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M3 Literatura Brasileira CARLOS ANTÔNIO SIMÕES Estilos de Época Modernismo e Tendências Contemporâneas I Introdução ........................................................ 3 II O Modernismo no Brasil ................................... 5 III A Semana de Arte Moderna ............................. 8 IV Grupos e Tendências do Modernismo ............ 11 V A Evolução do Modernismo........................... 13 A re pr od uç ão p or q ua lq ue r m ei o, in te ira o u em p ar te , v en da , ex po si çã o à ve nd a, a lu gu el , aq ui si çã o, o cu lta m en to , em pr és tim o, t ro ca o u m an ut en çã o em d ep ós ito s em au to riz aç ão d o de te nt or d os d ire ito s a ut or ai s é c rim e pr ev is to no C ód ig o P en al , A rti go 1 84 , p ar ág ra fo 1 e 2 , c om m ul ta e p en a de re cl us ão d e 01 a 0 4 an os . Anotações Tecnologia ITAPECURSOS 3 Literatura M3 ESTILOS DE ÉPOCA MODERNISMO E TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS I INTRODUÇÃO 1 AS VANGUARDAS EUROPÉIAS 1.1 A Nova Fisionomia do Século XX Os primeiros decênios do século XX representam o início de uma nova era na história do homem. As transformações provocadas na vida humana pela crescente industrialização, pelo rápido progresso das Ciências Físicas e Biológicas, pelo desenvolvimento da Psicologia; as inovações da Arquitetura; o surgimento do automóvel, da televisão, do cinema, do rádio, do avião; a difusão e o aperfeiçoamento dos meios de comunicação em geral tudo isso deu uma feição particular à cultura do século XX. Ao lado desse progresso material proporcionado pelo desenvolvimento científico e tecnológico, ocorreram entretanto graves agitações sociais e políticas, nas quais a principal foi a Primeira Guerra Mundial (19141918) cujos trágicos episódios marcaram profundamente o clima espiritual da época, provocando um estado geral de angústia e inquietação. Desde cedo, manifestaramse, nas artes, sinais de que essa civilização que estava surgindo exigia outros modos de expressão, pois os que existiam não eram mais capazes de representar a nova realidade. A ânsia de buscar novos caminhos para a manifestação artística da experiência humana explica o aparecimento de uma série de mov imentos, principalmente nas artes plásticas e na literatura, que ocorreram no começo do século. Reivindicando total liberdade, os novos artistas rejeitaram os padrões acadêmicos e tradicionalistas, pesquisando uma linguagem nova, mais dinâmica e maleável, que pudesse expressar de modo mais significativo a vida do século XX. Para você ter uma visão geral das intenções renovadoras desses grupos de vanguarda, vamos ler alguns trechos extraídos dos vários manifestos publicados na época. Em 1909, o italiano Marinetti, líder do Futurismo, escreveu: “Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto perigoso, a bofetada e o soco.” E em 1912: “É preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, como nascem.” “Devese abolir o adjetivo para que o substantivo desnudo conserve a sua cor essencial.” “Abolir também a pontuação. Estando supressos os adjetivos, os advérbios e as conjunções, a pontuação está naturalmente anulada na continuidade vária de um estilo vivo, que se cria por si, sem as paradas absurdas das vírgulas e dos pontos.” “Façamos corajosamente o ‘feio’ em literatura e matemos de qualquer maneira a solenidade.” “Dou o verso livre, eis finalmente a palavra em liberdade”. Tecnologia ITAPECURSOS 4 Literatura M3 Supressão da dor poética dos exotismos snobs da cópia em arte das sintaxes já condenadas pelo uso em todas as línguas do adjetivo da pontuação da harmonia tipográfica dos tempos e pessoas dos verbos da orquestra da forma teatral do sublime artístico do verso e da estrofe das casas da crítica e da sátira da intriga nas narrativas do tédio IN FI N IT IV O Nada S U PR E S S ÃO D A H IS TÓ R IA de lamentos Literatura pura Palavras em liberdade Invenção de palavras Plástica pura (5 sentidos) Criação invenção profecia Descrição onomatopéica Música total e arte dos ruídos Mímica universal e Arte das Luzes MaquinismoTorre Eiffel Brooklin e arranhacéus Poliglotismo Civilização pura Normandismo épico exploratismo urbanoArte das viagens e dos passeios Antigraça Estremecimentos diretos em grandes espetáculos livres circos, musichalls, etc. Continuidade 1. Técnicas ou ritmos renovados sem cessar. A PU R EZ A A VA R IE D AD E Construção Simultaneidade Destruição em oposição ao Particularismo e à Divisão Eis um trecho do manifesto de um outro movimento: o Cubismo, escrito em 1913 pelo poeta Apollinaire: Tecnologia ITAPECURSOS 5 Literatura M3 O Expressionismo foi outro movimento de vanguarda. Aqui está um trecho de seu manifesto de 1917, sobre o estilo: “A palavra se torna flecha. Atinge o interior do assunto, é enfatizada por ele. Ele se torna cristalinamente a verdadeira imagem do objeto. Então desaparecem as palavras supérfluas. O verbo se estende e tornase mais afiado, tenso, para apanhar a expressão clara e distintamente. “ De 1918 são estes trechos do manifesto do Dadaísmo, movimento que reflete bem o niilismo de uma geração marcada pela guerra: “Assim nasceu DADÁ de um desejo de independência, de desconfiança na comunidade. Aqueles que nos pertencem conservam sua liberdade. Nós não reconhecemos nenhuma teoria.” “Eu destruo as gavetas do cérebro e as da organização social; desmoralizar por todo lado e lançar a mão do céu ao inferno, os olhos do inferno ao céu, restabelecer a roda fecunda de um circo universal nos poderes reais e na fantasia de cada indivíduo.” Em 1924 escrevia André Breton, no manifesto do Surrealismo: “A imaginação está talvez a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito abrigam forças estranhas capazes de aumentar as da superfície, ou de lutar vitoriosamente contra elas, há todo interesse em captálas, em captálas desde o início, para submetêlas em seguida, se isso ocorrer, ao controle de nossa razão.” Como você pôde observar, em todos esses movimentos estava presente a idéia de que, para se conseguir expressar a nova realidade, era necessário criar uma nova linguagem. Além da irreverência e da preocupação em destruir e rejeitar os valores tradicionais, o espírito artístico moderno da primeira metade do século XX ainda apresenta: exaltação da vida presente e do progresso; intenso experimentalismo na busca de uma nova linguagem; reivindicação de plena liberdade de pesquisa e expressão; profundo individualismo; incorporação do quotidiano e do popular à arte; valorização em termos artísticos do subconsciente e do inconsciente. Tornase assim evidente que uma nova maneira de ver e analisar a realidade estava sendo criada, com a rejeição do tradicional e a tentativa de criação de uma linguagem capaz de expressar de modo significativo a posição do homem nesse novo mundo que surgia. (TELES, GILBERTO MENDONÇA. VANGUARDAS EUROPÉIAS E MODERNISMO BRASILEIRO.) Estudo Dirigido 1 .Relacione estas duas frases: “A máquina se fez presente em todos os momentos da vida do homem no início do século XX.” “A guerra tinha lançado no espírito humano a incerteza sobre a permanência e a duração da paz”. 2. Caracterize, a partir do texto, os aspectos comuns dos movimentos de vanguarda européia. II O MODERNISMO NO BRASIL 1 INQUIETAÇÕES MODERNISTAS Enquanto ocorria no Brasil um acentuado desenvolvimento industrial e urbano, com profundas modificações na vida social do país, em decorrênciaprincipalmente da Primeira Guerra Mundial, o mesmo não acontecia no campo artístico. A nossa literatura permanecia ainda presa aos velhos modelos acadêmicos, basicamente parnasiana na linguagem, refletindo nas primeiras décadas do século XX a postura do século anterior. Houve, no entanto, alguns escritores nesse período, como por exemplo Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Lima Barreto, que, embora presos ainda à linguagem tradicional, manifestaram uma consciência crítica da realidade brasileira, revelando uma visão mais aguda de nossos problemas sociais. Enquanto na Europa, e sobretudo na França, ocorria uma onda de renovação artística e cultural, no Brasil essa inquietação manifestavase timidamente em alguns grupos isolados do Rio de Janeiro e de São Paulo, na época os principais centros culturais do país. Em 1912 o jovem escritor Oswald de Andrade, na Europa, toma conhecimento das idéias futuristas que mais tarde seriam divulgadas em São Paulo. Nesse mesmo tempo, Manuel Bandeira, outro novo poeta, Tecnologia ITAPECURSOS 6 Literatura M3 entra em contato na Suíça com a literatura pós simbolista. Em 1915, um brasileiro, Ronald de Carvalho, toma parte na fundação da revistaOrpheu, que assinala o início da vanguarda futurista em Portugal. Fundase em 1916 a Revista do Brasil, marcada por uma linha nacionalista. Pouco a pouco começam a se formar grupos de escritores e artistas que, embora não tivessem ainda 2 A EXPOSIÇÃO DEANITA MALFATTI Um fato importante pela polêmica que provocou foi a exposição de pintura moderna feita por Anita Malfatti nos meses de dezembro de 1917 e janeiro de 1918, em São Paulo. Voltando de uma viagem feita à Europa e aos Estados Unidos, onde entrara em contato com a era moderna, Anita Malfatti, incentivada por alguns amigos, resolveu fazer uma exposição de suas últimas obras. No acanhado meio artístico paulistano, a exposição provocou comentários variados, tanto a favor como contra. Entretanto, o que realmente desencadeou a polêmica, em torno não só da pintora mas principalmente da questão da validade da nova arte, foi um artigo escrito por Monteiro Lobato, na época crítico do jornal O Estado de S. Paulo, na seção Artes e Artistas e que ficou conhecido pelo título de “Paranóia ou mistificação?”. Apesar da lucidez com que debatia certos problemas brasileiros e das intenções renovadoras que possuía, Monteiro Lobato, nessa questão de pintura moderna, mostrouse totalmente passadista, criticando violentamente a nova arte, chegando a ridicularizála. Para você ter uma idéia da violência dessa crítica considere este trecho: uma consciência clara e definida do que queriam, sentiam que a nossa arte devia abandonar os velhos e gastos padrões e buscar novos caminhos. Vendo na Academia Brasileira de Letras uma espécie de representação oficial do tradicionalismo literário estériI e pomposo, os jovens escritores passaram a atacála, reivindicando o direito de explorar novos temas e de elaborar uma nova linguagem literária. “Há duas espécies de artista. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos de vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas os processos clássicos dos grandes mestres. (...) A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretamna à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somemse logo nas trevas do esquecimento. Embora eles se dêem como novos, precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentandose nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.” E em outro trecho, falando a respeito da arte moderna em geral: “Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e ‘tutti quanti’ não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura onde não havia até agora penetrado.” Essa crítica precipitada de Monteiro Lobato provocou ressentimentos em Anita Malfatti, mas ao mesmo tempo despertou uma atitude de simpatia com relação a ela de um grupo de artistas jovens, resultando manifestações de repúdio às concepções tradicionais de arte. Oswald de Andrade, por exemplo, escreveu no Jornal do Comércio em 11/01/1918: “Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a vibrante artista não temeu levantar com os seus cinqüenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. “ Dentre os que prestigiaram Anita Malfatti estavam, além de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida e Ribeiro Couto, que junto com outros artistas organizaram alguns anos mais tarde, em 1922, a Semana de Arte Moderna. Tecnologia ITAPECURSOS 7 Literatura M3 3 DIVULGAÇÃO DAS NOVAS IDÉIAS O ano de 1917 marca também o início da amizade entre Oswald de Andrade e Mário de Andrade, que tanto dinamismo daria ao movimento modernista. São publicados nesse ano alguns livros que, embora não totalmente revolucionários quanto ao estilo, já trazem algumas inovações e provocam comentários. É o caso de A cinza das horas, de Manuel Bandeira, e Nós, de Guilherme de Almeida, além da estréia de Mário de Andrade, com o pseudônimo de Mário Sobral, publicandoHá uma gota de sangue em cada poema. Em 1920, um grupo de modernistas “descobre” a arte de um jovem escultor, Victor Brecheret, passando a elogiálo e a divulgar seu nome. Até Monteiro Lobato, que anos antes tinha sido tão reacionário com relação à pintura moderna, reage favoravelmente e não poupa elogios ao artista. As novas idéias começam a circular rapidamente. Em 24/01/1921, o Correio Paulistano publica um texto de Menotti del Picchia em que são expostos os princípios do novo grupo de escritores, e que foram assim resumidos pelo crítico Mário da Silva Bento: “a) o rompimento com o passado, ou seja, a repulsa às concepções românticas parnasianas e realistas; b) a independência mental brasileira, abandonandose as sugestões européias, mormente as lusitanas e gaulesas; c) uma nova técnica para a representação da vida em vista de que os processos antigos ou conhecidos não apreendem mais os problemas contemporâneos da outra expressão verbal para a criação literária, que não é mais a mera transcrição naturalista mas relação artística, transposição para o plano da arte das realidades vitais.” Estudo Dirigido 1. Vamos reconstituir, em ordem cronológica, os principais fatos que influíram na preparação do clima modernista que explodiria com alarde em 1922. Complete as lacunas: 1912 Oswald de Andrade 1915 Ronald de Carvalho 1916 Fundase 1917 São publicados os livros 1918 Anita Malfatti Monteiro Lobato escreve Oswald de Andrade, porém, 1920 VictorBrecheret 1921 O Correio Paulistano publica 1921 Mário de Andrade publica Nesse mesmo ano, Mário de Andrade publica uma série de sete estudos sobre os mais destacados poetas do Parnasianismo: Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho. Esses estudos, intituladosMestres do passado, constituem uma análise crítica e aguda da famosa geração parnasiana, e Mário de Andrade, ao apontar lhes os méritos, não hesita em demonstrar suas fragilidades e vícios literários, concluindo que realmente a hora do Parnasianismo já tinha passado e que esses poetas não ofereciam mais nenhum interesse e nem poderiam servir de inspiração para os escritores das novas gerações. No fim de 1921, intensificaramse os contatos entre os jovens artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. O escritor consagrado Graça Aranha, apesar de pertencer à Academia Brasileira de Letras, resolve aderir às novas idéias e começa a participar do movimento. Como se pode perceber, havia na época uma grande agitação e um clima de debates e reivindicações. A proximidade das comemorações do Centenário da Independência, para as quais se preparava todo o país, reforça a idéia lançada pelo pintor Di Cavalcanti de se organizar uma exposição de Arte Moderna, que estaria destinada a ser o marco definitivo do Modernismo no Brasil. (GILBERTO MENDONÇA TELES). Tecnologia ITAPECURSOS 8 Literatura M3 2. Pelo trecho da crítica de Monteiro Lobato à exposição de Anita Malfatti, quais eram suas concepções estéticas? 3. De modo geral, que importância teve esse episódio para o Modernismo? III A SEMANA DE ARTE MODERNA “Foi uma semana de escândalos literários e artísticos que meteu os estribos na barriga da burguesiazinha paulistana”. (DI CAVALCANTI) Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 fora realizado no Teatro Municipal de São Paulo o mais rumoroso evento da história das artes no Brasil. Foram convidadas para esse evento figuras de destaque na sociedade e no meio artístico e literário. Uma exposição de artes plásticas fora montada no saguão do teatro contando com obras de jovens artistas como Vitor Brecheret, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e outros. A abertura da Semana contou com o discurso de Graça Aranha, intitulado “Emoção estética na obra de arte”, onde propunha uma radical renovação nas artes e nas letras. Em seguida, nessa mesma noite, houve declamações de textos poéticos modernos e um concerto de Villa Lobos. Já no primeiro dia houve reações nada amistosas por parte da platéia que, em sua grande maioria, era constituída pela burguesia conservadora de São Paulo, acostumada a peças líricas e óperas naquele palco agora ocupado por esses desconhecidos e irreverentes “futuristas”. A segunda noite, dia 15 de fevereiro, foi a mais agitada, pois Menotti del Picchia com a palestra “Arte Moderna”, reivindicava liberdade, renovação e agressividade, o que provocou vaias e apartes nervosos. Eis abaixo alguns trechos dessa palestra: “A nossa estética é de reação, como tal é guerreira. Queremos exprimir nossa mais livre espontaneidade dentro da mais espontânea liberdade. Ser como somos, sinceros, sem artificialismos, sem contorcionismos, sem escolas. Nada de postiço meloso, artificial, arrevezado, precioso: queremos escrever com sangue que é humanidade; com violência que é energia bandeirante.” Alguns jovens escritores também foram apresentados e declamaram versos modernos, recebendo como batismo artístico uma estrepitosa vaia do público. Na noite de 17 de fevereiro, encerrouse a Semana com a apresentação do maestro Villa Lobos. Essa ter ceira noite não foi tão rumorosa. Pudera, o público se reduziu a um quinto daquele que comparecera no primeiro dia. Tecnologia ITAPECURSOS 9 Literatura M3 Apesar dos desencontros, das inúmeras críticas recebidas, a Semana de 22, podese afirmar, conseguiu seus objetivos: mostrou que uma fértil e revolucionária geração de artistas existia e lutava por uma renovação profunda nas artes nacionais contra o tradicionalismo, a imitação e o imobilismo que até aquele momento imperaram nas artes nacionais. Poética Estou farto do lirismo comedido do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestação de apreço ao Sr. Diretor Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas. Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as expressões sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de cosenos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar as mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. MANUEL BANDEIRA Esse texto de Manuel Bandeira já contém em seus aspectos estéticos e temáticos renovações e idéias propagadas durante a Semana. 1 . No texto de Manuel Bandeira ocorre a metalinguagem. Explique, com suas palavras, essa afirmação. 2. Uma das propostas da “Semana” para a poesia é a liberdade técnica. De que forma o texto de Bandeira exemplifica isso? Tecnologia ITAPECURSOS 10 Literatura M3 3. Transcreva os versos em que o poeta reivindica a necessidade de uma nova linguagem para a poesia. 4. Transcreva do texto as referências irônicas: a. aos tradicionalistas da língua: b. aos parnasianos: c. aos românticos: 5. Tomandose por base o texto alusivo à Semana de Arte Moderna, responda: Quais eram as propostas básicas do pessoal da Semana? 1. Os modernistas dirigiram suas críticas e ironias sobretudo aos escritores parnasianos. Para você ter uma idéia do tom irreverente dessas críticas, transcrevemos, a seguir, um trecho de Antônio de Alcântara Machado, que, embora falando de um tempo passado, referese claramente à situação de sua época. Leia o trecho com atenção e, depois, resuma os pontos básicos da crítica do autor. O literato nunca chamava a coisa pelo nome. Nunca. Arranjava sempre um meio de se exprimir indiretamente. Com circunlóquios, imagens poéticas, figuras de retórica, metalepses, metáforas e outras bobagens complicadíssimas. Abusando. Ninguém morria: partia para os páramos ignotos. Mulher não era mulher. Qual o quê. Era flor, passarinho, anjo da guarda, doçura desta vida, bálsamo de bondade, fada, e diabo. Mulher é que não. Depois a mania do sinônimo difícil. A própria coisa não se reconhecia nele. Nem mesmo a palavra. Palavra. Tudo fora da vida, do momento, do ambiente. A preocupação de embelezar, de esconder, de colorir. Nada de pão pão, queijo queijo. Não senhor. Escrever assim não é vantagem. Mas pão epílogo tostado dos trigais dourados, queijo acompanhamento vacum da goiabada dulcífica, sim. É bonito. Disfarça bem a vulgaridade das coisas. Canta nos ouvidos. E é asnático, absolutamente asnático. Tem sobretudo essa qualidade.(...) O literato não se contentava em exclamar: Como cheiram as magnólias! Não. As magnólias eram capazes de se ofender com tanta secura. E ele então acrescentava poeticamente: Flores de carne, seios de virgem. Pronto. As magnólias já não tinham direito de se queixar. (CITADO POR FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA, IN ANTÔNIO DEA. MACHADO, TRECHOS ESCOLHIDOS, RIO DE JANEIRO, AGIR, 1961, P. 7). Comentário: Os modernistas não só propuseram uma construção poéticoliterária revolucionária tanto no plano estético como no temático, como revolucionaram a linguagem literária. No texto, de Antônio de Alcântara Machado, vêemse críticas a toda afetaçãolingüística da literatura convencional e tradicional. Com tal procedimento os modernistas buscavam a linguagem espontânea, predominantemente coloquial, natural e neológica, sem qualquer afetação artificialista. Tecnologia ITAPECURSOS 11 Literatura M3 IV GRUPOS E TENDÊNCIAS DO MODERNISMO Em 15 de maio de 1922 surgia a revista Klaxon, que seria uma espécie de portavoz das novas idéias. Assim dizia seu editorial a certa altura: “Houve erros proclamados em voz alta. Pregaramse idéias inadmissíveis. É preciso refletir. É preciso esclarecer. É preciso construir. Daí KLAXON.” “KLAXON cogita principalmente de arte. Mas quer representar a época de 1920 em diante. Por isso é polimorfo, onipresente, inquieto, cômico, irritante, contraditório, invejado, insultado, feliz.” Em 1924, Oswald de Andrade lança o movimento Paubrasil, propondo uma literatura autenticamente nacionalista, fundada nas caraterísticas naturais do povo brasileiro. Combate a influência estrangeira, a linguagem retórica e vazia. Exalta o progresso e a era presente: “Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.” “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística.” Reagindo contra essa posição primitivista, surge em 1925 o movimentoVerdeamarelo (mais tarde transformado no grupo daAnta). Esse novo grupo, formado principalmente por Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, Cândido Mota Filho, não aceita a ruptura com o passado: “Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil.” Oswald de Andrade, em 1928, junto com Antônio de Alcântara Machado, Raul Bopp e a pintora Tarsila do Amaral, entre outros, publica a Revista de Antropofagia. Está lançado o Movimento Antropofágico, desenvolvimento do Paubrasil e reação contra o conservadorismo do grupo Verdeamarelo. Ao invés da conciliação, o novo grupo propõe a atitude simbólica de “devoração” dos valores e influências estrangeiras, num processo de assimilação, para darlhes um caráter nacional. Ode ao Burguês MÁRIO DE ANDRADE Eu insulto o burguês! O burguêsníquel o burguêsburguês! A digestão bem feita de São Paulo! O homem curva! O homem nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano é sempre um cauteloso poucoapouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampeões! Os condes Joões! os duques zurros! que vivem dentro dos muros sem pulos; e gemem sangue de alguns milréis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam o “Printemps” com as unhas! Tecnologia ITAPECURSOS 12 Literatura M3 Eu insulto o burguês funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguêsmensal! ao burguêscinema! ao burguêstílburi! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano! “ Ai, filha, que te darei pelos seus anos? Um colar... Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!” Come! Comete a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purê de batatas morais Oh! cabelos nas ventas! Oh carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos. sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!... (IN VANGUARDAS EUROPÉIAS E MODERNISMO BRASILEIRO GILBERTO M. TELLES) 1) Na Grécia, ODE era um tipo de composição poética para ser cantada. Mário de Andrade num outro texto, afirma: “Quem não souber urrar não leia ODE AO BURGUÊS”. A que conclusão você chega partindo dessas duas afirmações? Tecnologia ITAPECURSOS 13 Literatura M3 2) Transcreva do texto trechos em que o autor traça o perfil irônico do burguês nos seguintes aspectos: a) aparência física do burguês: b) a preocupação do burguês com respeito ao dinheiro e ao futuro: c) comportamento inalteradamente rotineiro do burguês: d) costumes que esse tipo social considera como indícios de aristocracia: e) títulos burgueses ironizados pelo poeta: 3) O que pode significar a predominância do ponto de exclamação no poema? 4) Qual a postura do “eulírico” diante do burguês? Justifique sua resposta, utilizandose de dois versos que utilizam a função conativa da linguagem. V A EVOLUÇÃO DO MODERNISMO 1 A SEGUNDA GERAÇÃO MODERNISTA DE 1930 A 1945 Essa fase é marcada por um período de estabilização e amadurecimento do Movimento Modernista e por sensíveis transformações das propostas revolucionárias de 1922. Os poetas dessa fase, herdam a irreverência, o espírito crítico e anedótico bem como a liberdade formal da primeira fase, mas outras formas de expressão poética ampliam o universo temático da poesia. Foi na prosa, entretanto, que o Modernismo ganhou uma nova roupagem na literatura. Os graves problemas sociais do Nordeste, a vida agitada das cidades e os conflitos psicológicos do homem moderno despertamse nos romances das décadas de 30, 40 e 50. A Bagaceira, de José Américo de Almeida é o romance inaugural do neorealismomodernista, que terá representantes como Graciliano Ramos, Raquel de Queiróz, José Lins do Rego, Jorge Amado e outros. Marques Rebelo e outros escritores desenvolvem a chamada prosa urbana em que as narrativas buscam enfocar a célebre dicotomia do século XX homemX cidade. Tecnologia ITAPECURSOS 14 Literatura M3 Por último, a prosa intimista ganha importante espaço, principalmente com Clarice Lispector, que deixou uma herança que persiste em nossos romances ainda hoje. A renovação poética e ficcional da segunda fase modernista conseguiu dar um novo e importante impulso à literatura brasileira. A seguir, colocamos alguns textos representativos dessa geração para considerações e estudos. Em A Rosa do Povo, aparece a inquietação de Drummond, com a beleza do verso e a preocupação com a linguagem poética, aspectos evidentes em “A Procura da Poesia”, cujo tema se desenvolve em torno de reflexões sobre a construção de poemas, na tentativa de elidir, através do misterioso reino das palavras, sujeito e objeto. Procura da poesia Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixaa em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem: rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável. Não recomponhas Tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era. (ANDRADE DE, CARLOS DRUMMOND DE. ANTOLOGIA POÉTICA. RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO, 1977, P. 1757). Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. (...) Chega mais perto e contemple as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repara: ermas de melodia e conceito, elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. Tecnologia ITAPECURSOS 15 Literatura M3 1) O poema de Drummond constitui um metapoema. Por quê? 2) Há na primeira parte do texto a presença marcante do imperativo negativo. Qual é o objetivo do poeta com esse artifício? 3) Retire do texto as características das palavras segundo o poeta. 4) Retire do texto os versos que combinam a metáfora e a personificação. 5) Partindo do conceito do que não é poesia, o poeta vai se aproximando do seu conceito. Justifique a afirmação. 6) Todas as concepções de poesia enumeradas abaixo são negadas pelo poema, EXCETO: a) criação a partir do circunstancial e do acidental. b) poesia como forma de extravasamento da emoção. c) poesia como representação da realidade. d) poesia como fusão do poeta e da realidade. e) poesia como expressão do momentâneo, do transitório. 7) Situandose na segunda fase da obra de Drummond, o poema deixa de apresentar todas as características abaixo, EXCETO: a) acentuada preocupação com a forma. b) concepção de que o poema é um artefato. c) reaparecimento do verso metrificado. d) reaparecimento da rima. e) convicção de que os versos se fazem com palavras. Tecnologia ITAPECURSOS 16 Literatura M3 8) Todos os versos abaixo, extraídos do poema em estudo, negam a concepção romântica de poesia, EXCETO: a) “Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes”. b) “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”. c) “O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas”. d) “Não dramatizes, não indagues. Não percas tempo em mentir”. e) “Não recomponhas tua sepultada e merencória infância”. 9) Todos os versos abaixo, extraídos do poema em estudo, negam a concepção realista de poesia, EXCETO: a) “Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem”. b) “Não faças versos sobre acontecimentos”. c) “Não faças poesias com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica”. d) “Não há criação nem morte perante a poesia,” e) “Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina.” 10) A convicção moderna de que o poeta é um homem comum, cujo maior atributo é conhecer palavras e saber trabalhar com elas, aparece em todos os versos, abaixo, EXCETO: a) “Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. b) “Eilos sós e mudos, em estado de dicionário”. c) “Convive com teus poemas, antes de escrevêlos”. d) “A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto”. e) “Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio”. 11) Todas as características abaixo, da 3ª fase do Modernismo Brasileiro, estão presentes no poema em estudo, EXCETO: a) importância da palavra. b) universalismo temático. c) experiências novas na prosa e na poesia. d) tendência para o hermetismo. e) tendência para o intelectualismo. Tecnologia ITAPECURSOS 17 Literatura M3 2 TEXTOS DE DRUMMOND PARA ANÁLISE José E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bichodomato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde? No Meio do Caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. (ANDRADE, CARLOS DRUMMOND DE. IN: OP. CIT.) Soneto da Perdida Esperança Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora. Não sei se estou sofrendo ou se é alguém que se diverte por que não? na noite escassa com um insolúvel flautim. Entretanto há muito tempo nós gritamos: sim! ao eterno. Tecnologia ITAPECURSOS 18 Literatura M3 Confidência do Itabirano Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de ltabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! (ANDRADE, CARLOS DRUMMOND DE. IN: OP. CIT.) Quadrilha João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidouse e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. (ANDRADE, CARLOS DRUMMOND DE. ANTOLOGIA POÉTICA. RIO DE JANEIRO, JOSÉ OLYMPIO. P. 4, 102, 1247, 136.) 3 OUTROS POETAS DA 2ª GERAÇÃO Murilo Mendes Duas Mulheres Duas mulheres na sombra Decifram o alfabeto oculto, Ouvem o contraste das ondas, Falam com os deuses de pedra. Dançam a roda, murmuram, Decifram o enigma das sombras, Uma triste, outra morena, Ambas são ágeis e esbeltas, Vestem roupagens de nuvens. Segredam amores eternos, Tocam súbito a corneta Para despertar os peixes. Duas mulheres na sombra Encarnando lua e árvore Decifram o alfabeto oculto. O Mundo Inimigo O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativo que invade a sombra das casas no espaço elástico.Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuas que retomam seu lugar na série do planeta. Os homens largam a ação na paisagem elementar e invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito. Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos, expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo. (MENDES, MURILO. POESIAS. RIO DE JANEIRO. J. OLYMPIO, 1959, P. 22434.) Tecnologia ITAPECURSOS 19 Literatura M3 Jorge de Lima Soneto Não procureis qualquer nexo naquilo que os poetas pronunciam acordados, pois eles vivem no âmbito intranqüilo em que se agitam seres ignorados. No meio dos desertos habitados só eles é que entendem o sigilo dos que no mundo vivem sem asilo perecendo com eles renegados. Eles possuem, porém, milhões de antenas distribuídas por todos os seus poros aonde aportam do mundo suas penas São os que gritam quando tudo cala, são os que vibram de si estranhos coros para a fala de Deus que é sua fala. Boneca de Pano Boneca de pano dos olhos de conta, vestido de chita, cabelo de fita, cheinha de lã. De dia, de noite, os olhos abertos, olhando os bonecos que sabem marchar, calungas de mola que sabem pular. Boneca de pano que cai: não se quebra, que custa um tostão. Boneca de pano das meninas infelizes que são guias de aleijados, que apanham pontas de cigarro, que mendigam nas esquinas, coitadas! Boneca de pano de rosto parado como essas meninas. Boneca sujinha, cheinha de lã. Os olhos de conta caíram. Ceguinha rolou na sarjeta. O homem do lixo a levou, coberta de lama, nuinha, como quis Nosso Senhor. (LIMA, JORGE DE. POESIAS COMPLETAS. J. AGUILLAR, 1974. V. 1 E 2.) Cecília Meireles Canção Póstuma Fiz uma canção para darte; porém tu já estavas morrendo. A morte é um poderoso vento. E é um suspiro tão tímido a Arte... É um suspiro tímido e breve como o da respiração diária. Choro de pomba. E a Morte é uma águia cujo grito ninguém descreve. Vim cantarte a canção do mundo, mas estás de ouvidos fechados para os meus lábios inexatos atento a um canto mais profundo. E estou como alguém que chegasse ao centro do mar, comparando aquele universo de pranto com a lágrima de sua face. E agora fecho grandes portas sobre a canção que chegou tarde. E sofro sem saber de que Arte se ocupam as pessoas mortas. Por isso é tão desesperada a pequena, humana cantiga. Talvez dure mais do que a vida. Mas à morte não diz mais nada. A Doce Canção Pusme a cantar minha pena com uma palavra tão doce, de maneira tão serena, que até Deus pensou que fosse felicidade e não pena. Anjos de lira dourada debruçaramse da altura. Não houve, no chão, criatura de que eu não fosse invejada, pela minha voz tão pura. Acordei a quem dormia, fiz suspirarem defuntos. Um arcoíris de alegria da minha boca se erguia pondo o sonho e a vida juntos. O mistério do meu canto, Deus não soube, tu não viste. Prodígio imenso do pranto: Todos perdidos de encanto, só eu morrendo de triste! Tecnologia ITAPECURSOS 20 Literatura M3 Vinícius de Moraes Ternura Eu te peço perdão por te amar de repente Embora meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos Das horas que passei à sombra dos teus gestos Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos Das noites que vivi acalentado Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente E posso te dizer que o grande afeto que te deixo Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias E só te pede que te repouses quieta, muito quieta E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora. Poema de Natal Para isso fomos feitos: Para lembrar e ser lembrados Para chorar e fazer chorar Para enterrar os nossos mortos Por isso temos braços longos para os adeuses Mãos para colher o que foi dado Dedos para cavar a terra. Assim será a nossa vida: Uma tarde sempre a esquecer Uma estrela a se apagar na treva Um caminho entre dois túmulos Por isso precisamos velar Falar baixo, pisar leve, ver A noite dormir em silêncio. Não há muito que dizer: Uma canção sobre um berço Um verso, talvez, de amor Uma prece por quem se vai Mas que essa hora não esqueça E por ela nossos corações Se deixem, graves e simples. Pois para isso fomos feitos: Para a esperança no milagre Soneto da Fidelidade De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivêlo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. (ESTORIL, OUTUBRO, 1939) Dialética É claro que a vida é boa E a alegria, a única indizível emoção É claro que te acho linda Em ti bendigo o amor das coisas simples É claro que te amo E tenho tudo para ser feliz Mas acontece que eu sou triste. (MORAES, VINÍCIUS DE. IN: OBRA POÉTICA. RIO DE JANEIRO. AGUILAR. 1968. P. 587). Tecnologia ITAPECURSOS 21 Literatura M3 4 A PROSA DA 2ª GERAÇÃO A literatura regionalista moderna, iniciada com A Bagaceira, de José Américo de Almeida, ganha forte impulso com a publicação de O Quinze, de Rachel de Queiróz. A autora, neste romance, fornece uma visão profunda do sofrimento físico e moral em que vivem os retirantes cearenses da seca de 1915, transformados em personagens da obra. A pobreza de pessoas esmagadas pelas forças naturais, pela exploração ou abandono dos patrões, pela fome e miséria vão se chocar com o progresso material da civilização. Rachel de Queiróz e Graciliano Ramos foram os autores que melhor traduziram esse universo regional em suas obras. A seguir, um pequeno excerto de O Quinze, de Rachel de Queiróz. O Quinze Quando Chico Bento, depois daquela noite passada, ali, no abandono da estrada, chamou a mulher e, ajudando a levantar um dos meninos, foi andando em procura do povoado, em vão buscou, pelas voltas do caminho, sentado nalguma pedra, o vulto de Pedro. Na estrada limpa e seca só se via um homem com uma trouxinha no cacete, e mais à frente, dentro de uma nuvem de poeira, um cavaleiro galopando. De repente, uma idéia o sossegou: – Que besteira! Naturalmente ele já está no Acarape... Mas chegaram ao Acarape, e debalde perguntaram pelo menino a todo o mundo. Não... Ninguém tinha visto... Sabia lá!... A toda hora estava passando retirante... Numa bodega, onde o vaqueiro novamente fez indagações, alguém lembrou: – Homem, por que você não vai falar ao delegado? Ele é quem pode dar jeito. Mora ali, naquela casa de alpendre. No modo que agora era o seu, curvado, quase trôpego, Chico Bento endireitou para a casa apontada, que ficava meio apartada das outras, tendo de um lado um alpendre onde se viam algumas cangalhas de palha roída. E bateu à porta, enquanto Cordulina se sentava no chão, na beirada do alpendre. Lá de dentro, uma voz de mulher disse baixinho: – Abre não, menina, é retirante... É melhor fingir que não ouve... Chico Bento escutou; e sua voz lenta explicou, dolorida: – Não vim pedir esmola, dona; eu careço é de ver o delegado daqui... Um homem de cachimbo no queixo mostrou a cara na meia porta: – Está falando com ele. O que é? Chico Bento ficou um instante encarando o homem, reconhecendoo. Mas o delegado, impaciente, repetiu a pergunta: – O que é que você queria? – Eu vim falar ao senhor mode um filho meu, que desde ontem tomou sumiço. Nós ficamos na estrada, eu assim, variando, muito fraco... e eleveio vindo até aqui. Quando de manhã cacei o menino, não teve quem desse notícia. – E como é ele? – Assim comprido, magrinho, a cara chupada... está dentro dos doze anos... Tecnologia ITAPECURSOS 22 Literatura M3 O delegado tirou o cachimbo da boca e calcando com o dedo o tabaco, abanou a cabeça: – Não tenho jeito que dar não, meu amigo... O menino, naturalmente, foise embora com alguém... Um rapazinho, assim sozinho, muita gente quer. Cordulina ouvia confusamente o que diziam, e chorava, baixinho. Desanimado, Chico Bento sentouse na mesma beirada de tijolo, junto à mulher. Ainda na porta, o delegado entrou a fitar o caboclo com insistência, reconhecendo também aquela cara, o jeito de ombros, a fala. E perguntou: – Donde você é? A voz cansada soou fracamente: Eu sou filho natural de Iguatu, mas faz muito tempo que morava pras bandas do Quixadá. O homem procurou arejar a memória: Nas terras de Dona Maroca? Inhor sim, nas Aroeiras... O delegado abriu a porta e saiu para o alpendre: Bem que estava conhecendo! É o meu compadre Chico Bento! Chico Bento pôsse em pé: Inhor sim... Eu também, assim que olhei pra vosmecê, disse logo comigo: este só pode ser o compadre Luís Bezerra... Mas pensei que não se lembrava mais de mim... O delegado convidou: Entre, compadre! Essa é a comadre? Adeus, comadre, entre também! Cadê meu afilhado? Será esse que fugiu? Cordulina entrava, puxando por um dos meninos, e respondeu: Inhor não... O seu afilhado era o Josias, morreu na viagem... O homem chamou a mulher: Eh! Doninha! Venha falar com uns conhecidos! Entre, comadre, ela está na cozinha. Vá entrando! Depois, ficando só com Chico Bento, atentou na miséria esquelética e esfarrapada do retirante: Então, compadre, que foi isso? A velha largou você? Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras... E eu fiquei sem ter o que fazer. A morrer de fome lá, antes andando... O delegado quase deixou cair o cachimbo, num assombro: Não diga isso, compadre, não é possível! Deixar morrer aquele gadão todinho, sem mais pra quê! Pois mandou soltar no dia de São José! Eu ainda esperei obra duma semana... O delegado se exaltou, gesticulando o cachimbo: Aquela velha é uma desgraça! Tenho fé em Deus que o dinheiro que ela poupa ainda há de Ihe servir pra comer em cima duma cama... Você não se lembra por que foi que eu sai das Aroeiras, compadre? Me convidou para abrir uma bodega, que me dava mundos e fundos, garantia de um tudo. Gastei o que tinha e o que não tinha em mercadoria, e o resultado foi aquele... Era obrigado a fornecer a ela pelo custo, tinha de fazer isso, fazer aquilo, e ela não me dava interesse de qualidade nenhuma. Um dia mandei tudo pro diabo, liquidei como pude o que possuía, e me larguei pra cá. Inda hoje não me arrependi... Mas você ficou, foise fiar nesse negócio de madrinha Maroca, teve o pago... Chico Bento baixou a cabeça, concordando; olhou em redor, a casa caiada, a mesa envernizada, uma arca de couro, um relógio de parede: É compadre, você está bem... Lá de dentro a voz de Doninha chamou o marido: Luís, traz o compadre aqui, pra botar qualquer coisa no estômago! Quando viu Chico Bento abancado, comendo, o delegado saiu da sala: Vou mandar dois cabras atrás de seu menino. Não mando praça, porque só tem lá na Redenção. Aqui no Acarape, só requisitando. Do alpendre, mandou um moleque com um recado, e os dois cabras chegaram: Vocês vão ver se encontram um menino, filho de retirante, que atende por Pedro. Sumiuse esta noite. Vejam lá se dão um jeito de achar. O pai anda em tempo de correr doido e é meu compadre! Depois foi à cozinha, consolou Cordulina: Sossegue, comadre, já mandei caçar seu filho. Se estiver por cima do chão, se acha... Mas os cabras voltaram ao meiodia sem o menino. Um deles não conseguira apurar nada. O outro contou que o menino tinha sido visto na véspera de noite, num rancho de comboieiros de cachaça. (QUEIRÓZ, RAQUEL DE. O QUINZE, 23ª ED. RIO DE JANEIRO. J. OLYMPIO, 1977) Tecnologia ITAPECURSOS 23 Literatura M3 GRACILIANO RAMOS Vidas Secas Sinhá Vitória achavase em dificuldade: torciase para satisfazer uma precisão e não sabia como se desem baraçar. Podia esconderse no fundo do quadro, por detrás das barracas para lá dos tamboretes das doceiras. Ergueuse meio decidida, tornou a acocorarse. Abandonar os meninos, o marido naquele estado? Apertouse e observou os quatro cantos com desespero, que a precisão era grande. Escapuliuse disfarçadamente, chegou à esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. E, olhando, as frontarias das casas e as lanternas de papel, molhou o chão e os pés das outras matutas. Arrastouse para junto da família, tirou do bolso o cachimbo de barro, atochouo, acendeuo, largou algumas baforadas longas de satisfação. Livre da necessidade, viu com interesse o formigueiro que circulava na praça, a mesa do leilão, as listas luminosas dos foguetes. Realmente a vida não era má. Pensou com um arrepio na seca, na viagem medonha que fizera em caminhos abrasados, vendo ossos e garranchos. Afastou a lembrança ruim, atentou naquelas belezas. O burburinho da multidão era doce, o realejo fanhoso dos cavalinhos não descansava. Para a vida ser boa, só faltava à Sinhá Vitória uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Suspirou, pensando na cama de varas em que dormia. Ficou ali de cócoras, cachimbando, os olhos e os ouvidos muito abertos para não perder a festa. Os meninos trocavam impressões cochichando, aflitos com o desapa recimento da cachorra. Puxaram a manga da mãe. Que fim teria levado Baleia? Sinhá Vitória levantou o braço num gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o canudo do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha? Indiferentes à igreja, as lanternas de papel, aos bazares, às mesas de jogo e aos foguetes, só se importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava por aí perdida, agüentando pontapés. De repente Baleia apareceu. Trepou se na calçada, mergulhou entre as saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e chegouse aos amigos, manifestando com a língua e com o rabo um vivo contentamento. O menino mais velho agarroua. Estava segura. Tentaram explicarlhe que tinham tido susto enorme por causa dela, mas Baleia não ligou importân cia à explicação. Achava é que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheuse, baixou a cauda, resignouse ao capricho dos seus donos. A opinião dos meninos assemelhavase à dela. Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavamse em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apressoua timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegoulhe ao espírito, soproua no ILUSTRAÇÃO SIDNEY F. ouvido do irmão, provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogouo com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseramse a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguémconservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem. Tecnologia ITAPECURSOS 24 Literatura M3 Baleia cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia o focinho. A cidade se enchera de suores que a desconcertavam. Sinhá Vitória envergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira, uma cama de verdade. Fabiano roncava de papo para cima, as abas do chapéu cobrindolhe os olhos, o quengo sobre as botinas de vaqueta. Sonhava, agoniado, e Baleia percebia nele um cheiro que o tornava irreconhecível. Fabiano se agitava, soprando. Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavamlhe os pés com enormes reiúnas e ameaçavamno com facões terríveis. (RAMOS, GRACILIANO. VIDAS SECAS, 14 ED. SÃO PAULO. LIVRARIA MARTINS, 1966, P. 1014) Fabiano Sinhá Vitória o soldado seu Tomás da bolandeira o fazendeiro Baleia a humildade e a ignorância do homem rude, a opressão do homem pelo meio do sertão nordestino a mulher sonhadora, que fantasia a realidade, simplória e indiferente a força política da sociedade a ineficácia da sabedoria no meio em que vive a esperteza, a astúcia, a exploração dos humildes a humanização, a personificação Principais personagens e seu significado no romance 5 A TERCEIRA GERAÇÃO MODERNISTA Essa geração notabilizouse principalmente por sua atitude e realizações experimentalistas na prosa e na poesia. Seus principais representantes abandonam a irreverência e o caráter desleixado da geração de 22, bem como o excessivo engajamento da geração de 30 na prosa, e se aventuram a novas percepções estéticas e temáticas. As preocupações com aspectos estruturais do texto, com o valor sugestivo e estético da frase ou do verso caracterizam essa geração, representada principalmente por Guimarães Rosa, Clarice Lispector e por João Cabral de Melo Neto na poesia. As transformações estéticas e temáticas propostas e acontecidas na literatura não são alheias ao contexto histórico. O ano de 1945 marca o fim da Segunda Grande Guerra e a explosão da bomba atômica. No nível interno, o fim da ditadura Vargas abre o processo de redemocratização do Brasil. Tanto a prosa quanto a poesia trilham caminhos mais universais, que pouco têm a ver com os pioneiros de 22. Vejamos a seguir alguns textos representativos dessa geração. João Guimarães Rosa Desenredo Do narrador a seus ouvintes: Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamandose Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriramse, viramse. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderamse. Voando o mais em ímpeto de nau ILUSTRAÇÃO SIDNEY F. Tecnologia ITAPECURSOS 25 Literatura M3 tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecerse incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. Até que deuse o desmastreio. O trágico não vem a contagotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustoua e matouo. Dizse, também, que de leve a ferira, leviano modo. Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginaraa jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Retevese de vêla. Proibiase de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude. Ela longe sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitavase a agüentar, nas defeituosas emoções. Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso. Soubeo logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaramse. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse. Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiamse. Deuse a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsoua apenas, apostrofandose como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino. Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiuse histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Váse a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicouse a endireitar se. Mais. No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicarse, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade idéia inata. Entregouse a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Dissese e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumprialhe descaluniála, obrigavase por tudo. Trouxe à bocade cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrandoo, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente. O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa? Celebravaa, ufanático, tendoa por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar e qualquer causa se irrefuta. Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiramse os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchavase a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos. Mesmo a mulher, até, por fim. Chegoulhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soubese nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento. Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaramse, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. E pôsse a fábula em ata. (ROSA, JOÃO GUIMARÃES. IN: BOSI, ALFREDO. O CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO.SÃO PAULO, CULTRIX/EDUSP, 1975, P. 5860). Tecnologia ITAPECURSOS 26 Literatura M3 João Cabral de Melo Neto Antiode Poesia, te escrevia: flor! conhecendo que és fezes. Fezes como qualquer, gerando cogumelos (raros, frágeis cogu melos) no úmido calor de nossa boca. Delicado, escrevia: flor! (Cogumelos serão flor? Espécie estranha, espécie extinta de flor, flor não de todo flor, mas flor, bolha aberta no maduro.) Delicado, evitava o estrume do poema seu caule seu ovário, suas destilações; esperava as puras, transparentes florações, nascidas do ar, no ar, como as brisas. (MELO NETO, JOÃO CABRAL DE ANTOLOGIA POÉTICA, RIO DE JANEIRO, DO AUTOR, 1965. P. 1734.) O Rio .................................................. A um rio sempre espera um mais vasto e ancho mar. Para a gente que desce é que nem sempre existe esse mar, pois eles não encontram na cidade que imaginavam mar senão outro deserto de pântanos perto do mar. Por entre esta cidade ainda mais lenta é minha pisada; retardo enquanto posso os últimos dias da jornada. Não há talhas que ver, muito menos o que tombar: há apenas esta gente e minha simpatia calada. Já deixando o Recife entro pelos caminhos comuns do mar: entre barcos de longe, sábios de muito viajar; junto desta varcaça que vai no rumo de Itamaracá; lado a lado com rios que chegam do Pina com o Jiquiá Ao partir companhia dessa gente dos alagados, que Ihe posso deixar, que conselho, que recado? Somente a relação de nosso comum retirar; só esta relação tecida em grosso tear. Tecnologia ITAPECURSOS 27 Literatura M3 Clarice Lispector Feliz Aniversário Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de reboliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda. E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado? E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria. Já Ihe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante. Está certo, está certo!, recolheuse Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou lhe rápida pelos músculos da cara. Hoje é dia da mãe! disse José. Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de cocacola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniver sariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezavaos. E olhavaos piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração. Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e entumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que Ihe fizera filhos e Ihe pagara os partos e Ihe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhouos com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão. Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. Mamãe, que é isso! disse baixo, angustiada. A senhora nunca fez isso! acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizouse quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança. Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos. Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos provavelmente já além dos cinqüenta anos, que sei eu! os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos ainda mais fracos e mais azedos haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava. Me dá um copo de vinho! disse. ILUSTRAÇÃO SIDNEY F. Tecnologia ITAPECURSOS 28 Literatura M3 O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão. Vovozinha, não vai Ihe fazer mal? insinuou cautelosamente a neta roliça e baixinha. Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho, Dorothy!, ordenou. Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis. Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade. Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy Ihe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido. Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olana, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar. E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si,à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde caía rapidamente. E Cordélia? Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicandoa de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso. Tenho que ir, disse perturbada uma da noras levantandose e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo. A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que Ihe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas. Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagavase a velha nas suas profundezas. Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser.: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superandoa, se agigantava serena. Cordélia olhoua espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez. É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta. Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhoua estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar. Mas a esse novo olhar a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa. Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiuo espantada. Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José Tecnologia ITAPECURSOS 29 Literatura M3 lembrandose de que Jonga é quem fazia os discursos. Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça. Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio, disse distraído enxugando a palma úmida das mãos. Mas não era nada disso, apenas o malestar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas José enxugou a testa com o lenço como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecerao talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heróico, risonho. E de repente veio a frase: Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido. Olhoua, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano. No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão. Então ela abriu a boca e disse: Pois é. Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritoulhe emocionado, grato, com os olhos úmidos: No ano que vem nos veremos, mamãe! Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada. Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo. As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio. Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhandoo e olhavamse sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão. Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito. “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora. Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério. (LISPECTOR, CLARICE. LAÇOS DE FAMÍLIA. RIO DE JANEIRO, FRANCISCOALVES, 1960.) Tecnologia ITAPECURSOS 30 Literatura M3 6 A LITERATURA PÓSMODERNA Desde 1957 a arte vem propondo novas posturas artísticas, que mais uma vez, entre tantas revoluções do século XX, procuram insistentemente novas formas de expressão e de postura do artista e da arte diante do mundo. Em 1952 aparece o movimento concretista, com a publicação da revista Noigrandes. O grupo liderado por Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos renovam o conteúdo da poesia utilizando todos os recursos possíveis da palavra. Nessa poesia, a palavra extrapola o sistema semântico e atinge também a significação visual. ovo n o v e I o novo no velho o f i lho em folhos na jaula dos joelhos infante
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