelo de gládio romano. Fonte: Rama/Wikimedia Commons. No século IX, Carlos Magno, inspirado pelo Império Romano, tentaria construir um novo império. Mas os próprios soberanos carolíngios iriam (por necessidades defensivas e administrativas) promover a dissolução do império que tentaram criar. Devemos entender que a crise do império afetava igualmente a unidade da Igreja e o poder do papa, pois di- minuíra os recursos para sua administração e para as missões de conversão dos pagãos ao norte da Europa. Portanto, no século X, o papado teve seu poder restringido e sua própria eleição era refém dos interesses da aristocracia (RAIOLA, 2010). Georges Duby (1989) lembra-nos de que, por volta do fim do século X, a realeza perdeu boa parte de seu poder sobre as autoridades leigas e locais que exerciam seus comandos em benefício próprio. A autoridade de julgar e punir tornara-se desde então uma oportunidade para arrecadar taxas lucrativas da população, atingindo inclusive os homens da Igreja, que antes estavam protegidos pelos privilégios de imunidade concedidos pela autoridade real. De variadas maneiras, os poderes temporais ameaçavam a liberdade da Igreja. Apesar dos longos anos de conflitos pós-carolíngios, a ideia de uma soberania imperial não desaparece e a Igreja também se interessa pela conservação de uma autoridade univer- sal: reconhece no imperador um protetor poderoso e está disposta a lhe conferir legitimida- de. Por outro lado, exige dos imperadores que não interfiram nos assuntos espirituais. Seria com a coroação de Otão I (912-973) que o papado voltaria a fazer crescer sua autonomia. Apesar de os bispos serem escolhidos entre os nobres, a Igreja consegue acumular terras e propriedades e Otão I torna-se guardião da independência dos Estados papais. No entanto, ele teria de se dirigir a Roma três vezes, para defender seus interesses e para assegurar que a eleição do papa fosse aprovada pelo imperador (RAIOLA, 2010). Vemos que os séculos X e XI foram marcados pela fragmentação do poder central, que seria completamente incompatível com as aspirações universalistas disputadas pela Igreja e pelo império (RAIOLA, 2010, p. 179). Ao lado disso, o poder dos bispos opunha-se ao null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições História Medieval 2 27 poder dos duques e condes. No Capítulo 4 deste livro, veremos que os papas persistiram em colocar a Igreja acima do poder temporal, numa disputa que resultaria na Concordata de Worms, em 1122, conciliando o poder papal com o poder do imperador. Nos séculos seguintes, com base nas teses de Egídio Romano (1247-1295) presentes na bula Unam Sanctam, por exemplo, descobrimos a afirmação teórica de que a Igreja detém ambos os gládios, embora só use diretamente o gládio espiritual, devendo o gládio temporal ser subordinado à Igreja: O gládio espiritual e o material estão ambos em poder da Igreja, mas aquele deve ser manejado pela Igreja e pelo sacerdote, e este pelos reis e soldados, se bem que por indicação e anuência do sacerdote. Por isso, é necessário que uma espada esteja sob a outra e que a autoridade secular esteja subordinada à autoridade espiritual. (DIEHL, 2015, p. 28 apud SOUZA, 1997, p. 184) Trazemos essa discussão teórica sobre os dois gládios, que data de fins da Idade Média, pois ela nos permite refletir sobre as relações de poder entre duas importantes instituições: o Sacro Império e a Igreja. O cristianismo atendia aos anseios espirituais mais profundos da população e a conversão permitia que os mais humildes e analfabetos tivessem acesso a uma concepção de mundo. Por meio da liturgia, vivia-se uma relação de troca com Deus, com a esperança de se obter recompensas celestiais. Ao lado disso, havia um medo constante de que o diabo estivesse sempre à espreita, ameaçando a vida cotidiana. Alain Guerreau (2006) lembra-nos de que as regras ditadas pela Igreja tinham um valor geral e coercitivo e que suas posses fundiárias e materiais não tiveram equivalente. O papa, durante a Idade Média, não somente tratava de assuntos espirituais, mas também interferia nos assuntos concernentes à vida política, atuando, inclusive, como mediador de conflitos entre diferentes senhores feudais. A própria organização e hierarquia da Igreja medieval ajudavam a garantir a consolidação do seu poder. Desde 756, o papa era dirigen- te de vários territórios que estavam sob a autoridade e o controle direto da Igreja, o que o levou a envolver-se em múltiplos conflitos políticos com as monarquias medievais. Mais tarde, no início da chamada Baixa Idade Média, os conflitos tornam-se acirrados e cada vez mais os monarcas buscam centralizar o poder em si, argumentando que para a Igreja cabia apenas a função espiritual. No entanto, segundo Fernandes (2008), durante o Medievo havia um conjunto de pen- sadores eclesiásticos diretamente envolvidos na manutenção da teocracia papal, que triun- faria, pelo menos no plano teórico, até o século XIV. A partir desse momento, outra reali- dade política teve suas bases institucionais e teóricas amadurecidas: trata-se do conceito de reino. A França de Filipe IV, o Belo, daria o primeiro passo no sentido de interferir no embate teórico de superioridade entre império e papado, enfrentando este último ao criar uma sé pontifical alternativa em Avinhão, território francês, no episódio conhecido como o Cisma do Ocidente. Passam então a existir dois papas, que, em sua disputa pelo poder, excomunga- ram-se mutuamente. Esses foram tempos de crise para cristandade, com a culminância de uma disputa que atravessou todo o Medievo. null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições2 História Medieval28 A universalidade do conceito de império desenvolvida no Sacro Império Romano- Germânicoseria, no fim da Idade Média, aplicada às realidades políticas específicas dos reinos. Essa concepção é recorrente nos tratados doutrinais do estilo espelho de príncipes2. Afonso X, o Sábio (1252-1284), rei de Leão e Castela, personifica muito bem tal fenômeno ao afirmar que o rei é imperador dentro do seu reino. As universidades da época também teriam um papel determinante ao propiciarem argumentos aristotélicos às bases teóricas de supremacia dos reis (FERNANDES, 2008). Assim, podemos concluir que o tradicional embate entre papado e império, nos fim do século XIII e princípio do século XIV, tenderia a ser temporariamente superado pelo eclodir da força dos reis. É importante destacar que os documentos que defendem a supremacia de um dos gládios não excluem ou propõem a extinção de seus opositores, na medida em que o conjunto dos poderes, espirituais e temporais, configuraria a realidade política ideal e equilibrada, ainda que hierarquizada (FERNANDES, 2008). Dessa forma, podemos ver o desafio de conciliar esquemas generalizantes ao estudo de realidades específicas na Idade Média e percebemos como as instituições às quais ela deu vida passaram por transformações nesse período, devido a complexas relações de poder, típicas de cada contexto dessas sociedades feudais. 2.2 Oratore, belatore e laboratore É muito comum os historiadores recorrerem ao clássico poema do bispo católico Adalbéron de Laon (947-1030) para debater a trifuncionalidade da sociedade medieval oci- dental. O poema cita as três ordens que, teoricamente, seriam: em primeiro lugar, a dos oratore, que no latim significa os que oram, responsáveis por rezar pela salvação de todos; em segundo, a dos belatore, que executavam a função bélica de proteger a primeira e a terceira categorias, lutando contra os infiéis; e, por último, a dos laboratore, que deveriam, com o seu labor, vestir e alimentar todos os demais. Tal concepção estava em harmonia com a ideia corrente de que a sociedade medieval era um só corpo, em que cada membro devia trabalhar em harmonia com os demais, obedecendo à hierarquia para o funcionamento ideal e orde- nado do grupo como um todo. Devido à natureza de sua função, os que oravam tinham primazia sobre os demais, sobretudo devido ao fato de possuírem autoridade moral como representantes da vontade divina na Terra. Tal destaque social era reforçado por normas que os diferenciavam, como o celibato e a tonsura – corte de cabelo que simbolizava a renúncia da vaidade, pois se raspava o topo da cabeça deixando o cabelo apenas nas laterais (Figura 2). Além disso, somente o clero poderia realizar os rituais da liturgia, que se tornava cada vez mais complexa e com uma grande quantidade de festas religiosas. 2 Espelho de príncipes é um gênero literário tratadista que, por meio de uma narrativa normativa, propõe modelos de governantes ideais. null null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições História Medieval 2 29 Figura 2 – Exemplo de tonsura. ANGELICO, Fra. São Domingos de Gusmão (detalhe), séc. XV, afres- co, color. Museu Nacional de São Marcos, Florença, Itália. Para Franco Júnior (1983), essa tentativa de monopolizar a comunicação com Deus tor- nava o clero responsável por todos os demais, pois sem o trabalho deles não haveria salva- ção. Esse monopólio da fé acabou por levar a uma verdadeira Cruzada contra as heresias e repressão das manifestações populares da fé, que nunca deixaram de existir. As rejeições individuais levavam à excomunhão; essa exclusão do coletivo era uma das piores penalida- des possíveis na Idade Média, enquanto as rejeições coletivas eram consideradas heresias, que tinham como consequência uma repressão brutal (GUERREAU, 2006). Um exemplo é o caso dos cátaros, que, ao negar os dogmas da Igreja, foram perseguidos. No século XIII, o papa, ao lado da dinastia Capetíngia, convocou uma verdadeira Cruzada contra a heresia cátara no sul da França, o que iria resultar num verdadeiro massacre de homens, mulheres e crianças pelos cruzados. Era à Igreja que cabia a função unificadora de uma Europa medieval marcada pela di- visão. Numa sociedade altamente hierarquizada, dentro da Igreja não podia ser diferente. Percebia-se que a Terra deveria refletir o reino dos céus, que era igualmente hierarquizado. Os mosteiros da ordem de Cluny, por exemplo, seguiam uma rígida hierarquia, não havia relações horizontais entre mosteiros da mesma categoria, mas uma hierarquia vertical em que todos se reportavam a uma ordem superior. Quando falamos de feudalismo, estamos nos referindo a uma sociedade agrária em sua essência e sob um forte controle clerical. Nesse contexto os movimentos monásticos se refor- çaram, afinal eram os eclesiásticos que asseguravam a coesão da aristocracia. Segundo Alain Guerreau (2006), a tendência global e obrigatória da Igreja constituía a estrutura do sistema de dominação medieval. Era o soar dos sinos da igreja que informava as horas mais importan- tes do dia, assim como eram as festas do calendário litúrgico que marcavam a passagem do tempo. Os que oravam, portanto, interferiam em todos os aspectos do cotidiano dos homens. Acreditava-se que somente a intervenção da vontade divina por meio das orações promovidas pelo clero podiam superar as maiores provações e ajudar o homem, fraco por natureza, a su- perar o campo do mal que dominava a vida material (FRANCO JÚNIOR, 1983). null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições2 História Medieval30 Naturalmente, a Igreja acumulou cada vez mais riquezas e os mosteiros eram alvos fá- ceis para os mais cobiçosos. Os responsáveis pela proteção de seus bens eram os cavaleiros – geralmente de origem nobre – e a eles cabia atuar como protetores da Igreja e dos que não podiam portar armas para se defender. Aos poucos eles conseguiram cada vez mais con- quistar poder político, pelo domínio que exerciam no território que protegiam. Na prática, os camponeses, aqueles a quem eles deveriam proteger, eram os mais explorados, e o estilo da vida dos guerreiros buscava imitar a fartura e a pompa da velha nobreza à qual estavam ligados. Até o século XII, mais especificamente na França, nobreza e cavalaria tornaram-se sinônimos. Segundo Baschet (2006), a Igreja denuncia a violência da aristocracia laica na medida em que ela própria é sua vítima e defende seus próprios senhorios de uma constante pressão da aristocracia. Nesse embate com a nobreza, a Igreja apela ao povo, conforme com- provam os movimentos de Paz de Deus, que fazem então a manutenção da ordem senhorial que a Igreja queria dominar. Em vários momentos os reis e a Igreja buscavam controlar o comportamento agressivo dos guerreiros, o que de modo geral também teria eco nas Cantigas de Santa Maria, compi- ladas na corte de Afonso X, o Sábio de Leão e Castela (1252-1284). Na “Cantiga n. 22”, por exemplo, um cavaleiro ataca um lavrador devido ao desamor que tinha pelo seu senhor, evidenciando as rivalidades existentes entre a nobreza nesse período. O lavrador então pede socorro a Santa Maria para suportar os golpes de lança: [...] En Armenteira foi un lavrador, que un cavaleiro, por desamor mui grande que aví’ a séu sennor, foi polo matar, per nome Matéus. E u o viu séu millo debullar na eira, mandou-lle lançadas dar; mas el começou a Madr’ a chamar do que na cruz mataron os judéus. [...]3 Esse poema expressa os sentimentos de aflição e as expectativas do monarca em rela- ção ao comportamento violento de seus cavaleiros que não poupavam os vilões4. A cantiga em questão (a CSM 22), por exemplo, nos traz um episódio baseado em uma situação real ou imaginária que tem como cenário o Mosteiro de Santa Maria de Armenteira, que foi 3 “Em Armenteira havia um lavrador, que um cavaleiro, por desamor muito grande que tinha por seu senhor, foi matá-lo, seu nome era Mateus. Ele viu seu milho debulhar e mandou lançadas dar mas ele começou a Maria chamar Mãe daquele que na cruz foi morto por judeus.”(Cantiga de Santa Maria n. 22, tradução nossa) 4 Agricultor residente nas vilas. null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições História Medieval 2 31 construído no século XII, no noroeste da Península Ibérica. O texto da cantiga que selecio- namos evidencia o contexto de realização de saques violentos por parte da própria cavalaria castelhana, contra mosteiros e camponeses do reino, que irá inclusive ter repercussão não só nas crônicas, mas também será cantada pelos jograis da corte de Afonso X. Segundo Franco Júnior (1983), o custo do equipamento do cavaleiro era o equivalente ao valor de 22 bois, isso numa época em que uma família de camponeses mal tinha con- dições de cuidar de um boi. Por meio dessa informação trazida pelo autor, percebemos a diferença de recursos disponíveis para cada categoria social. Nessa sociedade agrária e alta- mente hierarquizada, os camponeses trabalhavam e dependiam da proteção dos cavaleiros, que estavam no topo da hierarquia social. Com a leitura da cantiga apresentada, descobri- mos então uma ambiguidade do Estado da época, que direciona sua violência justamente àqueles que deveria proteger (GUIMARÃES, 2010, p. 119). Na Idade Média a proteção possuía, portanto, um caráter muito mais pessoal. Para poder de alguma forma controlar a liberdade de exercício da violência por parte desses guerreiros, a Igreja criou conceitos como os de Guerra Santa5 e Paz de Deus6, que visavam colocá-los a serviço da cristandade. Segundo Baschet (2006), essa dominação aristocrática ancorava-se localmente, mas nem todos os dependentes do senhor feudal eram servos; ha- via também uma série de tributos, e os trabalhos devidos ao senhor eram apenas uma das formas de exploração. Todas as relações sociais eram relações entre as pessoas, e cerimônias e gestos reforçavam a submissão dos laboratore aos belatore. Nessa sociedade agrícola, boa parte da riqueza vinha da terra, mas, além disso, qua- se todo senhorio tinha sua produção artesanal, obtendo produtos de extrema necessidade, como o sal, no comércio, no caso de não terem condições de produzi-los. Já os produtos mais luxuosos eram importados do Oriente, geralmente por intermédio do Império Bizantino, para atender aos clérigos e cavaleiros mais abastados. Conforme aponta Franco Júnior (1983), cabia aos servos, portanto, fornecer os alimentos e as vestimentas, pois o trabalho na terra não era função dos que oravam ou lutavam. Os braços do corpo da sociedade medieval eram, assim, os servos ligados à terra em que viviam e trabalhavam. Os trabalhadores apresentavam uma grande diversidade de condições, desde camponeses livres até escravos. As pequenas propriedades rurais não ligadas a um grande domínio [...] foi uma das origens do vilão, camponês livre que re- cebera um lote de terra de um senhor, mas em troca de obrigações e limitações relativamente leves. (FRANCO JÚNIOR, 1983, p. 53) As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais (que utilizam partes do corpo) remontam à Antiguidade e tiveram muita força na Idade Média. A Igreja, sendo uma comunidade de fiéis, era considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça, ou seja, o sistema cristão de metáforas corporais repousava sobretudo no binômio cabeça-coração. Muitas vezes, na Idade Média esse argumento foi utilizado de forma polí- tica, para justificar a liderança do rei ou da própria Igreja católica (LE GOFF, 2006, p. 162). 5 Guerra declarada em nome de Deus e em defesa da cristandade – e, por isso, autorizada pelo papa. 6 Período em que a Igreja restringia o uso da violência. null null null null null null null null null null null null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições2 História Medieval32 Com a falta de um poder ordenador centralizado, equivalente ao Estado moderno, po- demos dizer que a sociedade feudal teve em seu desenvolvimento uma série de particularis- mos regionais e que cada região possuía sua trajetória específica. No entanto, a alimentação, o trabalho e o jejum acabavam sempre sendo determinados pela Igreja. Um exemplo disso eram as dietas quaresmais, que definiam um cardápio rico em peixes, legumes, pães bran- cos e pouco consumo de álcool, estimulando o jejum e a penitência dos fiéis. Veremos, nos próximos capítulos, que cada fase da vida, de qualquer indivíduo, era marcada pelos ritos cristãos: o nascimento pelo batismo, depois o casamento sempre público e monogâmico e, na hora da morte, a extrema-unção. O ensino formal também era de responsabilidade do clero, que, nos mosteiros e de- pois nas universidades, abordava por um viés cristão a herança cultural greco-romana. Isso se dava por meio das chamadas artes liberais, metodologia de ensino organizada na Idade Média, composta pelo Trivium (lógica, gramática, retórica) e o Quadrivium (aritmética, música, geometria, astronomia). Eram entendidas como opostas às artes mecânicas, execu- tadas pelos camponeses. Fora desses meios, cabia aos sermões dominicais e às artes plásticas presentes nos templos ensinar a mensagem de Deus à esmagadora maioria analfabeta. Mais do que isso, a confissão individual, adotada a partir do século VIII, permitia ao clero pene- trar na consciência de cada indivíduo (FRANCO JÚNIOR, 1983). Concluímos aqui que essa divisão tripartida da coletividade medieval era um mode- lo ideológico, que propunha uma imobilização de suas categorias em prol da ordenação e estabilidade do corpo social que deveria refletir uma ordem celeste perfeita e imutável, conforme Santo Agostinho (354-430) iria propor em sua obra A cidade de Deus. Na prática, a realidade medieval foi muito mais complexa do que a proposta por Agostinho; no entanto, por meio dessa obra, podemos descobrir os modelos e as expectativas que os detentores do poder na Idade Média perseguiam, na busca pela organização de sua própria sociedade. 2.3 A importância das relações feudo- -vassálicas: senhor (proteção e benefício) e vassalo (fidelidade e serviço) Em parte, este subtítulo é autoexplicativo: se por um lado o senhor deveria oferecer proteção e benefício, o vassalo deveria cumprir seu papel com serviço e fidelidade. A reali- dade, no entanto, é mais complexa: só é possível compreender verdadeiramente as relações sociais na Idade Média se conhecermos a mentalidade desse contexto, em que as relações se davam de forma muito pessoal e a palavra tinha um peso muito distinto do que tem hoje. Os contratos firmados entre os homens tinham grande valor numa sociedade em que o mun- do era visto como palco de luta entre o bem e o mal, que opunha a espiritualidade à matéria, onde epidemias e desastres naturais eram compreendidos como consequência da ira divina e os milagres eram testemunhados como verdadeira manifestação da vontade de Deus. Já na Alta Idade Média, observa-se a prática do juramento de fidelidade ao rei ou im- perador, que, para garantir tal lealdade, concede as honras como a posse de um castelo ou null null null null null null null null null null null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições História Medieval 2 33 o direito de comandar e de punir. Na época de Carlos Magno, isso se generalizava como forma de subordinação, enquanto na Catalunha do século XI fazia-se um contrato escrito, ou seja, cada região tinha a sua maneira. A partir do século X, a relação vassálica passa a ser instituída por um ritual, a homenagem, que consiste num engajamento verbal do vassalo, em que o homem ajoelhado se declara como homem do senhor. A investidura do cavaleiro seria também um ritual vinculado à homenagem. Para Georges Duby (1989), esse ritual sofreria cada vez mais a influência eclesiástica, que passa a consagrar e benzer suas armas, tornando-o soldado de cristo. Essa cerimônia feudo-vassálica possuía forte carga simbólica de uma hierarquia entre iguais. Conforme aponta Franco Júnior (1983), na Alta Idade Média, com o enfraquecimento de um poder real centralizado,estreitaram-se os laços de sangue e as relações pessoais diretas dentro das famílias e linhagens. Nesses grupos, a solidariedade interior protegia seus mem- bros e a morte de um deles era sentida por todos, em alguns casos sendo motivo de vingan- ça. Nesse contexto o ritual de vassalagem possuía grande importância e jurava-se lealdade perante relíquias cristãs ou a Bíblia. No entanto, com o passar do tempo, vemos um processo de enfraquecimento dos laços de parentesco carnais e fortalecimento do parentesco espiri- tual, como o parentesco batismal e o apadrinhamento, como parte do desígnio da Igreja para melhor controlar a aristocracia guerreira (GUERREAU, 2006). Devemos lembrar que a história de cada região varia. Os ataques dos vikings, sarracenos, húngaros e mu- çulmanos levaram a um processo em que a defesa só poderia ser realizada por condes ou por quem detivesse o poder na região, para responder com eficácia aos ataques surpresa, cujos saques e rapinas relâmpago, segui- dos da rápida retirada das tropas, deixavam um rastro de destruição, simplesmente imune à lentidão dos exércitos reais. Esse contexto belicoso e de constante temor mudou a paisa- gem da Europa, que, em busca de so- brevivência, tornou-se repleta de cas- telos e fortalezas, que eram símbolos de poder e de proteção. Jérôme Baschet (2006) destaca que a vassalidade é habitualmente considerada um dos traços mais ca- racterísticos da sociedade medieval. No entanto, ao contrário da histo- riografia tradicional, que toma as Figura 3 – Vista do Castelo dos Mouros, construído no século IX em Sintra, Portugal. Fonte: Lusitana/Wikimedia Commons. null null null null null null null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições2 História Medieval34 instituições feudais como um sistema homogêneo e bem estruturado, tende-se hoje a atri- buir a importância do feudo e do laço vassálico a uma proporção pequena da população. A forma de feudo e vassalidade são apenas um dos diversos tipos de laço e concessões de bens, visto que existiam também os pactos de amizade e outras formas de juramentos de fidelidade que asseguravam a distribuição de poder dentro da aristocracia. Nesse sentido, concluímos que a vassalidade não pode ser vista como a principal relação social do contexto feudal, porque ela era restrita apenas ao grupo dominante. É claro que não se pode também menosprezar a importância das relações vassálicas. Dito isso, vamos esclarecer como ela se constituía. Foi a partir do século VI que o benefício acabou se tornando o feudo recebido pelo vassalo em troca de sua fidelidade e serviço, tratando-se de uma relação em que o senhor ocupava uma posição de superioridade em relação ao vassalo (FRANCO JÚNIOR, 1983). Já a palavra serviço teve seu sentido alterado no decorrer da Idade Média; a partir do século VII, o termo acabou se tornando sinônimo de distinção: servir a Deus ou ao seu senhor era algo que tinha apreço, por exemplo. Segundo Baschet (2006), o serviço do vassalo possuía três aspectos principais: 1. obrigação de incorporar as operações militares empregadas pelo senhor; 2. ajuda financeira para casamento dos filhos, pagamento de resgate ou partida para as Cruzadas etc.; 3. dever de conselho. Em troca, o senhor concedia sua proteção e podia também assumir a educação dos filhos do vassalo, o que naturalmente o colocava em posição de dominação. O feudo era geralmente uma extensão de terra que podia englobar um ou mais senhorios. Era, portanto, terra com camponeses, pois a nobreza guerreira não se dedicava a tarefas produtivas. Além disso, feudo poderia ser também um direito, como cobrar pedágio numa ponte ou recolher taxas de impostos (FRANCO JÚNIOR, 1983). Baschet (2006) vai ao encontro dessas coloca- ções ao nos lembrar de que o feudo era muito mais do que um pedaço de terra cultivável, pois podia significar um direito ou honra particular, como, por exemplo, o de exercer justiça. Tais concessões tinham como função capacitar o vassalo para o cumprimento de suas obrigações. Contudo, ainda segundo Baschet (2006), os laços feudo-vassálicos foram vítimas do seu próprio sucesso. Sua eficácia tende a diminuir à medida que seu uso passa a ser mais fre- quente, ao passo que a rede de dependência vassálica torna-se sobrecarregada quando um nobre homenageia vários senhores diferentes. Essa pluralidade de homenagens atestada no século XI é vantajosa para os vassalos, mas atrapalha a realização do serviço, colocando em xeque determinados juramentos a partir do momento que o vassalo tem de servir senhores rivais entre si. Para resolver tal dilema institui-se a homenagem-lígia7, que deveria ter prio- ridade sobre as demais. Apesar de ter bons resultados, a homenagem-lígia não foi suficiente e o poder do senhor sobre os feudos concedidos decresceu cada vez mais. 7 Uma homenagem superior às demais homenagens. Todos os soberanos tentavam obtê-la de todos os vassalos de seu reino, pois ela tinha prioridade sobre as demais. null null null null null null null null null null null null null null null null null O surgimento da sociedade feudal e as suas instituições História Medieval 2 35 Para nos ajudar a exemplificar algumas das transformações da relação suserania-vassa- lagem no decorrer da Idade Média, fazemos aqui uma citação da obra A sociedade cavaleires- ca, de Georges Duby: No fim do século XIII, no próprio momento em que as novas condições econômi- cas e a aceleração da circulação monetária começavam a questionar as relações de fidelidade, demasiado dependentes de relações meramente territoriais [...] puseram-se a utilizar o dinheiro para recompensar os devotamentos pessoais, sem contudo abandonar as formas feudais: distribuíram rendas exigindo a ho- menagem. Os usos vassálicos foram assim revigorados. (DUBY, 1983, p. 55) Em alguns casos, tal ritual podia ser realizado por procuração, inclusive sem a presença dos envolvidos. Compreender tais transformações é fundamental para não percebermos as relações sociais da Idade Média como estanques. Segundo Duby, o feudo-renda8 possibilitou assim a transição entre o conjunto de costumes e de hábitos mentais a que chamamos feuda- lismo e o novo mundo onde as relações políticas fundamentavam-se, sobretudo, na moeda. O feudo, segundo Baschet (2006), que na Alta Idade Média tratava-se de uma concessão pessoal ao vassalo que poderia ser recuperada após a sua morte, com o passar do tempo tornou-se hereditário, o que levava os filhos dos vassalos a reiterarem o juramento ao se- nhor. Na prática, a relação hereditária afrouxava o laço pessoal entre senhor e vassalos, contribuindo para o crescimento da autonomia destes últimos, tendo como consequência um constante embate entre um projeto centralizador dos reis e a autonomia de sua nobreza. Em alguns casos podia acontecer também de o vassalo, inclusive, realizar a venda de seu feudo. Em contrapartida, reservava-se ao senhor o direito de punir as faltas dos vassalos e até a possibilidade de confiscar o feudo em caso extremo de traição ou agressão direta, caráter rentável da justiça. Um aspecto fundamental do direito do senhor era a possibilidade de ele próprio exer- cer justiça. Tal função abrangia os delitos mais variados cometidos nas aldeias. Ele possuía também servidores e agentes que supervisionavam as colheitas e inspecionavam a floresta, ajudando na aplicação de decisões sobre a justiça. Para tentar evitar o repúdio dos aldeões, procuravam respeitar os princípios locais. Fato é que todos os castelos possuíam uma for- ca próxima, para lembrar os delinquentes de que eles poderiam ser condenados à morte. Ao mesmo tempo, a forca perto do castelo se destacava como símbolo do poder senhorial que, junto à cruz, cumpria a ordem feudal. Para a historiografia do século XIX, tal fragmentação do poder senhorial era típica de uma Idade Média obscura, caracterizada por uma anarquia feudal desolada pelas destrui- ções provocadas por guerras privadas
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