Buscar

O melhor patrão do país e a meritocracia

Prévia do material em texto

O melhor patrão do país e Meritocracia
 | 22.01.2009
Alheio à crise, o governo federal continua a inchar seus quadros sem trégua e a conceder pacotes de bondades ao funcionalismo
 
Alexandre Durão /Agência O Globo
Por Angela Pimenta 
Revista EXAME  Seduzidos por um régio pacote de benesses, como salário inicial de até 9 500 reais, direito à estabilidade no emprego e aposentadoria integral, no último dia 11 cerca de 10 000 brasileiros interromperam as férias para prestar concurso para a Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão do governo federal. Apesar do baixo grau de competição na produção de filmes no país, o Ministério do Planejamento autorizou a Ancine a preencher 55 novas vagas de analistas administrativos e especialistas em regulação cinematográfica. O concurso da Ancine é apenas um exemplo da expansão desmedida da máquina federal em curso. Mesmo com a crise, o Orçamento da União para 2009 prevê a criação de 45 000 cargos na administração pública, um terço dos quais no Poder Executivo. Desde 2003, no início do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a burocracia federal ganhou 200 000 integrantes, acréscimo de 22% no número de servidores. Em Brasília, as repartições já estão tão congestionadas que 17 dos 27 ministérios tiveram de alugar imóveis para acomodar o pessoal novo. Ainda mais preocupante é o fato de que, no final de 2008, enquanto a crise global já causava estragos na economia brasileira, levando ao corte de 655 000 empregos em dezembro - o pior em dez anos - e muitas empresas a iniciar o ano negociando acordos de redução de jornada e salários para não demitir, o governo aprovou no Congresso mais um generoso pacote de bondades para o funcionalismo.
O novo pagamento dos aumentos dos servidores - que também beneficia aposentados e pensionistas - exigirá que a União desembolse 29 bilhões de reais a mais que no ano passado. Para efeito de comparação, o programa Bolsa Família, que atinge mais de 11 milhões de famílias, deve custar 12 bilhões de reais aos cofres públicos neste ano. Pelo acordo, o governo já se comprometeu com novos aumentos nos próximos quatro anos. Com isso, em 2011, no início do mandato do sucessor de Lula, a fatura adicional deverá subir para 47 bilhões de reais. Segundo projeções do economista Felipe Salto, da consultoria Tendências, os gastos com o funcionalismo, que no ano passado foram de 135 bilhões de reais, equivalentes a 4,6% do produto interno bruto, deverão atingir 164 bilhões, ou 5% do PIB, em 2009. "Num cenário de desaceleração econômica, os aumentos são extremamente preocupantes", diz o economista Fabio Giambiagi, especialista em finanças públicas. "Graças ao forte crescimento do PIB em 2008, o governo ainda tem gordura para queimar neste ano. Se o cenário continuar negativo, a margem de manobra para fechar as contas públicas pode se estreitar perigosamente."
De acordo com o economista Raul Velloso, também especialista em contas públicas, após sucessivos recordes na receita, o governo deverá deixar de arrecadar pelo menos 20 bilhões de reais neste ano em decorrência da crise. "O padrão de gastos com o funcionalismo é insustentável", afirma Velloso. "Se quiser manter a inflação sob controle, o governo tem duas alternativas: ou faz um ajuste nas contas ou daqui a um ano o Banco Central terá de voltar a elevar os juros, prejudicando a atividade econômica." Reconheça- se que, ao aprovar os aumentos e novas contratações no Congresso, o Ministério do Planejamento incluiu cláusulas que lhe permitem o cancelamento de novos gastos caso a União não tenha recursos para bancá-los. Mas, dada a força do funcionalismo, dificilmente o governo terá pulso para voltar atrás, especialmente quando se considera a proximidade da eleição presidencial. "O governo terá de cumprir o que prometeu", diz Josemilton Costa, secretáriogeral da Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (Condsef). "Vamos lutar para garantir todos os acordos firmados." Com 800 000 associados e orçamento mensal de 120 000 reais, a Condsef é ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), que por sua vez representa o braço sindical do PT, o núcleo do governo. 
Explosão de gastos
Ao longo do governo Lula, o funcionalismo federal já obteve cerca de 40% de ganhos reais de salários. No segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, os ganhos foram de 10%. Segundo Josemilton Costa, desde 2007 as negociações salariais entre o funcionalismo e o governo tornaram-se mais fáceis graças à nomeação do líder sindical Duvanier Paiva Ferreira como secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento. Ex-assessor da CUT, Ferreira tem mantido negociações permanentes com as mais de 50 categorias de servidores federais. Procurado por EXAME, ele se recusou a dar entrevista.
Os reajustes não beneficiam todas as categorias de uma vez. "Os aumentos mais generosos costumam ser concedidos em fins de mandato, porque ficam na memória do funcionalismo e de suas famílias", diz Gil Castello Branco, economista da ONG Contas Abertas, que analisa as contas públicas. "O funcionalismo tem grande peso eleitoral." Em razão disso, até mesmo os partidos de oposição votaram a favor dos últimos reajustes. Se comparados aos do setor privado, os salários no governo são bem generosos. Enquanto o salário médio pago pelas 150 melhores empresas para trabalhar do Guia Você S/A EXAME - espécie de elite do setor privado - é 3 000 reais, no Judiciário a média salarial é 15 300. Já no Legislativo, é 13 300 reais, e no Executivo, de 4 300. "Essa comparação explica o enorme apelo que os concursos públicos têm sobre os brasileiros", diz Mário Fagundes, gerente do grupo Catho, que atua como agência de empregos. "Quando se trata de cargos seniores, como os de analista técnico ou de sistemas, os salários costumam ser 70% maiores do que nas empresas privadas." É o caso do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que oferece salário inicial de 8 500 reais a analistas de sistemas. A generosidade do governo-patrão justifica por que nos últimos dois anos 5 milhões de brasileiros se inscreveram para concursos no funcionalismo federal, de estados e municípios - aumento de 40% no número de candidatos ao longo da última década. E graças aos chamados "trens da alegria" - as gratificações incorporadas aos vencimentos - há, no Congresso Nacional, motoristas ganhando perto de 20 000 reais, renda compatível com a de diretores de companhias privadas. Nas maiores empresas do país, motoristas experientes que servem a diretoria costumam ganhar no máximo 5 000 reais. 
O governo paga mais 
Para que uma grande economia emergente como o Brasil prospere, é preciso que seu governo conte com uma burocracia eficiente e comprometida com os princípios modernos de governança. É claro que, a exemplo do que ocorre no setor privado, profissionais capacitados são mais caros. "Nunca houve tanta gente qualificada entrando no serviço público", diz Nelson Marconi, especialista em gestão pública da Fundação Getulio Vargas. "O problema vem logo a seguir. Como a política de recursos humanos é inadequada, ao começar a trabalhar o funcionário público não encontra incentivos para se manter produtivo." De fato, na máquina federal a política de gratificação desconhece o princípio da meritocracia. "O governo não tem critérios para dar aumentos", reconhece um técnico do próprio Ministério do Planejamento. "Quem grita mais e tem mais intimidade com a base aliada do governo, como os auditores da Receita e os funcionários da Polícia Federal, arranca aumentos maiores do que conseguem as categorias mais frágeis, como as de educação e saúde pública." Aliás, por pressão da Condsef, as medidas provisórias que aumentaram os salários eliminaram as avaliações de desempenho no funcionalismo federal.
Modelo mundial em termos de governança pública, a Nova Zelândia gasta 2,3% do PIB - metade da proporção do Brasil - com os servidores. Países da Europa e os Estados Unidos, que contam com máquinas burocráticas onerosas, hoje tentam seguir o mesmo caminho. Implantadoem Minas Gerais em 2003, o primeiro programa de avaliação de desempenho do funcionalismo do país exibe resultados consistentes. Na rede pública de ensino, houve aumento de 5% na proficiência dos alunos em matemática e de 7% em português. "Em razão do cumprimento de metas, o funcionalismo mineiro já recebeu 320 milhões de reais em bônus", diz Renata Vilhena, secretária do Planejamento do estado. Por outro lado, uma dezena de funcionários mineiros que tiveram desempenho continuamente medíocre está sendo processada e corre o risco de perder o emprego. De olho no exemplo de Minas, outros estados estão adotando programas semelhantes. É esse caminho, o da busca de resultados e do uso criterioso do dinheiro público, e não o do inchaço desmedido, que a máquina federal precisa aprender a trilhar.
Mais para os melhores
 | 02.10.2008
Porto Alegre mostra que funcionário público pode — aliás, deve — perseguir metas e ser recompensado quando consegue atingi-las
 Por Roberta Paduan
EXAME Em junho deste ano, 15 funcionários da prefeitura de Porto Alegre passaram duas semanas nos Estados Unidos. Não, esta não é mais uma daquelas histórias escandalosas de servidores públicos que fazem turismo à custa do contribuinte. Nesse caso, servidores, todos concursados, participaram de um treinamento na escola de negócios da Universidade George Washington, na capital americana, uma referência mundial na área de gestão pública. Durante o curso, os alunos assistiram a quase uma dezena de palestras sobre questões como o impacto da globalização no setor público e o funcionamento de parcerias público-privadas. Também visitaram várias instituições, entre elas o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial, onde aprenderam como esses organismos funcionam e o tipo de financiamento que oferecem a governos de todo o mundo. A experiência teve um sabor especial para os participantes: o do reconhecimento, algo raríssimo no ambiente do funcionalismo. “Sou concursada há 19 anos e nunca tinha feito um curso fora do país”, afirma Viviane Maria Loss, pedagoga de 44 anos e primeira colocada na seleção dos funcionários premiados com a viagem a Washington. “Além do aprendizado, não dá para negar o orgulho de sermos reconhecidos pelo nosso trabalho.”
A experiência da prefeitura de Porto Alegre merece destaque justamente por se basear no conceito de meritocracia, prática quase inexistente nos órgãos de governo brasileiros. Viviane e os outros 14 servidores que participaram do curso nos Estados Unidos formam uma espécie de tropa de elite da capital gaúcha. Eles foram os primeiros colocados entre 131 inscritos no Sistema de Reconhecimento e Capacitação, competição criada pela prefeitura no início do ano com o objetivo de capacitar funcionários com cargo de chefia. Os que tiveram melhor avaliação foram premiados com o curso de duas semanas em Washington, e os 20 seguintes foram a Brasília para participar de um congresso de três dias sobre gestão pública. “Foi uma satisfação receber esse grupo, por saber como e por que essas pessoas chegaram aqui”, diz James Ferrer, diretor do centro para assuntos latino-americanos da Universidade George Washington. “Sabíamos que o curso era um prêmio dado a pessoas avaliadas com base em critérios objetivos, não por serem parentes ou afilhadas de algum político.”
De fato, o grupo passou por uma maratona de provas. Os 131 foram avaliados em três fases. Primeiro, pelo desempenho obtido em um curso de gestão de projetos elaborado pela prefeitura em parceria com entidades e escolas do setor privado: o Movimento Brasil Competitivo, o Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade e a Escola Superior de Propaganda e Marketing. A avaliação também considerou o desempenho das áreas em que cada um trabalha. Por fim, todos foram entrevistados por auditores de consultorias privadas especializadas em gestão. Nessa fase, os auditores testaram não apenas se os funcionários tinham conhecimentos de gestão mas também se os aplicavam no dia-a-dia. “Um dos grandes méritos desse sistema de avaliação foi a transparência em todas as fases do processo”, afirma Luiz Pierry, presidente do Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade. A maneira de aumentar a transparência foi encontrada na parceria com as três entidades independentes, que participaram desde a definição de quem poderia entrar na competição até a forma de dar nota aos concorrentes. Uma das regras estabelecidas foi que só profissionais concursados pudessem participar. “O objetivo é que o conhecimento adquirido nos treinamentos permaneça na prefeitura, o que não aconteceria se profissionais comissionados participassem, pois eles vão embora quando o prefeito muda”, diz Pierry.
O Sistema de Reconhecimento e Capacitação de Porto Alegre faz parte de um programa mais amplo, que começou a ser implantado em 2005, de modernização da administração municipal. A descrição das transformações e a maneira como elas foram realizadas até agora são, no mínimo, surpreendentes. “Pelo menos os conceitos e as tecnologias de gestão estão afinados com o que há de melhor nas empresas privadas”, diz Carlos Arruda, professor da escola de negócios Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte. O primeiro passo das mudanças foi a definição de três grandes objetivos para nortear os quatro anos de mandato do atual prefeito José Fogaça. São eles: garantir o equilíbrio das contas públicas, promover a inclusão social e fazer isso tudo buscando a sustentabilidade ambiental. A partir daí, foram estabelecidos 21 programas estratégicos como meio de alcançar os objetivos — todos geridos por funcionários de carreira. Esses 21 programas, por sua vez, desdobraram-se em mais de 470 ações de trabalho, atreladas a metas e indicadores. Em suma, foi criado um mapa estratégico, implantado por meio do que se chama balanced scorecard, metodologia de gestão de estratégia elaborada pelos americanos David Norton e Robert Kaplan e utilizada por muitas das maiores empresas globais.
	Aos vencedores, o reconhecimento
	Para promover a melhoria dos serviços à população, a prefeitura de Porto Alegre está inserindo o conceito de meritocracia entre os funcionários públicos municipais
	O desafio
	No primeiro semestre deste ano, foi lançada uma espécie de competição entre os servidores que ocupam postos de chefia em 21 programas municipais considerados estratégicos
	A avaliação
	Os 131 servidores inscritos participaram de um curso de gestão e fizeram entrevistas e provas. Além disso, foi avaliado seu desempenho à frente dos programas que administram
	Quem avaliou
	Uma comissão externa, formada por representantes do Movimento Brasil Competitivo, do Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade e da faculdade ESPM
	Os prêmios
	Os 15 primeiros colocados ganharam um curso de duas semanas na Universidade George Washington, e os 20 seguintes participaram de um congresso de gestão pública em Brasília
	Fonte: Prefeitura Municipal de Porto Alegre 
A adoção do sistema de mapa estratégico pela prefeitura tem um valor adicional: o aumento da transparência que essa metodologia de trabalho exige. Um dos elementos-chave é a divulgação do mapa para que ele possa ser acompanhado por todos os envolvidos no trabalho — no caso de Porto Alegre, o mapa está publicado no portal da prefeitura na internet, aberto a qualquer pessoa. As avaliações regulares, também obrigatórias, são fundamentais para a elevação da transparência. A evolução do mapa estratégico é acompanhada mensalmente, com notas dos resultados de cada programa. Fora isso, a cada três meses os gerentes dos projetos e os secretários municipais prestam contas ao prefeito, às instituições e aos empresários que participaram da elaboração e do financiamento do novo modelo de gestão. “Com esse tipo de exposição, não dá para um secretário não se envolver com o batente e ficar apenas fazendo política”, afirma Pierry.
Entre os resultados mais visíveis da mudança administrativa está a virada das contas de Porto Alegre, que saiu de um déficit de 81 milhões de reais em 2004 e mantémsuperávit financeiro há três anos, sem aumentar impostos. Com isso, a prefeitura se habilitou a pedir empréstimos estrangeiros, como um financiamento de 83 milhões de dólares do Banco Interamericano de Desenvolvimento, destinado a ampliar o tratamento de esgoto na cidade. “Nesse caso, o eixo financeiro tornou possível a melhoria ambiental e de qualidade de vida”, diz Clóvis Magalhães, secretário de gestão e acompanhamento estratégico.
Virada de sinal
Um resultado que só será computado no próximo ano é o aumento do número de salas de aula com equipamentos para ensino de crianças surdas, cegas ou com deficiência mental. Em agosto, o Ministério da Educação aprovou recursos para a criação de mais dez salas desse tipo em 2009. A conquista foi resultado do curso realizado na Universidade George Washington. “Durante a visita ao BID, descobri que o programa do MEC destinado a aumentar a inclusão de crianças com deficiência é patrocinado pelo banco”, afirma Viviane Loss, líder da ação responsável pela ampliação do atendimento escolar a estudantes com necessidades especiais. Assim que chegou ao Brasil, Viviane entrou em contato com o ministério e, após algumas ligações, recebeu a resposta de que teria recursos para cinco novas salas. Ela não se satisfez: “Eu sabia que poderia reivindicar mais devido às características da cidade e do nosso programa”. Após novas negociações, Viviane recebeu a aprovação para o dobro de salas.
É claro que Porto Alegre não é um modelo acabado de gestão pública, e os próprios servidores reconhecem isso. “Ainda temos muito a fazer e nem sabemos se vamos continuar nos mesmos cargos quando a prefeitura mudar”, afirma Júlio Abrantes, gerente do programa Gestão Total, responsável pela colocação em prática das mudanças de gestão. “Mas a experiência que adquirimos ao trabalhar no novo modelo torna mais difícil um retrocesso na prefeitura.” O que dá para afirmar, por enquanto, é que a cidade começou a trilhar o caminho da modernidade da gestão pública — uma das batalhas mais prementes que o Brasil terá de travar para ocupar um lugar no mundo desenvolvido.
�PAGE �
�PAGE �1�

Continue navegando