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É tudo para ontem! O documentário intitulado AmarElo, do rapper Emicida, disponibilizado na plataforma de Streaming Netflix, resgata a história da cultura e dos movimentos negros no Brasil nos últimos cem anos. Diante de uma sociedade que animaliza indivíduos pretos para que continuem sendo marginalizados, a retomada de pessoas e eventos passados que convergem à um enfrentamento das dinâmicas opressoras é um ato imperioso. Apesar de relegadas a segundo plano, as trajetórias marcadas pela resistência negra puderam ser restauradas na obra, trazendo para o cerne do debate um ponto de grande necessidade para o corpo social hodierno: a ocupação de lugares simbolicamente reservados a indivíduos brancos por pessoas pretas. O ponto de partida da obra se concentra na realização do Show especial no Theatro Municipal de São Paulo, lugar por anos negados à comunidade negra. Aqui, se inicia a discussão sobre luta e esperança. Ao ocupar o Municipal, o cantor homenageia as pessoas que lutaram para que hoje pudéssemos materializar esse desejo por anos suprimido. Emicida faz questão de integrar — não só no seu elenco de profissionais/ técnicos — a população negra, afinal, percebe a importância de consumirmos cultura e fazermos usufruto das oportunidades. E, assim, é construído um cenário diverso, personificado por diferenças étnicas, onde todos ecoam um pedido harmônico: Liberdade, liberdade! E, apesar de deixar claro a inserção intencional de pessoas pretas nesse lugar, ele não parte de uma lógica excludente. A ideia não é segregar uns dos outros, mas incluir, oportunizando a dinamicidade de diferentes composições e estilos. Dessa forma, o teatro passa a ser o reflexo de um lugar democrático, servindo de palco para denúncias raciais e reforçando a luta pelo não apagamento e silenciamento das contribuições afro para a arte brasileira. Nessa perspectiva, é montado uma retrospectiva sobre a origem e o desenvolvimento do samba e do rap, que por muito tempo subsidiaram a expressão do povo preto. E, associado a isso, há a fatídica denúncia de como o aparelho estatal usou seu poder para cercear a linguagem dessa população — que reverberava na música. Em um panorama sociopolítico e econômico que normalizava a exclusão dos negros e menosprezava suas contribuições, não se podia esperar nada menos do que a penalização do estado, interessado em manter uma ordem vigente — predominante branca e elitista — em foco, principalmente se tratando do viés artístico. E, sobre isso, o longa-metragem não deixou dúvida: a abolição da escravatura não rompeu os muros institucionais e estruturais do racismo — comprovado pela lei da vadiagem. Mas, apesar de escancarar os efeitos deteriorantes dessas intervenções, se engana quem pensa que o tema se delimitou a apenas um recorte. Contradizendo a isso, o documentário se pautou no levantamento de 10 fatos históricos essenciais para se entender o pensamento negro no país. Dentre eles, podemos elencar: escravidão, história do trabalho em São Paulo, imigração e apagamento histórico, gentrificação, periferia, cultura hip- hop, voz preta, emancipação na era digital, reinscrição da história, e, o já referido Theatro Municipal. E, embora seja uma gama de assuntos cuja historicidade aponta a necessidade de uma análise profunda, a obra se fez rica e cumpriu com maestria o propósito de remontar a cronologia através de uma ideal positivo, valoroso e próspero. O passado passa a ser revisitado sobre um aspecto antes de saudosista, fundamental. Através dele é possível entender a materialização do que hoje, após anos de desprezo, concebemos legitimamente como arte. E isso vai de encontro a um movimento moderno forte: o elitismo cultural, cuja força motora se concentra em uma seletividade acerca do que se delineia socialmente decente. Quem desfruta dessa máxima realiza um enquadramento do que merece aplauso e do que não. Via de regra essa ideia associa o rebuscamento e o excesso de formalidade ao ideal de belo, fino e culto. Sob este prisma, não é difícil notar que há, novamente, uma predileção sobre o que merece ser expandido e valorizado. Mas diferente do que outrora foi permitido, hoje as migalhas de um sistema aprisionador não são mais aceitas. Através de uma linguagem coloquial, Emicida abre espaço para um diálogo importante: a urgência de afastar a associação entre cultura e dificuldade. A profundidade não se associa diretamente com a pedância lexical, e é justo por autenticar esse pensamento falacioso que muitos irreverenciam expressões artísticas populares. Além de ser um pensamento equivocado, priva seus autores de ofertarem sua autenticidade e pluralidade. E é contra essa logística, que impõe lugares subalternos a indivíduos pretos, que o filme se opõe. E dessa forma, evoca- se um sentimento de justiça histórica. Afinal, “tudo que nóiz tem é nóiz”. Por fim, a obra se propõe a ratificar o propósito já evidenciado no seu título: a necessidade de construirmos elos e de resistirmos, para que não apenas o hoje, mas também o futuro seja: democrático, inclusivo, e para que consigamos abarcar a diversidade em sua completude. A apresentação do rapper ao lado de Majur e Pabllo vittar reforça essa compreensão, pois como já externalizado por Belchior: “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. E, entre indagações, construções e reparações entendemos o motivo de ser tudo para ontem: seja pela celeridade, seja pela necessidade de (re)construirmos nossa história. É restituir a dignidade do povo preto, oportunizando que eles sejam protagonistas de suas narrativas. E que escolham como vão contá-la. Para que, assim como Exu, consigamos matar o pássaro ontem com a pedra que jogamos hoje.
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