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Saberes e técnicas das Sociedades Africanas e Americanas HISTÓRIA – PROFª LETÍCIA Conexões e interações Os povos africanos realizavam o comércio de suas mercadorias entre a Europa e a Ásia, muito antes dos europeus realizarem a colonização do continente americano. As caravanas de comerciantes cruzavam o continente africano pelo deserto do Saara, a fim de levar os produtos, como sal, noz de cola e metais preciosos, de um lugar a outro. O deserto do Saara, situada em uma extensa faixa de terra no norte da África, cumpriu um papel muito importante na integração dos povos da costa do Mediterrâneo, do Índico, do Atlântico e da região do Sahel. Longe de ser um obstáculo, o grande deserto possibilitou o contato entre diversos povos, especialmente com a utilização do camelo como meio de transporte por volta do século III. A forte resistência do camelo ao clima desértico, com sua capacidade de permanecer sem água por vários dias, tornou possível a travessia do Saara. Além disso, a carne e o leite do animal eram essenciais para a alimentação dos povos nômades que viviam no deserto, e seu pelo era usado para confeccionar tendas nas quais as caravanas paravam para descansar. Garantidas a sobrevivência e a locomoção no deserto, os povos da região tiveram condições de praticar uma das atividades econômicas mais rentáveis da África durante vários séculos: o comércio caravaneiro, que ligava os entrepostos do Mediterrâneo às praças mercantis da região do Sahel. Rotas do comércio transaariano e transaheliano O comércio transaariano ligava as várias praças mercantis às zonas de abastecimento, como as minas de sal do deserto do Saara, as regiões auríferas do Sahel, as áreas de extração de pimenta e noz-de-cola das florestas tropicais. Os terminais do comércio transaariano localizados ao norte foram formados pelos portos mediterrâneos da África do Norte, como os de Túnis, Cairo e Argel, e por grandes cidades como Marrakech, Sidjilmasa e Fez. Os terminais dessas rotas situados ao sul eram as cidades sahelianas de Awdaghost, Walata, Timbuctu, Gao, Tadmekka e Agadés. Delas, os produtos trazidos pelas caravanas eram redistribuídos por redes de comércio da região do Sahel. As linhas comerciais transahelianas tinham o sentido leste-oeste, destacando-se nelas o transporte de pessoas e mercadorias realizado por meio dos rios Senegal, Níger e Gâmbia. Dessa forma, as rotas transaarianas e transahelianas se integravam. Muitos povos participavam dessa ampla rede mercantil. No deserto, predominavam os berberes, os tuaregues e os azanegues, os quais conduziam caravanas e utilizavam camelos como meio de transporte; nas zonas de florestas, os produtos eram transportados em canoas pelos rios e em caravanas de burros conduzidos pelos diulas, pelos haussás e pelos mandingas. Produtos do sul em direção ao norte Os principais produtos transportados da região do Sahel e das florestas, em direção ao deserto do Saara e à costa do Mediterrâneo, no norte da África, de onde seguiam para a Europa e para a Ásia. Ouro: esse metal era a base do sistema monetário do mundo islâmico e da Europa medieval. As minas de Bambuk, de Burê e dos estados akãs da Costa do Ouro (Gana), onde era extraído, representavam a principal fonte aurífera antes da chegada dos europeus à América. Noz-de-cola: fruto utilizado pelas sociedades africanas tradicionais em cerimônias e rituais e para controlar o cansaço e a fome. A noz-de-cola foi amplamente adotada pelos povos islamizados por ser o único estimulante cujo consumo era recomendado pelas regras muçulmanos. Pessoas escravizadas: trabalhavam nas salinas do Saara, nas sociedades islâmicas do norte da África e nos países europeus, sobretudo na península Ibérica muçulmana. Além desses produtos, a região também fornecia resinas, gomas, peles e couros; e produtos alimentícios, como sorgo, milho africano e milhete. Produtos do norte em direção ao sul Produtos comercializados do norte do Saara e da costa do Mediterrâneo em direção às regiões das estepes, das savanas e das florestas ao sul. Sal: produto essencial para a conservação dos alimentos nas áreas tropicais, o sal também servia de moeda nas trocas comerciais. Produtos alimentícios: tâmaras, passas e raízes eram bastante apreciadas pelas comunidades islâmicas do Sahel. Burros e cavalos: inexistentes nas florestas tropicais devido à presença das moscas do sono, conhecidas como tsé-tsé, que atacavam a cavalaria dos reinos nas margens das áreas tropicais. Artefatos de metal e manufaturados: utensílios de cobre, bronze e estanho, ferramentas, tecidos e adornos de metais e pedras preciosas vinham do Egito, do Oriente Médio e da Europa. Impérios Africanos Com o crescimento das rotas pelo Saara, a riqueza e o poder de alguns reinos foram se intensificando por possuírem o controle e o acesso aos bens desejados pelos comerciantes. Entre os séculos VI e XV, surgiram e se consolidaram os reinos de Mali, Gana e Songai, na África Ocidental. Também nesse período, o comércio de mercadorias e a troca de culturas teve um grande destaque com a entrada do islamismo no continente africano. Reinos e Impérios Africanos da região do Sahel De origem árabe, a palavra sahel significa “margem” ou “borda”. O Sahel é uma extensa faixa de terra situada imediatamente ao sul do deserto do Saara e habitada por diferentes povos e pastores e comerciantes. Entre os séculos VIII e XVI, desenvolveram-se na região diversos reinos e cidades mercantis, como o Reino de Gana, o Império de Mali e as cidades de Djenné e Timbuctu. Esses reinos e cidades integravam as rotas de comércio a longa distância e constituíram grandes mercados de distribuição de produtos que cruzavam o deserto do Saara de norte a sul. Por isso, essas rotas são chamadas de transaarianas. Mercadores, principalmente árabes, vindos do norte da África, levavam sal e cobre aos mercados das sociedades sahelianas, onde adquiriam ouro, marfim, peles, pessoas escravizadas e outros artigos. Os rios Senegal, Gâmbia e Níger eram muito importantes para os povos que viviam na região do Sahel, pois suas cheias fertilizavam áreas onde eram cultivados diversos produtos. Além disso, esses rios eram utilizados para a pesca e o transporte de mercadorias e pessoas. O Reino de Gana: a terra do ouro O Reino de Gana, o mais antigo do Sahel, estabeleceu-se ao sul do deserto do Saara por volta do ano 300. Por muito tempo, o reino era chamado pelos árabes de “terra do ouro”, devido às ricas zonas auríferas existentes na região. Os comerciantes de Gana trocavam o ouro principalmente por sal, que era extraído das salinas do deserto do Saara e utilizado tanto como moeda nas transações comerciais quanto para a alimentação e a conservação dos alimentos. Estudos arqueológicos indicam que o comércio do ouro existia pelo menos desde o século III e envolvia outros produtos, como goma, sorgo, milhete, âmbar, peles, penas e marfim. O centro comercial do reino era a cidade de Koumbi Saleh, que apresentava características urbanas desde o século IX e atingiu seu esplendor por volta dos séculos XII e XIII. A cidade chegou a abrigar uma população de 20 mil pessoas e pode ter sido uma das capitais do Reino de Gana. No século VII, o islã, religião difundida pelos povos árabes seguidores do profeta Maomé (c. 570-c. 635), alcançou o norte da África, principalmente por meio da conquista militar. Após se difundir pelo norte, a religião foi levada para o Sahel, desenvolvendo-se no Reino de Gana por volta do século XI, por intermédio de mercadores árabes e líderes religiosos islâmicos vindos do norte, os marabutos. A nova religião encontrou maior número de adeptos entre os funcionários da corte e os intelectuais que assessoravam o rei, chamado de gana. Além disso, a escrita árabe passou a ser utilizada na administração do reino e nosnegócios. A religião e a cultura islâmica contribuíram para fortalecer o poder real e aglutinar diferentes povos sob o domínio do Reino de Gana, como tuaregues, malinqués, fulas, tuculores e soninquês. Com isso, o islã transformou-se em uma religião de Estado, ainda que o próprio gana não tenha se convertido e muitas crenças e rituais tradicionais tenham se mantido na região. O Império do Mali Entre os séculos XIII e XVI, na mesma região em que se desenvolveu o Reino de Gana, floresceu um império mais rico e poderoso: o Império do Mali, que era habitados por vários povos. Os mandingas, ou malinquês, eram o grupo principal e falavam a mesma língua do povo de Gana. Além disso, também adotaram a cultura e a religião do islã. Os governantes do Mali recebiam o título de mansa, que significa rei dos reis. Segundo cronista árabes, Sundiata Keita foi um dos mansas mais famosos. No século XIII, fundou o reino e centralizou diversos grupos malinquês sob o seu poder. Outro importante governante foi Mansa Musa (c. 1280-c. 1337), que organizou o império em províncias, estreitou os laços com o Egito e ampliou a extensão do reino. Mansa Musa também fez uma perenigração a Meca, em 1324, carregando, pelo deserto, ouro e presentes. Sua viagem foi relatada no Atlas catalão de Abraham Cresques publicado em 1375. O comércio, o controle das rotas transaarianas e a cobrança de taxas sobre produtos como ouro, sal, escravos, marfim e noz-de-cola eram fundamentais para a manutenção do Estado, da corte e do mansa. Com as taxas cobradas, o imperador obtinha cavalos para o exército e comprava tecidos e artigos de luxo como forma de demonstrar seu poder. A população em geral não era favorecida pela riqueza do comércio transaariano, exceto pelo sal, indispensável em sua alimentação. Os súditos viviam em vilarejos, habitado casebres feitos de barro. Cultivavam milhete, sorgo, inhame, algodão e feijão, criavam animais, como bois, camelos e cabras, pescavam, teciam e produziam objetos artesanais, como cestas e potes. Localizadas às margens do rio Níger, as cidades de Timbuctu e Djenné foram incorporadas ao Império do Mali no século XIII. Antes dessa data, porém, já eram grandes centros políticos e comerciais e controlavam a chegada dos produtos trazidos pelas caravanas do norte e do sul da África. Durante o governo de Mansa Musa, essas cidades foram transformadas em centros cosmopolitas. Artistas e letrados foram convocados para trabalhar em Djenné e em Timbuctu, e diversas mesquitas e prédios públicos foram construídos na região. Sob o domínio do Império de Mali, a cidade de Timbuctu se tornou um ponto de encontro de intelectuais e estudiosos que vinham de vários lugares do mundo árabe. A Universidade de Sankore, por exemplo, fundada por volta do século XII, formava com as universidades de Jingaray Ber e de Sidi Yahya um importante complexo intelectual em Timbuctu. Nessas instituições, ensinava-se Lógica, Astronomia, caligrafia árabe, Matemática, História e os fundamentos do islã por meio da leitura e do estudo do Alcorão. Em 1988, a cidade de Timbuctu foi declarada patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidades para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O processo de desertificação e o acúmulo de areia tem ameaçado as construções seculares, que correm risco de desaparecer. Diante desse cenário, a Unesco iniciou um programa para conservar e proteger essa cidade pré-colonial africana. Império do Songai A partir da segunda metade do século XIV, o Império do Mali entrou num lento processo de enfraquecimento devido a ataques estrangeiros, rebeliões internas e rivalidades palacianas. Pouco a pouco, os soberanos de Mali foram perdendo o controle sobre seus vastos domínios com diferentes povos. Foi nesse contexto que Songhai se libertou de Mali, o que ocorreu sob o reinado de Sunni Ali Ber (1464-1492). O Reino de Songai se relaciona com Gao, uma cidade fixada próxima ao rio Níger. Ela foi um importante centro econômico, comercial e político, além de obter um expressivo poderio militar. Gao esteve sob o domínio do Império Mali até por volta do século XIV. Sunni Ali, um dos grandes reis-guerreiros da História, recuperou a independência de Songhai e expandiu seus domínios incorporando diversas províncias. Para tal, contou com um exército disciplinado e bem treinado, chefiado por homens competentes e, sobretudo por uma cavalaria poderosa. No século XV, ocorreu a conquista de Tombuctu, um centro comercial e religioso. Este momento foi marcado pela formação do Reino de Songai. Após a sua morte, o império se viu mergulhado em disputas e conflitos até ser novamente centralizado por Askia Muhamad, o Grande (1493-1528). Askia consolidou o império fundado por Soni Ali expandindo-o a seus limites máximos. O império prosperou econômica e intelectualmente. O vale do Níger foi intensamente cultivado e ali vivia uma densa população rural. Havia segurança e a fome era rara. Liderado por Sonni Ali, houve um processo de expansão militar que conquistaram, também, Djenné. Uma cidade com práticas religiosas politeístas que aperfeiçoaram os costumes que vigoraram no Reino de Mali, envolvendo aspectos dos impérios anteriores. Criaram uma unificação de pesos e medidas que auxiliava na arrecadação de impostos e trocas comerciais. Os produtos comercializados eram o sal, ouro e cauris. O Reino de Songai compreendia uma ampla área, que possuía um comércio organizado e um governo centralizado. As principais cidades eram Tombuctu, Djenné e Gao. O império prosperou até o final do século XVI. Então, o exército de um reino da costa noroeste da África, o Marrocos, precipitou-se sobre o Saara. Em 1591 os marroquinos já tinham capturado com facilidade as cidades dos songais, porque possuíam armas melhores do que as deles. O povo fora das cidades continuou a lutar contra os marroquinos, mas não conseguiu restaurar o império.
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