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W M ■ v : r ' ’ Cf-p) ■ - '\ ''nr ’ bq pJ A Pm L ?, p n 3íiua /lí' 1 ! MBEIMM ! uma educação “outra"? X7! '4g/t - • Organização Vera Maria Candau , . . . -/:■ • ‘ - O • ■ ■U-, GECECletras]■ -• •’ ■ Copyrigth © 2016 Vera Maria Candau Organização Vera Maria Candau Coordenação editorial e revisão Adélia Maria Nehme Simão e Koff Projeto gráfico e capa Rodolpho Oliva Autores/autoras Adélia Maria Nehme Simão e Koff, André Luiz Sena Mariano, Augusto Cesar Gonçalves e Lima, Carla de Oliveira Romão, Carmen Teresa Gabriel, Catherine Walsh, Cinthia Monteiro de Araújo, Cristiane Correia Taveira, Daniel Mato, Daniela Frida Drelich Valentim, Edson Diniz, Emilia Freitas de Lima, Fidel Tubino, Helena Maria Marques Araújo, Isabell Theresa Tavares Neri, Ivanilde Apoluceno de Oliveira, Kelly Russo, Luiz Fernandes de Oliveira, Marcelo Gustavo Andrade de Souza, Miriam Soares Leite, Stela Guedes Caputo, Susana Beatriz Sacavino, Vera Maria Ferrão Candau, Wilson Cardoso Júnior Nenhuma pane dessa obra pode ser reproduzida, duplicada ou transmitida por quaisquer meios sem a prévia autorização da organizadora. CIP-BRAS1L CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ 147 Inlcrcullurali/ar. dcscnloni/ar. democratizar : uma educação 'outra1? / organização Vera Maria Candau. - 1. cd. - Rio de Janeiro : 7 Letras. 2016. ISBN 078-85-421-0450-9 1. Educação. 2. Cultura. 3. Comunicação c cultura - Aspectos sociais. 1. Candau. Vera Maria. CD1): 302 CDU: 316.77 16-32326 13/04/2016 18/04/2016 Viveiros de Castro Editora Ltda Rua Visconde de Pirajá, 580 Loja 320 Ipanema, Rio de Janeiro/RJ Cep: 22410-902 _ & ! ■ ■ m ■ , IHDjA.íif» í Dr \1 lm :! rym!u t. I! / f j \ : L—7 7 V1 ^ ^ ^ mrx I 1 ■/!- \ : l Pt L [Mtb uma educação “outra"? Organizadora Vera Maria Candau GECEC 20 ANOS Rio de Janeiro, 2016 ^GECECQ L E T R A s] 1 INTERCULTURALIDADE, DEC0L0NIAL1DADE E EDUCAÇÃO: PERSPECTIVAS Por que a formação cidadã é necessária na educação intercultural? Fidel Tubino Universidades e diversidade cultural e epistêmica na América Latina: experiências, conflitos e desafios Daniel Mato Notas pedagógicas a partir das brechas decoloniais Catherine Walsh "Ideias-força" do pensamento de Boaventura Sousa Santos e a educação intercultural Vera Maria Candau p. 21 p. 22 p. 38 op. 64 H 5 p. 76 2 CONHECIMENTOS, POLÍTICAS, ENFOQUES E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL Nação, diferença e temporalidade: uma análise discursiva da BNCC de história Carmen Teresa Gabriel Conhecimento escolar e interculturalidade: por outras histórias possíveis Cinchia Monteiro de Araújo Educação intercultural crítica e ação afirmativa*, avanços e desafios Daniela Frida Drelich Valentim A cultura escolar e os quilombolas: uma experiência de aplicação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 Augusto César Gonçalves e Lima p. 99 p. 100 p. 126 p. 144 p.l60 A razão do outro: uma perspectiva histórica intercultural como referência para a educação Luiz Fernandes de Oliveira Educação descolonizadora e interculturalidade: notas para educadoras e educadores Susana Sacavino p. 174 p. 188 3 SUJEITOS, DIFERENÇAS E PROCESSOS EDUCATIVOS Interculturalidade combina com universidade? Trajetórias de estudantes universitários indígenas no Estado do Rio de Janeiro Kelly Russo e Edson Diniz Da persistência do sexismo na educação escolar da juventude: sobre gênero, heranças e multiplicações Míriam Soares Leite e Carla de Oliveira Romão Transformando a palafita em casinha: as memórias do Museu da Maré através das crianças Helena Maria Marques Araújo Pesquisar crianças em terreiros: diálogos e alianças necessárias Stela Guedes Caputo Em busca de uma didática da invenção surda Cristiane Correia Ttaveira p. 205 p. 206 p. 226 p.250 p. 266§!= I 2 p. 282cag5 2 3 4 PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, FORMAÇÃO DE EDUCADORES E INTERCULTURALIDADE Educação intercultural crítica e trabalho centrado em projetos: um diálogo produtivo para reinventar a escola Adélia Maria Nehme Simão e Koff Uma aproximação à interculturalidade nas práticas pedagógicas escolares: qual o lugar dos saberes docentes? Emílio Freitas de Lima e André Luiz Sena Mariano Cotidiano escolar, formação docente e interculturalidade Vera Maria Candau p. 303 3I p. 304 p. 322 p. 342 fe Vozes de educandas em práticas pedagógicas interculturais freireanas Isabell Theresa Tavares Neri e Ivanilde Apoluceno de Oliveira Ensino de artes visuais antirracista: reflexões sobre uma prática pedagógica Wilson Cardoso Junior Intolerância religiosa como experiência escolar: viver, narrar e aprender Marcelo Andrade p. 358 p. 376 p. 394 Perfil dos autores p. 419 o *E 5 Nação, diferença e temporalidade: uma análise discursiva da BNCC de história 100 Carmen Teresa Gabriel g zt Doutora em educação pela PUC-Rio. Professora titular da Faculdade de Educação da UFRJ. UFRJ/NEC/CECCEH* èi 3 2 c£ 51 8 ei 5 2 5 * Grupo de Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História (GECCEH) vinculado ao Núcleo dc Estudos dc Currículo (NEC/UFRJ) sob mi nha coordenação no qual desenvolvemos estudos na área do Currículo tendo como foco a abordagem discursiva da interface conhecimento, cultura, poder. Este texto está dirctamentc vinculado à pesquisa atual em curso - Abordagens discursivas de juventude no tempo presente: questões metodológicas nas análises de textos curriculares (2013- 2015) - com apoio do CNPq (Bolsista de produtividade). A « I Um dos maiores desafios teóricos e políticos com os quais se depara quem pensa em justiça e democracia no mundo de hoje é justamente a capacidade de reconciliar tradições aparentemente irreconciliáveis - o cosmopolitismo e o pós- colonialismo. As tentativas de relativizar a universalidade dos Direitos Humanos acabam sendo arriscadas por possibilitar a própria relativização do que é direito e do que é humano. A construção de um universalismo não etnocêntrico (BENHABIB, 2000) é uma necessidade de difícil concretização (BALLESTR1N, 2014, p. 200). A apresentação da versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em setembro de 2015 tem suscitado intensos de bates no campo educacional. Nesses debates se manifestam po sições e argumentos contra e a favor seja deste documento cur ricular específico, seja da própria pertinência da elaboração de uma base nacional como garantia de qualidade do sistema educacional brasileiro. Uma multiplicidade de discursos de diferentes ordens - pedagógica, curricular, disciplinar, política e econômica - são mo bilizados e hibridizados para sustentar os diferentes interesses em disputa em torno de um projeto de sociedade e de escola pública para a educação básica. 101 •2 2 o 1 *8 ! Não é intenção deste texto retomar esses debates, pelo menos não em termos da defesa ou rejeição desse documento1. Seu propósito, como sugere o título que lhe foi atribuído, consiste em explorar temáticas bem mais amplas que extrapolam o campo educacional a partir de um recorte disciplinar e da seleção deste documento curricular como suporte textual para a análise pretendida. As escolhas da temática e do campo empírico - a BNCC - não fo ram, no entanto, aleatórias. As discussões em torno da proposta curricular de História tal como apresentado nesse documento pre liminar têm gerado polêmicas entre os historiadores e professores de História da educação básica traduzindo singularidades discipli- -O <u n E 3 3 c g.E 2 8. I £ ç z 1 Em função da publicação rcccnte do documento c da atualidade desses debates não está ain da disponível uma bibliografia farta sobre esse documento especifico. Para acompanhar os ar gumentos desenvolvidos c sustentados nessas discussões ver, além da proposta preliminar da BNCC disponibilizada no portal do MEC, os posicionamentos das instituições cientificas, dos sindicatos dos professores, de profcssorcs-pcsquisadorcs do campo educacional que circulam cm diferentes suportes da mídia. Ver também as produções acadêmicasmais recentes que foram socializadas na última reunião da ANPED cm 2015, bem como o número especial da Revista e- Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 03, p. 1530-1555 out./dez. nares que se diferenciam e, muitas vezes, contradizem às críticas endereçadas ao documento como um todo. Refiro-me mais parti cularmente aos argumentos acionados que se relacionam direta mente aos processos de identificação e à produção da diferença e que nesse documento se materializam a partir da mobilização de dois significantes - nacional e comum que adjetivam a base curri cular em questão. A pretensão em ensinar um conhecimento comum e de abrangên cia nacional contida nesse documento reatualiza a tensão entre universal e particular fazendo com que o jogo político no qual os significados atribuídos à cada termo que ocupa um dos seus polos, bem como a fronteira entre os dois seja reativado. Que sentidos de nacional e comum estão em disputa nessas discussões? Que inte resses políticos sustentam a reafirmação desses diferentes "signifi- xações” (LEITE, 2010)? De uma maneira geral e em relação à tensão acima mencionada, as críticas contrárias ao documento da BNCC insistem nos riscos de padronização e de homogeneização que carregam esses termos e que tendem a estabilizar e a sedimentar hegemonizações de diferentes ordens no campo educacional. Paradoxalmente, no âm bito da comunidade disciplinar de História, as críticas diretamente endereçadas à parte do documento referente à essa componente curricular específica convergem em direção oposta e questionam tanto o descentramento da história europeia como a tentativa de incorporar outras narrativas de brasilidade pautadas na afirma ção das pluralidades étnico-raciais em detrimento de narrativas nacionais homogeneizadas, até então, hegemonizadas pela histo riografia escolar. A constatação desse paradoxo foi o que motivou a escrita deste texto. Além de reafirmar o fato de o mesmo significante - nacional - condensar processos de significação diferenciados que participam das disputas pela sedimentação de um sentido de escola pública democrática, ele traduz igualmente as especificidades das disputas que atravessam a trajetória dessa disciplina escolar que dizem res peito diretamente ao enfrentamento, interno à essa área de conhe cimento, com a questão da diferença no tempo e no espaço. Com efeito, as lutas pela significação de nacional encontram ter reno fértil na área de História produzindo efeitos nos debates em torno da ideia de nação e do que poderia ser objeto de ensino de 102 * 1g 5 I1 o I ■ uma história nacional em uma ordem social desigual e multicultu ralmente orientada como é o caso da sociedade brasileira. Afinal a trajetória dessa disciplina escolar está marcada pela intenciona- lidade em contribuir, desde o século XIX para a consolidação dos Estados Nacionais. Como continuar investindo na produção dessa marca de lealdade identitária face às demandas políticas e aos debates epistemológi- cos contemporâneos? Como pensar em uma História nacional que não seja o apagamento das diferenças? Ainda seria politicamente produtivo a reativação da ideia de identidade nacional após as cri ticas a sua natureza essencialista e engessada? E também: como pensar um projeto democrático para a sociedade brasileira con temporânea sem considerarmos a função social do Estado-nação e seu papel político na distribuição dos bens culturais e materiais? A quem interessa esse investimento em meio a discursos atuais defensores da tese do enfraquecimento da ideia de soberania na- cional-política? Ou ainda: face à emergência, desde os anos 90, de abordagens historiográficas defensoras de uma “história global" (TESTOT, 2015) percebida como um outro olhar sobre o mundo glo balizado, que lugar caberia a historiografia nacional? A especificidade epistemológica do conhecimento histórico, por sua vez, faz com que, nesse contexto discursivo, os debates identitários envolvam necessariamente questões temporais. Estudos na área da Teoria da História (DOSSE, 1999 a, 1999b, 2012; HARTOG, 1995, 2003; Rl- COEUR, 2010) que defendem o potencial analítico da categoria narrati va para a reflexão sobre o processo de produção desse conhecimento, há muito vêm apontando as imbricações entre dois eixos - processos de identificação e temporalidade - que estruturam o pensamento histó rico. Não é, portanto, por acaso que as reformas curriculares voltadas para a educação básica nessa área do conhecimento tendem, nessas últimas três décadas, a serem avaliadas em função de seus efeitos sobre um ou outro desses eixos. A BNCC não é exceção. 103 c*o •8a ■3 I u I 'c E 3 -3 3 ê §. 3- 8£ i z Basta seguirmos os debates recentes pela mídia ou as reações compartilhadas nas redes sociais por meio das quais se expres sa a comunidade disciplinar de História2 para nos darmos conta que a proposta de reconfiguração didática proposta na BNCC toca justamente nesses pontos estruturantes e sensíveis das disputas 2 Refiro-mc aos debates recentes no âmbito da comunidade cpistêmica de História por meio dos diferentes grupos dirctamentc relacionados à ANPUH nacional e às respectivas regionais. internas à essa área disciplinar: "Ensino de História no Brasil em xeque"3; "Proposta do MEC mata temporalidades"4; "Currículo de História sem Tiradentes é criticado pelo ex-ministro de Educação"5; "Projeto da comissão do MEC para o ensino de História 2015 (...) mutila os processos históricos globais, aposta na sincronia contra a diacronia"6 De modo semelhante, a leitura atenta dos argumen tos desenvolvidos pelos profissionais que atuam nessa área, aponta que essas disputas envolvem diretamente o entendimento da fun ção social e política do ensino de História do Brasil em meio às de mandas de diferença que interpelam as escolas em nosso presente. Este texto se organiza em dois momentos. No primeiro explicito a postura epistêmica assumida e sua contribuição para pensar a tensão universal e particular que atravessa o ensino de História nacional em meio ao processo de construção de uma escola de mocrática, aqui entendida como uma instituição que tem como compromisso o combate cotidiano contra a injustiça social cogniti va (SANTOS, 2010) que caracteriza a sociedade na qual ela se insere. Trata-se mais especificamente de apostar na articulação das contri buições dos estudos pós-fundacionais (MARCHART, 2009; RETAMO- ZO, 2009; LACLAU; 2005; LACLAU, MOUFFE, 2004) e pós-coloniais/ decoloniais7 (BHABHA/1998; HALL, 2003; DUSSEL, 2000; M1GNOLO, 2003; 2005; QUIJANO, 2005; WALSH, 2005, 2009) para pensar outras leituras possíveis dessa tensão de forma a fazer trabalhar as apo rias que eia suscita quando incorporadas no contexto escolar, mais precisamente no ensino de história do Brasil. Em seguida a análise focaliza as questões de temporalidade e de diferença/identidade tais como trabalhadas na componente cur- 104 tf g 5o ti3 2 2sg aí 5 5 3 Titulo do texto publicado na edição impressa da Gazeta do Povo de 18 de outubro de 2015. Matéria publicada no Jornal, Folha de São Paulo de 8 de novembro de 2015. Entrevista com o cx-Ministro da Educação Renato Janinc Ribeiro, publicada no portal Gl-Edu- cacao. Globo cm 9 de outubro de 2015. Artigo publicado no jornal O Globo de 5 de dezembro de 2015, intitulado “ Nova face do autori tarismo” de autoria do historiador Ronaldo Vainfas. Essas duas expressões não são sinônimos Segundo Costa (2005): A “dcsconstrução” da polarida de West/Rest constitui o termo comum que une os diferentes autores identificados com o marco pós-colonial. É precisamente essa identificação do viés colonialista no processo de produção do conhecimento que, como se afirmou mais acima, melhor define o prefixo “pós” do termo pós-co- lonial. (COSTA, 2005, p.120). O termo decolonial foi cunhado dentro do movimento intelectual Modcrnidade/Colonialidade (M/C) que emerge nos anos 90 na América Latina. “Formado por intelectuais latino-americanossituados cm diversas universidades das Américas, o coletivo rea lizou um movimento epistcmológico fundamental para a renovação critica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XXI: a radicalização do argumento pós-colonial no conti nente por meio da noção de “giro decolonial” (BALLESTRIN, 2013, p. 89). 33 B 4 2 5 6 7 i ricular História da BNCC. 0 propósito é justamente perceber a singularidade das lutas pela significação do termo nacional, âmbito dessa disciplina escolar, procurando sublinhar as estraté gias de identificação mobilizadas que envolvem diretamente as disputas pela hegemonização de uma orientação temporal parti cular na construção da narrativa histórica legitimada e validada como objeto de ensino da educação básica. Cumpre destacar que a análise discursiva visa compreender a partir das lentes teóricas privilegiadas as estratégias acionadas que permitem deslocar e reafirmar as fronteiras entre o que é e o que não é uma história do Brasil a ser ensinada nas escolas de nosso país. no ENTRECRUZANDO LENTES TEÓRICAS DISPONÍVEIS NO DEBATE CONTEMPORÂNEO Aporta-se um longo caminho, ainda pouco percorrido, para o encontro teórico entre o projeto subalterno/pós/de-colonial e o projeto democrático. Assim como o pós-colonialismo ain da não foi capaz de sustentar uma perspectiva pós-colonial de democracia, a teoria democrática ainda não foi capaz de sustentar uma perspectiva democrática pós-colonial (BALLES- TRIN, 2015, p. 194). O escopo dessa seção é apresentar as ferramentas de análise utili zadas na leitura da componente curricular de História da BNCC a partir do entrecruzamento das contribuições das abordagens pós- fundacional e pós-colonial/decolonial na reflexão sobre a tensão universal e particular que subjaz os debates acerca tanto das políti cas da diferença como da possibilidade de continuarmos pensando em termos de uma história nacional em países como o Brasil. Interessa-me menos buscar aproximações e distanciamentos entre essas abordagens do que explorar o que considero como potente para pensar as questões anteriormente explicitadas. Uma primeira observação diz respeito à dificuldade em abarcar sob uma mesma denominação, as posturas epistêmicas que atendem por cada um desses nomes. Tanto a abordagem pós-fundacional como a pós-co lonial incluem variadas tendências ou “escolas", não cabendo, nos limites e propósitos deste texto, aprofundá-las.8 105 .2 'O •sa •3 > iu •Õ » c Ea 4 4 G 3- § £ -o •3. z 8 Para uma melhor compreensão das diferentes tendências, filiações c escolas relacionadas a esses dois movimentos teóricos ver no que diz respeito à abordagem pós-fundacional os trabalhos de Olivicr Marchat (2009) e Martin Rctamozo (2009). No que diz respeito às perspectivas pós-colo nial c dccolonial ver artigo de Luciana Ballestrin (2013). Desse modo optei por retomar o diálogo que venho estabelecendo em meus estudos curriculares mais recentes (GABRIEL, 2012, a, b; 2013, a,bec; 2014, 2015; GABRIEL, COSTA, 2011; GABRIEL, MONTEI RO, 2014) colocando em destaque a radicalização presente em cada uma dessas abordagens de dois tipos de crítica cuja articulação, no meu entender, podem potencializar a leitura política do social, na medida em que ambas se inscrevem em movimentos teóricos que pressupõem um giro epistêmico. A primeira, fortemente ancorada na pauta pós-fundacional, diz res peito à crítica radical às leituras essencialistas de mundo a partir da introdução, nos debates sobre a produção do conhecimento no âmbito das ciências sociais, da dimensão ontológica, até então con finada nos limites da filosofia (MARCHART, 2009; RETAMOZO, 2009). A segunda, formulada no seio dos estudos pós-coloniais/decoloniais, refere-se à radicalização da crítica ao pensamento ocidental euro- cêntrico (MIGNOLO, 2003, 2010; QUIJANO, 2005, DUSSEL, 2000), ten do como foco os efeitos dessa postura epistêmica ocidental para a compreensão, reafirmação e/ou subversão dos discursos hegemôni cos sobre os processos históricos que resultaram na ordem social desigualmente estruturada, nomeada América Latina. Cabe subli nhar que essas duas críticas não aparecem necessariamente articu ladas nas análises que operam com um ou outro desses enfoques. 0 desafio desta seção é justamente fazer esse exercício teórico. Trata-se de buscar em cada uma dessas grandes linhas de investi gação as ferramentas analíticas que contribuem para fazer avançar os debates curriculares, em particular na área de História, sobre a construção de uma escola pública democrática para todos em meio às demandas de diferença, igualdade e qualidade que interpe lam essa instituição em nosso presente. Isso significa entrecruzar as contribuições da Teoria Política inscrita na pauta pós-fundacio nal com as das chamadas Teorias do Sul9 desenvolvidas no quadro da crítica decolonial. Nessa perspectiva alguns significantes como discurso, universal, particular, político, democracia, hegemonia, anta gonismo, identidade, fronteira, co/onialidade do saber, diferença colo- 106 1 5 1 5 I 8 5 2 5 § £ 9 Ballestrin (2015) afirma que essa expressão tem sido utilizada de forma genérica para nomear um conjunto de contribuições teóricas atenta à gcopolítica do conhecimento. Produzidas no âm bito de um movimento de dccolonização epistêmica, essas teorias estão, no entanto, abertas ao diálogo com as críticas formuladas por autores estadunidenses e europeus. Afinal não se trata de reproduzir “a hierarquia de um esscncialismo invertido não ocidental” (BALLESTRIN, 2015, p.193). Como chama a atenção essa autora o termo sul como metáfora utilizada para adjetivar as teorias não canônicas, evidencia igualmente o paradoxo que consiste no fato de elas dependerem dessa subalternidade para fazer sentido. nial, geopolítica do conhecimento emergem como ferramentas po tentes, cuja articulação resulta de um esforço teórico que, segundo alguns estudiosos como Ballestrin (2013, 2015) ainda exige maiores investimentos, como deixa transparecer essa autora ao explicitar os objetivos de seu texto intitulado Colonialidade e Democracia, do qual foi extraído o trecho que serve de epígrafe para esta seção. Ao sugerir explorar a articulação entre democracia e colonialidade, Ballestrin (2015) oferece uma saída teórica para a potencialização das contribuições dos estudos pós-fundacionais e as dos estudos decoloniais. Como pensar de forma articulada a questão da colonia lidade na democracia e da democracia na colonialidade (BALLESTRN, 2015)? Segundo essa autora, enquanto no primeiro eixo, 0 que está em jogo é "pensar em como o elemento da colonialidade, enten dido como desigualdade e injustiça, constitui um obstáculo para a realização da democracia nas sociedades pós-coloniais" (BALLES- TRIN, 2015, p.198), no segundo trata-se de incorporar as contribui ções das teorizações políticas para "entender a instrumentalização da democracia a serviço da colonialidade, nos planos interno e externo” (idem). 0 pensamento pós-fundacional se sustenta teoricamente na crítica à ideia de fundamento metafísico e 0 papel que lhe é atribuído nos processos de significação. Dito de outra maneira, ele se distancia das perspectivas que consideram que 0 ser das coisas desse mun do - sonhos e pedras - se define por uma essência situada fora dos jogos da linguagem. Nessa perspectiva não é possível definir algo per si. Ao contrário, 0 ato de significar é sempre relacionai e ocorre em meio às múltiplas possibilidades de definição disponíveis em um contexto discursivo específico. Ao negar a possibilidade de um sentido unívoco previa mente estabelecido, essa postura não só coloca em evidência como radicaliza o papel da contingência nos processos de significação. Coerente com a crítica metafísica, a linguagem não é assim perce bida simplesmente como um espelho da realidade, mas sobretudo como o que a constitui. Não se trata de negar a materialidade do mundo, mas sim, de afirmar que 0 seuacesso não é imediato e 0 sentido que lhe é atribuído pressupõe a mediação da linguagem. Esse entendimento remete diretamente às contribuições da teo ria do discurso, em particular às formuladas por Laclau e Mouffe (2004), cujos estudos focalizam a produção de leituras políticas do 107 .2 ”2 •S u 1 -3 1e u I *2 E§ ■s 3 cs. a I Z social, distintas das que se baseiam em perspectivas essencialistas e deterministas. A teoria do Discurso na abordagem desses autores é uma teoria política e é como tal que tem me interessado explo rá-la em meus estudos sobre escola, currículo e ensino de História. Ao afirmar que toda configuração social é discursiva, ela oferece pistas para pensarmos com outras lentes teóricas e de forma arti culada as lutas políticas e os processos de significação. Na impossi bilidade de aprofundar, nos limites desse texto, o diálogo com esse quadro teórico, destaco a seguir alguns aspectos que permitem simultaneamente sustentar a afirmação anteriormente explicitada sobre a radicalização da crítica à perspectiva essencialista e repen sar a tensão universal e particular. Como compreender o ato de significar após a crítica ao funda mento metafísico? Se considerarmos, como instiga a abordagem discursiva pós-fundacional, que todo ato de significar é um ato po lítico e que, portanto, as lutas políticas são lutas pela significação, a resposta a essa pergunta não é apenas um exercício retórico, mas é a sua própria condição. Nessa postura epistêmica, os processos de identificação/significa- ção operam com duas lógicas, aparentemente paradoxais, mas in- contornáveis: as lógicas da equivalência e da diferença10. Enquanto a primeira intervém com o intuito de amenizar as diferenças entre os fluxos de sentidos que são transportados provisoriamente pelos diferentes significantes em circulação e que atravessam um con texto discursivo específico, produzindo uma cadeia de sentidos ad infínitum, a segunda opera nessa mesma cadeia estabelecendo o corte radical, a fronteira que possibilita a definição. Romper essa cadeia, nessa perspectiva, é permitir um fechamento de sentido, ainda que precário e simultaneamente apontar a fis sura, a provisoriedade de todo processo de significação. Definir, significar é, pois, operar com essas duas lógicas articulatórias, isto é, fazer trabalhar a aporia que se traduz pela impossibilidade e necessidade dos processos de significação. Nesse movimento os 108 . í=5 2 á l 5 sg=>ag 10 Importa sublinhar que esse quadro teórico, opera com a ideia de diferença na perspectiva da dif- férance, tal como defendida nos trabalhos de Jacqucs Dcrrida e nesse sentido, só pode se consti tuir na órbita do discurso. “A noção de diffèrance rompe, prccisamcntc, com a ideia da diferença pré-existenle, ontológica, essencial, que pode scr apresentada e representada discursivamcntc” (COSTA, 2005, p. 125). fundamentos são contingentes e correspondem a um significante que exerce provisoriamente essa função discursiva11. É justamente a indagação sobre a produção e densidade ontoló- gica12 desses fundamentos contingentes que abre igualmente a possibilidade de repensar o especificamente político, suas lógicas e implicações para uma abordagem filosófíca-política que se sus tenta e justifica a distinção conceituai, nessa abordagem, entre o político e a política, - ou como afirma Retamozo entre a “concepção de uma lógica do político e uma lógica da política para pensar os problemas políticos" (RETAMOZO, 2009, p. 77). Com efeito, essas duas lógicas permitem compreender a operação hegemônica da instituição contingencial da ordem social bem como os mecanis mos para sua manutenção e mudança. Pensar o político como o lugar instituinte, significa recuperar o momento performativo do político, pensar quando e como se produz a operação hegemônica que permite alçar à condição de universal sentidos portadores de interesses particulares. 109 .2Nessa perspectiva, homogeneizar, universalizar e hegemonizar no meiam estratégias discursivas semelhantes. Afinal, as duas lógicas acima mencionadas que intervém nos processos de significação têm como função fazer com que um significante possa ocupar o lugar do universal, isto é, que seja capaz de articular as múltiplas unidades diferenciais (outros significantes) que participam das lu tas pela significação e ao mesmo tempo produzir uma cadeia de sentidos antagônicos. Ao ser alocado ao lugar do universal em meio às lutas pela significação, um significante produz provisoriamente uma articulação hegemônica por meio da condensação - em uma -o 2 y I 2 3 =3JJ 'c n E 3 3 ca Ea11 O que está cm jogo não é, pois, a negação da importância da função discursiva da ideia de fun damento. Como afirma Marchart (2009), o pensamento pós-fundacional não 6 anti-fundacional. Ele pressupõe, todavia, o reconhecimento do enfraquecimento do estatuto ontológico do mesmo. Nessa perspectiva, o que 6 alvo de critica é justamente um sentido particular de fundamento pautado na ideia metafísica de essência. 12 A radicalização da crítica à leitura csscncialista consiste, portanto, em incorporar na reflexão a dimensão ontológica, abrindo caminhos para pensar o papel da contingência para além da assun ção de um tipo de historicidadc. O apelo à cultura c/ou à história tem sido bastante utilizado no combate aos csscncialismos. A afirmação de que a realidade é histórica e culturalmente cons truída tem sido um álibi importante contra a denúncia de possíveis rasgos csscncializantes nas análises sociais, cm geral c curriculares, cm particular. No entanto, como já tive oportunidade de problcmatizar cm outra ocasião: “Como significar “realidade” cm plena crise rcprcsentacional que coloca cm xeque explicações que mobilizam sentidos de linguagem, aqui percebida como reflexo ou espelho do mundo? O que entender por historicidadc quando algumas garantias acerca dos sentidos atribuídos à nossa orientação temporal são gravemente abaladas cm nosso presente? (GABRIEL, 2013, p. 49). 3- a£ •o d ■a z cadeia equivalencial - de múltiplos sentidos/interesses particulares em jogo e da produção do limite radical dessa mesma cadeia. A aposta no diálogo com a abordagem discursiva pós-fundacional consiste no fato de ele abrir caminhos teóricos para investir no que Candau (2000) já anunciava há quase duas décadas ao defender a necessidade de reinvenção do universal para fazer avançar os de bates no campo educacional. Com efeito, o universal emerge como condição dos processos de significação. Essa percepção abre a pos sibilidade de redimensionar a tensão universal e particular Ao invés de propor a sua superação, a abordagem pós-fundacional permite operar com e na tensão, entendendo que esses termos não constituem polos dicotômicos. 0 diálogo com esse enfoque discursivo autoriza a pensar que os significados atribuídos a esses dois significantes não se encontram em alguma essência metafísica imune aos jogos da linguagem. 0 que está em jogo é menos a defini ção de cada um desses termos do que a compreensão da função dis cursiva desempenhada pela relação universal e particular nas lutas pela significação em um contexto discursivo específico. O universal é significado como um particular que se hegemoniza a partir da mobilização de diferentes dispositivos e mecanismos discursivos. Ocupar o lugar do universal é, pois, o objetivo e estratégia das diferentes lutas políticas. Isso significa que no jogo político ao invés de insistirmos em buscar a melhor definição de universal ou de particular por meio de uma listagem de características aprio- risticamente estabelecidas, trata-se justamente de desestabilizar, desnaturalizar a própria fronteira entre esses termos e disputar a localização mesma da linha de corte que os separa. Assim, é a própria fronteira entre universal e particular que precisa ser pro- blematizada em nossas análises políticas. Como pensar a democracia13 nesse quadro teórico? Se considerar- 110r- S o *2 I 2 oí 3 Is 3 t È 5 £ 13 No âmbito das teorizações políticas modernas, o entendimento clássico de democracia tende a reduzir o seu sentido a uma ordem social política. Nessa perspectiva o sentido de democracia tende a ser associado à ideia de sociedade emancipada e justa, na qual a presença de conflito ó percebida como vestígios de uma ordem social política a serem superados. A própria ideia de conflito é sinal de problemas, de sintoma do disfuncionamcnto social que um regime democrá tico pode e deve resolver por meio da melhoria da aplicação de seus princípios e/ou de reajustes de seus dispositivos de legitimação. À essa perspectiva se contrapõe a concepção agonística que aposta em uma perspectiva alternativa para pensar a democracia na qual se atribui à ideia de conflito um lugar incontornávcl na cadeia discursiva de sua definição. Não cabe nos limites deste trabalho um aprofundamento dessa discussão. Para tal ver os trabalhos de Chantal Mouffe. mos, por exemplo, o contexto educacional e selecionarmos como foco a questão do conhecimento escolar no âmbito das lutas pela definição de uma escola pública democrática para todos, a disputa se concentra na fronteira que estabelece o que se coloca para dentro e o que se expele para fora da cadeia definidora do conhe cimento que interessa legitimar como válido a ser ensinado. Afinal como afirma Laclau: "algo é o que é somente por meio de suas re lações diferenciais com algo diferente” (LACLAU, 2005, p. 92). A luta democrática consiste em não deixar cair no esquecimento o mo mento da contingência, isto é o momento instituinte do político que interfere nas fronteiras onde são definidos provisoriamente os sentidos hegemônicos dos significantes portadores dos diferentes interesses em disputa. De modo semelhante, e considerando o foco deste texto, os mecanis mos de fixação de sentido atribuído ao significante nação, em parti cular quando utilizado para qualificar a história do Brasil legitimado como objeto de ensino para as escolas da educação básica são re sultantes de processos de homogeneização de um sentido particular entre os vários que se encontram em disputa. As lutas em torno da definição desse significante e seus derivados como nacional envol vem diferentes escalas de análise que se inscrevem em diferentes contextualidades discursivas. Essa afirmação nos remete diretamen te ao diálogo com as perspectivas pós-colonial/decolonial. Considerando que a ideia de Estado-Nação nasce no seio da moder nidade ocidental europeia e que abordagem pós-colonial se singu- lariza pela radicalização da crítica à representação eurocêntrica da modernidade, a indagação sobre os efeitos dessa abordagem para a reflexão aqui pretendida se impõe. Afinal, qual a pertinência de um operador social como nação para a construção de um projeto de sociedade e de escola democráticos após a denúncia de sua inscri ção nas concepções dominantes de modernidade? Como lidar com a paternidade europeia das nossas instituições e pensamentos polí ticos? 0 Estado-Nação é uma camisa de força para as democracias pós-coloniais? Ou ainda: Há lugar para pensar a escala nacional no âmbito do projeto decolonial que tem como foco a desconstrução dos essencialismos eurocêntricos? Em caso de resposta positiva para essas duas últimas questões, qual o papel do ensino de uma história nacional? m •s ■S U i ■3 > IJJ •ã I cn E a 4 c 3- I£ z Como anteriormente mencionado a radicalização da crítica pós- colonial/decolonial incide diretamente na fixação hegemônica do significante modernidade pelo pensamento social ocidental. É nes se movimento que conceitos como diferença colonial e colonialidade do saber emergem e ganham força analítica. Eles são utilizados para combater a polaridade West/Rest hegemonizada pelo pensamento eurocêntrico. Como afirma Costa ao referir-se a essa dicotomia: "Trata-se da atribuição de uma condição de superioridade que é ontológica e total, imutável, essencializada, uma vez que ela faz parte da própria constituição lógica e semântica dos termos da relação" (COSTA, 2005, p. 120), estabelecida entre o ocidente e o resto do mundo. Nessa perspectiva é possível compreender a relação colonial como uma relação antagônica nos moldes discutidos pela postura epis- têmica pós-fundacional. 0 outro/colonialidade é o que autoriza o fechamento provisório de um sentido de modernidade e simulta neamente evidencia a precariedade e provisoriedade dessa mesma sutura de sentido. A colonialidade produzida pelo ocidente como sua face oculta e fonte de todos os males exerce a função discur siva de “exterior constitutivo" (MOUFFE, 1999)14 da modernidade. 0 projeto decolonial, percebido como pensamento fronteiriço inter vém justamente nessa linha de corte, com o intuito de desestabili- zar essa fronteira. Introduzido por Mignolo (2005), o conceito de diferença colonial desempenha um papel chave na desconstrução da lógica epistê- mica eurocêntrica que subjaz a fixação do sentido hegemônico de modernidade. Afirmar a diferença colonial significa desnaturalizar a fronteira hegemônica entre modernidade e colonialidade. Como destaca Oliveira (2010), para Mignolo (2003) a produção do "pensa- mento-outro no âmbito do projeto decolonial significa (...) um reordenamento da geopolítica do conhecimento em duas direções*, a crítica da subalternização na perspectiva dos conhecimentos invisibiiizados e a emergência do pensamento liminar como uma nova modalidade epistemológica na interse ção da tradição ocidental e a diversidade de categorias suprimi das pela lógica ocidental e eurocêntrica. (OLIVEIRA, 2010, p. 59). Operar com esses aportes teóricos a partir do lugar de enunciação da Nação, e mais precisamente da história nacional ensinada na 14 Para Mouffe essai expressão indica a condição dc existência de toda identidade consiste na afir mação de uma diferença. Afinal “a determinação de um “outro” que servirá dc “exterior” permi te compreender a permanência do antagonismo c suas condições dc emergência” (Mouffe, 1999, p. 15). 112 Iz § 3 s 6 1 educação básica, foi a forma escolhida para enfrentar, neste texto, o desafio de articular colonialidade e democracia. Afinal, como afir ma Costa (2005): A polaridade West/Rest encontra-se também na base da narra tiva histórica adotada pelas ciências sociais modernas e pela sociologia, em particular. Trata-se de uma grande narrativa centrada no Estado-Nação "ocidental" e que reduz a história moderna a uma ocidentalização paulatina e heróica do mun do, sem levar em conta que, pelo menos desde a expansão co lonial no século XVI diferentes temporalidades e historicidades foram irreversível e violentamente juntadas (HALL, 1997, p. 133) (COSTA, 2005, p. 119). Do mesmo modo e como aponta Verdery (2000) ao explicitar o que considera como uma das três ciladas que "o estudo da nação deve esforçar-se por evitar" (VERDERY, 2000, p. 240) ao invés de tratarmos "as nações como sendo efetivamente definidas como, por exemplo, pela cultura , descendência ou história" (idem), en cararmos esse termo como "objetos de estudo e perguntar: qual o contexto em que funciona uma ou outra definição ou simbolização da nação? Que é que ela vem realizando? (VERDERY, 2000, p. 241). Se considerarmos as críticas endereçadas ao ensino de história des de os anos de 1980 no Brasil, em particular no que elas se referem aos processos de hegemonização de uma narrativa nacional euro- cêntrica escolar por meio, entre outras estratégias, da sedimen tação de um sentido de linearidade temporal, essa área de ensino pode ser vista como um terreno fértil para explorar esse tipo de articulação. Afinal, 0 que está em jogo é a própria possibilidade da construção de uma história nacional em nosso presente (ROUSSO, 1998). Como pensar um viver-juntos em meio à diferença? Como pensar a produção de uma historicidade nacional sem reforçar o que Boaventura de Sousa Santos denominou como "monoculturado tempo linear" (SANTOS, 2006)? Ou ainda como desestabilizar uma narrativa histórica hegemônica que inviabiliza e/ou invisibi- liza outras narrativas fazendo "da experiência ocidental modelo e parâmetro único" (ARAÚJO, 2014, p.125)? Não caberia assim, pergun- tar-nos: a luta pela democratização da escola pública pressupõe a negação de uma história nacional ou a mudança da historicidade15 113 *c *2 •8 u I •8 >e o I *c E 3 I 1 g. a 5 z 15 O conceito dc historicidade rcmctc tanto à dialética das unidades temporais como à capacidade dos atores sociais a inscrever seu presente em uma história, a situar cm um tempo por meio das narrativas que eles produzem. Nesse sentido, podemos falar de historicidades (DELACROIX, GARCIA, DOSSE, 2009). em torno da qual ela tem se produzido e reproduzido de forma hegemônica? HISTÓRIA DO BRASIL NA BNCC: EM BUSCA DE UMA NARRATIVA NACIONAL OUTRA? A desconstrução da dicotomia Rest/West passa, primeiramen te, pela reinterpretação da história moderna. Com efeito, a releitura pós-colonial da história moderna busca reinserir, reinscrever o colonizado na modernidade, não como o outro do Ocidente, sinônimo do atraso, do tradicional, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi construído, discursivamente, como moderno. Isso implica descontruir a história hegemônica da modernidade, evidenciando as rela ções materiais e simbólicas entre o "Ocidente” e o "resto” do mundo, de sorte a mostrar que tais termos correspondem a construções mentais sem correspondência empírica imediata (COSTA, 2005, p. 121). Nesta seção apresento uma leitura política possível da BNCC de História a partir das contribuições teóricas anteriormente explici tadas. Isso significa operar simultaneamente com a crítica ao eu- rocentrismo, a ideia de nação e a especificidade do conhecimento histórico. Para tal, optei pela análise, neste documento curricu lar, da questão da temporalidade entendida aqui como estratégia de reafirmação e/ou de subversão dos discursos eurocêntricos hegemonizados ao longo da trajetória dessa disciplina escolar. Essa opção permite trazer à tona a categoria narrativa histórica (RI CO EUR, 2010) entendida como uma forma de atribuição de sen tido às nossas (individual e coletiva) experiências no tempo. Como afirma esse autor o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa; em contraposição, a nar rativa é significativa na medida em que desenha as características da experiência temporal” (R1C0EUR, 2010, p. 9). Resultantes de articulações permanentes e provisórias de sentidos de passado, presente e futuro, as narrativas (GABRIEL, 2014) quando se estabilizam na longa duração produzem regimes de historicidade (HARTOG, 2003, 2007)16 que marcam a ordem social discursiva e 114 L 2 § I Êa1 16 Hartog nomeia de regime de historicidade “os diferentes modos de articulação das categorias de presente de passado e dc futuro. Conforme a ênfase seja colocada sobre o passado, o futuro temporalmente estruturada nos quais nos movemos e agimos no mundo. É nessa perspectiva que a análise da abordagem da história na cional na BNCC se inscreve. Trata-se de explorar assim, a ideia de nação como uma narrativa simbólica que significa uma experiência temporal possível de viver juntos em meio às múltiplas narrativas concorrenciais que disputam a produção de uma memória nacio nal em um contexto global, societário e institucional específico. Uma narrativa, pois, que nomeia experiências coletivas plurais e singulares e simultaneamente intenciona ocupar o lugar do uni versal que preenche a ideia de comum. Uma narrativa que emerge de tentativas de regulação da dispersão, do enfretamento com a diferença que se manifesta pelas memórias e projetos nos quais os diferentes grupos investem em cada presente. Uma narrativa que quando produzida do lugar de enunciação do Estado moderno, delineia campos de estruturação de poder e de ação política. Uma narrativa inventada em meio à produção e a hegemonização de um sentido de modernidade. 115 c "2 Como narrativa simbólica da modernidade, a nação se define igualmente pelo modo de articulação temporal entre passado e futuro hegemonizado nessa ordem discursiva. Para Hartog (2003), o que caracteriza 0 regime de historicidade da modernidade é a ênfase posta no futuro em detrimento das vivências passadas, invertendo, de certa forma, 0 equacionamento do regime de his toricidade anterior quando 0 passado lançava luz sobre o futuro, isto é, quando a história era vista como “mestra da vida". A hege monização desse modo de estruturação temporal produz a opera ção metonímica pela qual 0 termo progresso é significado como sinônimo de processo. Dito de outra maneira, a produção discursiva dessa comunidade imaginada (ANDERSON, 1989), chamada nação moderna ocidental é um dos mecanismos que sustenta e reatualiza em permanência um tipo de orientação temporal que contribui na reprodução e sedimentação de processos de significação que colocam como pa res antagônicos significantes como ocidente e oriente; norte e sul, modernidade e colonialidade. Nesses processos significantes como ocidente e norte condensam simbolicamente um sentido hegemô- •8 u I •8 2 1u 3 1 E 3 4s §c 8. a § •a z ou o presente, a ordem do tempo não ó a mesma. O regime de historicidade não é uma realidade acabada, mas um instrumento heurístico” (HARTOG, 2007, p. 16). nico para a noção de "civilização superior”. Não é por acaso que Costa (2005) afirma que "a desconstrução da dicotomia Rest/West passa, primeiramente, pela reinterpretação da história moderna” A possibilidade dessa reinterpretação significa pensar a fronteira entre universal e particular que define o significante nação, em termos de diferença e identidade; igualdade e desigualdade, mas também em termos de articulações temporais entre passado, pre sente e futuro. Refletir sobre o ensino de uma história nacional pressupõe assim, operar com o termo nação a partir de sua articu lação com as questões da diferença, da igualdade e da cemporalidade. 0 diálogo com as teorizações pós-coloniais/decoloniais redimen siona essa reflexão em termos de escala espacial. Como qualificar as articulações temporais que intervém na produção das narrati vas nacionais no regime de historicidade da modernidade/colonia- lidade? Como repensar essas relações temporais em contextos de violência epistêmica? Que historicidades considerar na configura ção da narrativa nacional de uma ordem desigual, multicultural orientada e, do ponto de vista epistêmico, subalternizada? Como reinventar a narrativa nacional de forma a salvaguardar o poten cial político do qual pode ser investido a interface nacional - público - democracia? 116 Uma saída teórica possível que oferece a hibridização das abor dagens pós-fundacional e pós-colonial aqui explorada consiste a ress^gnificar alguns termos chaves dessa reflexão começando pela noção de crise que aparece associada em nossa contemporaneida- e a termos como modernidade, Estado-Nação, historicidade, demo cracia ou escola. Se significarmos o termo crise como um desses momentos de rea- tivaçao do político nas lutas pela definição de uma ordem social na qual o que está em jogo são projetos de sociedade e seus en tendimentos acerca da possibilidade de construção de uma escola democrática na qual o reconhecimento da pluralidade e igualdade de direitos não estejam em cadeias de significação antagônicas, os questionamentos^ acima expressos podem ser enfrentados de um outro lugar epistêmico. Isso implica em investir na desestabilização de fronteiras hegemônicas como estratégia política para a produ ção e ensino de uma história do Brasil de forma a contribuir para a fixação de uma cadeia de significação onde a articulação entre os termos nacional, público, comum seja produzida em oposição a Ig i ai § i significantes como padronização, desigualdade e discriminação sem cair nasciladas do discurso da modernidade/colonialidade que nos posiciona no lugar da subalternidade. A leitura atenta tanto do documento oficial da BNCC dessa área disciplinar como das críticas favoráveis e contrárias que lhe são en dereçadas apontam o grau de complexidade de um desafio teórico como este. A proposta de ensino de História nesse texto curricular está em sintonia com o que Oliveira (2010) em sua tese de doutora mento já identificava como tônica das novas Diretrizes Curricula res Nacionais para a Educação das Relações Êtnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Com efeito a tentativa de reforma curricular de História nesse documento con tinua girando “em torno de uma certa geopolítica do conhecimen to e do poder nas disputas sobre a noção de identidade nacional" (OLIVEIRA, 2010, p. 64). A virulência das críticas em relação à proposta da BNCC se expli caria talvez pela maior ousadia - em relação às Diretrizes - con tida neste documento no que concerne à tentativa em quebrar a temporalidade linear eurocêntrica como elemento estruturante da historiografia escolar que contribui para fixar e homogeneizar um sentido particular de identidade/narrativa nacional. Além disso, essa tentativa de quebra de um sentido de temporalidade está di retamente relacionada, neste documento, à contribuição da ciência histórica com “valores democráticos e com uma sociedade multi- étnica e transcultural" (BNCC de História, 2015, p. 241). É possível evidenciar vestígios textuais ao longo deste texto curricular, da sua intencionalidade em articular a afirmação de um sentido de nação democrática que pressuponha o reconhecimento de uma sociedade multicultural e pluriétnica.17 A operacionalização dessa articulação em termos de ensino de his tória se manifesta pelo reconhecimento do papel determinante da articulação temporalidade - identidade(s) no ensino desta discipli na. Em diferentes passagens do documento, em particular na parte introdutória deste componente curricular, é possível identificar a intencionalidade de afirmar o ensino de uma história do Brasil outra 117 c J= •3 a i -3 2 -õ I >C E 3 4 co i 3. S £ TS i z evidência o segundo segmento do ensino funda mental c que corresponde ao período de cscolarização da sexta à nona serie. No documento, a distribuição do conhecimento histórico nas quatro séries aparece assim explicitada: 6o ano - Re presentações, sentidos c significados do tempo histórico; 7o ano - Processos c Sujeitos; 8o c 9o anos - Análise de processos históricos. 17 Para fins desta análise, optei por colocar cm a partir do questionamento da matriz temporal que subjaz a nar rativa nacional hegemônica. A questão considerada central, neste documento, para o compo nente curricular História são os usos das representações sobre o passado, em sua interseção com a interpretação do presente e a construção de expectativas para o futuro. (...) As análises históricas possibilitam, assim, identificar e problematizar as figurações constru ídas por e sobre sujeitos em suas diferentes noções de tempo, de sen sibilidade, de ritmos. (...) A reflexão sobre os usos do passado remete à memória e ao patrimônio e aos seus significados para os indivíduos nas suas relações com grupos, povos e sociedades. O componente cur ricular História, portanto, tem papel relevante na problematização das questões identitárias. (...) Aos anos finais do Ensino Fundamental cabe o desenvolvimento de conhecimentos necessários ao enfrentamento de processos históricos, enfatizando-se o estudo da História do Brasil e de indivíduos e coletividades que demarcaram mudanças e permanências conformações sociais, econômicas, culturais e políticas da trajetó ria histórica brasileira, o que envolve, como sinalizado anteriormente, o estabelecimento de nexos com processos ocorridos em outras par tes do mundo, marcadamente nas Áfricas, nas Américas e nos mundos europeus. (Trechos extraídos do documento preliminar da BNCC, parte introdutória da componente curricular de História). A prioridade atribuída ao ensino da História do Brasil é, portanto, claramente explicitada e retomada na parte de detalhamento da organização didática da proposta curricular estruturada em torno de quatro eixos: '"procedimentos de pesquisa; representações do tempo; categorias, noções e conceitos; dimensões político-cidadãs” (BNCC-História, 2015, p. 243). Acusada de brasilcêntrica”, por muitos de seus opositores essa pro posta explicita claramente que não é essa a sua intencionalidade: Tal ênfase, é importante ressaltar, não significa exclusividade na abordagem da história brasileira nem tampouco a exclusão dos nexos e articulações com as histórias africanas, americanas, asiáticas e europeias. Aliás, tais nexos e articulações são apontados em vários objetivos de aprendizagem tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio (BNCC-História, 2015 p. 241). O que justificaria assim esse tipo de acusação? O incômodo causado pode ser talvez explicado pelo fato de esta proposta deixar entrever as fissuras e a provisoriedade da fronteira hegemônica entre modernidade e colonialidade. Se considerarmos 118 nas * 1 o 3 5 5 a seleção de conceitos, valores, temporalidades, procedimentos fi xados, neste documento, ao longo dos quatro anos do segundo segmento do ensino fundamental, fica claro a opção por uma nar rativa nacional que opera com o deslocamento da fronteira hege mônica do que tem sido considerado como História do Brasil a ser ensinada nesta disciplina e nestas séries. Essa irreverência e ousa dia traduzida pela tentativa de quebra de uma linearidade tradicio nal eurocêntrica, procurando redimensionar o lugar de enunciação da nação brasileira, é, no entanto, simultaneamente o ponto forte e frágil dessa proposta. Aparentemente paradoxal, a mesma proposta que concentra esfor ços para deslocar o eurocentrismo - contribuindo assim para pen sar saídas teórico-didáticas após as críticas ao sentido hegemônico da modernidade formuladas no âmbito da perspectiva decolonial - tende a reforçar sentidos hegemônicos de nação, Estado-nação, democracia, cidadania forjados na mesma leitura de modernidade que se quer criticar. A não problematização desses conceitos, bem como o modo de reelaboração didática das múltiplas temporalida des privilegiado traduzem tanto a ambivalência da forma de tra tamento da crítica ao eurocentrismo, como exemplificam as lutas políticas que se travam no domínio da significação nesse contexto discursivo específico que é a cultura escolar. A naturalização de expressões como, por exemplo, a formação do povo brasileiro (BNCC de História, 2015, p. 251); a trajetória histórica brasileira (p. 250); cidadão brasileiro (p. 251), dificulta a radicalização da crítica à matriz temporal linear. Em relação ao tratamento didático da questão temporal, importa sublinhar a oscilação que perpassa esse documento curricular entre 0 significado de tempo histórico como conteúdo de ensino e a sua fixação como elemento estruturante da seleção e organização dos conteúdos históricos legitimados para serem ensinados neste nível de ensino. O primeiro entendimento reduz 0 significante tempo histórico a um conteúdo dessa disciplina escolar entre outros, 0 segundo abre a possibili dade de operar didaticamente com a categoria narrativa histórica como discutido anteriormente. 119 .2 o a1 ■3 1g u I ni E 3 -3I c 1 § £ $ z Na BNCC de História essas duas interpretações estão presentes. A leitura do conjunto da seleção e distribuição dos procedimentos, dos valores e dos conceitos pelos quatro eixos ao longo dos quatro anos permite afirmar que a forma como essas duas interpretações são abordadas e articuladas traduz simultaneamente a intencio- nalidade do enfrentamento com a questão temporal e as dificul dades na sua operacionalização didática. O fato de essa proposta curricular explicitar como foco de aprendizado da sexta série as representações,sentidos e significados do tempo histórico, ou mesmo incorporar na estruturação da seleção e distribuição do conheci mento histórico escolar ao longo das quatro séries um eixo nome ado - representações do tempo - não garante a aprendizagem de nar rativas nacionais outras, isto é, capazes de deslocar, desestabilizar de forma radical a História do Brasil ensinada a partir da matriz temporal linear, hegemonizada na historiografia didática. Em mui tas passagens desse documento o resultado dessa tentativa tende a ser parcial ou contraditório, quando não o inverso do pretendido. A seguir apresento exemplos de alguns mecanismos discursivos mo bilizados nesse documento para sustentar esse argumento. O primeiro refere-se à intencionalidade em apresentar a distribui ção do processo histórico brasileiro nas diferentes séries de um outro lugar de enunciação que a Europa como estratégia de sub versão da quebra do monopólio da ocupação deste lugar, perma nentemente, reatualizado pela historiografia ocidental hegemô nica. Essa intencionalidade se expressa na incorporação tanto de outras narrativas concorrenciais - dos indígenas, dos negros afri canos, dos afrodescendentes, como da noção temporal de simulta- neidade, pouco trabalhada no ensino desta disciplina; ou ainda pela valorização das demandas de direito do nosso tempo presente como porta de entrada do aprendizado da História do Brasil. 120 1 | Esse movimento é perceptível, por exemplo, na sétima série ao in dicar como objetos de aprendizagem o conhecimento às vésperas tempo da conquista, do contexto econômico de Portugal por meio do estudo das investidas portuguesas pelo Atlântico e sua incur são pela costa da África; o contexto político da África subsaariana, por meio do estudo da diversidade de povos, da formação de estados, como o Reino de Mali, e do lugar da Escravidão entre as sociedades africanas; o contexto político dos povos indígenas habitantes do território brasi leiro, por meio do estudo da diversidade de povos e da importância da guerra nas relações interétnicas (BNCC de História, 2015, p. 253-254). Do mesmo modo, quando se introduz como objeto de aprendizado a Constituinte de 1988 como resultado de demandas da sociedade civil organizada, por meio do estudo do Movimento Negro, dos Movimentos Indígenas, de movimentos de mulheres e de movimentos de ampliação dos direitos de crianças e adolescentes (BNCC de História, 2015, p. 255). § 5 ou no 2 | =3 l No entanto, essa tentativa de reafirmar a possibilidade de se narrar uma história do Brasil de um outro lugar de enunciação, a partir de outras articulações espaço-temporais se confronta com outras es tratégias discursivas que vão no sentido contrário, enfraquecendo ou impedindo que esse movimento se potencialize. Em oposição a esse movimento, é possível evidenciar a persistência de traços da presença da matriz temporal linear eurocêntrica na História do Brasil legitimada como objeto de ensino nessa pro posta. Esses traços se manifestam quando evidenciamos algumas contradições como, por exemplo, entre o que se pretende ensinar sobre o tempo histórico percebido como objeto de aprendizagem e a modalidade de narrativa nacional privilegiada neste documento que implica diretamente na seleção e operacionalização das múlti plas articulações possíveis entre passado, presente e futuro, entre memória, experiência e projeto. Por um lado, é possível lermos como um dos objetivos de aprendizagem da sexta série Identificar e problematizar as diferentes formas de representação da divisão da história brasileira (Brasil pré-colonial, Brasil Colônia, Brasil Reino, Bra sil Império, Brasil República) estudando as trajetórias de sujeitos, ins tituições e ideia, além de acontecimentos relacionados às experiências política, econômica, social e cultural brasileiras (BNCC de História, 2015, p. 250, grifo meu). Por outro lado, basta analisarmos a distri buição dos conteúdos históricos realizada entre os quatro eixos ao longo das quatro séries para reconstituirmos a sequência temporal clássica que se quer problematizar, reatualizando, desse modo, em versão escolar, a linearidade temporal combatida. Outra estratégia acionada que dificulta a subversão da temporali- dade eurocêntrica pretendida consiste paradoxalmente na forma como a questão temporal é simultaneamente valorizada e aborda da de forma reducionista neste documento. Ao reduzir a questão da temporalidade, elemento estruturante do pensamento históri co, a um dos quatro eixos - representação do tempo - a proposta au menta consideravelmente 0 risco da fragmentação das narrativas, enfraquecendo uma noção chave para a interpretação histórica que é a noção de processo. Com efeito, tal como formulada, as orientações didáticas desta proposta curricular não se preocupam em apresentar outras possibilidades de narrativas nacionais, mas sim uma pluralidade de narrativas que podem estar potencialmen te presentes na elaboração de uma história nacional. Na ausência de uma proposta de modalidade de articulação temporal entre es sas narrativas plurais em uma história do Brasil ensinada outra, 0 121 c w ■S u 1 “3 > 3o ■5 S 'S £ 3 Q. 3- § '3. z risco desta proposta promover a manutenção do mesmo, do já conhecido é grande nesse documento. Além disso e como mencionado anteriormente, ao não problema- tizar a própria ideia de Estado-nação, ela reafirma lógicas epistê- micas da modernidade ocidental, reforçando práticas associadas a colonialidade do saber e do poder. Como denunciam Oliveira e Can- dau (2010) ao se referirem a determinados discursos recorrentes do campo educacional: "sob o pretexto de incorporar representações e culturas marginalizadas, apenas reforçam os estereótipos e os processos coloniais de racialização (OLIVEIRA, CANDAU, 2009, P- 21). A hipótese que se delineia reconhece que o enfrentamento do de safio de reelaboração didática da complexidade de uma história do Brasil-ensinada outra implica no modo de mobilização e na proble- matização dos fluxos de sentidos de significantes como diferença, igualdade e temporalidade simultaneamente que participam das lutas pela hegemonização de um sentido de nação. 0 ensino de história proposto na BNCC embora mobilize os três fluxos não os articula com a mesma intensidade em torno da produção de uma história nacional entendida como a produção de uma narrativa de brasilidade. 122 Como superar as fragilidades apontadas e fazer avançar a ousadia, fortalecendo assim as subversões anunciadas? Como dar plausibi- lidade à ideia de histórias que, a despeito de serem narradas como histórias nacionais, apresentam interpenetrações e se determinam mutuamente? Como operar com a tensão universal e particular na produção de narrativas nacionais de forma que ao invés de pro curar resgatar autenticidades subalternizadas pela colonialidade , permita explorar as fissuras, deslocar, desestabilizar as fronteiras entre modernidade e colonialidade presentes em diversas Histó rias locais? 5 i 8 5 5 § 3 CêC Deixo essas questões em aberto na impossibilidade de, por ora, res pondê-las ainda que de forma provisória. No meu entender, o méri to da BNCC de História foi o de provocá-las tirando da zona de con forto os autores de narrativas hegemonizadas de brasilidade neste campo disciplinar. E isso não é pouca coisa em meio às lutas pela significação que envolvem memórias concorrenciais e projetos de sociedade e de escola democráticas em nossa contemporaneidade. 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