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1 2 AULA 1: BASES TEÓRICAS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO – PARTE I 3 INTRODUÇÃO 3 CONTEÚDO 4 NEOCONSTITUCIONALISMO 4 O NEOCONSTITUCIONALISMO E A LEITURA AXIOLÓGICO-INDUTIVA DO DIREITO 8 O PÓS-POSITIVISMO E A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 12 ATIVIDADE PROPOSTA 20 REFERÊNCIAS 21 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 21 CHAVES DE RESPOSTA 27 ATIVIDADE PROPOSTA 27 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 27 3 Introdução Na presente aula, serão estudados os elementos teóricos que informam o fenômeno da constitucionalização do direito, cujo eixo epistemológico tem como escopo a reconstrução neoconstitucionalista do direito e a visão de que a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios. No que tange à reconfiguração da interpretação constitucional do tempo presente, destaca-se o novo paradigma exegético pós-positivista que desloca para a centralidade do sistema jurídico a eficácia dos princípios constitucionais, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, o objetivo acadêmico desta aula é identificar tais bases teóricas que respaldam a chamada filtragem constitucional, figura hermenêutica que projeta a ideia-força de que as normas infraconstitucionais dos códigos e das leis devem ser interpretados à luz do sentimento constitucional de justiça. Em linhas gerais, é imprescindível a compreensão do fenômeno da constitucionalização do direito dentro do quadro mais amplo da nova interpretação constitucional, aqui percebida como a reconstrução neoconstitucionalista do direito. Tal fenômeno ganha maior visibilidade a partir do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, mas somente chega ao Brasil com a redemocratização do país por ocasião da promulgação da Constituição cidadã de 1988. 4 É preciso compreender que o fenômeno da constitucionalização do direito é fruto da superação da hegemonia positivista da norma legislada. Em outro dizer, é correto afirmar que a aplicação axiomático-dedutiva da lei, aqui vislumbrada como ponto essencial da hegemonia positivista, é superada pela reconstrução neoconstitucionalista do direito, cujo enquadramento hermenêutico-conceitual afasta a visão positivista do Estado-juiz aplicador mecânico da lei. Sendo assim, esta aula tem como objetivo: 1. Compreender as bases teóricas que suportam a evolução exegética da interpretação constitucional, cuja concepção jurídico-metodológica é calcada na reaproximação com a ética a partir das transformações paradigmáticas que perfazem a reconstrução neoconstitucionalista do direito e nova visão da Constituição como um sistema aberto de regras e princípios. Conteúdo Neoconstitucionalismo A interpretação constitucional contemporânea vem passando por transformações paradigmáticas a partir da implantação do assim chamado neoconstitucionalismo, um novo movimento hermenêutico calcado na criação jurisprudencial do direito, cuja legitimação democrática vem da busca de salvaguarda da efetividade das normas constitucionais. 5 Com efeito, em tempos de reconstrução neoconstitucionalista do direito, doutrina e jurisprudência já não hesitam em reconhecer a criação de direito pelo poder judiciário nos casos de omissão do legislador democrático. Tal prática é fundamental para a efetividade das normas constitucionais, notadamente naquelas situações nas quais impera a mora inconstitucional do legislador ordinário na regulamentação dos direitos fundamentais submetidos a uma reserva legal, simples ou qualificada. Com o intuito de superar a insuficiência do paradigma positivista liberal, desponta o movimento neoconstitucionalista superador da aplicação mecânica da lei. Eis aqui um dos principais desafios da presente aula, qual seja, a compreensão do papel de juízes e tribunais na busca de consolidação da força normativa da Constituição. Isto significa dizer, por outras palavras, que a norma posta pelo legislador democrático é apenas mais um elemento hermenêutico colocado à disposição do magistrado/intérprete da Constituição. Com rigor, é a própria Constituição, aqui vislumbrada como um sistema aberto de regras e princípios, a principal fonte de aplicação do direito. É nesse sentido que se afirma que a nova dogmática jurídica brasileira é construída no pós-positivismo ou principialismo, cuja linhagem hermenêutica se esforça para suplantar o normativismo legalista estrito da escola do positivismo jurídico. Luís Roberto Barroso ensina que: A dogmática jurídica brasileira sofreu, nos últimos anos, o impacto de um conjunto novo e denso de ideias, identificadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo ou principialismo. Trata-se de um esforço de superação do legalismo estrito, característico do positivismo normativista, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalismo. Nele se incluem a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria 6 dos direitos fundamentais edificada sob a ideia de dignidade da pessoa. 1 De observar-se, por conseguinte, que as linhas mestras do pós-positivismo alertam para os perigos do paradigma positivista, incapaz de lidar com os problemas constitucionais hodiernos, na medida em que insuficiente para a resolução do conflito de princípios constitucionais de mesma dignidade normativa. Por outro lado, é importante compreender que a reconstrução neoconstitucionalista do direito, focada na tão almejada reaproximação entre ética e direito, não pode esvaziar o princípio fundante da segurança jurídica. Dessarte, a superação da dogmática positivista não pressupõe o retorno nocivo a um jusnaturalismo realizador de desserviços, como por exemplo, a criação de um corpo de conhecimento acientífico caracterizador do mero decisionismo judicial. Repudia-se, aqui, o ativismo judicial desvinculado de justificação científica e, principalmente, desvinculado da força legitimadora da comunidade aberta de intérpretes da Constituição, tal qual vislumbrada por Peter Häberle. 2 Assim, é importante salientar bem a ideia de que o neoconstitucionalismo não se coaduna com decisões judiciais fundamentadas com base na pré- compreensão e a talante do magistrado, sem respaldo de nenhuma teoria científica; ao contrário, a criação do direito pelo juiz só se justifica se feita com apoio em avançadas fórmulas hermenêuticas de viés pós-positivista. E mais: a perspectiva neoconstitucionalista vem com o intuito de dar nova feição para a eficácia das normas constitucionais, notadamente dos princípios constitucionais, cuja força normativa passa a depender diretamente da 1 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Prefácio de Luís Roberto Barroso sob o subtítulo Neoconstitucionalismo, interpretação constitucional e judicialização das relações sociais no Brasil. 2 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. 7 elaboração de uma avançada dogmática pós-positivista, também denominada dogmática principialista. Na verdade, o que se constata no âmbito do neoconstitucionalismo principialista é o esforço de superação do positivismo normativista, buscando- se atribuir normatividade aos princípios, bem como desenvolver uma teoria dos direitos fundamentais edificada sob a égide da dignidade da pessoa humana. Como bem destaca o Professor Guilherme Sandoval Góes: A cada dia que passa novos elementos hermenêuticossão incorporados à interpretação constitucional hodierna com o desiderato de reaproximar o direito da ética. No neoconstitucionalismo, a efetividade dos princípios constitucionais vem sendo consolidada mediante harmonização entre o texto da lei e o sentimento constitucional da distribuição de justiça. (...) Contemporaneamente, a reconstrução neoconstitucionalista do direito vem se desenvolvendo na esteira do discurso axiológico- indutivo que valoriza o principialismo e o pensamento tópico- problemático. Com o objetivo de realizar a Constituição, o exegeta contemporâneo não pode mais ficar adstrito à norma-dado (prius da interpretação constitucional), mas, sim captar seu verdadeiro sentido e alcance a partir da incidência dos elementos fáticos do caso concreto. Neste mister precípuo, haverá, então, de refletir acerca do melhor caminho hermenêutico a seguir, sabendo, no entanto, que sua norma-decisão já devidamente interpretada irá enfrentar o controle subjetivo da sociedade como um todo. 3 De tudo se vê, por conseguinte, que a dogmática jurídica brasileira foi impactada pelo novo conjunto de ideias pós-positivistas, cujos avanços são inexoráveis e que trazem no seu bojo a concepção de um sistema constitucional aberto de regras e princípios jurídicos, o que evidentemente imprime força normativa à Constituição. 3 GÓES, Guilherme Sandoval. Neoconstitucionalismo e dogmática pós-positivista. In: A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Organizado por Luís Roberto Barroso. Renovar: 2007. p. 113. 8 Em consequência, já não se tem mais nenhuma dúvida sobre a nova interpretação constitucional que é edificada, a um só tempo, na ascensão exegética da dignidade da pessoa humana e no eclipse do positivismo jurídico. Eis aqui a essência da reconstrução neoconstitucionalista do direito contemporâneo, qual seja, a superação da racionalidade literal do texto da norma que cede seu lugar para a racionalidade discursiva associada à dimensão retórica das decisões judiciais. Agora, a normatividade do direito não se atrela tão somente ao conteúdo da norma em abstrato, mas, também, ao grau de aceitabilidade da norma- decisão pela consciência epistemológica da comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Portanto, a proposta acadêmico-científica desta aula é examinar a passagem do discurso axiomático-dedutivo (concepção normativista positivista) para o discurso axiológico-indutivo do direito (concepção pós-positivista principialista). O Neoconstitucionalismo e a Leitura Axiológico-Indutiva do Direito Como já dito alhures, a lição do professor Luís Roberto Barroso ensina que a dogmática jurídica brasileira sofreu o impacto de um conjunto novo de ideias pós-positivistas focadas no esforço de superação do legalismo estrito, valendo destacar seus elementos centrais: atribuição de normatividade aos princípios constitucionais, redefinição do conceito de norma jurídica (agora englobando tanto a regra como oprincípio), reabilitação da argumentação jurídica, reaproximação entre o Direito e a Ética, formação de uma nova hermenêutica 9 constitucional e desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sob a ideia de dignidade da pessoa humana. Em apertada síntese, pode-se afirmar que a essência da reconstrução neoconstitucionalista do direito é a superação da aplicação mecânica da lei, desprovida de qualquer incidência ético-normativa sobre o discurso jurídico. Com efeito, a nova interpretação constitucional afasta o dogma da pretensão de completude do direito e da racionalidade literal ligada ao texto da norma, para se aproximar dos paradigmas de racionalidade discursiva associada à teoria da argumentação jurídica. No entanto, a normatividade do direito não se atrela tão somente ao conteúdo da norma in abstracto, mas, também, ao grau de aceitabilidade da norma-decisão pela consciência epistemológica da comunidade aberta de intérpretes da Constituição, tal qual vislumbrada por Peter Häberle. No plano hermenêutico, a reconstrução neoconstitucionalista dá nova feição para a correção normativa do direito, uma vez que imprime força jurígena à dimensão retórica das decisões judiciais, abrindo espaço para a plena efetividade dos princípios constitucionais mediante a reaproximação entre ética e direito, notadamente a partir da técnica da ponderação de valores de mesma dignidade constitucional. Destarte, o primeiro passo é reconhecer que a cosmovisão do paradigma positivista era muito limitada, especialmente porque acreditava que a cientificidade do direito tinha por gênese sua própria sistematicidade intrínseca, o que evidentemente o isolava de qualquer outro fluxo epistemológico (filosofia, sociologia, política). Na visão do velho positivismo jurídico, os valores axiológicos ainda não positivados na Constituição ou nos Códigos infraconstitucionais não tinham o condão de penetrar na equação interpretativa do exegeta, sem o grave risco de quebra desta cientificidade pura. 10 Em consequência, o primeiro passo é reconhecer, com Karl Larenz, a necessidade de reinserir no debate jurídico o conceito de justiça com propósito cientificamente sério, valendo, pois, reproduzir suas palavras, in verbis: O direito positivo que lhes corresponde realizaria o que ele [Perelman] denomina de “politicamente justo”. Bom, mas este só é “justo” quando e na medida em que realize, pelo menos de modo aproximado, o “filosoficamente justo” - correspondente ao estádio de conhecimento de cada época. Em relação a este, porém, Perelman remete os juristas para o diálogo filosófico, o qual não tem resultado. O mérito de Perelman é o de ter legitimado de novo a discussão do conceito de “justiça” com propósito cientificamente sério. 4 Eis que com a força acadêmica de um Karl Larenz citando um Perelman, destaca-se a ideia-força de reinserção cientificamente válida dos conceitos de justiça e ética como fundamentos do direito. De feito, a mundividência hermenêutica positivista – exatamente por afastar a dimensão ética do direito – foi incapaz de impedir as atrocidades cometidas pelo nazismo no período da Segunda Grande Guerra Mundial. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso destaca que “a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro de um quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei”.5 Em síntese, pode-se afirmar que a busca de uma utópica completude do direito (como se fosse possível ao legislador prever preliminarmente todas as 4 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1968. p. 208. 5 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 325. 11 situações do mundo real dos fatos) indiferente aos valores éticos de uma sociedade levou o positivismo a entrar em colapso. E assim é que essa visão axiomática do direito, aqui compreendida como um sistema de certeza jurídica (verdades irrefutáveis), na medida em que os conceitos de norma e direito praticamente coincidem (fruto da completude do direito), é superada pelo neoconstitucionalismo principialista, uma concepção moderna do direito, cujo raciocínio judiciário é desenvolvido como reação contra o positivismo jurídico e seus dois aspectos essenciais, primeiro o dogma da subsunção silogística, segundo o da aplicação dedutiva do direito (parte do geral - lei - para o caso particular). Fácil é perceber, pois, que tanto a concepção dedutiva (aplicação silogística partindo do caso geral para o particular), quanto a visão axiomática (pretensãode completude do direito: conceitos jurídicos fechados capazes de descrever in abstracto toda a realidade social) não se coadunam com normas constitucionais principiológicas de baixa densidade normativa e alto teor axiológico, porém com alto nível de abertura textual. Com efeito, o positivismo jurídico é axiologicamente isolado porque privilegia a aplicação mecânica da lei, que naturalmente afasta o direito da ética, ou seja, a ordem jurídica posta é completa e traz um corpo normativo irrefutável de enunciados apodíticos geradores da certeza jurídica máxima. Trata-se da leitura axiomático-dedutivo do positivismo jurídico, na qual não cabe ao Estado-juiz legislar positivamente, mas, tão somente, atuar como “boca da lei”. Isto significa dizer que o positivismo jurídico fomenta a aplicação mecânica da lei e, sob o dogma da subsunção-silogística, torna desnutrido o processo de interpretação constitucional, na medida em que a operação exegética positivista fica desprovida do jogo concertado dos princípios constitucionais, principal arma dogmática de reaproximação entre a ética e o direito dos dias de hoje. 12 Portanto, a reconstrução neoconstitucionalista aspira, a um só tempo, superar a concepção dedutiva e a leitura axiomática, daí a tendência de implantar a leitura axiológico-indutiva do direito. E mais: o texto aberto dos princípios constitucionais não é adequado para a aplicação mecânica da lei a partir do dogma da subsunção silogística. Assim, é induvidoso que a essência do neoconstitucionalismo é a superação do positivismo jurídico e seus dois pilares de sustentabilidade, quais sejam, a concepção dedutiva do direito e a leitura axiomática da lei. É por tudo isso que o neoconstitucionalismo, calcado na racionalidade retórico-argumentativa das decisões judiciais, refuta a leitura axiomático- dedutiva do direito, colocando em seu lugar a ideia-força de que a Constituição é um sistema axiológico-indutivo em contraposição ao paradigma positivista. O Pós-Positivismo e a Força Normativa dos Princípios Constitucionais Uma vez compreendida a passagem da leitura axiomático-dedutiva do paradigma positivista para a leitura axiológico-indutiva do modelo pós- positivista, é importante identificar agora mais um dos elementos informadores do fenômeno da constitucionalização do direito, qual seja, a força normativa dos princípios constitucionais. Como se acaba de constatar, o neoconstitucionalismo reconstrói o critério de validade da normatividade do direito a partir da leitura moral da Constituição. Nesse sentido, verificou-se que o pensamento neoconstitucionalista rejeitou o direito como um sistema de axiomas irrefutáveis e pré-estabelecidos com capacidade total de regular a vida social em abstrato. Assim sendo, é importante que o aluno compreenda que o positivismo vê o direito como um 13 sistema fechado de regras jurídicas, onde o legislador é capaz de prever antecipadamente todas as hipóteses da vida real (leitura axiomática do direito). É por isso que a escola positivista entende que os princípios constitucionais não são normas jurídicas propriamente ditas, mas, sim, comandos éticos sem valor normativo, isto é, são meros comandos morais vinculadores do legislador democrático, incapazes de gerar direito subjetivo para o cidadão comum, sem intervenção legislativa superveniente. Assim, sob a égide da leitura axiomático-dedutiva do direito, o positivismo vislumbra o direito como um sistema fechado de regras jurídicas. Em consequência, a ideia do positivismo é aquela de reconhecer o status de norma jurídica apenas para as regras jurídicas. Princípios constitucionais são normas imperfeitas que não garantem posições jusfundamentais sem a necessária atuação do legislador democrático. Em outro dizer, não geram de per si direitos diretamente sindicáveis perante o poder judiciário. Ora, se os princípios constitucionais não são normas jurídicas, não têm, por via de consequência, força normativa, o que evidentemente implicar dizer que a Constituição, eivada de princípios, também não tem nenhuma força normativa. Realmente, a Constituição de 1988 é composta, majoritariamente, de princípios jurídicos abertos e que portam de per si valores contrapostos, como por exemplo, a propriedade e sua função social, ou, então, a livre iniciativa/livre concorrência contra os valores sociais do trabalho/defesa do consumidor. E mais: para o positivismo jurídico, princípios constitucionais são comandos normativos que não trazem maiores detalhamentos acerca das condutas necessárias para a realização dos fins pretendidos, optando-se por fórmulas abertas, que projetam “estados ideais” ou “valores”. Portanto, a exegese dos princípios é mais complexa, na medida em que não se coaduna com a 14 subsunção do fato à norma, exigindo, pois, a intervenção do intérprete na busca do sentido e do alcance da norma positivada pelo legislador. De tudo se vê, por conseguinte, que a reconstrução neoconstitucionalista do direito tem a pretensão de atribuir força normativa aos princípios jurídicos, seja pela superação do dogma da subsunção silogística, seja pelo reconhecimento do status de norma jurídica aos princípios constitucionais. Afasta-se a intelecção do esquema positivista calcado na aplicação mecânica do juiz “boca da lei” dentro de um sistema fechado de regras jurídicas. É nesse sentido que o neoconstitucionalismo rejeita a operação exegética simples do esquema normativista kelseniano, na qual o legislador assume a postura de "proprietário dos sentidos da norma posta” e que nada "deixa" para a dimensão retórico-argumentativa das decisões judiciais na entrega da tutela jurisdicional do caso concreto. Com essas observações, é possível constatar que o paradigma neoconstitucional busca afastar a hegemonia exegética das regras jurídicas postas pelo legislador democrático, para se aproximar da força normativa dos princípios jurídicos, força esta que dimana da “consciência epistemológica da sociedade aberta de intérpretes da Constituição de Häberle, daí a busca de um contexto intersubjetivo de fundamentação para as decisões judiciais feitas com espeque no constitucionalismo principialista de viés pós-positivista. Com isso, amplia-se o horizonte da nova interpretação constitucional no que tange à plena efetividade dos princípios abertos, cuja legitimação democrática vem da reaproximação entre ética e direito. No âmbito do neoconstitucionalismo pós-positivista, a concretização da norma principiológica aberta com dignidade constitucional é feita pelo intérprete/juiz de acordo com um novo modelo exegético que faz uso daqueles fatos do mundo real que portam juridicidade e que incidem sobre a letra da lei, gestando assim a norma-resultado de forma axiológica. 15 Aqui, o que releva sublinhar, pois, é a força que impele o pós-positivismo jurídico na direção da normatividade dos princípios, cujo espírito normativo- científico afasta toda e qualquer fórmula hermenêutica focada na aplicação mecânica da lei. Nesse diapasão, o aluno haverá de concordar que o ponto culminante do paradigma neoconstitucional é a concretização dos princípios constitucionais abertos e de baixa densidade normativa, porém com latitude dogmática suficiente para garantir um direito subjetivo de per si, sem necessidade de recorrer à intervenção legislativa superveniente. Dessarte, a decisão final do magistrado relativa ao caso concreto nem sempre será fruto de uma operação exegética simples de subsunção silogística, mas, pode, sim, derivar de um processo de ponderação de valores de mesma dignidade constitucional. Isto significa dizer que não há mais prevalência da aplicação mecânica da lei de um juiz tecnicista, desprovido de influxos axiológicos e sem considerar os elementos fáticosdo caso decidendo. Para a solução da tensão entre normas de mesma dignidade constitucional, desponta a figura jurídica da ponderação de valores que exige das decisões judiciais a racionalidade ético-discursiva inspirada no sentimento constitucional de justiça e cuja normatividade está associada ao grau de aceitabilidade da norma-decisão pela comunidade aberta de intérpretes da Constituição. É nesse sentido que se afirma a rejeição à concepção tecno- formal do positivismo jurídico, afastando-se, do paradigma axiomático- silogístico-dedutivo-liberal-negativista-garantista. É o aparecimento do paradigma neoconstitucional pós-positivista que refuta a visão de que a letra da lei determina o que é que alguém deve (juridicamente) fazer num caso concreto, em cumprimento de uma situação jurídico-normativa fixada in abstracto pelo poder legislativo. Ou seja, a decisão jurídica não é mera aplicação silogística das premissas contidas na letra da norma, ao contrário, a letra da norma não é a norma em si mesma; 16 esta última – a norma propriamente dita – é fruto de um processo exegético complexo que não se restringe à subsunção do fato à letra da norma previamente positivada pelo legislador democrático, mas, resulta de uma ponderação de valores feita no caso concreto (concepção indutiva do direito). Fácil, portanto, é compreender a reação do pós-positivismo jurídico ao modelo exegético positivista. Agora, o arcabouço neoconstitucional pós- positivista está alicerçado na teoria da argumentação jurídica, que desloca para a sua centralidade a busca da plena efetividade dos princípios constitucionais, notadamente, o princípio da dignidade da pessoa humana. Como já amplamente examinado, a normatividade dos princípios não está atrelada apenas à literalidade da norma posta, mas vem também do círculo de intérpretes da Constituição, que alcança toda a sociedade. Nesse sentido, é imperioso destacar que um dos grandes elementos exegéticos diferenciadores do novo paradigma neoconstitucional é exatamente a legitimidade democrática que o auditório universal imprime às decisões judiciais. Em essência, é certo afirmar que a atuação interpretativa do juiz não é um ato de vontade, não é um ato de poder associado à pré- compreensão do magistrado. Ao contrário, a interpretação da Constituição alcança a todos, e, não apenas os participantes do processo jurídico-decisional. Concretizar a Constituição não é apenas construir a norma-decisão a partir da letra da lei, mas, sim, realizar a pauta axiológica constante do seu próprio texto. Trata-se, pois, de demanda da sociedade por decisões judiciais fundadas em princípios portadores de elevado teor axiológico, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana. Eis que a cultura hermenêutica neoconstitucional nesse sentido é hermeneuticamente avançada, uma vez que suplanta a imagem de que o 17 direito é um sistema fechado de regras jurídicas de racionalidade literal ou linguística, consistente em subsumir o fato à norma legislada. Numa palavra: se, para o positivismo, o direito é fechado em si mesmo (sistema autopoiético), para a reconstrução neoconstitucionalista é um sistema aberto de regras e princípios. É nesse contexto que, contemporaneamente, ocorre a invasão do direito pela ética, seja pela necessidade de legitimação democrática das decisões judiciais, seja pela necessidade de se atribuir força normativa aos princípios. Em face disso, é preciso compreender que o paradigma neoconstitucional pós-positivista não reconhece a imagem de um sistema fechado, autorreferente e isolado dos demais subsistemas sociais. Como amplamente visto, não se pode esquecer que as decisões judiciais já não podem mais ser fundamentadas apenas com base na letra da lei, sem outras conexões com argumentos políticos, econômicos e sociais. Daí a relevância da visão de que a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios, que imprime à interpretação constitucional um viés dinâmico que se traduz em maior capacidade de reaproximar o direito e a ética. Com efeito, por intermédio da estrutura aberta dos princípios constitucionais, o exegeta capta o conceito mutante de justiça e faz o direito avançar na direção da proteção dos hipossuficientes e da valorização da dignidade da pessoa humana. Assim, a conexidade entre o direito e a ética se dá primordialmente mediante a interpretação constitucional das normas insculpidas sob a forma de princípios. É nesse passo, que o sistema neoconstitucional aberto autoriza o juiz a invocar valores morais na solução de problemas jurídicos a resolver, não 18 ficando adstrito ao dogma da completude do direito dentro de um sistema fechado de meras regras jurídicas. É o próprio artigo 5°, § 2º, da Constituição de 1988, que simboliza bem esta noção de modelo axiologicamente aberto pelo reconhecimento de outros direitos fundamentais advindos do regime, dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais. É bem de ver, por conseguinte, que a Constituição de 1988 é um sistema aberto, no qual o conjunto de princípios se entrelaça com o de regras, tendo- se como resultado o equilíbrio entre a distribuição de justiça social e a certeza jurídica. De feito, são as regras que garantem a segurança jurídica, restando aos princípios a distribuição da justiça social. Portanto, se, por um lado, é correto dizer que a invasão da ética no direito depende da força normativa dos princípios constitucionais, por outro lado, não menos certo é afirmar que a certeza jurídica é função das regras constitucionais. Cientificamente falando, não existe um sistema puro de princípios e nem de regras. Um sistema constitucional puro de princípios resolveria o problema da incompletude das regras, bem como da reaproximação com a ética, porém, pecaria pelo alto grau de indeterminação e de insegurança jurídica. Para usar linguagem de Luhmann, um sistema puro de princípios não realizaria a função do Direito, que é "reduzir complexidade". Em suma, a combinação de princípios e regras dentro de um sistema constitucional aberto tem o condão de harmonizar a justiça social com a certeza jurídica. Pode-se então afirmar que a nova metódica pós-positiva de concretização da Constituição é um sistema teleológico aberto, no qual se valoriza a dimensão retórico-argumentativa das decisões judiciais. Neste sentido, a ideia de uma Constituição vislumbrada como um sistema aberto de regras e princípios é essencial à reaproximação entre o direito e a ética, na medida em que 19 estabelece o contato entre a decisão judicial e sua aceitabilidade pela comunidade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Häberle). Aqui o aluno deve compreender que a teorização de um direito "constitucionalmente aberto" demanda inexoravelmente uma interpretação constitucional focada na vinculação direta dos atores públicos e privados aos princípios da Constituição. Por isso, quando se afirma que a Constituição configura um sistema aberto de regras e princípios, tem-se em mente que é o princípio da unidade da Constituição que haure a nova interpretação constitucional, ou seja, até mesmo as regras constitucionais não podem ser interpretadas isoladamente, mas, sim, levando em consideração os princípios que lhes servem de supedâneo. A força normativa da Constituição pressupõe a plena sindicabilidade dos princípios lado a lado com as regras, fazendo valer a ideia- força de que a Constituição é juridicamente eficaz na garantia de um direito subjetivo ao cidadão. A modelagem aberta da Constituição permite a harmonização de valores contrapostos aos da democracia liberal e da social democracia, eliminando as debilidades tanto de um "sistema puro de regras" (capacidade limitada de realizar a justiça social), quanto de um “sistema puro deprincípios" (menor grau de segurança jurídica e menor capacidade de reduzir complexidade). Enfim, um sistema jurídico dinâmico e aberto – concebido a partir de estrutura dialógiconormativa dual, que se traduz na igual força normativa de regras e princípios – tem a capacidade de superar o vazio axiológido dos sistemas autopoiéticos, ao mesmo tempo em que é capaz de acompanhar a evolução social da realidade cambiante das sociedades plurais e complexas do tempo presente. 20 Não obstante o termo “força normativa da Constituição” frequente na maioria dos textos da escola pós-positivista, em nenhum se faz tão imperioso, quanto na concepção aberta da Constituição, a necessidade de se conceber um novo centro axiológico do Estado Democrático de Direito focado na efetividade dos direitos fundamentais e, em especial, na dignidade da pessoa humana. Em direito neoconstitucional, os princípios são vetores exegéticos que se projetam sobre a ordem constitucional posta e que introduzem, no âmago da ciência jurídica, a reaproximação com a ética. Um sistema aberto não é meramente um conjunto de enunciados normativos de aplicação silogística, mas o conjunto de mandamentos cogentes vinculadores não apenas do legislador democrático, mas, também, dos poderes executivo e judiciário (eficácia vertical dos direitos fundamentais), bem como dos atores privados (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Atividade Proposta Leia o texto abaixo e responda justificadamente à questão formulada: Contemporaneamente, a reconstrução neoconstitucionalista do direito vem sendo impulsionada pelo discurso axiológico-indutivo em cuja base se encontram o principialismo e o pensamento tópico- problemático. Com o objetivo de realizar a Constituição, o exegeta contemporâneo não pode mais ficar adstrito à norma-dado (prius da interpretação constitucional), mas, sim captar seu verdadeiro sentido e alcance a partir da incidência dos elementos fáticos do caso concreto. Neste mister, haverá, então, de refletir acerca do melhor caminho hermenêutico a seguir, sabendo, no entanto, que sua norma-decisão já devidamente interpretada irá enfrentar o controle subjetivo da sociedade como um todo. A partir da leitura do texto acima, explique o significado da expressão “a reconstrução neoconstitucionalista do direito vem sendo impulsionada pelo discurso axiológico-indutivo em cuja base se encontram o principialismo e o pensamento tópico-problemático”. 21 Referências BARROSO, Luís Roberto. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. _______. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2009. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. LASSALLE, F. A essência da constituição. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. Exercícios de Fixação Questão 1 Luís Roberto Barroso, um dos grandes constitucionalistas do país, entende que: “O Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivismo jurídico. A aproximação quase absoluta entre Direito e norma e 22 sua rígida separação da ética não correspondiam ao estágio do processo civilizatório e às ambições dos que patrocinavam a causa da humanidade”. Com a ajuda do texto, aponte a resposta correta: a) O pós-positivismo vislumbra a Constituição como um sistema fechado de regras jurídicas. b) Na dogmática pós-positivista, os conflitos de princípios devem ser resolvidos a partir da aplicação silogístico-subsuntiva da lei. c) O pós-positivismo jurídico busca valorizar o discurso axiomático- indutivo do direito. d) O pós-positivismo simboliza a ascensão dos valores e o reconhecimento da normatividade dos princípios sob a égide da essencialidade dos direitos fundamentais. e) O pós-positivismo aposta na precisão da linguagem do direito, não admitindo a possibilidade de conflitos entre as normas constitucionais. Questão 2 Sobre a essência da reconstrução neoconstitucionalista do direito contemporâneo, assinale a alternativa que não se coaduna com tal movimento: 23 a) a racionalidade discursiva está associada à dimensão retórica das decisões judiciais. b) a normatividade do direito não se atrela tão somente ao conteúdo da norma in abstracto, mas também ao grau de aceitabilidade da norma- decisão pela comunidade aberta de intérpretes da Constituição. c) a busca de reaproximação entre o direito e a Ética a partir da normatividade dos princípios constitucionais. d) o pensamento axiológico-indutivo do direito como superação do dogma da subsunção. e) a reconstrução neoconstitucionalista vem sendo impulsionada pelo discurso axiomático-dedutivo do direito em cuja base se encontra a aplicação mecânica da lei. Questão 3 Na visão de Luís Roberto Barroso, o pós-positivismo identifica um conjunto de ideias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão da normatividade dos princípios a partir de leitura ética da 24 Constituição. Portanto, no âmbito de um estado democrático de direito, a discussão ética volta ao Direito, especialmente com a nova hermenêutica calcada na ponderação de valores e na reelaboração teórico-filosófica do direito. Assim, assinale a alternativa correta: a) O método positivista funda-se no silogismo jurídico e na concepção dedutiva do direito. b) O pós-positivismo faz a aproximação quase plena entre direito e norma. c) Para o positivismo, tanto as regras como os princípios são normas jurídicas. d) Entre outras características da reconstrução neoconstitucionalista do direito, destaca-se o legalismo normativista estrito. e) O paradigma positivista concebe a teoria dos direitos fundamentais edificada sob a égide da dignidade da pessoa humana. Questão 4 Em relação à postura neoconstitucionalista do direito, analise cada item a seguir e informe se as alternativas são VERDADEIRAS ou FALSAS: 25 I. I – Um dos fatores de surgimento do neoconstitucionalismo é a insuficiência do discurso axiomático-dedutivo do direito na solução de problemas constitucionais hodiernos. II. II – A estrutura neoconstitucionalista está pautada por um discurso dogmático sistêmico com base na dimensão axiológico-dedutiva do direito. III. III – O discurso pós-positivista surge da necessidade de superação da interpretação constitucional baseada apenas na letra da lei. IV. IV – O neoconstitucionalismo realiza a correção normativa do direito com espeque na teoria da argumentação jurídica. a) V; F; F; V. b) F; V; F; V. c) F; V; V; V. d) V; F; V; V. e) V; V; F; F. Questão 5 No superado modelo normativo-positivista, tendencialmente, a ciência do direito deveria buscar um método que garantisse a: 26 I. Segurança jurídica. II. Força normativa aos princípios. III. Aplicação mecânica das regras jurídicas. IV. Criação do direito pelo juiz com base na leitura ética da constituição. V. Solução axiológico-indutiva dos problemas jurídicos. Somente é CORRETO o que se afirma em: a) I, III e V. b) II, III e IV. c) I e III. d) III e V. e) I, III e IV. 27 Atividade Proposta Com efeito, a reconstrução neoconstitucionalista do direito caminha na direção da leitura moral da Constituição (leitura axiológica focada nosprincípios constitucionais), bem como na concepção indutiva que parte do casoconcreto (problema a resolver) para o caso geral (identificação da norma a ser aplicada). De fato, a reconstrução neoconstitucionalista do direito afasta o discurso axiomático-dedutivo do paradigma positivista. É nesse sentido que se afirma que a nova interpretação constitucional inverte o sinal positivista axiomático-dedutivo deslocando-o para a dimensão axiológico-indutiva do direito. O dador da norma-decisão (juiz ou intérprete) faz uso de novas fórmulas teóricas, aptas a superar a letra da lei, mas que, no entanto, permaneçam subordinadas à ordem jurídica como um todo. É o que Karl Larenz brilhantemente denomina de “direito extra legem, porém, intra jus.” Em consequência, é preciso reconhecer a insuficiência do positivismo jurídico no que tange aos casos difíceis, que não encontram uma formulação direta e abstrata no corpo de normas do Estado, sendo necessária a intervenção científico-hermenêutica do intérprete na escolha da decisão final. Exercícios de fixação Questão 1- D Justificativa: Com efeito, a reconstrução neoconstitucionalista e o pós- positivismo, a cada dia que passa, incorporam novos elementos hermenêuticos à interpretação constitucional hodierna com o desiderato de garantir a efetividade dos princípios jurídicos. É nesse diapasão que o pós- positivismo simboliza a ascensão dos valores e da plena normatividade dos princípios constitucionais a partir de relevante elaboração científica de novas fórmulas dogmáticas e, em especial, a garantia do núcleo essencial dos direitos fundamentais. 28 Questão 2 - E Justificativa: Contemporaneamente, a reconstrução neoconstitucionalista do direito vem sendo impulsionada pelo discurso axiológico-indutivo em cuja base se encontram o principialismo e o pensamento tópico-problemático. Com o objetivo de realizar a Constituição, o exegeta contemporâneo não pode mais ficar adstrito à norma-dado (prius da interpretação constitucional), mas, sim, captar seu verdadeiro sentido e alcance a partir da incidência dos elementos fáticos do caso concreto (pensamento indutivo). Neste mister, haverá, então, de refletir acerca do melhor caminho hermenêutico a seguir, sabendo, no entanto, que sua norma-decisão, já devidamente interpretada, irá enfrentar o controle subjetivo da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Questão 3 - A Justificativa: Com efeito, são características do positivismo tanto a concepção dedutiva (aplicação silogística partindo do caso geral para o particular), quanto a visão axiomática (pretensão de completude do direito: conceitos jurídicos fechados capazes de descrever in abstrato toda a realidade social). Tais características não se coadunam com a força normativa das normas constitucionais principiológicas de baixa densidade normativa e alto teor de vagueza. De fato, no constitucionalismo brasileiro, que é axiologicamente fragmentado, a aplicação inflexível do discurso positivista de cunho axiomático-dedutivo do direito torna desnutrido o processo de interpretação constitucional, uma vez que a operação exegética fica desprovida do jogo concertado dos princípios, principal instrumento da atividade decisória dos magistrados de hoje em dia. Questão 4 - D Justificativa: Somente a assertiva II é falsa, pois a estrutura neoconstitucionalista está pautada por um discurso dogmático sistêmico com base na dimensão axiológico-indutiva do direito. 29 Questão 5 - C Justificativa: Somente as assertivas I e III são relativas ao positivismo, pois a força normativa aos princípios, a criação do direito pelo Juiz com base na leitura ética da Constituição e a solução axiológico-indutiva dos problemas jurídicos são características do pós-positivismo. Atualizado em: 22 jun. 2014 1 2 AULA 2: BASES TEÓRICAS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO – PARTE II 3 INTRODUÇÃO 3 CONTEÚDO 3 O CONTROLE DEMOCRÁTICO DAS DECISÕES JUDICIAIS NO PLANO CONCRETO DE SIGNIFICAÇÃO 5 A DIFERENÇA ENTRE “TEXTO DA NORMA” E “NORMA PROPRIAMENTE DITA” 12 O TEXTO DA NORMA COMO PARTE VISÍVEL DO ICEBERG NORMATIVO 16 ATIVIDADE PROPOSTA 23 REFERÊNCIAS 23 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 24 CHAVES DE RESPOSTA 30 ATIVIDADE PROPOSTA 30 EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 31 3 Introdução O conteúdo programático desta aula tem por escopo o estudo das mudanças hermenêuticas que informam o fenômeno da constitucionalização do direito, notadamente a questão do controle democrático intersubjetivo das decisões judiciais, perpassando pela análise da diferença entre os conceitos de “texto da norma” e “norma propriamente dita” na viragem do neoconstitucionalismo, para, finalmente, adentrar ao exame do significado hermenêutico do chamado “iceberg normativo de Friedrich Müller”. Sendo assim, esta aula tem como objetivo: 1. Compreender o contexto normativo contemporâneo, no qual se destaca a necessidade do controle intersubjetivo das decisões judiciais, bem como a diferença entre os conceitos de “texto da norma” e “norma propriamente dita” e, na sua esteira epistemológica, a compreensão do texto escrito como a parte visível da norma-resultado no plano concreto de significação. Conteúdo Como já se comentou na aula anterior, o contexto dogmático hodierno vive a invasão do direito pela ética, seja pela necessidade de legitimação democrática das decisões judiciais, seja pela necessidade de se atribuir força normativa aos princípios. 4 É nesse diapasão que exsurge a necessidade daquela imagem de que a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios, imagem esta que é capaz de compatibilizar uma dogmática axiológica garantidora dos direitos fundamentais, com a necessária segurança jurídica de uma sociedade plural e democrática. Com efeito, é por intermédio da estrutura aberta dos princípios constitucionais que se alcança a proteção dos hipossuficientes e a valorização da dignidade da pessoa humana, da mesma forma que é a estrutura fechada das regras que imprime a certeza do ordenamento jurídico. Hoje em dia, o objeto do direito neoconstitucional não é somente o texto escrito da norma posta pelo legislador democrático, mas, também, e, principalmente, a norma interpretada pelo juiz/exegeta. A invocação dos valores morais é hoje o traço jurídico que caracteriza a dogmática pós- positivista. A nova metódica sustenta que o direito não se limita à norma escrita, na qual predomina a racionalidade linguística do texto; é dizer o direito hodierno não deixa de fora a retitude material dessa norma aferida a partir da incidência dos elementos fáticos e axiológicos advindos do caso concreto. As diretrizes normativo-jurídicas do novo quadro neoconstitucional caminham na direção do engrandecimento dos paradigmas de racionalidade retórico- argumentativa, cujo ethos hermenêutico é construir a normatividade das decisões judiciais com base no grau de adesão da comunidade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Häberle). Aqui, o aluno deve compreender a visão alexyana de que os princípios são normas abstratas feitas pelo poder legislativo, mas que devem ser realizados na maior medida possível pelo juiz/intérprete. Postula-se desse modo a necessidade de um modelo articulado não somente com a racionalidade literal ou linguística do texto da norma, mas, 5 principalmente, com a racionalidade discursiva ou retórico-argumentativa, própria da fundamentação jurídica usada pelo exegeta no processo de interpretação constitucional. Ou seja, as normas-decisão – situadas no âmbito da efetividade ou eficácia social – são as normas que resultaram do processo interpretativo com base na racionalidade retórico-argumentativa empregada pelo juiz/ intérprete. Veja-se, nesse sentido, que, sob a égide do neoconstitucionalismo,a teoria hermenêutica da norma jurídica consolida a tese da não identidade entre “texto da norma” e “norma propriamente dita”. Trata-se, pois, de uma construção teórica que parte dos elementos fáticos do caso decidendo, vale dizer dos fatos do mundo da vida, que portam juridicidade e que, por conseguinte, penetram no discurso axiológico-indutivo do direito (fatos portadores de juridicidade). É por tudo isso que a presente aula pretende abordar três grandes segmentações temáticas, a saber: O controle democrático das decisões judiciais no plano concreto de significação; A diferença entre “texto da norma” e “norma propriamente dita”; O texto da norma como parte visível do iceberg normativo. O Controle Democrático das Decisões Judiciais no Plano Concreto de Significação Como já amplamente examinado, é a partir da (re)fundamentação do pensamento jurídico, amparado no marco teórico do neoconstitucionalismo, que surge um novo mundo hermenêutico que antes os juízes positivistas não podiam ver. Nesses termos, o pensamento originário positivista tinha a visão da árvore (norma escrita posta pelo legislador democrático) e não da floresta (valores 6 constitucionais a serem protegidos). Daí o motivo de a norma jurídica requerer sempre uma interpretação mecânica de subsunção silogística. Ora, é sabido por todos que os princípios constitucionais são aplicados mediante uma dimensão de peso, tendo em vista os elementos fáticos e jurídicos do caso concreto. Logo, o magistrado não pode proferir sua decisão judicial final no plano concreto de significação por meio apenas do procedimento lógico-formal, segundo um modelo clássico do silogismo axiomático-dedutivo. Com efeito, o processo de interpretação do direito realizado pelo poder judiciário na vertente positivista segue a linha inflexível do juiz soldado da lei. Isto significar dizer que o caminho hermenêutico percorrido pelo juiz positivista deve ser axiologicamente neutro, absoluto, completo e definitivo (visão autopoiética do direito). Ou seja, a lógica positivista está presa ao vazio ético da norma escrita legislada, não absorvendo nenhum tipo de leitura axiológica do conteúdo dessa norma. A missão do juiz positivista é atuar como um agente garantidor da ordem jurídica posta, não lhe cabendo agir positivamente na transformação da sociedade. Tal postura é um reflexo desta própria lógica positivista, isto é, da hegemonia exegética do texto da norma. É por tudo isso que, a partir da segunda metade do século XX, o positivismo jurídico entra em declínio, despontando, em seu lugar, a concepção da escola pós-positivista do direito. Com o desiderato de solucionar os problemas constitucionais atuais não resolvidos pelo sistema anterior, que impunha um hiato entre a realidade ético-social e o direito, o novo paradigma neoconstitucional pós-positivista busca superar tais dificuldades. Como exemplos irrespondíveis, vale destacar os problemas da bioética, do biodireito e da projeção constitucional dos direitos da personalidade. Da 7 mesma forma, vale lembrar a ADPF 54, que tratou da possibilidade de antecipar o parto em casos de anencefalia, bem como a ADI 3510, relativa à manipulação das chamadas células-tronco embrionárias. São problemas constitucionais que o positivismo jurídico, orientado pela interpretação clássica, do geral para o particular (concepção dedutiva do direito), impondo ao juiz simplesmente aplicar a regra, e, na sua lacuna, os princípios gerais de direito, não resolvem. No entanto, o novo paradigma não pode ser confundido com o mero decisionismo judicial, aqui percebido como a criação jurisprudencial do direito sem nenhuma cientificidade. Ao revés, a norma interpretada – muito embora seja o resultado final do processo exegético – não pode ser vislumbrada como ato volitivo do magistrado (positivismo jurídico kelseniano). Como bem destaca Lenio Luiz Streck: Permaneço, destarte, fiel à tese assumida de há muito, de maneira a enfatizar e a reprimir com veemência - a começar pela nomenclatura - a possibilidade de o discricionário (repita-se, de aceitabilidade conceitual cogitável uma vez contextualizada a discricionariedade naqueles limites traçados por Castanheira Neves) revestir-se de arbitrário. Na hermenêutica aqui defendida não há respostas/interpretações (portanto, aplicações) antes da diferença ontológica ou, dizendo de outro modo, antes da manifestação do caso decidendo. 1 Assim, é certo afirmar que discricionariedade (com aceitabilidade social) não é arbitrariedade (com mero decisionismo judicial). Urge, pois, superar tal normativismo positivista, no qual predomina o solipsismo subjetivista do magistrado, que Lenio Streck denomina de “subjetividade assujeitadora de um sujeito que se considera "proprietário dos sentidos (abstratos) do direito" 1 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed., rev, atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 422. 8 e que nada "deixa" para a faticidade”.2 É nesse sentido que o neoconstitucionalismo rejeita a operação exegética simples do esquema normativista kelseniano, na qual o legislador assume a postura de "proprietário dos sentidos da norma posta” e que nada "deixa" para a dimensão retórico-argumentativa das decisões judiciais na entrega da tutela jurisdicional do caso concreto. Portanto, opera-se a passagem do juiz conforme a lei do positivismo para o juiz conforme a Constituição do neoconstitucionalismo. Nas palavras de André Ramos Tavares: A proposta remonta, preliminarmente, à distinção entre juiz conforme a lei e juiz da lei, ou seja, entre a postura clássica da função jurisdicional (juiz conforme a lei) e a postura desenvolvida, sobretudo, com o constitucionalismo e, com maior intensidade, pelo neoconstitucionalismo (juiz da lei, juiz conforme a Constituição).3 Com rigor, observa-se o afastamento da aplicação mecânica do direito pelo juiz conforme a lei, é dizer afasta-se a hegemonia exegética do texto da norma exercida por um juiz soldado da lei, preocupado com o cumprimento das leis em vigor e completamente desvinculado da retitude material da norma escrita. Em seu lugar, surge o juiz constitucional, ciente do seu papel dentro de uma sociedade plural, complexa e desigual, cuja atuação jurisdicional deve ficar subordinada, como já amplamente visto, à “consciência epistemológica de uma sociedade democraticamente pluralista”. 2 Nas palavras do autor, verbis: “Se se quiser, poder-se-á dizer que a discricionariedade que combato - e nesse sentido me aproximo da posição de C. Neves - é aquela decorrente do esquema sujeito-objeto, da consciência de si do pensamento pensante, enfim, da subjetividade assujeitadora de um sujeito que se considera "proprietário dos sentidos (abstratos) do direito" e que nada "deixa" para a faticidade”. ibidem. 3 TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 19. 9 Isto significa dizer que a legitimidade democrática das decisões judiciais é função de um contexto intersubjetivo de fundamentação. Ou seja, a normatividade do direito não se atrela tão somente ao texto da norma no plano abstrato de significação, mas, também, ao grau de aceitabilidade da norma-decisão (norma interpretada) pelo auditório universal, tal qual concebido por Chäim Perelman. 4 Com isso, destaca-se a importância da teoria da argumentação jurídica na aplicação do direito pelo juiz constitucional, isto é, no âmbito de sua atuação, não existem verdades apodíticas, axiomas irrefutáveis, mas, sim, opções razoáveis capazes de promover a adesão do auditóriouniversal, conceito este que deve, induvidosamente, coincidir com a comunidade aberta de intérpretes da Constituição de Peter Häberle. Com rigor, não se pode negar que o convencimento do auditório universal de Perelman (agora percebido também como a sociedade aberta de intérpretes de Häberle) depende da fundamentação jurídica, ou seja, quanto maior o grau de coerência das razões expostas pelo juiz constitucional, maior a racionalidade do discurso e, portanto, maior a aceitabilidade da decisão judicial (norma-decisão) pelo auditório universal e pela sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Tal fato legitima, sem nenhuma dúvida, a atuação do juiz constitucional, reduzindo o déficit democrático imputado ao poder judiciário. Em suma, diferentemente do juiz soldado da lei, a atuação do juiz constitucional constrói cientificamente uma nova lógica jurídica intrínseca e democraticamente pluralista e mais afeita às ideias de sistema aberto de regras e princípios, reaproximação entre direito e ética, força normativa da Constituição, paradigmas de racionalidade argumentativa, garantia dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. 4 PERELMAN, Chäim. Lógica jurídica. Nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 10 O núcleo central da nova dogmática encontra-se exatamente nesta contínua aprovação da comunidade aberta härbeleana de intérpretes da Constituição e do auditório universal perelmaniano, porque coloca em confronto direto valores constitucionais igualmente protegidos no seio da sociedade democrática. Há, pois, nítida articulação entre razão e ação, entre ética e direito, entre norma e valor. O espírito normativo-científico da nova dogmática constitucional deve afastar toda e qualquer atuação calcada no mero decisionismo judicial. Nesse diapasão, o aluno haverá de concordar que muito pior que o “positivismo desprovido de abertura axiológica” é o “decisionismo pós-positivista desprovido de cientificidade”.5 Firme, portanto, a visão de uma nova postura do juiz constitucional que não pode se deixar seduzir pelo caminho fácil do ativismo judicial desproporcional, sem freios hermenêuticos e desvinculado do controle intersubjetivo da sociedade como um todo. A Constituição configura um sistema normativo axiológico, cujas normas são mandamentos cogentes que devem ser obedecidos, seja pelo legislador democrático, seja pelo poder judiciário. É nesse sentido que surge, sim, a necessidade de controle democrático intersubjetivo da margem de discricionariedade de juízes e tribunais na concretização da Constituição. 5 Assim, acreditamos piamente ser possível edificar-se a reconstrução neoconstitucionalista do direito a partir de um sistema axiológico-indutivo pautado na racionalidade discursiva do direito. Com isso, amplia-se o horizonte da interpretação constitucional e em seu bojo a perspectiva de se atribuir cientificamente normatividade a princípios abertos segundo um novo padrão exegético pós-positivista que explora a noção de fatos portadores de juridicidade. O que releva sublinhar, portanto, é a fé que anima a reconstrução neoconstitucionalista do direito e que é seu espírito científico que afasta modelagem hermenêutica de base jusnaturalista. Nesse diapasão, o leitor haverá de concordar que muito pior do que um “positivismo desprovido de abertura axiológica” é o “decisionismo pós- positivista desprovido de cientificidade”. Cf GÓES, Guilherme Sandoval. Neoconstitucionalismo e dogmática pós-positivista. In: A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Organizado por Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 124. 11 Note-se que a essência democrática da reconstrução neoconstitucionalista sempre será uma forma de controle que se passa entre cidadãos diversos, cujo convencimento imprime legitimidade à dimensão retórico-argumentativa (dianoética) das decisões judiciais. Com rigor, tais cidadãos são os destinatários das decisões judiciais (os elementos componentes tanto da sociedade aberta de intérpretes da Constituição de Häberle quanto do auditório universal de Perelman) e estarão aptos a julgar a norma-decisão do magistrado a partir da argumentação jurídica usada na escolha dos princípios constitucionais vencedores na solução do caso decidendo. É bem de ver, pois, que a argumentação jurídica feita pelo juiz/exegeta é o elemento nuclear do controle democrático das decisões judiciais porque permite que todos os intérpretes da Constituição, elementos componentes do auditório universal, avaliem a tese jurídica engendrada para a solução do caso concreto. Em síntese, é o convencimento deste círculo universal que serve de base para a legitimação democrática da decisão final (norma-resultado no plano concreto de significação) do poder judiciário. Em suma, as decisões feitas em nome do Estado-pacificador de lides resistidas devem observar os influxos de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, devendo, portanto, buscar sua nobreza hermenêutica no seio da comunidade aberta de intérpretes da Constituição (concepção de Peter Häberle) e do convencimento do auditório universal (construção de Chäim Perelman). Uma vez compreendida a relevância do controle intersubjetivo democrático das decisões judiciais, importa agora investigar mais um dos elementos teóricos que informam o fenômeno da constitucionalização do direito e que é 12 a diferenciação entre o texto do comando normativo e a norma propriamente dita. A Diferença entre “Texto da Norma” e “Norma Propriamente Dita” Em tempos de democracia pós-moderna, no seio de uma sociedade globalizada, complexa, plural, assimétrica e democrática, predomina induvidosamente um contexto jurídico dominado pelo assim chamado fog of wright (nevoeiro do direito). Esta ideia de nevoeiro do direito simboliza a obscuridade normativa que se forma nas diferentes camadas de uma sociedade axiologicamente fragmentada e constituída de grande número de conflitos de diferentes matizes (políticos, sociais, econômicos, culturais, éticos, trabalhistas, religiosos, etc.). Disso tudo resulta reduzida possibilidade de grandes consensos, daí a relevância da compreensão do significado do constitucionalismo compromissório, isto é, tal nevoeiro ético-normativo é o símbolo de um constitucionalismo compromissório que tenta, a um só tempo, conciliar valores axiológicos da democracia liberal e da social democracia. Por certo, o intérprete da Constituição tem que conviver com antinomias aparentes que colocam, e.g., de um lado, a livre iniciativa, a livre concorrência e a propriedade (valores da democracia liberal), e, do outro, o direito do consumidor, a proteção dos hipossuficientes, a igualdade material e a função social da propriedade (valores da social democracia). Destarte, será a figura jurídica da ponderação de valores o norte dogmático das decisões judiciais, cujo alcance normativo deve ser compatível com o sentimento constitucional de justiça. A validade normativa da decisão judicial está associada aos valores éticos projetados como princípios constitucionais. 13 Nesse sentido, a solução jurídica possível somente será alcançada a partir do caso concreto, o que evidentemente afasta as teorias positivistas meramente procedurais. Portanto, é fundamental compreender a noção de que “texto da norma” e “norma propriamente dita” são entidades jurídicas distintas. De feito, o elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa pós-positivista das normas constitucionais é a visão da não identidade entre norma e texto. O texto da norma é o enunciado positivo que corresponde ao processo democrático legislativo (plano abstrato de significação). Tal elemento não se confundecom o outro, o elemento de concretização resultante do processo de interpretação do referido enunciado normativo (plano concreto de significação). Destarte, é importante compreender a nova trilha da teoria hermenêutica da norma jurídica, na qual os termos texto e norma não são coincidentes. Isto significa dizer que a norma-decisão do juiz, na qualidade de última fase do ciclo hermenêutico, é a norma concretizada; é a norma já devidamente interpretada, não se confundindo com o seu texto. Em outras palavras, a concretização de uma determinada norma constitucional dar-se-á sempre a partir de um caso concreto, cujos elementos fáticos incidirão sobre o texto de uma ou mais normas constitucionais escritas ou não, gerando de fato o direito a ser aplicado, vale dizer a norma propriamente dita. A construção dessa norma-decisão no plano concreto de significação exige uma escolha valorativa do juiz/intérprete e que não se confunde com a letra dos textos normativos no plano abstrato de significação. 14 Ou seja, é preciso entender que os artigos, parágrafos, incisos, alíneas, etc., da Constituição estão situados no plano preliminar de análise abstrata das normas (plano prima facie de significação na visão de Humberto Ávila).6 Já as normas propriamente ditas (normas-decisão) estão localizadas no plano all things considered de significação na visão de Aleksander Peczenik. 7 Em outras palavras, as normas-decisão levam em consideração todos os elementos fáticos do caso concreto, daí seu posicionamento no plano all things considered de significação. Neste sentido, o pensamento de Humberto Ávila: é preciso distinguir o plano preliminar de análise abstrata das normas, comumente chamado de plano prima facie de significação, do plano conclusivo de análise concreta das normas, comumente denominado all things considered de significação.8 Enfim, é bem de ver que os conceitos de texto e norma são muito diferentes, muito embora a norma (norma-decisão do magistrado no plano concreto de significação) seja o seu texto (norma posta previamente pelo legislador democrático no plano abstrato de significação) após o devido processo interpretativo. Em outro dizer, os elementos fáticos e axiológicos do caso decidendo incidiram sobre o “texto da norma” gerando a “norma propriamente dita”, isto é, esta última nada mais é do que a primeira aplicada num determinado caso concreto depois de um processo interpretativo de ponderação de valores. 6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Rio de janeiro: Malheiros, 2004. p. 57. 7 PECZENIK, Aleksander. On law and reasons. The Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 76. 8 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. Rio de janeiro: Malheiros, 2004. p. 57. 15 Fácil, portanto, a compreensão da teoria hermenêutica da norma jurídica, que projeta a ideia-força de que as normas-resultado no plano concreto de significação são normas que resultaram da incidência dos fatos portadores de juridicidade do caso concreto específico sobre o texto das normas no plano abstrato de significação. Note-se que as normas em abstrato, no plano prima facie de significação, são normas dotadas de racionalidade linguística que lhes é imposta pelo legislador democrático, enquanto que as normas propriamente ditas, isto é, as normas- decisão, no plano all things considered de significação, são normas dotadas de racionalidade argumentativa que lhes é imposta pelo intérprete/juiz após aplicar um determinado critério hermenêutico de ponderação de valores de mesma dignidade constitucional. Isso significa dizer que, para ocorrer a transformação de texto em norma, é necessário um processo hermenêutico de interpretação-concretização, cuja função precípua é captar o sentido e o alcance dos textos escritos e, ao depois, realizar a vontade constitucional no caso concreto. Eis aqui o caminho da nova interpretação constitucional: transformar a racionalidade linguística e abstrata do texto escrito em racionalidade discursiva e axiológica da norma constitucional propriamente dita, ou seja, levando em consideração os elementos externos da dimensão literal dos comandos constitucionais, o resultado final do processo de interpretação- concretização da Constituição transmuda-se em norma-decisão, cuja equação dogmática incorpora no seu bojo as variáveis fáticas e axiológicas específicas de cada caso concreto de per si. O texto constitucional é, induvidosamente, o ponto de partida das decisões judiciais, sua matéria-prima de extração cognitiva e axiológica, mas não é o resultado final do ato decisional da interpretação-concretização da Constituição. Como amplamente já examinado, a interpretação da 16 Constituição não é cativa dos órgãos do poder judiciário, ao revés, seu círculo de intérpretes alcança toda a sociedade. Portanto, partindo desta premissa hermenêutico-filosófica de Peter Häberle, é imperioso destacar que um dos grandes elementos exegéticos diferenciadores do novo paradigma é exatamente a “cisão entre texto da norma e norma” e cujos desdobramentos acabam por "blindar" a concretização das normas constitucionais contra o subjetivismo solipsista irracional da escola decisionista do direito. Vale, portanto, em seguida, investigar a construção teórica do iceberg normativo de Friedrich Müller, jurista alemão idealizador do método interpretativo chamado Metódica Estruturante do Direito, cuja linhagem científica parte da ideia-força de que o texto escrito da norma é apenas a parte descoberta do grande iceberg normativo, cuja parte oculta esconde o seu verdadeiro programa normativo, vale dizer, o amplo quadro de possibilidades/alternativas hermenêuticas possíveis de serem extraídas da letra da lei. O Texto da Norma Como Parte Visível do Iceberg Normativo Como já amplamente visto na segmentação temática anterior, a norma- decisão é a norma-resultado, é a norma final representativa da prestação jurisdicional. É a decisão final do juiz/intérprete e resultado da compilação de todos os elementos envolvidos na solução do caso decidendo, semânticos e extrasemânticos, jurídicos e extrajurídicos. Em consequência, a interpretação sempre será necessária para a fixação da norma-resultado. Calha, nesse sentido, a visão de Jane Reis Gonçalves Pereira: Contra essa noção [a ideia de que só se efetiva a interpretação quando há dúvida sobre o significado do texto] é comum objetar-se 17 que a interpretação é sempre necessária, pois só é possível determinar a clareza ou obscuridade de um texto após interpretá-lo. Mas, ao que parece, a dicotomia interpretação noética/dianoética (ou compreensão/interpretação) tornaria a referida divergência apenas semântica. 9 Assim sendo, a ideia de norma-decisão é aqui desenvolvida dentro daquela imagem da obra de Wittgenstein II do jogo de linguagem se transformando em jogo de interpretação, imagem esta que serve também como substrato jusfilosófico para o já citado jogo concertado dos princípios, instrumento fundamental da hermenêutica constitucional contemporânea. Não resta dúvida de que já se consolidou na melhor doutrina, o entendimento de que a norma-decisão do juiz é a última fase do ciclo hermenêutico, que começa com a incidência dos fatos reais do caso concreto sobre a norma-dado (norma preexistente no ordenamento jurídico) e acaba com a norma-produto (norma-resultado) vinda de um processo de interpretação pautado nos paradigmas de racionalidade discursiva, dianoética. No entanto, é importante frisar bem que a norma-decisão não é um ato volitivo do magistrado, mas, sim, o resultado da incidência dos elementos fáticos da realidade sobre o ordenamentojurídico positivado pelo legislador democrático. São os fatos do mundo real (dimensão hermenêutica da faticidade) que juntamente com os preceitos normativos abstratos da ordem jurídica gestarão a norma-decisão; a norma propriamente dita no plano concreto de significação. Nas palavras de Lenio Streck, tem-se que: Por isso é que se chama de hermenêutica da faticidade [hermenêutica filosófica gadameriana]. E por isso também que se pode dizer que os princípios não proporcionam abertura na interpretação, com o que até positivistas como Ferrajoli concordam. O ovo da serpente do irracionalismo, da discricionariedade e do decisionismo está em Kelsen e Hart, cada um ao seu modo. E para 9 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 36. 18 quem até hoje acredita que a interpretação é um ato de vontade, basta que se acrescente a esse "ato de vontade" a expressão "de poder" e estaremos de volta ao último princípio epocal da modernidade: a Wille zur Macht, a vontade do poder de Nietsche, que sustenta as diversas formas de pragmatismo no direito, além de concepções realistas como as dos Critical Legal Studies. (negritos nossos).10 É certo, pois, afirmar que a interpretação/concretização não é um ato de vontade, não é um ato de poder que se atrela à pré-compreensão do magistrado. Ao contrário, a interpretação/concretização da Constituição alcança a todos, e não apenas aos participantes do processo jurídico- decisional. Concretizar a Constituição não é apenas construir a norma-decisão a partir da letra da lei, mas, sim, realizar o sentimento constitucional de justiça. Trata-se, pois, de hermenêutica avançada que tem por supedâneo o corte epistemológico provocado pela revolução linguístico-ontológica em Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e outros. Com rigor, o que se quer aqui reafirmar é a mudança de paradigma da interpretação constitucional que se afasta da racionalidade linguística do texto escrito, para se aproximar da racionalidade retórico-argumentativa da norma interpretada/concretizada, simbolizando verdadeiramente o “giro epistemológico” no âmbito das investigações metodológicas pós-positivas, provocado por sua vez pelo giro pragmático da Filosofia da linguagem, especialmente após a obra de Wittgenstein II. Em consequência, a ideia de norma-decisão é aqui desenvolvida dentro daquela imagem wittgensteiniana do jogo de linguagem se transformando em jogo de interpretação, imagem esta que, em última instância, serve também como substrato jusfilosófico da visão contemporânea de que texto e norma não se confundem. 10 Cf. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito, p. 451. 19 Destarte, as normas abstratas feitas pelo poder legislativo são normas dotadas de racionalidade literal ou linguística, própria do texto do enunciado normativo (parte visível do iceberg normativo de Müller). Já as normas propriamente ditas, isto é, as normas-decisão no plano concreto de significação, são normas dotadas de racionalidade discursiva ou retórico- argumentativa, própria da fundamentação jurídica usada pelo operador do direito no processo de interpretação constitucional (norma retirada da parte oculta ou não do iceberg normativo). Assim sendo, o juiz/jurista haverá, então, de refletir que o texto da norma não é a norma jurídica a ser aplicada, porém deve compreender, por outro lado, que o texto da norma é o dado de entrada (input) mais importante do processo de interpretação/concretização, lado a lado com os fatos portadores de juridicidade do caso a ser decidido juridicamente. Logo, a norma propriamente dita resulta da melhor tese jurídica a defender (empregando a racionalidade retórico-argumentativa) e lembrando ainda que a mesma estará submetida ao controle democrático intersubjetivo da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Este é induvidosamente um dos imperativos do Estado Democrático de Direito, sem o qual se desqualifica a ideia de constitucionalismo como elemento limitador do poder do Estado. Isto significa dizer, por outras palavras, que a normatividade que se manifesta nas decisões judiciais não está baseada literalmente apenas no texto da norma, ao revés, a normatividade da decisão a ser elaborada alcança a doutrina, a jurisprudência, estudos monográficos, obras e legislação de Direito Comparado; enfim, a normatividade do direito abarca numerosos textos jurídicos que transcendem o teor literal da norma legislada. É nesse sentido que se afirma que a normatividade das normas constitucionais está diretamente vinculada às alterações que provoca no 20 mundo da vida (efetividade ou eficácia social de Luís Roberto Barroso), daí a relevância dos elementos fáticos do caso concreto (fatos portadores de juridicidade), que juntamente com o textos destas normas realizarão a vontade constitucional. No entanto, frise-se bem que, muito embora o texto da norma não contenha a normatividade em sua inteireza; o fato é que atua como elemento delimitador das possibilidades de concretização/ interpretação da Constituição. Portanto, o reconhecimento de que há uma diferença entre o texto jurídico e a norma extraída desse texto não implica dizer que a cisão entre eles seja total. Parte da doutrina destaca que a fraqueza da teoria kelseniana vem exatamente da identidade entre “norma” e “texto da norma”. No dizer de David Diniz Dantas: Na construção kelseniana, Müller sustenta que a interpretação se torna operação meramente “volitiva”, de vez que o aplicador é o “senhor” tanto do texto da regra a aplicar (premissa maior do silogismo) quanto da qualificação dos fatos (premissa menor). Assim, o “normativismo” kelseniano acabaria em puro “decisionismo”. A fraqueza da teoria kelseniana da interpretação seria causada pela identificação feita pela teoria pura entre “norma” e “texto da norma”. Haveria desconexão entre a realidade e a norma a aplicar. Esse isolamento – fruto da severa separação entre Sein e Sollen – levaria à indeterminação do significado do texto, uma vez que este restaria isolado dos elementos da realidade que lhe poderiam conferir sentido. Assim, para Müller, a teoria pura do Direito resulta em uma teoria vazia de interpretação. 11 11 DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo. Teoria e casos práticos. São Paulo: Madras, 2004. p. 251- 252. 21 É por isso que a metódica jurídica normativo-estruturante de Müller propõe uma abordagem diferente daquela feita por Kelsen, pois parte de uma teoria estruturante calcada na relação “norma-realidade”. Ser e dever ser são considerados como faces de uma mesma moeda. Em consequência, para a teoria da norma jurídica de Friedrich Müller, o texto de um preceito jurídico positivo corresponde a um pedaço da realidade social. Como bem destaca Canotilho, comentando a metódica normativo-estruturante de Müller: elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; (...) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Müller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); (...) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um 'domínio normativo', isto é, um 'pedaço de realidade social' que o programa normativo só parcialmente contempla; (...) consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um
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