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2 A Educação para o Desenvolvimento Humano conta com a força transformadora da arte. Cidadãos do século 21 SOBRE A EDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO SEUS ALUNOS SÃO CIDADÃOS DO SÉCULO 21... A maioria de seus alunos nasceu no século 20, mas vão viver a maior parte de suas vidas no século 21. Esses dois séculos são muito diferentes. Quem passou a maior parte da vida no século 20, como nós adultos, não teve que enfrentar mudanças tão radicais na sua forma de ser, amar, conviver, participar, conhecer, estudar, produzir, trabalhar. No século 21, tudo isso está mudando... Como vamos preparar essa geração para viver, conviver, conhecer e produzir no incerto e desigual século 21? Provavelmente, a resposta que os profissionais ligados ao ensino de arte dariam é: vamos prepará-los com muita educação e arte! VOCÊ ACREDITA QUE FORMAR OS CIDADÃOS DO SÉCULO 21 EXIGE ARTE? Uma das principais apostas da visão de educação que vamos apresentar é que o ensino de arte tem uma imensa força trans(formadora) para os cidadãos do século 21. Para nós, os encontros significativos com a arte são uma forma de cultivar o potencial que todas as pessoas trazem consigo. Mais que isso, podem ser oportunidades imensamente qualificadas para que aprendam a ser, conviver, conhecer e fazer. Essa visão do ensino de arte faz parte de uma ideia ainda maior: a Educação para o Desenvolvimento Humano. Antes de irmos adiante, vamos esclarecer uma questão didática. Não vamos nos aprofundar aqui numa proposta específica de ensino de arte. Acreditamos que, antes disso, é importante expor e debater a concepção de educação que, a nosso ver, permearia uma proposta de ensino de arte. Tenham, então, em mente o caminho didático que vamos percorrer agora – compreender o que é a Educação para o Desenvolvimento Humano – e o horizonte que pretendemos alcançar – compreender as implicações dessa concepção de educação para o ensino de arte. 3 Por uma educação plena A Educação é a oportunidade mais eficaz para desenvolver o potencial TODAS AS PESSOAS TÊM POTENCIAL E O DIREITO DE DESENV OLVÊ-LO. Educação para o Desenvolvimento Humano é uma nova proposta para a formação das gerações mais jovens, considerando as exigências do século 21. Essa concepção de educação tem “fabricação institucional”, ou seja, não é de autoria de um único pensador, mas uma concepção formulada no Instituto Ayrton Senna e praticada, avaliada e aprimorada em muitas mãos de muitos ‘brasis’, pois vem sendo cultivada nos diversos programas educativos que o Instituto desenvolve em todo o país, em parceria com redes de ensino, ONGs e universidades. Um desses programas é o Educação pela Arte, cujo desafio é trabalhar o ensino de arte com base na proposta de Educação para o Desenvolvimento Humano. Vocês podem conhecer mais sobre o trabalho do Instituto Ayrton Senna no site www.senna.org.br . A ideia contida na proposta de Educação para o Desenvolvimento Humano é a seguinte: o desenvolvimento de um país ou de uma comunidade só acontece de fato se as pessoas se desenvolverem plenamente. Acreditamos que criar oportunidades que contribuam para o desenvolvimento das pessoas é a tarefa mais importante se queremos um país rico, justo e solidário. E como as pessoas se desenvolvem? Primeiro, reconhecendo seu potencial e sendo valorizadas por ele. Todas as pessoas, sem exceção, têm potencial. Esse potencial é uma imensa força que nos impulsiona a Ser, Conviver, Conhecer e Fazer. PARA DESENVOLVER O POTENCIAL É PRECISO TER OPORTUNID ADES E APRENDER A FAZER ESCOLHAS . O potencial humano não se desenvolve espontaneamente, sem intencionalidade e sem que haja oportunidades voltadas a estimular seu desenvolvimento. Além disso, é preciso que as pessoas tenham liberdade para fazer escolhas, ou seja, precisam saber distinguir e apreciar as situações na vida que lhes permitirão desenvolver seu potencial. Do nosso ponto de vista, a melhor oportunidade para desenvolver o potencial das gerações jovens e, também, prepará-las para fazer escolhas é a educação. As outras oportunidades – saúde, renda, cultura, habitação etc. – são igualmente decisivas, mas não tão estruturantes para o desenvolvimento intencional do potencial das pessoas quanto as oportunidades educativas. Qualquer oportunidade educativa cumpre essa função estruturante na vida das pessoas? Não. Estamos propondo pensarmos numa educação de 4 Olhar as pessoas pelo seu potencial é ser atraído por sua riqueza qualidade, voltada a preparar as pessoas, especialmente os mais jovens, para enfrentar os seguintes desafios: saber quem são e o que querem para suas vidas; saber conviver com o outro e com a coletividade; conhecer as estratégias de aprendizagem que lhes permitam ler, escrever, calcular e resolver problemas; ser capaz de empreender e ingressar no novo mundo do trabalho. Todos os espaços educativos poderiam basear-se nessa perspectiva de educação? Sim. Estamos alinhados com o artigo primeiro da LDB (lei de diretrizes e bases) que afirma: “Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.” Essa visão de educação está inspirada, também, no Relatório Jacques Delors, proposto pela UNESCO. Pensar a educação desse modo parece simples e bastante consensual. Mas o fato é que não estamos habituados a ver, pensar, sentir e agir em relação às crianças, aos adolescentes e jovens pelo seu potencial, a partir do que são e podem. Tampouco estamos preparados para lhes oferecer essa educação plena que lhes permita aprender a ser, conviver, conhecer e fazer. As imensas desigualdades a que a maioria em nosso país está exposta, nos leva com frequência a nos aproximarmos dos mais jovens e suas famílias, atraídos por sua carência, pobreza, fracassos, danos etc. Essa desigualdade deve então ser desconsiderada? Não, focar o potencial não significa encobrir carências ou danos, significa escolher o caminho estreito de apoiar-se radicalmente nas riquezas que caracterizam toda e qualquer pessoa. Significa dar lugar ao seu lado luminoso. 5 Um conceito inacabado e aberto ao seu olhar POR UMA EDUCAÇÃO RICA Para aprofundarmos essa importante discussão, vamos convidá-los à leitura de um texto escrito no início dos anos 2000, por Antonio Carlos Gomes da Costa, educador mineiro e então consultor do Instituto Ayrton Senna. Suas ideias têm sido uma das fortes inspirações na construção do conceito de Educação para o Desenvolvimento Humano. Segundo ele: “A Educação para o Desenvolvimento Humano é ainda um conceito inacabado, longe, acreditamos, de sua forma definitiva. Falta ainda a realização de um esforço capaz de integrar num arcabouço teórico consistente as diversas contribuições oriundas das várias ciências sociais, que, ao longo de seu desenvolvimento, foram se agregando ao seu corpo. Longe de nos desanimar, essa é uma constatação que nos deve encher do mais vivo entusiasmo, uma vez que o campo de possibilidades aberto diante de nós é um convite incessante ao pensamento criativo e à ação transformadora.” Com certeza, dez anos após esta afirmação, já demos vários passos consistentes na formulação teórico-prática da Educação para o Desenvolvimento Humano, mas essa condição de “inacabada” faz parte de sua constituição: ela se faz e refaz pelas mãos e pelo olhar das pessoas que a cultivam em seus cotidianos. O texto que vem a seguir é, então, anterior à formulação desse conceito. Um texto emocionado e lúcido, que contém a virulência dos elementos iniciais quenos levaram à construção dessa proposta de educação. Boa leitura! “É preciso romper com as velhas taras da política social brasileira e latino-americana. A maior dessas compulsões é certamente a nossa incapacidade atávica – seja nas ações de governo, seja no campo da educação e da solidariedade social – de responder a uma pergunta extremamente simples, singela mesmo: – Que fazer com os filhos dos pobres? Não creio, depois de conhecer uma enormidade de programas sociais e educacionais em várias partes do mundo, que exista país mais criativo em responder esta pergunta do que o Brasil. Aqui, em nome da salvação ética, da prevenção do delito e da estratégia de 6 sobrevivência da família já se fez praticamente de tudo que se possa imaginar com os filhos dos pobres. Eles foram postos a trabalhar, dentro da ideologia sacrossanta de “ajudar o menino para o menino ajudar a família”. Eles foram fardados e postos a fazer ordem unida, para, depois, trabalharem no comércio e outras atividades sem direitos de qualquer natureza, ganhando uma fração do salário mínimo. Eles foram organizados, nucleados e categorizados como meninos de rua, para, a partir dessa condição, obterem reconhecimento social e reivindicarem seus direitos. Eles foram postos a trabalhar em fabriquetas de tudo que se possa imaginar para aprender um ofício e ajudar em casa. Eles foram chamados a estudar em garagem, debaixo de poste, de ponte e até de viaduto, como estratégia de denúncia do fracasso da escola pública e do modelo de Estado, de sociedade e de economia que a mantém. Eles receberam de adultos vassourinhas e panos para limpar vidros de carros nos semáforos. Sem contar as caixas de engraxates e carrinhos de mão, que entidades sociais lhes ofereceram como recursos para ganhar a vida. Meninas prostituídas foram organizadas e passaram a receber preservativos e instruções sobre como não se contaminar e lutar por seus “direitos”. (...) É interessante que quase ninguém no Brasil pensou em dar à pergunta – que fazer com os filhos dos pobres? – a mesma resposta que foi dada em todos os países que deram certo: – Devemos fazer com os filhos dos pobres o mesmo que fazemos com os nossos próprios filhos. Trata-se de pô-los na escola e, no horário em que eles não estão lá, ajudá-los a fazer as tarefas escolares e oferecer-lhes oportunidades educativas capazes de permitir-lhes desenvolver plenamente o seu potencial. O grande paradigma que precisamos romper é a velha mania nacional de querer combater – não seria melhor dizer administrar? – a pobreza através de uma pobre educação pobre para os pobres mais pobres. Nossa proposta é uma rica educação rica – em dignidade, beleza, criatividade, técnica, finura de espírito, esperança, confiança, fé, qualidade, excelência e emoção – para dar a ver a todos a riqueza que há nos pobres, ou seja, a vida como valor universal, a certeza de que nenhuma vida vale mais do que a outra, a convicção de que todo ser humano nasce com um potencial e tem o direito de desenvolvê-lo, a crença em que para desenvolver o seu potencial as pessoas precisam de oportunidades, a segurança de que aquilo que uma pessoa se torna ao longo da vida depende das oportunidades que teve, e das escolhas que fez. Por isso a conclusão de que é preciso construir uma sociedade capaz de oferecer oportunidades às pessoas e de prepará-las para fazer escolhas certas. No coração de todo educador, mais do que a denúncia do velho, é preciso fazer pulsar o anúncio do novo. O anúncio de um país possível, onde cada criança tenha o direito de ser criança e onde cada adolescente possa 7 olhar o futuro sem medo, porque está preparado para ele. O possível, sempre é bom lembrar, faz parte do real. A condescendência para com as crianças e adolescentes vindas das camadas populares é uma das formas mais perversas e sutis de discriminação desenvolvidas no âmbito da sociedade de apartação, que, nesses primeiros quinhentos anos de nossa evolução histórica, fomos capazes de construir no Brasil. Atrás dessa condescendência, reside uma crença profunda de que os pobres mais pobres constitutivamente são diferentes de nós. Por isso, não se adaptam à escola, não se lhes pode exigir disciplina, nossos valores não se aplicam a eles, vivem no concreto-imediato, fogem das tarefas de planejar o futuro, são incapazes de persistência, não têm projeto de vida, aceitam passivamente as leis do mais forte e do mais esperto, são fatalistas, acreditam no destino e na sorte de cada um, são imediatistas e, por isso, incapazes de adiar qualquer gratificação. Esta maneira de ver os pobres está profundamente entranhada no que o antropólogo americano Oscar Lewis, num estudo clássico, chamou de cultura da pobreza. Tal percepção do modo de ver, entender e agir dos pobres levou educadores, trabalhadores sociais e outros ativistas nessa área a desenvolverem um profundo “respeito” pelos seus valores culturais. Daí, para o desenvolvimento de uma cultura preservacionista desses valores foi um pulo. Quem, em nossa área de atividade, já não visitou escolas ou programas sociais feios, sujos, pobres, bagunçados, feitos sob medida para os pobres mais pobres, em nome do respeito à maneira própria de ser desses pobres? Quem já não presenciou programas quase sem regras, para meninos de rua ou de periferia, reverentes ao pressuposto de que seria uma violência cultural impormos-lhes os nossos valores de classe média escolarizada? (...) O caminho estreito é o da exigência. A cada momento, com cada educando, fazer sempre a maior exigência possível de ser feita naquelas circunstâncias. Muitas vezes é preciso postular no educando ou na educanda uma qualidade, que está além de todos os seus atos. A regra principal é nunca colocar a exigência antes da compreensão. Exigir compreendendo. Compreender exigindo. É assim que o ser humano cresce e se supera. (...) A exigência é um sinal de respeito do educador pelo educando. Quando eu já não sou exigente com alguém é porque acredito que, dali, não se poderá extrair muita coisa. A frouxidão, a condescendência, a tolerância desmedida para com as crianças e adolescentes pobres – ao contrário do que querem parecer – são demonstrações de, no mínimo, incompreensão, e de, no máximo, má-fé ou auto-tapeação por parte dos educadores. (...) Proceder de outro modo seria, em nome de um falso humanismo pedagógico, não criar as condições que permitam a cada educando realizar ao máximo o seu potencial, ou seja, as promessas que trouxe consigo ao vir a esse mundo.” Antonio Carlos Gomes da Costa 8 Competências para ser, conviver, conhecer e fazer Competências pessoais UM NOVO OLHAR SOBRE A EDUCAÇÃO : QUE NOVOS DESAFIOS TRAZ PARA O ENSINO DE ARTE ? Vimos que a Educação para o Desenvolvimento Humano propõe uma revolução copernicana sobre o enfoque necessário para educar para o século 21, que é fazer com que a educação gire em torno do desenvolvimento do potencial das pessoas. Além disso, a compreensão dessa concepção de educação requer mais um passo. Desenvolver o potencial é mais do que simplesmente aprender, é desenvolver competências, ou seja, construir capacidades para ser, conviver, conhecer e fazer que possam ser praticadas em todos os lugares e por toda a vida. UM POTENCIAL , UMA VIA E QUATRO COMPETÊNCIAS . Ainda sem aprofundar como o ensino de arte participa da concepção de educação que estamos trabalhando nessa aula, vamos apontar o espaço privilegiado que ele ocupa nessa visão: o ensino de arte é uma via privilegiada para transformar potenciais em competências, pois proporciona experiências completas, que abrem portas para uma compreensão mais profunda de si mesmo e do mundo. Mas de que forma o ensino de arte pode levar as pessoas a desenvolverem suas competências para ser, conviver, produzir e conhecer?Para contribuir com as diversas respostas possíveis sobre essa pergunta, vamos nos aprofundar em cada um desses quatro âmbitos exigidos pela Educação para o Desenvolvimento Humano para transformar o potencial em competências para a vida. Aprender a Ser é aprender a se relacionar consigo mesmo. Ser alguém exige que ao longo da vida, façamos o enfrentamento de um ciclo de desafios que levará ao encontro com a identidade e o projeto de vida. Esta tarefa se inicia desde muito cedo na vida das crianças, mas é na adolescência que adquire seu real significado, como principal tarefa existencial e social nesse momento da vida: saber quem sou e quem quero ser. Além disso, claro, saber quem somos e o que queremos é algo que atravessará toda nossa existência. Por isso, contrariamente ao pensamento simplista apregoado pelos livros de autoajuda, aprender a ser é desenvolver uma atitude diante da vida, um compromisso com seu autodesenvolvimento. Cada vez que o professor media intencionalmente o enfrentamento de um desafio existencial nas oportunidades educativas que oferece a seus educandos, eles aprimoram sua competência pessoal. 9 Competências relacionais Competências produtivas Competências cognitivas Disponibilizamos na sala de leitura no ambiente coletivo do curso o capítulo 3 do livro Educação para o Desenvolvimento Humano. Sugerimos que leiam, primeiro, as definições de competência, habilidade e atitude que estamos trabalhando. Em seguida, leiam, quais são as habilidades do ciclo de desafios que compõem as competências pessoais. Observem uma curiosidade que os ajudará a compreender a extensão do que estamos propondo na esfera das competências pessoais: a autoestima, geralmente mencionada como a grande contribuição da maioria dos processos educacionais para a vida pessoal dos educandos, é apenas uma das competências a serem trabalhadas, e na verdade, essas competências estão assentadas sobre o autoconhecimento e o projeto de vida (autoproposição). Aprender a Conviver é aprender a relacionar-se com o outro e a sociedade em que vivemos. Essa é uma competência fundamental e exige o enfrentamento de dois desafios: respeitar a diversidade humana e social e aprender a crescer com ela. É assumir um compromisso com o desenvolvimento do outro, da sua comunidade e do planeta. Cada vez que os educandos são estimulados a identificar e enfrentar o desafio de conviver entre si e em sociedade, têm a chance de aprimorar sua competência relacional. Leiam novamente o 3º capítulo do livro indicado acima e observem quais são as habilidades que propomos desenvolver no âmbito das competências relacionais. Vejam que o conceito de protagonismo juvenil, um dos mais criativos e eficazes métodos de desenvolvimento de todas as competências elencadas no capítulo, pertence muito especialmente a essa esfera de aprendizado. Aprender a Fazer é aprender a lidar com a realidade como um convite à transformação. É assumir uma atitude empreendedora diante do mundo, especialmente, o mundo do trabalho. Vivenciar o fazer artístico, por exemplo, é uma excelente “escola” para aprender a ser criativo, transformador, empreendedor. Cada vez que os educandos enfrentam esse desafio, aprimoram suas competências produtivas. Visitem, no nosso capítulo 3, quais são as competências produtivas e percebam o quanto as mudanças têm sido radicais nessa esfera da nossa vida. Aprender a Conhecer é aprender a enfrentar com sucesso os desafios da escolarização para poder relacionar-se com a informação acumulada na sociedade do conhecimento. Conhecer esse imenso arsenal de conhecimentos exige o domínio da leitura, da escrita, da matemática, da informática e, principalmente, da metacognição, ou seja, da capacidade de aprender ao longo da vida. É assumir um compromisso com o desenvolvimento intelectual. Essa é uma área bastante estratégica para que o ensino de arte traga soluções seja na escola ou em outros espaços educativos. 10 Inovadora para fazer o que ainda não faz Eficaz para fazer melhor o que já faz Pagar a dívida do século 20 e investir no século 21 Vamos explorar um pouco mais esse desafio a seguir, mas antes disso, vamos ao capítulo 3 compreender melhor as competências cognitivas. É nessa esfera que, apostamos, o ensino de arte deverá trazer as mais inovadoras contribuições à educação brasileira! A EDUCAÇÃO NECESSÁRIA Uma questão importante que nos inquieta enquanto cultivamos o conceito de Educação para o Desenvolvimento Humano é: estamos, de fato, diante da educação necessária para enfrentarmos os desafios educacionais brasileiros? Esses desafios não são poucos, mas podemos resumi-los da seguinte maneira: a educação escolar no Brasil ainda não terminou a tarefa do século 20. Na maioria das redes de ensino brasileiras, conseguimos que a maior parte das crianças e dos adolescentes tenha acesso ao menos ao ensino fundamental, mas estamos longe de assegurar que esses alunos aprendam a coisa certa no tempo certo. As capacidades básicas de leitura, escrita, cálculo e resolução de problemas, por exemplo, estão longe de ser dominadas por eles. Esse fracasso, todos sabemos, não é dos alunos, já que todos têm um imenso potencial para aprender – independentemente de suas condições familiares, sociais, econômicas, culturais. Além disso, as exigências do século 21 já estão batendo na porta: não é mais possível viver, conviver, estudar e trabalhar sem desenvolver as competências, valores, conhecimentos e habilidades que apontamos anteriormente. INOVADORA E EFICAZ Qual é a educação necessária, então, para enfrentarmos os desafios do presente, superando as dívidas do passado e investindo nas necessidades do futuro? Vamos começar a responder essa pergunta com uma imagem, formulada pelo Professor Antonio Carlos Gomes da Costa. A educação brasileira precisa lutar como um espadachim que domina, ao mesmo tempo, duas espadas. Com uma, ele deve enfrentar os inimigos do século 20: os baixos índices de aprendizagem e as distorções no fluxo escolar (os alunos não aprendem a coisa certa no tempo certo). Com a outra, ele deve enfrentar as já presentes exigências do século 21: saber fazer escolhas (ser); aprender na escola e ao longo da vida (conhecer); fazer a ponte com o novo mundo do trabalho (fazer); crescer com a diversidade e participar (conviver). Desse modo, nós educadores que ensinamos arte em todo e qualquer espaço educativo precisamos nos preparar para usar as duas espadas colaborando para que a educação inclua e ultrapasse a escola, de modo a ajudá-la a ser: 1. mais eficaz no que faz, ou seja, para ensinar os alunos a ler, escrever e calcular. 2. inovadora e fazer o que ainda não faz, ou seja, ensinar a ser, conviver, conhecer e fazer nos parâmetros do século 21. 11 Vocês devem ter observado que estamos atribuindo à escola um papel central na resolução desse desafio. De fato, por ser o espaço universal para formar as novas gerações, a escola tem esse papel central, mas não vamos nos esquecer que a educação escolar não pode nem deve dar conta de tudo. O desafio de alcançar inovação e eficácia é de todos os espaços que se propõem a educar. Será que a Educação para o Desenvolvimento Humano responde a esses dois desafios? As discussões sobre o ensino de arte trazem com mais clareza e frequência o papel do ensino de arte para desenvolver competências pessoais, relacionais e até produtivas... Mas, diante do atual contexto da educação no Brasil, nos parece necessário aprofundarmos a contribuição do ensino de arte para o desenvolvimento de competências cognitivas. Vamos convidá-los, então, a ler alguns brevíssimos estudos de caso que ilustram como algumas ONGs parceiras do Programa Educação pela Arte vêm enfrentando o desafio de desenvolver competências cognitivas, tal como o espadachim que descrevemosacima: oferecendo oportunidades para aprender com mais eficácia e/ou inovando, ao estimular a aprendizagem de estratégias cognitivas durante o processo do fazer artístico e da apreciação. O texto a seguir traz reflexões de educadores atentos a uma dificuldade básica dos seus educandos: ler e escrever (principalmente, conseguir construir sentidos por meio da leitura e escrita). Boa leitura! “Apresentamos, a seguir, um relato produzido por Fabiana Bezerra, educadora da ONG Memória Gráfica, de Minas Gerais. Nele, Fabiana descreve a importância das atividades de apreciação e interpretação de obras de arte, articuladas com atividades de fazer artístico, para o desenvolvimento simultâneo de diversas competências cognitivas junto a um grupo de 40 educandos. ‘Tendo a mudança da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte como recorte, a oficina de gravura buscou estabelecer um diálogo a partir dos primeiros anos da nova capital. Nesta primeira etapa os jovens visitaram o Museu Histórico Abílio Barreto, onde observaram características e curiosidades arquitetônicas do casarão — uma das construções remanescentes do Arraial Curral Del’ Rey — e também a exposição “Os primeiros anos da capital” — um registro dos primeiros 50 anos da cidade. Ainda no museu, os jovens realizaram desenhos de observação e posteriormente estes estudos foram trabalhados na técnica de isogravura com duas cores. Avançando na história dos primeiros anos da cidade, os jovens apreciaram fotografias, sendo incentivados a identificarem os estilos artísticos presentes na arquitetura e as principais alterações urbanísticas realizadas no projeto de Aarão Reis, quando do crescimento da cidade. Concluímos esta segunda etapa com a visita à Praça Rui Barbosa, quando da sua reinauguração. A terceira etapa consistiu na preparação para a visita à cidade de Ouro Preto. Para tal, foram exibidos um longa metragem sobre a vida do artista Aleijadinho e um documentário sobre a cidade de Ouro Preto. Ao fim das exibições, os jovens foram incentivados a realizarem textos e desenhos, para registro das informações trazidas pelo material trabalhado. 12 A quarta e última etapa, consistiu na visita a Ouro Preto. Os conhecimentos teóricos construídos na “sala verde”1 sobre o estilo barroco e suas características, como profusão, movimento, luz, puderam ser aprofundados. A viagem à cidade de Ouro Preto foi determinante para o envolvimento do grupo. Já no caminho a paisagem despertou a atenção e interesse. Durante a realização dos estudos, a concentração e empenho chamaram a atenção. Os jovens “reclamaram” da riqueza de detalhes que a paisagem ouropretana oferece. Alegaram que precisariam de mais tempo para realizar os estudos, tamanho o envolvimento e impacto diante a vista de Ouro Preto a partir da Escola de Minas. A Ouro Preto sinuosa, com seus casarões, igrejas e muitas histórias. O processo de transformar estes estudos em xilogravuras foi percorrido desde a preparação da matriz e seu lixamento, passando pelos materiais, gravação, provas de estado até a assinatura das gravuras. Buscando, dessa forma, ampliar o conhecimento sobre o fazer xilográfico. A maioria do grupo desconhecia esta fase de nossa história, sendo bastante significativas as “descobertas” realizadas. Pode-se observar, ainda, uma maior apropriação dos conceitos pré-trabalhados, assim como uma apuração da percepção visual. Durante as avaliações realizadas ao fim das atividades, os jovens eram estimulados a fazer analogias entre as impressões que a madeira tinha despertado e aplicá-las em seu cotidiano. Estimulando o aprimoramento da percepção visual e a expressão plástica, este olhar foi trabalhado em xilogravura. A resistência da madeira, a sua preparação, a gravação e provas de estado por si só nos educam. E, assim, ampliam o conhecimento sobre o fazer artístico xilográfico, tendo como ponto de partida o registro de seu olhar, sua reinterpretação de Ouro Preto.’ O próximo relato apresenta uma oportunidade educativa coordenada por Daniel Fernandes, educador da organização Redes de Desenvolvimento da Maré, do Rio de Janeiro. Nele, Daniel apresenta uma atividade de apreciação vivenciada pelos educandos e reflete sobre a articulação entre o desenvolvimento de competências cognitivas e relacionais. Interessante notar que o educador aponta as dificuldades e os desafios vivenciados na atividade, já pensando nas próximas oportunidades de apreciação que serão oferecidas aos educandos. ‘No dia 1º de setembro foi realizada uma visita dos educandos ao MAM – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Periodicamente realizamos, nos encontros, uma avaliação do projeto com os educandos, com o objetivo de ressaltar pontos positivos no andamento dos trabalhos, buscar estratégias para resolver dificuldades, e ouvir os anseios e as sugestões dos participantes. Passeios são frequentemente mencionados como atividades de interesse, assim como a necessidade de uma troca maior de conhecimentos e repertórios, uma vez que a oficina trabalha com o aprimoramento de um repertório delimitado. Para atender a estes anseios, resolvemos instituir como atividade permanente a realização, a cada mês, de ao menos um sarau e um passeio relacionado a uma atividade cultural. O sarau possui caráter informal e visa o desenvolvimento de competências relacionais, afetivas, estimulando a troca de saberes individuais e fortalecendo a coletividade e a identidade de grupo. Sugerimos que seja preferencialmente realizado na residência dos próprios educandos, e organizado com a participação deles, cada um colaborando com a escolha de repertório, comida etc. 1 Sala verde é o espaço na ONG onde os educandos trabalharam a segunda e a terceira etapas. 13 Verificamos serem os passeios, atividades de muita importância, principalmente quando constatamos que o universo cultural e a noção de cidade dos educandos muitas vezes se restringem aos limites geográficos e culturais da própria comunidade, ou então, apenas ao que é apresentado nos meios de comunicação, principalmente através da televisão e do rádio. Alguns educandos jamais foram a um teatro, cinema, e não conheciam nenhum museu ou espaço cultural. A equipe escolheu como primeiro passeio uma visita ao MAM, para apreciarmos duas exposições: uma sobre o movimento tropicalista, que era o nosso foco, e a outra sobre o livro Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. Anunciamos o passeio com duas semanas de antecedência, e o lembrávamos ao fim de cada encontro. Na semana do passeio, conversamos sobre o movimento tropicalista, que muitos não conheciam, mas pudemos estabelecer associações com o que eles sabiam sobre artistas do movimento como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Rita Lee. Como muitos educandos apreciam rock, ficaram interessados em saber que o tropicalismo divulgou a utilização da guitarra elétrica. A preparação para o passeio se fez, então, através destas conversas. Durante o passeio, procuramos estar junto aos educandos para orientá-los e apreciar com eles a exposição, mas sem nos colocarmos na posição de “guias” ou “monitores”, sem procurar dar o caráter de uma visita guiada. Preferimos que ficassem livres para usufruir a arte no tempo e espaço de cada um. Assim, por vezes o grupo se dispersava, em outro momento voltava a se reunir, todos com autonomia para escolher se deter no que mais lhes interessasse. Na preparação para o passeio já pudemos observar uma grande expectativa, talvez mais em relação ao ato de passear do que à escolha da exposição e do local em si. No museu a atitude foi de muito interesse e curiosidade. Quiseram apreciar obra a obra, interagindo com elas de forma lúdica, emotiva e sensorial. Contamos, neste sentido, com a presença valiosa das obras de Ligia Clark e Hélio Oiticica, que constavam de instalações e objetos interativos,que fascinaram os jovens. Observamos claramente o desenvolvimento de competências relacionais durante o passeio, todos dialogando mais uns com os outros, num encontro bastante agradável. Ao fim do passeio a pergunta de todos era: “quando será o próximo?”. Como expusemos anteriormente, alguns jovens nunca haviam ido a uma exposição, nem a um museu. Principalmente para estes, o desenvolvimento cognitivo, em vários aspectos, foi muito intenso. Conheceram o que é e para que serve um museu, quais as suas normas, de que maneira ele expõe as obras de arte. Algumas obras eram interativas e podiam ser tocadas, outras não, o que gerou boas perguntas e reflexões nos educandos. A subjetividade da fruição e interpretação das obras, os diferentes referenciais estéticos também propiciaram discussões. Através do movimento tropicalista puderam observar que a arte se manifesta através de outras linguagens além da música e que uma manifestação artística está ligada ao meio em que é produzida como um todo indissociável. Eles esperavam encontrar apenas objetos ligados diretamente a musica, porém viram cartazes de filmes, fotografias, instalações, vestimentas, maquete de cenário de peça teatral, quadros, enfim, todo um universo intrínseco à musica tropicalista. Esperávamos o mesmo envolvimento nas conversas posteriores ao passeio, e comentários mais precisos sobre a impressão causada pelas obras, o que ocorreu de forma superficial. Parece que para alguns o ato de passear foi mais marcante do que a própria exposição em si, cujo conteúdo pareceu ser mera casualidade. Os comentários se limitaram a frases como “foi muito bom”, “relaxei a mente”, “vamos fazer outro”, dando a impressão que a experiência foi rica sensorialmente, mas faltando uma identificação e um entendimento mais aprofundado do conteúdo apreciado. Isto apontou uma necessidade de preparar melhor o passeio em termos 14 de conteúdo, trazendo textos, músicas, vídeos, imagens sobre o assunto, envolvendo-os com mais intensidade e antecedência com o tema a ser visitado, o que procuraremos fazer no próximo passeio. Atividades posteriores relacionadas também não foram programadas, e sentimos falta de tê-lo feito, pois ajudariam a fixar e dar continuidade à vivência. Nosso objetivo com os passeios é ampliar o universo cultural dos educandos e mostrar que a música, foco de nossa oficina, se relaciona com outros campos da vida e da arte. Além disso, queremos incentivá-los a buscar a informação e freqüentar espaços que fomentam a cultura, desenvolvendo o interesse e a curiosidade em conhecer diversas manifestações, fazendo com que se apropriem destes espaços, propiciando novas escolhas, valores e identidades. A oficina focaliza o fazer musical através do aprendizado e do desenvolvimento artístico e técnico na relação com o instrumento. Porém, entendendo a música como linguagem e expressão, buscamos sempre desenvolver nosso potencial através da apreciação e reflexão sobre novos conhecimentos.’ Algumas organizações, buscando suprir demandas específicas de seus educandos, além de estimular competências cognitivas por meio do ensino de arte, têm em seu itinerário formativo oportunidades educativas específicas de leitura e escrita e de apoio escolar (chamada por algumas de reforço escolar), que, segundo elas, têm gerado resultados importantes. Ou seja, para além do trabalho artístico, que, de fato, contribui para o desenvolvimento de competências cognitivas pelos educandos, essas organizações desenvolvem oportunidades educativas especificamente focadas nesta questão. A experiência é relatada pelo educador Leandro da Silva, da Associação pela Família, ONG de São Paulo. As oportunidades educativas envolveram 47 crianças com idades entre 6 e 8 anos, acontecendo diariamente, com duração de 1 hora. O foco das oportunidades educativas, tendo em vista os conteúdos, é o português e a matemática. ‘Nesta oportunidade são vistas as necessidades do grupo em relação ao conteúdo escolar, procurando identificar e auxiliá-los nas suas dificuldades. Neste sentido o planejamento é feito semanalmente onde são trabalhados conteúdos de matemática e português. Nas atividades são usados: computadores para produção de textos, letras móveis, cruzadinhas, caça-palavras, ábaco, tangram e material dourado. Percebo, através de relatos dos educandos, como esta atividade contribui para a melhoria do desempenho escolar, auxiliando na compreensão das atividades escolares. Outra observação importante: quando iniciamos o ano, praticamente metade das crianças do meu grupo encontrava-se no nível pré-silábico ou silábico. No final do ano 90% estão silábicos e silábicos alfabéticos, lendo e produzindo textos. Além de muitos estarem com a auto-estima elevada, pois nas atividades sempre me preocupo em ampliar o repertório de histórias, personagens e situações, mostrando para o educandos que eles podem, através do seu imaginário, criar textos livremente sem se preocupar “se está certo” ou o que eu (educador) quero. É quando percebem que têm liberdade para criar textos e resolver problemas matemáticos e ficam felizes em socializar com o grupo a sua produção. A correção é feita com o educando, onde procuro fazer com que perceba seu erro. O que confirma, de fato, o trabalho é quando muitos pais comentam sobre o desenvolvimento do filho na escola.’” 15 EXPEDIENTE Instituto Ayrton Senna Presidente : Viviane Senna Gerente da Área de Comunicação e Estúdio : Maria Helena Magalhães Coordenadora da Área de Educação Complementar : Simone André Coordenadora do Programa Educação pela Arte : Mônica Pellegrini Assistente do Programa : Vanessa Lira Equipe editorial Autor : Simone André Produção : Gabriela Rosa Revisão : Marta Pagotto Diagramação : Felipe Fujii e Márcio Pétta 16
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