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DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 1 MBA GERENCIAMENTO DE PROJETOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS PROFESSOR: GUILHERME SANDOVAL GÓES DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 2 ÍNDICE AULA 8: A FASE METACONSTITUCIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 3 INTRODUÇÃO 3 CONTEÚDO 4 INTRODUÇÃO TEMÁTICA 4 O FIM DA GUERRA FRIA E SEUS IMPACTOS NA FORMAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO DA PÓS-MODERNIDADE 7 DIREITOS HUMANOS E PAX AMERICANA: A DESCONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA COSMOPOLITA 17 ATIVIDADE PROPOSTA 25 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 26 REFERÊNCIAS 29 CHAVES DE RESPOSTA 31 AULA 8 31 ATIVIDADE PROPOSTA 31 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 31 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 3 Direitos e Garantias Fundamentais – Apostila Aula 8: A fase metaconstitucional dos direitos humanos Introdução Nesta aula, serão estudados os elementos teóricos que informam a fase metaconstitucional dos direitos humanos, aqui vislumbrada como a fase do constitucionalismo da pós-modernidade que sucede os ciclos democráticos da modernidade, vale explicitar, o constitucionalismo garantista do Estado Liberal de Direito e o constitucionalismo dirigente welfarista do Estado Social de Direito. Para tanto, será necessário examinar sua antítese, que é o contexto do projeto neoliberal de Pax Americana. Objetivos 1. Analisar os principais elementos teóricos que circunscrevem a fase metaconstitucional dos direitos humanos, cujo desenvolvimento será feito em termos comparativos com o projeto neoliberal de Pax Americana e sua posição geopoliticamente unipolar. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 4 Conteúdo Introdução temática O estudioso dos direitos humanos, independentemente de ser constitucionalista ou jusinternacionalista, deve ser capaz de captar a conexão entre a evolução social do Estado e as mutações ocorridas no regime jurídico de tutela dos direitos humanos. Sem dúvida nenhuma, esta é uma maneira simplificada de sistematizar a incessante marcha ético-filosófica de avanços e retrocessos que marca a trajetória jurídico-protetiva dos direitos humanos. Isto significa dizer que a efetividade ou eficácia social dos direitos humanos deve ser aferida a partir da proteção que cada um dos diferentes paradigmas estatais foi e é capaz de emprestar aos direitos do cidadão comum. Há, portanto, aqui, uma correspondência biunívoca entre o sistema jurídico de tutela dos direitos humanos e determinado tipo de Estado, como por exemplo, a proteção de direitos civis e políticos que se interliga umbilicalmente com o Estado liberal, da mesma forma que a garantia dos direitos sociais fica unida ao welfare state. Outrossim, em sede pós-moderna dos direitos humanos, pode-se, ainda, destacar a relação mútua entre a proteção transnacional dos direitos humanos e o transconstitucionalismo do Estado pós-social. Com rigor, a doutrina pátria não costuma investigar tais linhas paralelas que colocam, lado a lado, a trajetória ascensional do conceito de Estado (polis grega, Estado medieval, Estado absoluto, Estado liberal, Estado social e Estado pós-social) e as fases de evolução dos direitos humanos (direitos pré- históricos, direitos naturais, direitos constitucionalizados e direitos transnacionalizados). DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 5 No entanto, outro caminho não se tem senão o de trilhar a ordem sucessiva do regime jurídico-filosófico de proteção dos direitos humanos que existiram uns após os outros em consonância com a evolução histórica e social do Estado. Portanto, nosso desafio nesta aula é compreender o contexto do constitucionalismo da pós-modernidade que surge com o fim da Guerra Fria. Na linha do tempo, podemos denominar tal fase de metaconstitucional em substituição à fase anterior denominada de fase de constitucionalização dos direitos fundamentais. Esta fase de constitucionalização foi inaugurada com o advento da Revolução Francesa em 1789. É nessa ocasião que surge o constitucionalismo como limitação do Poder do Estado e, na sua esteira, nasce o Estado liberal de Direito. Agora, reconhece-se a fixação de um rol jusfundamental com supremacia sobre o próprio Estado, que tem o dever de respeitar os direitos constitucionais fundamentais do homem comum. Na fase de constitucionalização dos direitos fundamentais, nenhuma limitação pode ser imposta ao indivíduo pelo Estado se não houver previsão legal que a autorize. Assim sendo, esta fase simboliza a vitória da democracia (Estado Democrático de Direito) sobre o Estado de Não Direito do absolutismo monárquico e compreende os dois grandes ciclos democráticos da modernidade, a saber: 1) democracia liberal de matriz antiabsolutista e de estatalidade negativa e mínima (iniciada a partir da Revolução Francesa de 1789 ou da Declaração da Virgínia de 1776); 2) social democracia de cunho antiliberal e de estatalidade positiva, centrada na busca da igualdade material (iniciada a partir da DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 6 Constituição de Weimar na Alemanha de 1919 ou da Constituição do México de 1917). Aqui é muito importante compreender que a fase metaconstitucional dos direitos humanos cosmopolitas surge em substituição à fase de constitucionalização. Em termos simples, parece razoável afirmar que a fase de constitucionalização dos direitos fundamentais vivenciou dois grandes ciclos democráticos, a saber: o Estado liberal de Direito e o Estado social de Direito. Tais ciclos democráticos perfazem a modernidade dos direitos fundamentais. Será o fim da Guerra Fria e, na sua esteira, a globalização da economia que marcará o nascimento do constitucionalismo da pós-modernidade aqui caracterizado como a busca da constitucionalização transnacional dos direitos humanos, ou seja, trata-se de um projeto epistemológico de direito cosmopolítico que substitui os projetos do liberalismo e do socialismo. Esta fase ainda se encontra em construção, sendo certo afirmar, entretanto, que representa o atual estado da arte na proteção dos direitos humanos, na medida em que projeta a ideia-força de um Estado de Direito Universal de inspiração kantiana, que não se submete às vontades nacionais soberanas. O indivíduo ganha proteção supranacional contra as violações do seu próprio Estado nacional. Assim sendo, a atual fase de constitucionalização transnacional aspira consolidar um novo ciclo democrático, agora dito democracia pós-moderna ou democracia cosmopolita, cujo empuxo arquimediano é o fim da Guerra Fria e o consequente colapso da opção comunista. No entanto, é importante compreender com clareza que o projeto epistemológico metaconstitucional kantiano encontra grande resistência advinda do seu principal opositor, qual seja, o projeto epistemológico neoliberal da Pax Americana. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 7 Certamente, refutamos a perspectiva neoliberal, notadamente pelo retrocesso que representa em termos de proteção dos direitos sociais, daí nossa preferência pelo projeto cosmopolita de constitucionalização transnacional dos direitos humanos. No dizer de Vicente Barretto: (...) a proposta central da Pax Americana, que se expressa do ponto de vista econômico e social pelo Consenso de Washington, onde o “capitalismo democrático” torna-se o sistema ideal a ser instrumentalizado através do livre mercado global, como seu mecanismo, é contraditória, pois pretende transferir para o âmbito universal uma forma nacional.1 Busca-se, aqui, nesta última fase, a construção de uma ordem internacional democrática cosmopolita. É por isso que vamos, em seguida, examinar os principais desafios que se colocam para tal perspectiva, notadamente a implantação do Estado neoliberal de Direito, da globalizaçãoda economia e mais especificamente na nossa região geopolítica o Consenso de Washington. É por tudo isso que vamos nesse primeiro momento examinar o contexto jurídico-político que se instaura nos países de modernidade tardia com o fim da Guerra Fria. O fim da guerra fria e seus impactos na formação do constitucionalismo da pós-modernidade O grande objetivo desta segmentação temática é investigar o contexto jurídico-político que se instaura com o fim da Guerra Fria. Nesse sentido, a questão fundamental que surge é saber se, com o colapso do império soviético, estamos vivendo um novo modelo de Estado, agora dito 1 BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 223. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 8 pós-moderno e pós-social, algo compreendido entre o liberalismo burguês e o welfarismo dirigista. Ou melhor, se o fim da bipolaridade geopolítica e o triunfo do capitalismo sobre o socialismo real teriam criado as condições reais para a formação de um novo paradigma constitucional-democrático, agora dito cosmopolita de inspiração kantiana? Destarte, é nesse contexto de globalização, pós-modernidade e desprestígio do Estado social que se concentrarão nossas principais perscrutações acadêmicas acerca do atual estado da arte do regime jurídico de proteção dos direitos humanos. Como justificar, nessas condições pós-modernas, a universalidade dos direitos humanos, direitos estes que nascem da inspiração iluminista e cuja evolução ocorre dentro de um movimento pendular desequilibrado dos ciclos democráticos da modernidade? Como defender a ideia de "democracia cosmopolita” como fundamento do sistema universal dos direitos humanos se a única superpotência remanescente pós-Guerra Fria fere de morte as normas cogentes do direito internacional público na invasão do Iraque? Como insistir na afirmação kantiana de que "os povos da terra participam em vários graus de uma comunidade universal, que se desenvolveu a ponto de que a violação do direito, cometida em um lugar do mundo, repercute em todos os demais", 2 quando se constata o uso geopolítico dos direitos humanos pelas nações hegemônicas em prol dos seus próprios interesses nacionais? Enfim, são perguntas tais que nortearão nossa análise científica na sequência dos nossos estudos. 2 BARRETTO, Vicente de Paulo. O fetiche dos direitos humanos e outros temas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 233. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 9 Vale, portanto, começar com a questão da efetividade dos direitos sociais a partir do novo cenário mundial pós-Guerra Fria e da ascensão da ordem política neoliberal, que impactam diretamente as ordens constitucionais dos países de modernidade tardia. Com efeito, o fim da Guerra Fria gestou a expansão da doxa neoliberal e a aceleração do processo de globalização da economia, edificadas sob a égide da predominância geopolítica dos Estados Unidos da América, única superpotência global remanescente. Tal perspectiva é denominada Pax Americana, que Vicente de Paulo Barreto 3 associa com precisão ao termo “globalização”: O termo "globalização" foi, também, associado a um projeto sócio- político, a Pax Americana, que após a queda do Muro de Berlim, foi considerado como hegemônico. O projeto, tanto para alguns teóricos, como na prática das relações financeiras, passou a ser considerado como qualitativamente superior aos demais modelos de regimes políticos, econômicos e sociais, encontrados nas diferentes nações do planeta. Desde as suas origens, a identificação da globalização com uma experiência nacional trouxe consigo distorções na avaliação crítica do fenômeno. E assim é que a expressão "processo de globalização" ou "mundialização", como preferem os franceses, denota o fenômeno maior que se desdobra em diferentes epifenômenos (sociais, políticos, econômicos, militares, tecnológicos e culturais), que por sua vez se entrecruzam na concepção de Pax Americana. Portanto, o significado epistemológico de Pax Americana abarca um plexo de outros conceitos, tais como a universalização dos valores norte-americanos, ideologia política neoliberal, vitória do capitalismo financeiro, neutralização 3 Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 215-216. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 10 axiológica da Constituição-Dirigente, abertura mundial do comércio, retomada da primazia da autonomia privada, não intervencionismo estatal, relativização da soberania estatal, desterritorialização, engrandecimento do direito internacional hegemônico, etc. De todos esses fenômenos, destaca-se, induvidosamente, a vertente econômico-financeira, como, aliás, muito bem salientam Lenio Streck e Bolzan de Morais 4 ao evidenciarem que a ideia de privatização é o “carro chefe das políticas neoliberais, objetiva a redução do déficit fiscal, aplicando para tal o receituário do Consenso de Washington. Os cortes incidem sobre gastos sociais, seguidos de compulsiva venda de patrimônio público a preços desvalorizados”. Já Vicente de Paulo Barretto, 5 ensina que “a globalização surge, antes de tudo, no âmbito do capitalismo financeiro para então repercutir e ganhar cores próprias nas relações intersubjetivas, intergrupais e interestatais na contemporaneidade”. De tudo se vê, por conseguinte, que o fim da Guerra Fria gerou um sistema internacional hipercomplexo, no qual se destaca a tentativa neoliberal de desconstrução do Estado nacional. É nesta esteira de complexidade que a dinâmica do constitucionalismo hodierno também se acelera, especialmente a partir da crise do welfare state e do surgimento de um novo ciclo estatal, ainda em construção e que a doutrina vem denominando de Estado pós-social ou Estado pós-moderno. O professor Guilherme Sandoval Góes 6 destaca o caráter ainda indefinido deste novo paradigma jurídico-constitucional que circunscreve o estado pós-social, também dito pós-bipolar, pós-moderno, cenário pós-tudo. Nas palavras do autor: Na esteira desta complexidade, descortina-se a pós- modernidade, cuja dinâmica se abriga, como bem capturou a 4 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política & teoria do estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 153. 5 Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 215. 6 GÓES, Guilherme Sandoval. Geopolítica e pós-modernidade. In: Revista da Escola Superior de Guerra, v.23, n. 48, p. 95, ago/dez. 2007. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 11 maestria reflexiva do Professor Barroso, no desprestígio do Estado nacional dentro de um cenário pós-tudo, que em pouco mais de uma década já vivenciou dois grandes momentos de ruptura paradigmática: a queda do muro de Berlim (1989) e a queda das torres gêmeas (2001). Tais eventos têm desdobramentos jusgeopolíticos relevantes, na medida em que trazem no seu âmago a crise do Estado Social, a revivificação magnificada da ordem política liberal, e, especialmente, os riscos de neutralização ética da Constituição e da proteção constitucional dos hipossuficientes (camadas menos favorecidas do tecido social pátrio). Parece inexorável, portanto, a relevância do exame do atual estádio de proteção jurídica dos direitos humanos, herdeiro de um quadro de lutas e conquistas, cuja trajetória é longa e tortuosa e transita desde a pré-história dos direitos humanos, perpassando-se pela fase de afirmação dos direitos naturais até, finalmente, alcançar os tempos pós-modernos, uma nova era ainda indefinida entre dois grandes caminhos que coloca, de um lado, a Pax Americana, pautada na retomadada cidadania liberal burguesa de inspiração lockeana e, do outro, o metaconstitucionalismo, calcado na cidadania cosmopolita de inspiração kantiana. No plano teórico, o projeto epistemológico do metaconstitucionalismo fomenta a prática de um constitucionalismo democrático cosmopolita, no qual a fonte primária das normas jurídicas não vem do estado soberano nacional, mas, sim, da natureza do próprio elemento humano, cuja legitimidade é extraída da comunidade internacional como um todo e não do reconhecimento de um poder estatal soberano. De certa maneira, examinar o atual estado da arte da proteção internacional dos direitos humanos é comparar estes dois grandes paradigmas autoexcludentes, quais sejam, de um lado, a Pax Americana neoliberal e seu projeto geopolítico unipolar dos EUA, e, do outro, o projeto epistemológico DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 12 metaconstitucional e seu projeto geopolítico de multipolaridade de escopo global. Trata-se, em essência, de um estudo voltado para a verificação das tendências de evolução dos direitos humanos e sua fundamentação ética em termos universais. É preciso desvelar a ética que circunscreve a evolução dos direitos humanos, seja na perspectiva da Pax Americana, seja na perspectiva do modelo metaconstitucional. Com efeito, não há outro caminho a trilhar senão o de traçar o panorama jurídico-constitucional que sucede os ciclos democráticos da modernidade, a saber: o ciclo da democracia liberal e o ciclo da social democracia. Tais ciclos democráticos compõem o que a melhor doutrina denomina de fase de constitucionalização dos direitos fundamentais. Com efeito, devemos a Klaus Stern a classificação da evolução dos direitos humanos em três fases distintas: pré-história dos direitos humanos, fase de afirmação dos direitos naturais e fase de constitucionalização. Aqui é importante destacar que nossa análise será feita sob a ótica do constitucionalismo dos países da periferia do sistema mundial, de modo a compreender as interferências jurídico-constitucionais advindas do projeto neoliberal implantado após a queda do Muro de Berlim, cujo foco passou a ser a abertura mundial do comércio. Nesse sentido, Paulo Bonavides,7 com a precisão acadêmica que lhe é peculiar, salienta que: O fato novo e surpreendente do modelo de globalização em curso é que ele não opera nas relações internacionais com valores e princípios; sua ideologia, aparentemente, é não ter ideologia, posto que esteja a mesma subjacente, oculta e invisível no monstruoso fenômeno de poder e subjugação, que é a maneira como a sociedade fechada e incógnita das minorias privilegiadas, 7 BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial. A derrubada da constituição e a recolonização pelo golpe de estado institucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 6-7. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 13 dos concentradores de capitais, faz a guerra de escravização, conquistando mercados, sem disparar um só tiro de canhão e sem espargir uma única gota de sangue. Desferem, simplesmente, a pretexto de reformar, modernizar e globalizar a economia, os sinistros golpes de Estado institucionais, tendo para tanto por instrumentos e executores os governos títeres da “ditadura constitucional” de que ora estamos sendo vítimas neste País. Enfim, examinar a matriz de impactos cruzados que envolve o projeto geopolítico unipolar neoliberal dos EUA e a efetividade dos direitos humanos sociais é uma das inquietações que nutre a presente aula. É preciso compreender que o advento da globalização traz no seu bojo a ideologia neoliberal e a ideia de pensamento único (fim da História de Francis Fukuyama), 8 fazendo ecoar voz uníssona que se espraia sobre a elite dominante da periferia do sistema mundial, facilmente seduzida pelo canto neoliberal do Consenso de Washington, “onde o capitalismo democrático torna-se o sistema ideal a ser instrumentalizado através do livre mercado global, como seu mecanismo” (Vicente Barretto).9 É melancólico constatar que a camuflagem da ordem política neoliberal revelou-se eficiente na imposição da força normativa do mercado e seu consectário mais insensível, qual seja, a tentativa de neutralizar axiologicamente a Constituição, retirando-lhe a força normativa tão arduamente conquistada. A justificativa se acentua quando se constata a crise do Estado do Bem-Estar Social a partir do colapso da União Soviética. Com efeito, o fim da Guerra Fria gestou uma nova ordem constitucional calcada no laissez-faire absoluto em 8 FUKUYAMA, Francis. O fim da história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998. 9 Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 223. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 14 detrimento de uma democracia welfarista, como bem destaca a lição de Lindgren Alves, 10 in verbis: Com o fim da bipolaridade estratégica e da competição ideológica entre liberalismo capitalista e o comunismo, a ideologia que se impôs em escala planetária não foi, a da democracia baseada no welfare state, (...) Foi a do laissez-faire absoluto, com a alegação de que a liberdade de mercado levaria à liberdade política e à democracia. Eticamente justificou-se (...) mas a própria noção de Estado- providência tornou-se condenada como inepta à competitividade, num momento em que o desemprego era aceito como fatalidade estrutural. É neste contexto jurídico-constitucional que se julga fundamental trazer de volta os direitos sociais fundamentais de segunda dimensão para a centralidade do constitucionalismo pós-moderno. Nas palavras de José Joaquim Gomes Canotilho:11 “Os direitos econômicos, sociais e culturais, na qualidade de direitos fundamentais, devem regressar ao espaço jurídico- constitucional e ser considerados como elementos constitucionais essenciais de uma comunidade jurídica bem ordenada”. Com rigor, o que se quer demonstrar é que a queda do muro de Berlim é o grande momento de ruptura paradigmática em termos de efetividade dos direitos sociais, na medida em que o novo eixo epistemológico do mundo pós- Guerra Fria se desloca para o arquétipo neoliberal, que somente se ocupa da primeira dimensão de direitos (direitos civis e políticos). Em termos simples, isto significaria dizer que o Estado pós-moderno não reconheceria os direitos sociais como direitos subjetivos. Patrícia Glioche ensina com precisão que: O fundamento dos direitos humanos também pode ser aquele que define os direitos humanos como direitos públicos subjetivos – de 10 ALVES, J.A. Lindgren. A declaração dos direitos humanos na pós-modernidade. Rio de Janeiro. Disponível em: <http:/www.no.com.br>. Acesso em: 27 jul. 2004. 11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 98. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 15 origem alemã – e significa que as pessoas podem reivindicar juridicamente as pretensões relativas aos direitos humanos perante o poder público.12 De observar-se, portanto, com a devida acuidade científica, que paira sobre o constitucionalismo pós-moderno o fantasma da era da descodificação/desregulamentação, imposta pela nova ordem política neoliberal. Inverte-se o sinal da engenharia constitucional no mundo periférico a partir de interesses geoestratégicos dos centros mundiais de poder, notadamente dos Estados Unidos da América. Ou seja, o parlamento do Estado periférico já não é mais a única fonte de poder, na medida em que se transforma em mero reprodutor de normas jurídicas concebidas fora do âmbito soberano do Estado; nas palavras de Bobbio, em mera câmara de ressonância de decisões políticas tomadasfora do parlamento.13 A questão é complexa, mas não pode deixar de ser enfrentada pelos juristas do século XXI. Com efeito, o fim da bipolaridade geopolítica gestou um novo estádio epistemológico, cuja compreensão perpassa necessariamente pela interconexão entre a ideologia neoliberal e o constitucionalismo da pós- modernidade. A ideia-força de um só mundo, uma só ideologia, uma só superpotência remanescente (implantação da Pax Americana) não resiste aos anseios do constitucionalismo global de inspiração kantiana. Há que se reconhecer que o contexto internacional pós-moderno é favorável à cooperação internacional. Não se refuta o amplo campo de reflexões a fazer, no entanto, é possível diagnosticar a possibilidade de implementação 12 GLIOCHE BÉZE, Patrícia Mothé. Os tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro. In: Direito penal internacional. Estrangeiro e comparado. Coordenador Carlos Eduardo Adriano Japiassú. Rio de Janeiro: lúmen Júris, 2007. p. 156. 13 Para Bobbio, o parlamento, na sociedade industrial avançada, não é mais o centro do poder real, mas apenas, frequentemente, uma câmara de ressonância de decisões tomadas em outro lugar. Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 159. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 16 do metaconstitucionalismo calcado na cidadania cosmopolita. O resultado é inequívoco: a proteção dos direitos humanos passa da esfera das leis constitucionais nacionais para a esfera das normas metaconstitucionais cosmopolitas. É nesse lanço que desponta no horizonte o constitucionalismo global, que, na visão de Canotilho, é “centrado no núcleo essencial dos pactos sobre direitos individuais e políticos e sobre direitos econômicos, sociais e culturais. A paradoxia reside nisto: bondade dos direitos fora das fronteiras; maldade dentro das fronteiras constitucionais internas”.14 Enfim, a esperança caminha no sentido de implantação de uma nova perspectiva para a efetividade dos direitos humanos, que supere os resquícios do antigo paradigma do Estado liberal de Direito, para se aproximar do assim chamado metaconstitucionalismo, aqui compreendido como uma nova visão de fundamentação ética dos direitos humanos, calcada nas normas metaconstitucionais cosmopolitas que transcendem o escopo da jurisdição constitucional de um determinado Estado soberano. Destarte, urge fazer avançar a dogmática dos direitos fundamentais, deslocando-a na direção da tutela supraconstitucional com o fito de garantir o núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, independentemente de uma vontade soberana estatal específica. Na contemporaneidade, o metaconstitucionalismo de índole kantiana deveria ocupar o vértice do regime jurídico dos direitos humanos, mas, no entanto, tal regime vem correndo crescente risco de neutralização eficacial em virtude da avalanche neoliberal que se materializa dentro de um processo de globalização neodarwinista conduzida por um projeto hegemônico unipolar de poder nacional, que Vicente Barretto associa à Pax Americana. 14 Cf. Estudos sobre direitos fundamentais, p. 134-135. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 17 Direitos humanos e Pax Americana: a desconstrução da democracia cosmopolita Os ataques terroristas aos símbolos do poder nacional dos Estados Unidos da América alteraram drasticamente a ordem jurídica internacional até então vigente. Com efeito, a queda das torres gêmeas é o marco de um novo tempo que fixou diferentes imperativos da postura externa dos EUA, imprimindo-lhes nova roupagem voltada para a Guerra contra o Terror. Nasce uma nova ordem denegadora dos direitos humanos. No dizer de Giorgio Agamben: 15 O significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão aparece claramente na "military order", promulgada pelo presidente dos Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, e que autoriza a "indefinite detention" e o processo perante as "military commissions" (não confundir com os tribunais militares previstos pelo direito da guerra) dos não cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades terroristas. É neste contexto que surge a concepção da Doutrina Bush, que é – sem nenhuma dúvida – uma grande afronta ao constitucionalismo democrático global, porque viola as normas internacionais da Carta das Nações Unidas no que tange ao uso da força. Realmente, se, por um lado, a queda do muro de Berlim propiciou a retomada da onda neoliberal, fomentando a aceleração da globalização da economia, por outro, a queda das torres gêmeas estabeleceu o projeto hegemônico de Pax Americana, fomentando ações unilaterais neutralizadoras do direito internacional. Em lapidar lição, o Professor Antônio Celso Alves Pereira 16 ensina que: 15 Cf. Estado de exceção, p. 21. 16 ALVES PEREIRA, Antônio Celso. Direitos Humanos e terrorismo. In: Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres (Orgs. Daniel Sarmento e Flávio Galdino). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 130. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 18 Consagrada como "Doutrina Bush", a nova estratégia destaca, entre seus pilares o contraterrorismo e a legítima defesa preventiva. For- mulada pelo Conselho de Segurança Nacional, mais precisamente pela então assessora presidencial Condoleezza Rice, e anunciada de forma definitiva pelo presidente em discurso na Academia Militar de West Point, em 01/06/2002, representa uma radical mudança dos conceitos geoestratégicos que vigoravam no país desde a Guerra Fria, e se justificaria por sua finalidade, ou seja, criação de instrumentos legais para controle absoluto de todas as atividades individuais, principalmente de imigrantes, e, da mesma forma, de concessão ao presidente de poderes para atacar preventivamente, em qualquer parte do mundo, grupos terroristas ou Estados hostis aos norte-americanos. No plano da proteção internacional dos direitos humanos, a posição geopoliticamente unipolar dos EUA traz grande retrocesso – a partir da queda das torres gêmeas – na garantia das liberdades individuais. Trata-se da chamada lei patriótica, aprovada sob os influxos Guerra contra o Terror, que vem neutralizando os direitos fundamentais de primeira dimensão em prol da segurança nacional. De feito, o constitucionalismo estadunidense, no seu afã de proteger contra o terror, desloca para a sua centralidade a limitação dos direitos da personalidade. Com isso, parece inexorável afirmar que o alvorecer do terceiro milênio vivencia um fenômeno jurídico paradoxal, qual seja: o maior centro democrático do planeta veste a roupagem estatal hobbesiana para neutralizar os mais antigos direitos fundamentais do homem: os direitos civis e políticos de inspiração liberal burguesa. Sob a égide de um realismo hobbesiano-maquiavélico, os Estados Unidos adotam uma posição de unipolaridade geopolítica de Pax Americana totalmente incompatível com a multipolaridade e o metaconstitucionalismo da sociedade internacional pós-Guerra Fria. Portanto, o projeto de Pax Americana tem aspirações hegemônicas sobre o mundo globalizado, valendo DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 19 ressaltar, com as palavras de José Luis Fiori,17 o poder global estadunidense que nasce com o fim da Guerra Fria, verbis: O fim da Guerra Fria transfere para os Estados Unidos uma centralidade militar e monetária sem precedentes na história da economia-mundo capitalista. Ambos os poderes seguem concentrados nas mãos de uma única potência que ainda responde pelo nome de EstadosUnidos. Eis que plenamente justificado, sob a perspectiva estadunidense, o projeto hegemônico unipolar, que traz no seu bojo os conceitos de ataque preventivo da Doutrina Bush (ataco primeiro e pergunto depois) e globalização da economia a partir da abertura mundial do comércio (engenharia neoliberal globalizante); tudo isso dentro de um quadro geopolítico mais amplo de implantação de uma ordem jurídica internacional unipolar, moldada exclusivamente pelos Estados Unidos da América. Ou melhor, como ensina Vicente Barretto: o termo “globalização” confunde-se com o de Pax Americana. 18 Em essência, o contexto da Pax Americana desconstrói e nulifica as tendências de implantação do metaconstitucionalismo. Sem dúvida, as normas metaconstitucionais cosmopolitas são aquelas em função das quais se recorre a entidades de direito internacional público independentemente da jurisdição nacional. Por outras palavras, são normas que nos dá a faculdade de exigir do próprio Estado violador o cumprimento de uma obrigação decorrente de um direito da pessoa humana. A fase metaconstitucional dos direitos humanos pressupõe a superioridade normativa dos comandos cosmopolitas em relação às 17 FIORI, José Luís. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 59. 18 Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 215. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 20 normas constitucionais internas. Estão, assim, excluídas do conceito de metaconstitucionalismo a supremacia da Constituição e as imposições unilaterais de um determinado Estado nacional. Em síntese, o direito metaconstitucional cosmopolita tem eficácia para além do território do Estado que o sancionou. A ideia de territorialidade das leis é mitigada com o advento do metaconstitucionalismo, cujas formas jurídicas são variadas e desaguam, normalmente, na proteção internacional dos direitos humanos. Com tal tipo de intelecção em mente, fácil é identificar os sinais inequívocos de desconstrução desse contexto metaconstitucional que são emitidos pelo projeto neoliberal de hegemonia unipolar estadunidense, senão vejamos: a) Edição da já citada “Doutrina Bush”, violadora do DIP, que ataca primeiro e pergunta depois; b) Recusa aos novos imperativos internacionais de conservação do meio ambiente da Convenção de Kyoto; c) Não reconhecimento da aplicabilidade às forças militares estadunidenses das normas e princípios jurídicos envolvendo a formação do Tribunal Penal Internacional (TPI); d) O abandono da Conferência antirracismo; e) Promulgação das leis patrióticas; f) Quebra de sigilo e espionagem de pessoas, empresas e Estados feita em escala planetária; DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 21 g) Imposição do Consenso de Washington para a periferia do sistema internacional em benefício das empresas multinacionais estadunidenses. De tudo se vê, por conseguinte, que o projeto neoliberal de Pax Americana nada mais faz senão enfraquecer as tendências de cooperação internacional dentro de uma perspectiva kantiana de democracia cosmopolita. Com efeito, o menosprezo que o projeto hegemônico estadunidense empresta aos demais Estados nacionais e, em especial, ao direito internacional público (enfraquecimento do papel nas Nações Unidas) em nada contribui para o aperfeiçoamento normativo-eficacial das normas metaconstitucionais cosmopolitas, ao revés, o projeto epistemológico de Pax Americana mantém as normas internacionais como fórmulas jurídicas vazias desprovidas de força normativa. É a dimensão maquiavélico-hobbesiana da Pax Americana que neutraliza a aplicação axiológica das normas metaconstitucionais cosmopolitas, e, na sua esteira, enfraquece a efetividade dos direitos humanos na esfera internacional. Nesse sentido, a normatividade internacional não consegue superar a lógica realista da geopolítica de poder do projeto hegemônico unipolar dos Estados Unidos da América. 19 Destarte, as normas metaconstitucionais cosmopolitas não encontram ressonância no projeto epistemológico da Pax Americana, na medida em que não há valorização da normatividade internacional em relação às leis constitucionais internas, símbolos da vontade soberana dos Estados nacionais. Como amplamente visto, o modelo estadunidense é realista e 19 Ora, o melhor exemplo disso foi a invasão do Iraque, na qual os Estados Unidos feriram de morte a lei internacional que regula o uso da força a partir de autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Assim, é certo afirmar que a ideia de Pax Americana torna desnutrido o processo de evolução dos direitos humanos em sede internacional, vez que a efetividade de tais direitos deixa de contar com o jogo concertado de princípios morais internacionais, que são – hoje em dia – os principais instrumentos hermenêuticos de concretização de direitos. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 22 caminha na direção da neutralização axiológica do metaconstitucionalismo, vale dizer a Pax Americana é um modelo político-institucional que visa atender aos interesses hegemônicos de uma única superpotência, não se coadunando, portanto, com o metaconstitucionalismo, que se atrela à geração de normas não dimanadas dos Estados soberanos. 20 Infelizmente, a doutrina pátria ainda não despertou para a temática do projeto unipolar da Pax Americana e permanece alheia aos elementos teóricos que informam tal perspectiva e seus reflexos no campo jurídico- constitucional. Além de Vicente Barretto, um dos poucos autores que enfrentou o tema foi Daniel Sarmento, e, mesmo assim, de forma perfunctória, valendo, pois, reproduzir seu magistério, in verbis: O colapso do comunismo, simbolizado pela queda do muro de Berlim, eliminou uma das ideologias rivais que se defrontavam e disputavam espaço num mundo até então bipolar. Com o fracasso retumbante da experiência marxista-leninista e o advento da Pax Americana, o capitalismo ficou mais à vontade para impor, agora sem concessões, o seu modelo econômico e social, que constituiria, segundo alguns, o “fim da história”. Como se o fiasco do socialismo pudesse ofuscar os problemas crônicos do capitalismo, em especial a sua tendência para promover a desigualdade e aprofundar a exclusão social.21 Com a devida vênia, não concordamos com a visão do eminente jurista, na medida em que associa o conceito de Pax Americana ao fim da história de Francis Fukuyama 22 e, portanto, com a ideia de triunfo do capitalismo e fiasco do socialismo. 20 Nesse sentido, precisa a lição de Vicente de Paulo Barretto, in verbis: “O projeto epistemológico do metaconstitucionalismo privilegia, como fonte teórica e prática da ordem constitucional da democracia cosmopolita, normas que não são geradas pelo estado soberano nacional e nem são válidas por causa do reconhecimento estatal. Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 227. 21 SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social-(pós- modernidade constitucional?). In: FERRAZ Jr., Tércio Sampaio (Coord.). Crises e desafios da Constituição brasileira. Rio de Janeiro, 2002. p. 399. 22 FUKUYAMA, Francis. O fim da história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 23 Preferimos a intelecção de Vicente Barretto 23 que associa a Pax Americana a um projeto muito mais amplo e superior aos demais modelos de regimes políticos, econômicos, e sociais, encontrados nas diferentes nações do planeta. Para Vicente de Paulo Barretto, “desde as suas origens, a identificação da globalização com uma experiência nacional trouxe consigo distorções na avaliação crítica do fenômeno”.O argumento adiantado pelos teóricos da globalização neoliberal consistia em proclamar as qualidades intrínsecas do projeto político e econômico norte-americano, pois ele, e somente ele, representaria a etapa mais avançada da democracia liberal. 24 Na verdade, como bem destaca Guilherme Sandoval, 25 por ser a única superpotência ainda remanescente, acredita-se que estamos vivendo sob os auspícios dessa Pax Americana. No entanto, acreditamos que tal tipo de intelecção é errôneo, na medida em que os EUA não têm capital geopolítico suficiente para impor um cenário internacional unipolar, vale dizer, um quadro mundial onde não haja reação política, econômica, militar, cultural e tecnológica por parte das demais nações do mundo. Esta visão mais ampla bem revela que o problema central na construção da democracia cosmopolita reside no modelo político-institucional a ser estabelecido pelo Estado pós-moderno, sucessor dos ciclos democráticos da modernidade (Estado liberal de Direito e Estado social de Direito). É nesse sentido que a reflexão metaconstitucional propõe como solução a instauração do Estado universal de Direito, um paradigma estatal no qual a supremacia das normas metaconstitucionais cosmopolitas garantiriam a realização da dignidade da pessoa humana em escala planetária. 23 Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 215 e 216. 24 Cf. O fetiche dos direitos humanos e outros temas, p. 215 e 216. 25 Portanto, é importante compreender que a concepção de Pax Americana é um conceito geopolítico, cujo significado é a imposição de um cenário internacional unipolar com predominância cêntrica norte- americana em todos os campos do poder nacional (político, econômico, militar, cultural e tecnológico) Cf. Geopolítica e pós-modernidade, p. 111. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 24 É uma nova perspectiva que se perfaz a partir da ruptura da teoria constitucional clássica, calcada na supremacia de normas constitucionais criadas por um poder constituinte originário soberano dentro dos limites territoriais do Estado nacional. Portanto, é a superação histórica do constitucionalismo clássico que abre caminho para o metaconstitucionalismo e para a democracia cosmopolita. Neste sentido, existe, indubitavelmente, um campo amplo de reflexões a fazer, no entanto, já é possível diagnosticar a dimensão humana da sociedade internacional cosmopolita, cujo centro de gravidade gira em torno de dois grandes níveis: nível local e nível global. Eis aqui, por conseguinte, um primeiro desdobramento sistêmico do metaconstitucionalismo e da democracia cosmopolita. Assim sendo, é preciso avançar nessa investigação teórica acerca dos fundamentos do metaconstitucionalismo e seu epicentro jurídico-normativo, qual seja: o reconhecimento do regime transnacional de proteção dos direitos humanos no seu sentido mais amplo como matéria-prima para a teoria constitucional. O principal desafio teórico do metaconstitucionalismo reside, portanto, em substituir os modelos constitucionais da modernidade (garantismo constitucional e dirigismo constitucional), colocando em seu lugar uma nova engenharia constitucional que tivesse a capacidade de garantir a cidadania cosmopolita. É tempo de concluir, ressaltando a relevância da compreensão da perspectiva cosmopolita na teoria constitucional contemporânea. Não há mais espaço para intelecções ingênuas no campo político-constitucional. O estudioso dos direitos humanos tem a tarefa de desvelar os princípios fundantes do metaconstitucionalismo, notadamente aqueles focados na proteção da dignidade da pessoa humana e do estado democrático de direito. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 25 Afastando o projeto hegemônico de Pax Americana, aqui vislumbrado como verdadeira antítese do metaconstitucionalismo e da democracia cosmopolita, o novo paradigma deve buscar a implantação do Estado Universal de Direito. Atividade proposta Leia o trecho abaixo, de autoria de Patrícia Glioche: “Os direitos humanos devem ser vistos como o produto das lutas sociais e dependeram sempre de fatores históricos e sociais que refletem os valores e aspirações de cada sociedade. Os direitos humanos têm, assim, um caráter fluido e dinâmico que corresponde às relações de poder e às ideias prevalentes no seio da sociedade em que eles adquirem vigência, mas uma vez reconhecidos como tais sua condição se torna irreversível. (...) Os últimos acontecimentos internacionais, como o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, vêm fazendo com que haja uma alteração no desenvolvimento e reconhecimento dos direitos humanos, na medida em que os Estados Unidos, hoje potência hegemônica, vêm se recusando a se submeter às normas internacionais de proteção aos direitos humanos, e "o que predomina hoje, em lugar da solidariedade internacional contra a guerra e a miséria, convocada pelo presidente norte-americano, é a subordinação da huma- nidade aos interesses exclusivos das grandes potências.” A partir da leitura do texto, responda: O projeto neoliberal de Pax Americana tende a fortalecer, com espeque na globalização da economia, a fase metaconstitucional dos direitos humanos? DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 26 Exercícios de fixação Questão 1 Leia o trecho abaixo, de autoria de Luís Roberto Barroso: “Entre a luz e a sombra, descortina-se a pós-modernidade. O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana. O Estado passou a ser o guardião do lucro e da competitividade. E a triste constatação é a de que o Brasil chega ao neoliberalismo sem ter conseguido ser liberal nem moderno.” A partir do espírito do texto acima transcrito, assinale a resposta CORRETA: a) ( ) A ideia de que o Estado é o guardião do lucro e da competitividade é compatível com o paradigma do welfare state; b) ( ) O desprestígio do Estado é característica do modelo do bem-estar social; c) ( ) O novo ciclo estatal da pós-modernidade tem por característica a busca da democracia direta participativa; d) ( ) A concepção de Estado guardião do lucro e da competitividade é o eixo do Estado neoliberal de Direito, que defende a não intervenção do Estado no domínio das relações jurídicas privadas. Questão 2 A ideologia que se implanta com o fim da bipolaridade geopolítica da Guerra Fria é a concepção do neoliberalismo, cujo núcleo central enquanto paradigma da estatalidade pós-moderna pode ser caracterizado pela: a) ( ) Promoção dos direitos sociais e pela proteção dos hipossuficientes. b) ( ) Garantia do exercício incondicional da livre iniciativa. c) ( ) Valorização axiológica da Constituição e de sua força normativa. d) ( ) Promoção do constitucionalismo dirigente. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 27 Questão 3 Leia as assertivas a seguir reproduzidas e assinale a alternativa que contém aquelas características que pertencem ao metaconstitucionalismo de inspiração kantiana: I. Retomada do Estado legislativo de Direito. II. Neutralização axiológica da Constituição e dos direitos sociais. III. Supremacia das normas internacionais sobre os ordenamentos constitucionais internos. IV. Projeto epistemológico neoliberal de Pax Americana. V. Estado Universal de Direito. Somente é correto o que se afirma em: a) ( ) I , III e V; b) ( ) III e V; c) ( ) II,III e IV; d) ( ) I e IV; e) ( ) II, IV e V. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 28 Questão 4 Analise as assertivas abaixo e assinale aresposta CORRETA: I. O significado epistemológico de Pax Americana abarca um plexo de outros conceitos, tais como a universalização dos valores norte- americanos, ideologia política welfarista, vitória do intervencionismo keynesiano, neutralização axiológica da Constituição-Garantia, abertura mun II. dial do comércio, retomada da primazia da dignidade da pessoa humana e da justiça social, não intervencionismo estatal, revalorização dos direitos sociais, desterritorialização, engrandecimento do direito metaconstitucional cosmopolita etc. III. As normas metaconstitucionais cosmopolitas encontram grande ressonância no projeto epistemológico da Pax Americana, na medida em que há valorização da normatividade internacional em relação às leis constitucionais internas, símbolos da formação do Estado Universal de Direito. a) ( ) As duas assertivas são falsas; b) ( ) A assertiva I é verdadeira e a assertiva II é falsa; c) ( ) Ambas as assertivas são verdadeiras; d) ( ) A assertiva I é falsa e a assertiva II é verdadeira. Questão 5 Assinale o evento histórico que gera um reordenamento mundial unimultipolar e na sua esteira grandes transformações do Estado contemporâneo, notadamente no que tange ao enfraquecimento das liberdades individuais em detrimento da segurança nacional: a) ( ) Os atentados terroristas de 11 de Setembro. b) ( ) O fim do apartheid na África do Sul. c) ( ) Os acordos de paz entre israelenses e palestinos. d) ( ) O protocolo de Kyoto DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 29 Referências ALVES PEREIRA, Antônio Celso. Direitos Humanos e terrorismo. In: Direitos Fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres (Orgs. Daniel Sarmento e Flávio Galdino). Rio de Janeiro:Renovar, 2006. ALVES, J. A. Lindgren. A declaração dos direitos humanos na pós- modernidade. Rio de Janeiro. Disponível em: <http:/www.no.com.br>. Acesso em: 27 jul. 2004. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 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STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política & teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 31 Chaves de Resposta Aula 8 Atividade proposta Chave de resposta: A resposta é negativa, porque o texto entremostra um longo caminho a percorrer até atingir o patamar almejado pelo direito cosmopolítico. A temática dos direitos humanos circunscreve, sem nenhuma dúvida, uma complexa matriz de impactos cruzados que rege as relações internacionais entre centro e periferia do sistema mundial; uma relação de poder e influência que penetra no núcleo essencial dos princípios da soberania estatal, da autodeterminação dos povos, da não interferência e, principalmente, nos valores morais que alicerçam a vida democrática. Com rigor, a Pax Americana é a negação do pensamento kantiano, senão vejamos: a violação do direito, cometida em um lugar do mundo estrategicamente aliado aos EUA, não repercutirá em todos os demais. Já a violação do direito, cometida em um lugar do mundo que resiste aos EUA, repercutirá em todos os demais. E mais: na Guerra Antiterror, legitima-se a redução das liberdades individuais como meio para a obtenção de segurança nacional; justifica-se a substituição das garantias democráticas por leis patrióticas capazes de levar ao estado de não liberdade. Um "Estado de Exceção" permanente. Exercícios de fixação Questão 1: D Justificativa: A assertiva D é a correta, porque a fusão maligna envolvendo a desconstrução do Estado social e os riscos de neutralização axiológica da Constituição são características da ordem constitucional neoliberal, cujo objetivo é retroceder aos tempos inaugurais do constitucionalismo liberal, deixando a autonomia privada livre da intervenção estatal. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 32 Questão 2: B Justificativa: A alternativa B é a correta, porque como bem afirma Lindgren Alves, a ideologia que se implanta com o fim da bipolaridade geopolítica da Guerra Fria não foi a do welfare state, mas, sim, neoliberalismo, cujo núcleo central é o retorno ao estado constitucional pré-weimariano, cuja característica mais marcante é a garantia do exercício incondicional da livre iniciativa, um dos motores do processo de globalização da economia. Questão 3: B Justificativa: A alternativa B é a correta, porque as seguintes características não pertencem ao metaconstitucionalismo de inspiração kantiana: retomada do Estado legislativo de Direito, neutralização axiológica da Constituição e dos direitos sociais e projeto epistemológico neoliberal de Pax Americana. Questão 4: C Justificativa: As duas assertivas estão erradas. Com efeito, o significado epistemológico de Pax Americana não abarca os seguintes fatores: a ideologia política welfarista, a vitória do intervencionismo keynesiano, a neutralização axiológica da Constituição-Garantia, a retomada da primazia da dignidade da pessoa humana e da justiça social, a revalorização dos direitos sociais e o engrandecimento do direito metaconstitucional cosmopolita. Os demais fatores estão corretos. Já com relação à segunda assertiva, as normas metaconstitucionais cosmopolitas não encontram ressonância no projeto epistemológico da Pax Americana, na medida em que não há valorização da normatividade internacional em relação às leis constitucionais internas, símbolos da vontade soberana dos Estados nacionais. Questão 5: A DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS – AULA 8 33 Justificativa: A assertiva A é a correta, porque o primeiro grande passo hermenêutico do intérprete dentro de um processo de ponderação de valores deve ser a ponderação harmonizante e o princípio da concordância prática.
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