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NAATHANY EULALYA MAIER CECHETTO OS MOVIMENTOS FEMINISTAS E A LUTA CONTRA A CULTURA DO ESTUPRO CURITIBA 2019 Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, Escola de Direito, Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Orientadora: Profa. Dra. Ana Claudia Santano i SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................ ii INTRODUÇÃO................................................................................................... 1 1 A OBJETIFICAÇÃO DA MULHER COMO CONSEQUENCIA DO PATRIARCADO................................................................................................. 5 1.1 A SUBMISSÃO FEMININA.......................................................................... 5 1.2 O PAPEL DO PATRIARCADO NA DOMINAÇÃO MASCULINA............. 8 1.3 A SUPERAÇÃO DA DESIGUALDADE COMO CONSEQUÊNCIA DA LUTA DE GÊNERO............................................................................................. 12 2 OS MOVIMENTOS FEMINISTAS E A LUTA CONTRA A CULTURA DO ESTUPRO..................................................................................................... 20 2.1 OS MOVIMENTOS FEMINISTAS................................................................ 23 2.2 A CULTURA DO ESTUPRO.......................................................................... 28 2.3 A LUTA FEMINISTA..................................................................................... 35 3 AS CONVENÇÕES E TRATADOS INTERNACIONAIS DOS QUAIS O BRASIL FAZ PARTE......................................................................................... 42 3.1 A IMPLEMENTAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO BRASIL................................................................................................................. 43 3.2 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – O SISTEMA UNIVERSAL........................................................................................................ 46 3.3 A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – O SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO...................................................................... 51 CONCLUSÃO..................................................................................................... 55 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 57 ii RESUMO A sociedade por muito tempo se manteve em posições nem sempre justas a todos. Desse modo construiu-se a cultura patriarcal em que o mundo ainda vive, e viveu, por muitos séculos, no qual a mulher é relegada a uma posição inferiorizada na sociedade. Pergunta- se assim, quando se deu início a essa superioridade masculina e quais as influências levaram o homem a dominar o espaço público, tal como sua família. Questões como essas são importantes e de difícil resposta. Isto posto, esse trabalho, em uma pesquisa qualitativa, tem como objetivo, entender o gênero como uma construção cultural, abordando a dominação masculina como consequência de sua influência. Procura também, compreender a cultura do estupro, objetivo principal da pesquisa, estudando o comportamento da sociedade em torno do tema, bem como a aceitação da culpabilização em torno da mulher/ vítima. O desenvolvimento dos movimentos feministas trouxe voz às mulheres esquecidas, realizando importantes revoluções, da mesma maneira que aportou programas voltados para vítimas de agressão sexual, lutando incansavelmente para o fim da cultura do estupro. Por fim, serão abordadas ainda as políticas públicas e tratados internacionais voltados ao direito da mulher, políticas essas que auxiliam a uma vida mais digna ao sexo feminino. Palavras-chave: Feminismo; Cultura do Estupro; Políticas Públicas. 1 INTRODUÇÃO O tema da cultura do estupro ainda é muito mistificado na sociedade atual, sendo importante compreender como se iniciou, no Brasil, tal prática, que objetifica a mulher, sendo assim a motivação primeira deste estudo. Tenta entender a violência em torno da mulher, dando enfoque, principalmente, na violência sexual, no estupro, agressão essa que pode ocorrer dentro da própria casa, entre pessoas próximas, e também na rua, por desconhecidos. A vulnerabilidade física feminina impede as explosões de ódio e agressividade sobre aquele que lhe incomoda e é inclusive visto como um provedor a ser reverenciado e merecedor de seus afetos. De outro lado, alguns homens trazem um sentimento de propriedade que se manifesta na convicção de poder fazer com a esposa e com todos do seu lar aquilo que bem entendam. Tal violência, seja dirigida a mulheres ou aos filhos, potencializa-se com o tempo e com a proximidade afetiva entre agressor e vítima e quanto maior é o isolamento da vítima de uma rede de relações, principalmente considerando a dificuldade de se revelar os fatos e obter a consequente tutela judicial.1 A violência sexual perpetrada em desfavor da mulher é vista de diversas maneiras, e muitas vezes, de formas muito conflitantes, pois a sociedade entende ser reprovável a conduta do homem que por ‘impulso’ impõe seu desejo sexual, mas ao mesmo tempo, quando o crime ocorre, julga a vítima com pré-conceitos já arraigados, investigando toda a sua vida pregressa para poder condená-la por, no mínimo, ser culpada de forma concorrente. “(...). Suas vestimentas, seus diálogos e seus comportamentos devem revestir-se da cautela necessária a ensejar respeito do seio social. Seu corpo não é considerado sua propriedade, senão verdadeiro objeto de controle da sociedade”.2 1 LIMA, Paulo Marco Ferreira. Violência Contra a Mulher. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 122. 2 LIMA, Marina Torres Costa. O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande. Apud Rossi, Giovana. A Culpabilização da Vítima no Crime de Estupro: Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 22. 2 Segundo pesquisa realizada pelo IPEA - 20143 (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) 97,5% das vítimas de estupro são mulheres, o que demonstra a posição de vulnerabilidade das mulheres na sociedade. “Trata-se de um problema complexo, e seu enfrentamento necessita da composição de serviços de naturezas diversas, demandando grande esforço de trabalho em rede”.4 Vê-se o estupro não apenas como uma agressão sexual, mas como um dos crimes mais hediondos existentes. Percebe-se que o bem jurídico violado é a liberdade sexual da mulher (ou homem em raros casos). Porém, mesmo sendo considerado um crime tão grave, é um dos menos reconhecidos pelo Direito.5 Em 1993, as Nações Unidas realizaram a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, que reconheceu a violência contra a mulher como obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos. Considerou também que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos, e que se baseia principalmente no fato de a pessoa agredida pertencer ao sexo feminino.6 Desse modo é urgente a necessidade do debate jurídico, assim como uma reflexão sobre quais atitudes masculinas levam o homem a cometer tal violência, como também entender o porquê de tão poucas vítimas levarem ao conhecimento jurídico, como de seus familiares e pessoas próximas. Para entender, e, futuramente, modificar situações como essas, é preciso conhecer as maneiras existentes de enfrentamento contra esses atos, para que seja possível encontrar a motivação da cultura da culpabilização da mulher.Na ordem patriarcal, a mulher deveria obedecer ao pai e marido, passando da autoridade de um para a do outro através de um casamento monogâmico e indissolúvel. O domínio masculino era indiscutível. Os projetos individuais e as manifestações de desejos e sentimentos 3 CUNHA FILHO, Francisco Humberto; FERNANDES, Leonísia Moura: Violência Sexual e Culpabilização da Vítima: Sociedade patriarcal e seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: <http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=47f5d6b9ad18d160> Acesso: 28 ago. 2018. 4 JESUS, Damásio de. Violência Contra a Mulher. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 8. 5 DIOTTO, Nariel; SOUTO, Raquel Buzatti: Aspectos Históricos e Legais sobre a Cultura do Estupro no Brasil. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/view/15867/3764> Acesso: 28 ago. 2018. 6 JESUS, Damásio de. Op. cit., p. 16. 3 particulares tinham pouco ou nenhum espaço quando o que importava era o grupo familiar e, dentro dele, a vontade do seu chefe, o patriarca era soberana.7 Sendo assim, o objeto principal dessa pesquisa é a do aprofundamento em relação ao tema da violência sexual, como também sobre a cultura que culpabiliza a vítima. Ainda, é de extrema importância abordar os movimentos feministas, que lutaram, e ainda lutam, em prol de uma equidade efetiva, tanto social quanto juridicamente, sendo que tais movimentos trabalham com grupos de apoios, realizando campanhas; temas que serão aprofundados neste trabalho e que são muito relevantes para a extinção da cultura do patriarcado e violência sexual. Como consequência da luta feminista, esse estudo ainda versa sobre os tratados internacionais e políticas públicas conquistadas com muito esforço e determinação de mulheres que lutaram por um mundo mais equalitário. A pertinência dessa pesquisa é visível quando se encontra análises como a do Datafolha8, realizado no final do ano de 2017, em que mais de 45% das mulheres entrevistadas já sofreram algum tipo de violência, compreendendo que o assédio deve ser incluído nesse rol. Percebe-se também que tal resultado não pode ser tido como realista, pois é de conhecimento geral que muitas mulheres não revelam o acontecimento, ou não entendem que tal agressão praticada contra ela foi uma violência. Para se falar em discurso que culpa a vítima por um crime que ela não cometeu, é necessário entender como se deu início à subjugação da condição feminina. O assunto em voga tentará recuperar o começo da submissão da mulher, a cultura do patriarcado e a dominação masculina na sociedade, assim como evoluir para os movimentos feministas que iniciaram a luta para libertação feminina de seus papeis pré- determinados. Assim, pretende-se que seja possível refletir sobre o comportamento da sociedade, gerando, desse modo, um debate sobre a importância feminina no combate à 7 PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova História das Mulheres no Brasil. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2018. p. 16. 8 REVISTA EXAME. 42% das brasileiras já sofreram assédio, diz Datafolha. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/42-das-brasileiras-ja-sofreram-assedio-diz-datafolha/>. Acesso: 14 mar. 2018. https://exame.abril.com.br/brasil/42-das-brasileiras-ja-sofreram-assedio-diz-datafolha/ 4 cultura do estupro e também sobre a relevância do papel masculino em compreender sua influência no que foi vivido e na possibilidade que ele carrega em si de realizar mudanças. Por último, estudará os avanços que os pactos internacionais acordados pelo Brasil trouxeram para a proteção dos direitos das mulheres, como também a responsabilidade do país na redução da violência doméstica e contra a mulher. 5 1 A OBJETIFICAÇÃO DA MULHER COMO CONSEQUENCIA DO PATRIARCADO No Brasil anterior à 1.500, os índios conviviam de modo igual, não existindo em sua cultura a condição de dominante e dominado, sendo que tanto os homens quanto as mulheres tinham suas funções dentro da sociedade em que viviam, exercendo seus papéis, havendo o respeito e companheirismo entre ambos9. A partir da invasão portuguesa no Brasil e a subsequente soberania destes sobre os índios, a catequização forçada, a fuga daqueles para este país, essa comunidade se viu mudando de forma drástica, já que os portugueses, no momento em que aqui se fixaram, impuseram seus costumes, ideologias, religião, comportamento, etc. Desse modo, a liberdade que as índias conheciam foi talhada pela religião católica, pois era imoral andar nua, não ser casada, trabalhar, não cuidar da casa, enfim, argumentos encontrados pelos portugueses para escravizar essa cultura e suas pessoas, sendo que as mulheres índias eram utilizadas para os prazeres sexuais dos europeus por serem consideradas muito ‘exóticas’10. À vista disso será destrinchado de maneira mais detalhada sobre possíveis acontecimentos históricos que acarretaram com a decorrente submissão da mulher perante o homem, o patriarcado em nosso mundo e o início da superação feminina. 1.1 A SUBMISSÃO FEMININA A religião Católica, assim como outras, tanto no Brasil como no restante do mundo, submeteu as mulheres ao domínio masculino, denominando que a ‘cabeça’ do lar seria o homem e a mulher deveria respeitá-lo de todas as maneiras possíveis, mantendo-se na sua esfera privada, já que 9 HISTÓRIA DO BRASIL. Disponível <https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia- brasil/indios-o-brasil-antes-do-descobrimento.htm>. Acesso 14 mar. 2019. 10 PUC-RIO. As Mulheres no Brasil Colonial. Certificação Digital nº 0812079/CA. Disponível <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/16570/16570_4.PDF>. Acesso 14 mar. 2019. 6 compreende-se pela própria identidade histórico-cultural, que o homem seja bem relacionado em sua vida social e estabilizado financeiramente. Compreende-se ainda que os homens sejam poderosos, racionais, viris, não emotivos e agressivos (quando necessário)11. Dentro da religião católica, com a tradição bíblica, o apóstolo Paulo foi um defensor ferrenho da boa moral sexual, no qual o sexo deveria ser utilizado apenas para reprodução, tanto para o homem, quanto para a mulher, sendo este pregador quem colocou a mulher, na bíblia, como a introdutora do pecado. A mulher aprenda em silencio com toda submissão. E não permito que a mulher ensine, nem exerça autoridade de homem, esteja, porém, em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão depois Eva. E Adão não foi iludido, mas, a mulher sendo enganada, caiu em transgressão. Todavia será preservada através de sua missão de mãe, se ela permanecer em fé, e amor e santificação, com bom senso.12 Agostinho, seguindo os pensamentos de Paulo, acreditava que as mulheres eram passiveis de controle, sendo que tais pensamentos não só orientaram o comportamento de sua época, como ainda hoje existem resquícios palpáveis dessa visão. Nos apontamentos de Lemos, Agostinho conseguiu ‘erigir minuciosamente argumentos que distanciaram as mulheres das capacidades intelectuais, portanto elas eram passíveis de serem controladas pelos homens, os detentores legais do poder sócio político’. Baseadas nas sagradas escrituras e, em grande escala, influenciadas pelos escritos de Paulo, as interpretações de Agostinho sobre a mulher e a sexualidade dominaram a Idade Média.13 Desse modo, sendo a Igreja a primeira instituição a encontrar meios para submeter a mulher ao espaço privado, a ciência, no início do século XIX, procurou reafirmar os dizeres canônicos de modo a comprovar, cientificamente, as palavras de Deus.11 ECCO, Clóvis. A Função da Religião na Construção Social da Masculinidade. Disponível em: <pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v14n1/v14n1a13.pdf> Acesso: 30 jan. 2019, p. 95. 12 VIEIRA, Matheus Machado. “Viciadas e Perversas ou Honestas e Respeitosas?” A Representação do Matrimônio, da Mulher e da Família no Discurso Religioso e Judiciário: Ponta Grossa (1930 – 1945). Disponível em <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/35248/R%20- %20D%20-%20MATHEUS%20MACHADO%20VIEIRA.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso 11 nov. 2018. p. 85. 13 Ibidem, p. 92. 7 Segundo Darwin, a explicação da superioridade masculina era científica e prática pois de acordo com seus estudos, a hereditariedade determinava que a intelectualidade das mulheres era inferior aos dos homens, e como um fator genético, nada se poderia fazer para mudar tal realidade. “Para que superassem essa desigualdade biológica, acrescenta ele, as mulheres teriam de tornar-se provedoras, como os homens. E isso não seria uma boa ideia, porque poderia prejudicar as crianças e a felicidade dos lares”14. Continuando nessa lógica, BEAUVOIR afirma que “Com o advento do patriarcado, o macho reivindica acremente sua posteridade; ainda se é forçado a concordar em atribuir um papel à mulher na procriação, mas admite-se que ela não faz senão carregar e alimentar a semente viva: o pai é o único criador”15. Desse modo, justificou-se sob o véu científico a distinção entre os sexos assim como o papel de cada um na sociedade, onde as mulheres estavam reservadas ao ambiente privado, e os homens estavam direcionados ao ambiente público. A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada16. Sendo assim, no período constante entre os séculos XVIII e XIX era difícil contradizer ciência e religião, pois ambas afirmavam ser da natureza biológica do homem dominar o espaço público, assim como era da natureza biológica da mulher servir. A sociedade esperava que as esposas fossem virtuosas, passivas e submissas aos maridos. Era um ideal ilustrado em um poemeto popular à época, “O Anjo do Lar”, do poeta inglês Coventry Patmore: “O homem deve ser agradado; mas agradá-lo/ é o prazer da mulher”. Muitos pensavam que as mulheres eram naturalmente inadequadas para seguir carreiras nas profissões. Elas não precisavam ter vida pública. Não precisavam ter direito de voto.17 14 SAINI, Angela. Inferior é o car*lhØ: Eles sempre estiveram errados sobre nós. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2018, p. 39. 15 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – Fatos e Mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 2009, p. 29. 16 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 33. 17 SAINI, Angela. Op. cit. p. 42. 8 Iniciou-se então, o que denominamos hoje como propriedade particular. Melvin Konner diz que, quando os caçadores-coletores começaram a fixar-se e abandonaram seu estilo de vida nômade, há 10 ou 12 mil anos, as coisas teriam mudado para as mulheres. Com a domesticação de animais e agricultura, além da maior densidade populacional das sociedades, surgiram grupos especializados18. Assim também o homem descobriu sua essencial contribuição para a geração de vida e seu importante papel de reprodutor na geração de crianças, modificando a sociedade de maneira inexorável. À vista disso, “com a valorização do capital e a ciência da participação do homem na procriação, a herança tornou-se masculina. Com isso, fortaleceu-se a monogamia e o controle sobre o corpo da mulher como garantia de filhos “legítimos”19. Ainda, ressaltando o espaço da mulher nesse início de sociedade, para o pontífice Pio XI, a liberdade feminina não deve existir, pois seu lugar, dignificado por Deus, é em casa, sendo boa esposa e mãe. [...] No entanto nem essa emancipação da mulher não é verdadeira, nem razoável e digna liberdade que convém a cristã e nobre missão da mulher e esposa: é antes a corrupção da índole feminina e da dignidade materna e a perversão de toda a família, enquanto o marido fica privado de sua mulher, os filhos de sua mãe, a casa e toda a família da sua sempre vigilante guarda. Pelo contrário, essa falsa liberdade e essa inatural igualdade com o homem redundam em prejuízo da própria mulher; porque se a mulher desce daquele trono real a que dentro do lar doméstico foi elevada pelo evangelho, depressa cairá na antiga escravidão, tornando-se como no paganismo, simples instrumento do homem.20 A religião assim, de maneira negativa, teve forte influência na dominação masculina sobre a mulher, fazendo-as acreditar que seu destino natural era o espaço privado. 18 Ibidem, p. 243. 19 ROSSI, Giovana. A Culpabilização da Vítima no Crime de Estupro: Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 26. 20 PIO XI. Sobre o Matrimônio Cristão. Encíclica “Casti Connubli. 4 ed. São Paulo: Vozes, 1956, p. 33. 9 1.2 O PAPEL DO PATRIARCADO NA DOMINAÇÃO MASCULINA Segundo SAFFIOTI21, o patriarcado é entendido como um sistema de exploração do homem sobre a mulher, sendo que por sua “formação de macho”, o homem se sente livre para inferiorizar e agredir a mulher, de tal modo que a “dominação patriarcal, é influenciada pela perspectiva feminista e marxista, compreendendo violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino”22. Nessa mesma linha, AZEVEDO explana que a violência decorre de dois conjuntos de fatores. O primeiro refere-se ao que Azevedo denomina de ‘fatores condicionantes’, os quais são associados às ‘contradições da sociedade patriarcal capitalista’. Tais fatores compreendem, por exemplo, a estrutura sócio-econômica, a discriminação contra a mulher, a ideologia machista e a educação diferenciada. O segundo diz respeito a ‘fatores precipitantes’ da violência, os quais, segundo a autora, são gerados por situações do cotidiano familiar, como, por exemplo, o uso de álcool e drogas.23 Dentro dessa esfera, CHAUÍ24 compreende a violência como a dominação masculina, no qual a vítima se transforma em um objeto, perdendo assim qualquer tipo de autonomia, e que, destituindo-se de sua liberdade “as mulheres são ‘cúmplices’ da violência e contribuem para a reprodução de sua ‘dependência’ porque são ‘instrumentos’ da dominação masculina”25. Percebe-se assim que é necessário compreender um outro tipo de violência existente e não apenas a física, a chamada violência simbólica, pois a agressão psicológica, moral, que se traduzem em constantes humilhações, xingamentos, é tão frequente quanto a física, porém menos respeitada, na qual BOURDIEU explica que essa violência não se traduz na física ou sexual claramente, mas na relação do poder que 21 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna. 1987. 22 SANTOS, Cecília Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência Contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas Sobre Estudos Feministas no Brasil. Disponível <http://www.nevusp.org/downloads/down083.pdf>. Acesso 11 nov. 2018. p. 148. 23 Ibidem, p. 151. 24 CHAUÍ, Marilena. Participando do Debate sobre Mulher e Violência. In. FRANCHETTO, Bruna; CAVALCANTI, Maria Laura; HEILBORN, Maria Luiza (org.) Perspectivas Antropológicas da Mulher 4. São Paulo: Zahar, 1985. 25 SANTOS, Cecília Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. Op. cit. p. 150. 10 se encontraimplícita na sociedade. “A primazia universalmente concedida aos homens se afirmam na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte (...)”26. Nessa ótica, mulheres acabam por aceitar a inferiorização em uma relação por não querer contrariar o que já está normatizado na sociedade. O julgamento de uma mulher que sofre violência, seja ela doméstica ou sexual, ainda é muito intensa. Assim, segundo HAMPTON E CONER-EDWARDS27, essas mulheres acabam por sofrer uma ‘síndrome da mulher batida’ do qual pode derivar o ‘desânimo aprendido’ pois, julgadas pela sociedade por serem mulheres, terem uma família constituída, elas acabam por não encontrar forças nelas mesmas para sair da situação abusiva em que vivem e denunciar o agressor. Esta teoria insiste no argumento que a violência sistemática que atinge muitas mulheres diminui a sua motivação para reagirem. Este desânimo aprendido, por força de uma socialização em papéis sexuais rígidos e na satisfação das exigências do gênero masculino, passou a ser melhor compreendido, sobretudo pelo sistema criminal, quando foi admitido que as vítimas de violência doméstica sofrem da chamada ‘síndrome da mulher batida’. Os conceitos de ‘desânimo aprendido’ e ‘síndrome da mulher batida’ acabaram assim por libertar as mulheres de imagens negativas e da sua própria culpabilidade.28 A dominação masculina não está presente apenas em relações afetivas ou familiares, mas no ambiente de trabalho, na escola/faculdade, em toda a comunidade, pois o homem sempre tentou exercer seu poder e domínio sobre a mulher, no qual a violência simbólica demonstra exatamente essa lógica paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode dizer ser, ao mesmo tempo e sem contradição, espontânea e extorquida, só pode ser compreendida caso se mantenha atento aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõe29. 26 BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 45. 27 HAMPTON, Robert; CONER-EDWARDS, Alice. Physical and Sexual Violence in Marriage. In. HAMPTON, Robert. et al. Family Violence – Prevention and Treatment. Newbury park. Sage Publications. 1993. 28 DIAS, Isabel. Violência Doméstica e Justiça: respostas e desafios. Disponível <http://ojs.letras.up.pt/index.php/Sociologia/article/view/2287>. Acesso 11 nov. 2018. p. 255. 29 Ibidem, p. 50. 11 De acordo com BOURDIEU, a cultura da dominação masculina acaba por explicar a submissão e resignação das mulheres a práticas violentas e humilhantes perpetradas contra elas. Lembrar os traços que a dominação imprime perduravelmente nos corpos e os efeitos que ela exerce através deles não significa dar armas a essa maneira, particularmente viciosa, de ratificar a dominação e que consiste em atribuir às mulheres a responsabilidade de sua própria opressão, sugerindo, como já se fez algumas vezes, que elas escolhem adotar práticas submissas (“as mulheres são seus piores inimigos”) ou mesmo que elas gostam dessa dominação, que elas “se deleitam” com os tratamentos que lhes são inflingidos, devido a uma espécie de masoquismo constitutivo de sua natureza. Pelo contrário, é preciso assinalar não só que as tendências à “submissão”, dadas por vezes como pretexto para “culpar a vítima”, são resultantes das estruturas objetivas, como também que essas estruturas só devem sua eficácia aos mecanismos que elas desencadeiam e que contribuem para sua reprodução. O poder simbólico não pode se exercer sem a colaboração dos que lhe são subordinados e que só se subordinam a ele porque o constroem como poder. (...) Assim se percebe que essa construção prática, longe de ser um ato intelectual consciente, livre, deliberado de um “sujeito” isolado, é, ela própria, resultante de um poder, inscrito duradouramente no corpo dos dominados sob forma de esquemas de percepção e de disposições (a admirar, respeitar, amar etc.) que o tornam sensível a certas manifestações simbólicas do poder.30 Culpabilizar a mulher por experiencias sofridas, como o estupro, ou agressões praticadas por companheiros é visualizar apenas o micro e não o macroambiente, o qual irá mostrar como uma cultura de submissão desencadeou todo um sofrimento. Desse modo, o patriarcado surgiu “como uma organização baseada no poder do pai, na qual a descendência e o parentesco seguem a linha masculina e as mulheres são inferiores aos homens e, por conseguinte, subordinadas à sua dominação”31. Assim sendo, percebe-se que tal sistema ainda se sustenta nos dias atuais, pois além de ser relevante tal dominação para os homens, a sociedade absorveu essa cultura de tal modo que as próprias mulheres subordinadas e inferiorizadas, acabam por não compreender a situação em que se encontram, normalizando as violências sofridas e as justificando para poder se encaixar em um padrão heteronormativo da sociedade. Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais. O que pode levar a uma espécie de 30 Ibidem, p. 53. 31 Ibidem, p. 27 12 auto-depreciação, ou até de autodesprezo sistemáticos, (...). A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante, (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensa-la e para se pensar, ou melhor para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc.), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto.32 Assim o patriarcado perpetuou uma cultura onde a dominação já é efetiva apenas pelo estereótipo, além de não permitir outras visões, pois o dominado é reprimido no momento em que tenta se libertar. Desse modo a sociedade aceitou como verdade absoluta o macho alfa33, protetor da família, enquanto a fêmea se configura como aquela figura desprotegida, necessitando de toda proteção. 1.3 A SUPERAÇÃO DA DESIGUALDADE COMO CONSEQUÊNCIA DA LUTA DE GÊNERO A desigualdade de gênero ainda é muito atual, sendo necessário compreender a relevância desse estudo, que mostra para a ciência que a realidade é que o papel de cada sexo será determinado pela cultura de cada comunidade, eternizando a famosa frase de BEAUVOIR: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”34. Assim, a conceituação de gênero é no sentido de desmistificar a noção de que o masculino e o feminino são fatos biológicos ou naturais, afirmando que, em verdade, ambas as construções são originadas de fatos sociais ou sócio-culturais. Importa dizer, portanto, que a forma como essas 32 BOURDIEU. Op. cit., p. 46-47. 33 Cientificamente falando, o macho alfa não é algo pejorativo, pois diz respeito a uma matilha, por exemplo, onde terá o lobo macho dominante, que irá proteger e guiar seus companheiros. O problema está quando o macho alfa em questão é um homem, pois tais qualidades no reino animal, converte-se em arrogância, já que utilizam de sua coragem, confiança de modo a serem melhores que os outros, principalmente mulheres, chegando ao extremo da agressão sexual pelo fato de que esse homem acredita ter o poder sobre todasas outras pessoas ao seu redor. Disponível em <https://www.teclasap.com.br/alpha-male-qual-e-a-origem-e-o-significado-da-expressao/>. Acesso 19 abr. 2019. 34 SANTOS, Magda Guadalupe dos. Simone de Beauvoir. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/2081/2250> Acesso: 06 mar. 2019. https://www.teclasap.com.br/alpha-male-qual-e-a-origem-e-o-significado-da-expressao/ 13 alegorias são entendidas e valoradas depende muito da sociedade em que insertas, bem como do contexto histórico35. É necessário frisar que, na atualidade, o objetivo a ser alcançado é a desmistificação e demonstração de que ambos os sexos possuem funções de igual importância para a evolução da sociedade, pois ocorre que (...) freqüêntemente, a ênfase colocada sobre o gênero não é explícita, mas constitui, no entanto, uma dimensão decisiva da organização, da igualdade e desigualdade. As estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino36. Ainda como explica SAFFIOTI, não seria o sexo em si a determinar quem e como dominar, mas o gênero, que culturalmente insere em cada sexo o modo de se portar. Socialmente construído, o gênero corporifica a sexualidade (não o inverso) que é exercida como uma forma de poder. Logo, as relações de gênero são atravessadas pelo poder. Homens e mulheres são classificados pelo gênero e separados em duas categorias: uma dominante, outra dominada, obedecendo aos requisitos impostos pela heterossexualidade. A sexualidade, portanto, é o ponto de apoio da desigualdade de gênero.37 Ou seja, compreende-se que gênero está baseado em ações praticadas desde o início dos tempos, em que a mulher foi estereotipada como a mãe de todos, a pureza, em que prescindia que ela ficasse em casa, cuidando de seus filhos, submissa ao marido, podendo também ser, “aqui, tomado como um conjunto de papéis que são conferidos à mulher como obrigatórios e dos quais ela não pode se afastar, sob pena de perder as condicionantes que justificam o “respeito” que a sociedade lhe deve dedicar”38. Tal 35 MACHADO, Flora Barcellos de Valls. Gênero, Violência e Estupro: Definições e Consequências. Trabalho de Conclusão de Curso. – UFRGS. Porto Alegre, 2013, p. 14. 36 SCOTT, Joan: Gênero: Categoria útil para análise histórica. Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero- Joan%20Scott.pdf>. Acesso: 14 mar. 2018. 37 SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, Suely Souza. Violência de Gênero – Poder e Impotência. Rio de Janeiro, 1995, p. 23. 38 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN. Estupro Crime ou “Cortesia”? Abordagem Sociojurídica de Gênero. São Paulo: safE, 1998, p. 23. 14 comportamento ainda pode ser encontrado em certas atitudes, como o estupro, onde a objetificação da mulher é relevante. Pois, no fenômeno da violência familiar existem três variáveis (o gênero, a idade e a situação de vulnerabilidade) que são decisivas na hora de estabelecer a distribuição de poder e, consequentemente, determinar a direção que adota a conduta violenta, bem como quem são as vítimas mais frequentes39. Seguindo esse pensamento MARY WOLLSTONECRAFT40 acreditava que a independência da mulher, não apenas financeiramente mas também emocionalmente, era de extrema importância para romper ciclos de violência, ainda que “no momento em que as mulheres começam a tomar parte da elaboração do mundo, esse mundo ainda é um mundo que pertence aos homens”41, resultando no estudo de ISABEL MARTINEZ BENLLOCH42, em que se afirmou haver certos “mitos da feminilidade”, o qual resulta em perpetuar a violência, pois a mulher cresce com o entendimento de que seu lugar nessa sociedade é a de ser mãe e esposa, culminando em uma submissão perante o homem, abandonando vontades próprias para ‘o bem’ da família. A instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada exige e regula o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas e do desejo heterossexual. O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura binária resulta numa consolidação de cada um de seus termos, da coerência interna respectiva do sexo, do gênero e do desejo.43 Assim se compreende que tanto culturalmente quanto historicamente, a mulher vem sendo inferiorizada, pois há muito o homem é colocado no espaço público, tendo ele a responsabilidade pelo trabalho e a renda, sendo que a mulher se insere no espaço privado, ficando para ela o trabalho de casa e materno. 39 JESUS, Damásio de. Op. cit., p. 9. 40 WOLLSTONECRAFT, Mary. Reinvindicação dos Direitos das Mulheres. O Primeiro Grito Feminista. São Paulo: Edipro, 2015. 41 BEAUVOIR, Simone de.Op. cit., p. 15. 42 BENLLOCH, Isabel Martínez; CAMPOS, Amparo Bonilla. Sistema sexo/género, identidades y construcción de la subjetividad. Universitat de Valência, 1999. 43 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 45-46. 15 As relações de gênero foram se firmando ao longo da história, configurando-se como construções culturais de identidades masculinas e femininas, envolvendo relações de poder e impondo comportamentos aos homens e às mulheres, que nem sempre se desenvolveram por meio da coerção física, mas foram incutidos na subjetividade humana44. Para WOLLSTONECRAFT, em sua época, no século XVIII, já se questionava a falta da presença feminina no espaço público, principalmente na política, pois seria lá o local para realização de mudanças, reconhecendo assim que mulheres deveriam ter atitudes mais masculinas para poder se encaixar nos padrões exigidos para trabalhos fora do lar, acreditando, naquele tempo, que ignorar suas características femininas lhe traria melhores resultados. (...) as mulheres deveriam se tornar mais masculinas, no sentindo de buscarem o conhecimento e a ação política, já que isso era considerado masculino, porque a ideia de fragilidade e incompetência para o espaço público não algo dado, mas socialmente construído. Ela (WOLLSTONECRAFT), antes de Simone de Beauvoir que escreveu O segundo sexo em 1949, denunciou as construções sociais de gênero que inferiorizam as mulheres.45 É muito difícil para o feminino esquecer estereótipos como dona de casa, submissa, ou mãe, pois o importante, mesmo na sociedade de hoje, é que uma ‘moça’ seja “bonita, recatada e do lar”, como demonstrou uma recente reportagem da Revista Veja46, ao se referir à ex primeira-dama, Marcela Temer, na tentativa de deslegitimar a ocupação por uma mulher do cargo político mais importante do país. A matéria visou ressaltar, em pleno século XXI, que o papel adequado para uma mulher é o de esposa, mãe e seu espaço de ação deve ser o da casa e não o político, devendo portar-se de forma recatada, atuando de forma subordinada aos padrões considerados ideais por uma sociedade conservadora47. 44 MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. A Construção da Equidade nas Relações de Gênero e o Movimento Feminista no Brasil: Avanços e Desafios. Disponível em <https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/cd/article/view/232/4%2009>. Acesso 02 mar. 2019. p. 93. 45 MOTTA, Ivania Pocinho. A atualidade da obra de Mary Wollstonecraft. São Paulo: Boitempo, 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 026X2017000100375> Acesso: 14 fev. 2019, p. 377. 46 REVISTA VEJA: Marcela Temer: bela, recatada e “dolar”. Disponível em <https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/> Acesso: 19 abr. 2019. 47 MOTTA, Ivania Pocinho. Op. cit., p. 376. https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/ 16 Caso contrário, haverá um julgamento de sua índole, ou seja, “a igualdade de gênero, a fim de se tornar realidade, exige que homens e mulheres rompam com as heranças de costumes cuja atribuição de sentidos de vida já não mais coaduna com o presente”48. Assim, faz-se necessário uma educação para ambos os gêneros, onde se entenda que corpo não define o seu lugar no mundo, e sim a inteligência emocional, física e individual de cada um. A naturalização dos papeis e das relações de gênero faz parte de uma ideologia que tenta fazer crer que esta realidade é fruto da biologia, de uma essência masculina e feminina, como se homens e mulheres já nascessem assim. Ora, o que é ser mulher e ser homem não é o fruto da natureza, mas da forma como as pessoas vão aprendendo a ser, em uma determinada sociedade, em um determinado momento histórico. Por isso, desnaturalizar e explicar os mecanismos que conformam esses papeis é fundamental para compreender as relações entre homens e mulheres, e também seu papel na construção do conjunto das relações sociais.49 Assim, por entendimento comum, gênero é assimilado como algo construído culturalmente pela sociedade, pois o sexo biológico nada influi no comportamento masculino ou feminino, sendo este determinado como natural e única influência na divisão de papéis sociais. “(...)eu acho que discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue”50. Para BUTLER51, o gênero em si não é configurado apenas pela cultura, mas também sofre influência política, sendo utilizado dessa forma como reguladores jurídicos e normativos. “Mais particularmente, ele mostra que as condições sob as quais 48 BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha – Lei n. 11.340/2006: Aspectos Assistenciais, Protetivos e Criminais da Violência de Gênero. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 18 49 FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. O que é ser mulher? O que é ser homem? Subsídios para uma discussão as relações de gênero. Cadernos Sempreviva. São Paulo: SOF (Sempreviva Organização Feminista), 1997, p. 03. Apud ROSSI, Giovana. A Culpabilização da Vítima no Crime de Estupro: Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 21. 50 PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os Corpos se Tornam Matéria: Entrevista com Judith Butler. Disponível <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 026X2002000100009>. Acesso 14 fev. 2019. p. 163. 51 BUTLER, Judith. Corpos que Pesam: Sobre os Limites Discursivos do ‘Sexo’. In: Louro, Guacira Lopes (Org.) O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 17 os corpos materiais, sexuados, tomam forma estão relacionadas a sua existência, à possibilidade de serem apreendidos e à sua legitimidade”52. Para a autora, existe uma “matriz heteronormativa”, ligando sexo, gênero e a prática sexual, sendo visível que atributos femininos ou masculinos não vêm propriamente do corpo, e sim de práticas construídas histórica e culturalmente, fazendo com que a sociedade normatize certas práticas, criando expectativas em decorrência delas. O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem que designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo está para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou um “sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.53 Na atualidade, muito se vê sobre essa mistificação do gênero, do qual VAGGIONE54 entende que um país com a moral apoiada na religião acaba por ignorar a legislação vigente, fazendo com que direitos sexuais sejam julgados e reprovados. No Brasil, a ‘ideologia de gênero’55 é mostrada por conservadores fervorosos como uma ameaça à moral e aos bons costumes, sendo que um ‘cidadão de bem’ não deve estudar, nem tomar conhecimento sobre tal ideologia, pois “o foco na moral sexual da agenda conservadora tem tomado como alvo especialmente os direitos relacionados à equidade de gênero e à diversidade sexual e de gênero”56. Ressalta-se aqui que o surgimento da 52 PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Op. cit., p. 158. 53 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Op. cit., p. 25. 54 VAGGIONE, Juan Marco. La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadania religiosa. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 83332017000200303&script=sci_abstract&tlng=es> Acesso: 06 mar. 2019. 55 “A filósofa Arlene Bacarji, define ideologia de gênero como: Uma ‘ideologia’ que atende a interesses políticos e sexuais de determinados grupos, que ensina, nas escolas, para crianças, adolescentes e adultos, que o gênero (o sexo da pessoa) é algo construído pela sociedade e pela cultura, as quais elas acusam de patriarcal, machista e preconceituosa. Ou seja, ninguém nasce homem ou mulher, mas pode escolher o que quer ser. Pois comportamentos e definições do ser homem ou mulher não são coisas dadas pela natureza e pela biologia, mas pela cultura e pela sociedade, segundo a ideologia de gênero”. Disponível em <https://www.politize.com.br/ideologia-de-genero-questao-de-genero/>. Acesso: 19 abr. 2019. 56 FACCHINI, Regina; SÍVORI, Horacio. Conservadorismo, direitos, moralidades e violência: situando um conjunto de reflexões a partir da Antropologia. Disponível em: https://www.politize.com.br/ideologia-de-genero-questao-de-genero/ 18 ‘ideologia de gênero’ nada mais é do que uma maneira de erradicar qualquer tipo de preconceito relacionado a orientação sexual e a desigualdade de gênero. Para BEAUVOIR, a mulher teve que assumir por muito tempo o papel de inferior, de incapaz na sociedade, do ‘outro’, o ‘segundo sexo’, sendo que todos os seus comportamentos e função social foram determinados por homens. “NÃO SE NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER” traduz exatamente o que ocorreu e ainda ocorre no mundo, sendo esta a melhor definição de o que é gênero, pois é necessário se moldar ao que existe dentro do padrão hétero para ser aceito em uma comunidade. Assim, “o gênero seria um processo ambíguo de autoconstrução, presente do verbo tornar-se, que abarcaria o ato proposital de se assumir, por meio de atos e habilidades, um estilo corpóreo de significados”57. Ocorre então que as mulheres, ainda hoje, possuem uma “identidade reconhecida: a da opressão, da exploração e da submissão”58, mas na atualidade muitas já não aceitam serem vistas apenas como um objeto, lutando assim por um espaço digno e respeitoso para efetivamente participarem de uma sociedade equalitária. Por fim, esse trabalho irá abordar a questão gênero como uma construção cultural, ou seja, a identidade feminina e masculina que a sociedade impõe às pessoas de sua comunidade, dominando-as para agirem de acordo com o que foi pré-estabelecido como correto, pois “ao se rever a história da humanidade, pode-se perceber como estas relações de gênero foram sendo construídas, paulatinamente, pela sociedade, sendo resultado das relações sociais”59. Assim, observa-se: a categoria analítica Gênero como uma forma de indicar construções culturais – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados a homense às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais e culturais das identidades subjetivas <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332017000200301> Acesso: 04 mar. 2019. 57 SANTOS, Magda Guadalupe dos. Op. cit., p. 108-122. 58 MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. Op. cit., p. 93. 59 Ibidem, p. 98 19 de homens e de mulheres. Gênero é, segundo esta definição, uma categoria social e cultural imposta sobre um corpo sexuado.60 Para BENEDICT61, o aprendizado de gênero é repassado de pai para filho de maneira que se legitima a dominação masculina sobre a feminina. Percebe-se assim que a submissão da mulher teve origem na religião, ensinado aos seus seguidores que o homem, por direito divino, é o dono do lar e o responsável pelas mulheres que lá habitam. Consequentemente, assim surgiu o sistema patriarcado, que de forma direta, é a dominação do homem perante a mulher, cultura essa até hoje aceita e disseminada, pois ainda é muito difícil para a mulher se desvincular da imagem submissa, bastante valorizada em nossa sociedade. Por esse motivo, compreender o gênero é tão importante, pois, neste trabalho, demonstrou-se que a é a cultura que irá determinar o papel da mulher e do homem na sociedade, e que em uma comunidade apoiada na religião, o conservadorismo será predominante. 60 PACHECO, Leonora Rezende; MEDEIROS Marcelo. Compreendendo a Violência Doméstica: Significados Segundo Mulheres Vítimas de Agressão. Disponível em <http://www.sbpcnet.org.br/livro/63ra/conpeex/mestrado/trabalhos-mestrado/mestrado-leonora- rezende.pdf>. Acesso: 11 nov. 2018. 61 BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Lisboa: Livros do Brasil, 2005. 20 2 OS MOVIMENTOS FEMINISTAS E A LUTA CONTRA A CULTURA DO ESTUPRO A maior violência emocional e física que uma mulher pode sofrer em sua vida é o estupro, pois além de ser denegrida física e sexualmente pelo agressor, ainda terá toda uma sociedade para enfrentar, violência essa que existe desde o começo do mundo. Durante muito tempo, o estupro sequer era condenável moral ou criminalmente, sendo visto até mesmo como um “prêmio”. Em casos de guerras, por exemplo, o vencedor detinha o direito de ter relações sexuais, independentemente de qualquer consentimento, com as mulheres da parte derrotada. Nesse contexto, o estupro era relevado pelos juízes, pois representava uma espécie de “posse de território”. 62 De início, a religião, como já citado, teve muita influência na imagem santificada da mulher, pela qual ela deve ser sempre recatada quando o assunto é sexo, não sabendo, ou fingindo não saber nada sobre tal assunto. Assim, para Agostinho: Marcaram decisivamente o conjunto das éticas cristãs, dela resultando a concepção de um mundo entrevado pelas aflições da carne, a visão do homem como um ser fragilizado pelo desejo e a identificação da virgindade, pureza e salvação. Foi também a sexualização do pecado original que estimulou a imagem diabolizada da mulher em oposição à imagem do “homem espiritual”, mais infenso ao pecado, embora responsável por ele sempre que agisse como Adão.63 É de conhecimento que, entre os séculos XVI e XVII, não era a agressão que a mulher sofria que seria levada em conta, mas sim a violação grave da propriedade particular do homem, fosse o pai, noivo ou marido, pois em tal época a ‘pureza’ da mulher deveria ser preservada para assim realizar um bom casamento, ou seja, ela era apenas uma moeda de troca para vida estável de sua família, sendo que o ataque a sua 62 GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda. Estudos Feministas: Por um direito menos machista. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 42. 63 VIEIRA, Matheus Machado. Viciadas e Perversas ou Honestas e Respeitosas?? Apresentação do matrimônio, da mulher e da família em Ponta Grossa (1930-1945). Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/35248/R%20-%20D%20- %20MATHEUS%20MACHADO%20VIEIRA.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso 11 nov. 2018.p. 92. 21 virgindade, mesmo que brutal e contra a sua vontade, a fazia perder seu valor, sua ‘inocência’. Desse modo, BEAUVOIR entende o sexo feminino como o outro, assim, Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência a sente como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher, é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá- la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito, que se põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina?64 Nos séculos XVI e XVII, tendo a violência contra a mulher sido criminalizada, as feministas iniciaram a luta contra a moralidade familiar em desfavor dos direitos das mulheres, sendo que tais questionamentos levaram a êxito algumas mudanças no Código Penal, como a possibilidade de se perdoar o crime de agressão sexual com o casamento da vítima com seu agressor.65 Já no Brasil, o texto original do Código Penal de 1940, tratava o estupro de uma forma muito subjetiva e restrita, e nos artigos 213 e 214 do Título VI, coloca esse crime como algo que deveria ser ‘permitido’ pela vítima, assim como sua ocorrência só poderia existir mediante grave ameaça66, estando visível as falhas encontradas nessa legislação no mundo atual. Assim, a alteração de nossa lei penal foi necessária, pois atualmente o crime estupro ainda se enquadra no mesmo Título VI, porém com outro nome, como ‘dos crimes contra a Dignidade Sexual’, e ‘dos crimes contra a Liberdade Sexual’, estabelecendo uma pena mínima de 6 (seis) anos e máxima de 30 (trinta) anos caso a agressão resulte morte. 64 BEAUVOIR, Simone de. Op. cit., p. 23. 65 SARDENBERG. Cecilia M. B. Da Violência Simbólica de Gênero à Violência Sexual Contra Mulheres: A Lei Anti-Baixaria e o Caso da Banda New Hit. Disponível em <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28011>. Acesso 14 fev. 2019. p. 3. 66 OLIVEIRA, Mariana C. Rios Silveira de. O Crime de Estupro: Evolução História e Distinção em Relação à Contravenção Penal de Importunação Ofensiva ao Pudor. Disponível em: <revistas.unifenas.br/index.php/BIC/article/download/184/140>. Acesso 22 abr. 2019. 22 Dessa maneira, de acordo com NUCCI: A disciplina sexual e o mínimo ético exigido por muitos à época do Código Penal, nos idos de 1940, não mais compatibilizavam com a liberdade de ser, agir e pensar, garantida pela Constituição Federal de 1988. O legislador brasileiro deve preocupar-se (e ocupar-se) com as condutas efetivamente graves, que possam acarretar resultados igualmente desastrosos para a sociedade, no campo da liberdade sexual, deixando de lado as filigranas penais, obviamente inócuas, ligadas a tempos pretéritos e esquecidos.67 Sabe-se que o crime de estupro ainda é muito estigmatizado, uma vez que sociedade, como já comentado, tende a primeiro achar meios de culpar a vítima para depois olhar para o agressor, sendo exatamente esse o motivo pelo qual muitas mulheres acabam por não realizar as denúncias desses crimes nas delegacias, pois não querem reviver a violência já sofrida. No Brasil, estima-se que a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas sejam estupradas no país,sendo 89% delas mulheres, segundo estudo divulgado pela IPEA (2014). Apenas 10% dos casos são reportados a polícia. Crianças e adolescentes representam mais de 70% das vítimas. A amostra também aponta que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima.68 MENACHEM AMIR69, em seu trabalho, que analisou casos de estupro na cidade de Filadélfia, Estados Unidos, acabou por contrariar todos os preconceitos existentes, mostrando que a realidade de tal crime é que “mais da metade dos estupros aconteciam na casa da vítima, o que também desmistificou o comportamento de risco, como as roupas que a mulher usava ou a hora em que estava na rua”70. Percebe-se assim, que a condição feminina, por muito tempo, ficou ligada as realizações e desejos masculinos, em que a mulher não tinha opinião nem vontade, já que o estupro poderia existir no âmbito do casamento, pois o marido, pessoa responsável 67 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes Contra Dignidade Sexual. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. p. 24. 68 ROST, Mariana. VIEIRA, Miriam Steffen. Convenções de Gênero e Violência Sexual: A Cultura do Estupro no Ciberespaço. Disponível em <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/13881>. Acesso 11 nov. 2018. p. 271. 69 MENACHEM, Amir. Victim Precipitated Forcible Rape. Disponível em: <https://scholarlycommons.law.northwestern.edu/jclc/vol58/iss4/4> Acesso: 27 mar. 2019. 70 ROST, Mariana. VIEIRA, Miriam Steffen. Op. cit., p. 264-265. 23 pela mulher, tinha o poder de cobrar serviços sexuais de sua esposa, que segundo o Código Civil de 1916, ainda era considerada como alguém relativamente capaz, devendo ser dependente de seu pai, marido ou alguma figura masculina., para diminuir mais ainda suas vontades próprias. 2.1 OS MOVIMENTOS FEMINISTAS De início os movimentos se diferenciavam como ‘movimento feminista’ e ‘movimento de mulheres’ pois aquele tinha uma vertente mais política, enquanto este estava ligada mais a área social, familiar das mulheres. Na atualidade ambos são importantes para a luta feminista. Os movimentos feministas apresentam um caráter mais político no sentido de busca a equidade nas relações de gênero e, portanto, abordar temas que envolvem política, direito sobre o corpo, economia, etc. Já os movimentos de mulheres, no Brasil, estavam ligados às pastorais sociais das Igrejas e ocuparam-se mais com demandas voltadas para a melhoria das condições de vida das famílias, como saneamento, direito à saúde, alimentação, habitação. Mesmo assim, no Brasil, esses movimentos se uniram, no final da década de 1970, para lutar por bandeiras comuns envolvendo a busca de direitos para as mulheres.71 Sabendo que “o movimento feminista constituiu-se como um movimento humanizador”72, a importância da unificação feminina se dá pelo fato de: Embora também omitido dos livros de história padrão, o trabalho desconhecido ou ignorado de centenas de feministas do século XIX [...] melhorou óbvia e expressivamente a condição da metade feminina da humanidade. No âmbito doméstico, estas “mães” do moderno feminismo liberaram as mulheres das leis que permitiam o espancamento das esposas. Do ponto de vista econômico, ajudaram a libertar as mulheres das leis que davam aos maridos o controle sobre a propriedade das esposas. Também tornaram acessíveis às mulheres profissões como direito e medicina, e deram a elas acesso à educação superior, enriquecendo em muito a sua vida e a de suas famílias.73 71 MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. Op. cit., p. 92. 72 Ibidem, p. 99. 73 EISLER, Riane. O Cálice e a Espada: Nosso Passado, Nosso Futuro. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p. 218. 24 Assim, tendo início no século XIX onde as mulheres lutavam pelo direito ao voto, à educação e a abolição de escravos; o movimento se mostrou de extrema importância, tanto naquela época, como na atualidade. Sendo a luta feminista uma constante, durante o século XX, esses movimentos tiveram apoio dos movimentos de direitos humanos, bem como a entrada da mulher ao mercado de trabalho que lhe trouxe independência financeira, tendo grande influência na emancipação feminina. Na América Latina, a inclusão da mulher no mercado de trabalho marcou o início do movimento feminista, na década de 1970, nascendo “em meio à repressão e ao autoritarismo dos regimes militares”74, de modo que seu propósito era ser resistência às ditaduras da época. No Brasil, ainda que de maneira menos abrangente e afrontosa, houveram algumas mulheres que já não aceitavam seu lugar na sociedade e lutavam contra sua dominação, a exemplo de Senhorinha Molta Diniz, que em 1873 fundou um jornal de nome “O sexo feminino”, no qual falava sobre as condições da mulher na época, assim como divulgava causas importantes. Foi o primeiro jornal com essas características, tendo especial relevância para futuros movimentos. De tal modo também, foi no contexto da abolição da escravatura brasileira que as mulheres começaram a perceber que também vivenciavam situação análoga, pois estavam presas às amarras que lhes eram impostas pelos laços familiares e sociais. Diante de tal constatação, iniciaram um lento processo de busca pela emancipação feminina75. Com isso, outras figuras importantes do feminismo brasileiro foram aparecendo com o passar dos anos, como Nísia Floresta Augusta, que viveu no período do Império e fundou no Brasil a primeira escola para meninas. Tal movimentação pode ser categorizada como a primeira onda do movimento feminista no país, onde o foco estava nos direitos sociais e econômicos. 74 MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. Op. cit., p. 101. 75 Ibidem, p. 103. 25 (...) em meados do século XIX, as postulações relacionadas aos direitos das mulheres começaram a ocorrer de maneira mais estruturada, com a criação de entidades coletivas e o surgimento de demandas uniformes, bem como de esforços teóricos para dar sustentação às cobranças políticas relacionadas à situação social das mulheres. Começa a nascer aí o movimento denominado feminismo, que até hoje é atuante em busca da emancipação das mulheres.76 Na Primeira República, as mulheres brancas pobres, indígenas e negras precisavam trabalhar para ajudar na renda da casa. Porém, para as classes mais abastadas, essa opção não era viável, assim como também o direito ao voto ainda não havia sido conquistado. “Mas é preciso mencionar que já em 1910 havia sido criado o Partido Republicano Feminino, cujo objetivo era conquistar o direito ao sufrágio e a emancipação das mulheres. Como estratégia, as mulheres participavam de eventos de visibilidade para a imprensa”77. Para lutar por igualdade de tratamento na área trabalhista, e pelo sufrágio feminino, dois nomes brasileiros foram de suma importância, como Leolinda Figueiredo Daltro, fundadora do, já mencionado, Partido Republicano Feminino, e Bertha Lutz, a qual funda a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, sendo uma das “responsáveis pelo abaixo-assinado levado ao Senado em 1927, pedindo a aprovação do Projeto de Lei que garantia às mulheres o direito de voto, cujo autor era o Senador Juvenal Lamartine”.78 No período da Proclamação da República, no século XIX, as mulheres encontraram a oportunidade para também manifestarem seus desejos de mudança. No Brasil, houve um intenso movimento reivindicatório do direito de sufrágio, que foi impulsionado por um momento peculiar da História política brasileira: a Proclamação da República, em novembro de 1889. Inflamado por ideias abolicionistas e de igualdade, o republicanismo atraiu a atenção de muitas mulheres, que apoiaramo movimento republicano, desejando elas mesmas os ideais que eram por este propagados.79 76 SIQUEIRA, Camilla Karla Barbosa. As Três Ondas do Movimento Feminista e suas Repercussões no Direito Brasileiro. Disponível em <https://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/w8299187/ARu8H4M8AmpZnw1Z.pdf>. Acesso: 11 nov. 2018. 77 MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. Op. cit., p. 103. 78 SIQUEIRA, Camilla Karla Barbosa. Op. cit. 79 Idem. 26 O voto feminino vem como uma conquista na Era Vargas80, além de avanços nos direitos trabalhistas, principalmente para as mulheres, que conseguiram trabalhos melhores pagos do que o de “chão de fábrica”. Inicialmente deve-se frisar que as respostas das mulheres à opressão estrutural do patriarcado e à dominação masculina sempre escoaram no silêncio da história de forma apagadas e esquecidas pela voz grave dos dominantes. Possíveis registros e representações das lutas das mulheres foram neutralizados, de forma que não é possível afirmar certamente sobre a existência de grupos organizados de mulheres que se opunham à desigualdade, apenas personalidades e ataques de forma individualizada, mascarando seu aspecto de gênero.81 A ditadura militar no Brasil reavivou lutas feministas, levando mulheres a lutarem por um país democrático. Considerando que muitas dessas mulheres foram levadas ao exílio, “em sua maioria na Europa, colocou-as com os movimentos feministas de lá. Ao retornarem ao Brasil, trouxeram novas ideias e avaliações sobre o movimento no país. Isso contribuiu para uma visão mais clara e para a elaboração de estratégias para a construção do movimento feminista brasileiro”82. Assim, com novos pensamentos, o direito ao próprio corpo, as escolhas, ao uso de anticoncepcionais, a década de 1960 deu início à segunda onda do movimento feminista. Nessa época o importante foi a liberdade feminina em relação às obrigações domésticas, sendo pautada também a violência contra a mulher, onde via-se a necessidade da interferência pública em assuntos considerados privados. “A reivindicação das feministas era, portanto, bastante voltada a questões de violência sexual e familiar contra a mulher, alegando-se que era uma questão a ser publicamente discutida e solucionada”.83 Nessa mesma época, o movimento feminista fez com que muitas mulheres se reunissem de forma ativista a favor da liberdade sexual da mulher, de modo a colocar em foco o estupro com o slogan ‘O PESSOAL É POLÍTICO’, pois assim falavam, entre 80 BEZERRA, Juliana. Feminismo no Brasil. Disponível em <https://www.todamateria.com.br/feminismo-no-brasil/>. Acesso: 11 nov. 2018. 81 BITTENCOURT, Naiara Andreoli. Movimentos Feministas. Disponível em <http://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/viewFile/16758/11894>. Acesso: 11 nov. 2018. 82 MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. Op. cit., p. 104. 83 SIQUEIRA. Op. cit. 27 tantos outros assuntos, como a família, por exemplo, do estupro marital, sendo relevante notar que uma de suas pautas era mostrar que, na realidade, o estupro não era cometido por motivação sexual, mas sim com a intenção de dominar a vítima. A terceira onda abrange as tentativas de desconstrução da categoria “mulher” como um sujeito coletivo unificado que partilha as mesmas opressões, os mesmos problemas e a mesma história. Trata-se de reivindicar a diferença dentro da diferença. As mulheres não são iguais aos homens, na esteira das ideias do feminismo de segunda onda, mas elas tampouco são todas iguais entre si, pois sofrem as consequências da diferença de outros elementos, tais como raça, classe, localidade ou religião.84 A terceira onda citada traz a unificação do movimento feminista, entendendo que as mulheres buscam alguns direitos iguais, porém também possuem demandas diferentes, como as mulheres negras, as mulheres pobres, indígenas, etc. Desse modo, o movimento compreende a necessidade da reivindicação em que se unem todas as mulheres, mas também a excludente positiva da mulher negra, como já citado. O movimento feminista transformou profundamente a condição das mulheres em diversos países e permanece mobilizando lá onde a dominação masculina ainda conserva sua força. É cada vez mais raro que o reconhecimento de suas conquistas e de suas lutas a favor da liberdade e da igualdade não seja reconhecido. Entre os cidadãos dos países ocidentais, somente um pequeno número rejeita as conquistas e as ideias do feminismo. O sucesso deste é tão completo que muitas jovens mulheres consideram evidentes as liberdades que o movimento lhes permitiu conquistar (...)85. As feministas atualmente cada vez mais lutam juntas para a desmistificação do papel e do lugar da mulher, se ela é boa ou não para casar, se ela se dá ou não ao respeito, lutando assim pela conscientização e pela importância do respeito ao corpo alheio, sendo esse movimento de grande relevância para o aumento de denúncias em casos de violências contra a mulher. 84 Idem. 85 TOURAINE, Alain. O Mundo das Mulheres. Petrópolis. Vozes. 2007. p. 19. 28 2.2 A CULTURA DO ESTUPRO Para entender a definição de cultura do estupro, é necessário primeiramente definir o que é uma cultura. Assim “chamar uma determinada prática social de cultura, implica atribuir-lhe uma série de fatores que exprimem que essa conduta caracteriza-se, entre outras coisas, por ser algo feito de maneira corriqueira e não listado como raras exceções, colocando essa ação como uma atividade humana”86. É preciso também ter um entendimento mais aprofundando do que significa para o Código Penal Brasileiro o estupro, sendo que de acordo com o seu texto, tal violência sexual é considerada um crime gravíssimo (podendo chegar a pena máxima de 30 anos, caso resulte em morte) o que visa proteger a liberdade e dignidade sexual da pessoa. Percebe-se com isso que o responsável por tal ato, segundo a lei, deve ser punido de maneira severa, porém o que se constata em nossa sociedade é o julgamento em relação à vítima e a displicência com a qual o criminoso é tratado. Segundo dados da ONU (2000)87 um quarto de todas as mulheres do mundo são estupradas ao menos uma vez na vida, no qual, dessas, apenas 10% irão realizar uma denúncia oficial (FBSP)88. Como as mulheres foram treinadas para aceitar a culpa e cultivar esse ódio recíproco, que aumenta a competição e acaba com a sororidade; é natural o homem não ser responsabilizado pelos atos. Assim, vê-se repetidamente as mulheres serem culpadas, por exemplo, pelos estupros, por usarem uma roupa ‘curta’ ou ‘decotada’, ou por estarem desacompanhadas em horários e locais ‘inadequados’.89 Então é possível compreender a cultura do estupro como atitudes perpetradas pela sociedade para normalizar as agressões sexuais de que as mulheres são vítimas, impondo esse comportamento masculino como instintivo e natural. De tal modo que 86 SOUSA. Renata Floriano de. Cultura do Estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Disponível em <http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p9>. Acesso 11 nov. 2018. p. 10. 87 ONU Mulheres. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-divulga-estatisticas- abrangentes-sobre-as-mulheres/> Acesso: 14 mar. 2018. 88 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2017/10/FBSP_indice_propensao_apoio_posi coes_autoritarios_2017_relatorio.pdf> Acesso: 14 mar. 2018. 89 GOSTINSKI; MARTINS. Op. cit., p. 17. 29 pode ser “denominado cultura do estupro o conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerânciae o estímulo à violação sexual”90. Tal cultura também é perpetrada pela mídia, seja por meio de músicas, filmes, séries, comerciais, novelas, entre tantos outros meios, os quais romantizam o comportamento violento do homem e objetificam a mulher. ‘cultura do estupro’, ou seja, de “[...] um complexo de crenças que encoraja a agressão sexual masculina e sustenta a violência contra mulheres (e meninas)” e que tem como pilares a misoginia e o sexismo. Esse ‘complexo de crenças’ vigora em sociedades nas quais a violência é vista como ‘sexy e a sexualidade como violenta’ e que fecham os olhos para “[...] o terrorismo físico e emocional contra mulheres (e meninas), sustentando-o como norma”.91 Muitos casos já ocorreram na mídia onde a violência e o assédio contra a mulher foi relativizado ou completamente ignorado pelo fato único do comportamento da vítima, de sua vestimenta, entre outros inúmeros argumentos falhos que nossa sociedade ainda tenta encontrar para isentar a culpa do agressor, pois, no debate, a percepção do estupro é atravessada por moralidades sobre a sexualidade feminina. No campo do direito, a jurista Vera de Andrade (1997) chama a atenção para este procedimento em processos de estupro: atravessados por moralidades, promovem uma inversão dos papeis e do ônus da prova, resultando numa culpabilização das vítimas92. É possível perceber também o fator dominante que leva um homem a realizar tal agressão. A máxima de que – todo estupro é um exercício de poder – foi formulada por Susan Brownmiller (1975) em seu livro “Against our will: men, women and rape”, no qual a feminista estuda a história e as várias funções do estupro na guerra, argumentando que esse tipo de violência opera uma função de demonstração de força, manifestando-se em atos de dominação e subjugação que usam o corpo feminino a fim de perpetuar uma hierarquia social fundamentada nas relações de gênero.93 É importante compreender que a figura do estuprador não deve ser aquela idealizada no imaginário, no qual se pensa em um possível monstro, pois a realidade é 90 SOUSA. Renata Floriano de. Op. cit., p. 13. 91 SARDENBERG. Cecilia M. B. Op. cit., p. 1. 92 ROST, Mariana. VIEIRA, Miriam Steffen. Op. cit., p. 269. 93 Ibidem, p. 265. 30 que esses homens, de fato monstros nas visões, são pessoas normais, de capacidade plena, tendo consciência de seus atos, autonomia para discernir certo e errado e entender o significado da palavra não. Considerar o comportamento predatório do agressor sexual vai muito além de classificá-lo através do crime previsto no Código Penal ou como o portador de qualquer doença, transtorno ou anomalia prevista na medicina psiquiátrica vigente. Isso porque os estupradores encontram- se em todos os lugares e classes da sociedade94. De acordo com SAFFIOTI e ALMEIDA, não existe uma possibilidade de estereotipar o agressor sexual, pois: Nunca se conseguiu traçar o perfil do agressor físico, sexual ou emocional de mulheres. Do ponto de vista sociológico, eles são cidadãos comuns não só na medida em que têm, via de regra, uma ocupação e desempenham corretamente outros papéis sociais, mas também porque praticam diferentes modalidades de uma mesma violência estrutural. Se não apenas as classes sociais são constitutivas das relações sociais, estando neste caso também o gênero e a raça/etnia, não há razão para se buscarem características especificas dos agressores, pelo menos da perspectiva aqui assumida. A Psicologia fez numerosas tentativas de detectar as especificidades do agressor, com resultado negativo. Ou seus instrumentos de mensuração do que se considera anormalidade são insuficientes para alcançar esse objetivo, ou o agressor é normal. Do ângulo sociológico aqui esposado, não faz sentido procurar características individuais no agressor, quando a transformação de sua agressividade em agressão social é socialmente estimulada.95 Para SOUSA, existe uma dificuldade em provar a ocorrência de um estupro, pois a sociedade já tem em seu imaginário como deve se portar e ser uma vítima de agressão sexual. A dificuldade de provar que um ato sexual é, na realidade, estupro, vem da barreira criada através do julgamento da sociedade. Uma sociedade que idealiza a vítima de estupro com critérios tão rigorosos, que são quase intangíveis, e, ao mesmo tempo, que cria a imagem de um estuprador bestial que fica na espreita de um beco escuro, esperando pela oportunidade de levar a cabo seu desejo. Essa construção social da imagem da vítima, assim como das circunstâncias em que a sociedade em geral configura o estupro como tal, acaba por encobrir todo um modus operandi de estupradores que não são reconhecidos como estupradores.96 94 SOUSA. Renata Floriano de. Op. cit., p. 12. 95 SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, Suely Souza. Op. cit., p. 138. 96 Ibidem, p. 22. 31 Assim, esses agressores se legitimam no fato da sociedade incentivar uma vida sexual ativa para homens, colocando-os como detentores do poder sexual, determinando quando e como uma relação sexual irá ocorrer, não dando oportunidade para a ‘parceira’ consentir ou não, sendo que muitas dessas mulheres acabam por serem revitimizadas quando julgadas pela sociedade, seja pelo fato de onde estavam, pela roupa que usavam, se estavam bêbadas ou não, etc. Entende-se assim que “nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos mais dotados de maior instrumentalidade, utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias”97. Ocorre que para haver mudanças nesses padrões, será necessária a desconstrução da heteronormatividade: Somente com a desconstrução de padrões que justificam qualquer tipo de dominação masculina que a cultura do estupro tenderá a inanição ou a ser deliberadamente aniquilada. Dessa forma, ao perder seu principal alicerce, a saber – a ideia de que homens têm direito a ter acesso livre ao corpo da mulher – a cultura do estupro também tem eliminada a justificativa para que a violência sexual seja, de alguma forma, aceita ou tolerada pela sociedade.98 Na Bahia, estado que possui em sua Constituição Estadual, no art. 282, a garantia da imagem da mulher, impedindo a discriminação sexual, sendo assim a Constituição mais avançada no Brasil referente aos direitos da mulher. Assim, sancionou a Lei n. 12.573 em 11 de abril de 2012, do qual dispõe sobre a proibição do uso de recursos públicos para contratação de artistas que, em suas músicas, desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres a situação de constrangimento, ou contenham manifestações de homofobia, discriminação racial ou apologia ao uso de drogas ilícitas99. Essa lei entrou em vigor no mesmo ano em que houve um escândalo com uma banda formada na cidade de Salvador, na qual parte de seus integrantes estupraram duas menores, fãs do conjunto. 97 FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade - Livro I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 98. 98 SOUSA. Renata Floriano de. Op. cit., p. 28. 99 SARDENBERG. Cecilia M. B. Op. cit., p. 11. 32 A polêmica em torno do caso se deu pelo fato de que as meninas entraram no ônibus, apenas para tirar fotos e conseguir autógrafos, relevante frisar, por vontade própria. Seguidores assíduos da banda, em sua maioria meninas e mulheres, fizeram campanha em frente a delegacia que tais integrantes se encontravam detidos, para implorar pela liberdade desses homens ‘inocentes’, pois na concepção dessas fãs, eles nada tinham feito, já que a entrada das crianças no ônibus, como já citado, foi por vontade própria. Tal
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