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A preocupação com a saúde mental tem feito parte da vida das pessoas, mas sabe-se que nem sempre foi assim, o bem-estar psíquico não é uma preocupação que circundou todas as sociedades, aliás, nem sempre se soube da existência de um bem-estar psicológico. Além disso, existe as dificuldades que permeiam o campo da interpretação do normal e do patológico e dos fatores sociais e ambientais que se somam ao estado mental, entrando em discussão até onde uma situação pode ser vista como normal e quando ela começa a ser patológica. Ao analisar historicamente a evolução das discussões acerca das questões psicológicas, encontramos que no período do Renascimento, o louco era visto como ignorante, uma pessoa em desvio de conduta e de moral, já na época Clássica, a designação de louco era atribuído às percepções que as instituições como igreja, a justiça e a família tinham do indivíduo, ainda em relação a lei e a moralidade, onde esse louco é alguém inadequado à vida social. Somente na segunda metade do século 18, tem início as reflexões médicas e filosóficas que colocam a loucura como fruto de algo que ocorre no interior do próprio homem, como a perda da sua natureza e, a sua terapia estava na religião, no medo, na culpa, no trabalho, na vigilância e no julgamento, uma ação moral e social. A partir disso, cabe o pensamento: o que é loucura? Um indivíduo que enfrenta sofrimentos psíquicos é uma pessoa louca e impossibilitada de viver no mundo social? Qual o papel da sociedade sobre ele? Quais são os efeitos que tratar o indivíduo dessa forma pode desencadear? Apesar de nem sempre se conhecer sobre o bem-estar psicológico, percebe-se que a partir do mínimo conhecimento adquirido a respeito, passou-se a patologizar o indivíduo, exclui-lo da sociedade, julga-lo e culpa-lo pela sua conduta ou desvio dela. A pessoa que passa por sofrimentos psíquicos, não está impossibilitada de viver em sociedade, mas a sociedade, na maioria das vezes, não está preparada para viver com ela e isso traz consequências muitas vezes drásticas. O filme Coringa retrata um indivíduo, Arthur, que leva uma vida monótona e solitária, vivia do trabalho que precisava fazer as pessoas rirem, de cuidar da sua mãe debilitada e de assistir todas as noites o mesmo programa de televisão, até aí podemos analisar simplesmente como uma rotina cansativa ou, talvez, exaustiva, mas será que é somente isso? Será que ele era uma pessoa feliz e que vivia bem em sociedade? Ao longo do filme, percebemos que não, a sua rotina te causava tristeza e fazia de si uma pessoa invisível para a sociedade. Além de tudo isso, Arthur, tinha passado por traumas na infância, apesar da sua mãe afirmar, como fruto da sua ilusão, que ele era filho do famoso Thomas Wayne, o seu ex patrão. Na verdade, ele era um filho adotivo que sofreu diversas formas de abusos vindos do companheiro da sua mãe. Apesar de ele não ter conhecimento disso, provavelmente essas coisas afetaram a pessoa que ele se tornou, ele não soube lidar com os seus traumas e não obteve apoio familiar, de amigos e até mesmo terapêutico para isso, portanto, não conseguiu restabelecer a sua organização pessoal e o seu equilíbrio, o que acabou refletindo em toda a sua vida. O campo da psiquiatria clássica, por sua vez, considera a doença mental, como um resultado de uma doença cerebral, dessa forma, o indivíduo precisa ter alguma anomalia anatômica ou um distúrbio cerebral, que deve ser tratado com medicamentos e produtos químicos, é notório que essa visão biologista e biomédica, problematiza as doenças de ordem psicológica, considerando, portanto, os indivíduos que possuem doença mental como indivíduos anormais e doentes a nível cerebral. Resenha do filme "Coringa kaliane Oliveira No filme, vemos que Coringa toma medicamentos para a sua doença mental, esses medicamentos são responsáveis por tranquiliza-lo e fazer com que ele realize as suas tarefas diárias, ele também é acompanhado e recebe assistência que é essencial para mantê-lo sob controle das situações, no entanto, ele recebe a notícia que os seus medicamentos serão cortados, pois o governo negligência pessoas como ele. O sistema não está preocupado em oferecer assistência e condições de melhoria de vida para as pessoas que apresentam problemas de saúde de ordem psicológica, pois para esse, essas pessoas significam um atraso, são impotentes e não devem viver no mesmo local e tendo as mesmas oportunidades das pessoas “normais”. O abandono do Estado para com essas pessoas é algo rotineiro na vida em sociedade, o Estado está preocupado somente com as suas questões, com os mais ricos e mais favorecidos que podem de maneira direta oferecer benefícios para o Estado. Coringa, nesse sentido, representa milhares de pessoas que são esquecidas e marginalizadas pelo Estado por apresentarem doenças à nível psicológico. O Estado tem o dever de oferecer condições dignas de vida, ofertar segurança e assistência a essas pessoas, mas ao invés de tudo isso, ele invisibiliza essas pessoas, e consequentemente, essas passam a serem mal vistas também pela sociedade que a cada dia, nutre mais preconceito e excluí ainda mais as pessoas. Enquanto sociedade, temos nos tornado doentes e adoecemos os outros. Na vida de Arthur, tudo saiu de fora de controle a partir do momento que ele se viu sem a assistência governamental, ou seja, sem os seus medicamentos e que foi agredido na rua. O corte dos seus medicamentos e a agressão sofrida, fazem surgir um novo Arthur, surge uma pessoa extremamente fria. O novo Arthur não é aquele que apresenta “somente” uma doença mental, que pode ser caracterizada, segundo a psicanálise como uma neurose histérica, em que os sintomas corporais aparecem como ocasionais, os seus conflitos psíquicos apareciam como crises de risos, que tinham a sua origem na vida infantil, ou seja, nos abusos que ele sofreu durante toda a sua infância. A sua risada descontrolada em situações sérias, o obrigava a andar com um cartão para informar as pessoas que se sentiam incomodadas diante dessa situação inconveniente, mas ele não carregou um cartão para dizer o quanto ele havia se tornado uma pessoa perigosa diante do descaso do governo. Assim como a sua mãe normalizava a sua doença, dizendo que Arthur havia nascido para trazer risos e alegria ao mundo, ele normalizou a sua nova personalidade, uma pessoa descontroladamente violenta. Ele perdeu o controle de si e a partir das 3 mortes no metrô, iniciou-se uma onda de rebeliões, pois o seu ato foi validado por uma multidão à beira de uma guerra de classes, a partir disso, ele se sentiu visível e, finalmente, importante para a sociedade. Coringa passou a não ver problemas em matar as pessoas, as circunstâncias que serviram de gatilho para os seus surtos psicóticos parecem terem tornado a situação justificável e perdoável diante da existência da sua doença. É a partir das mortes que ele causou que ele começa a se sentir uma pessoa mais viva e segura. É nesse momento que a imagem do palhaço que fazia as pessoas rirem, se transforma em algo assustador e ao mesmo tempo libertador. Após as mortes do metrô, ele descobre a verdade sobre si e sobre o passado da sua mãe, passando a culpa-la pelo que havia acontecido com ele, chegando a matá-la por sufocamento no leito de hospital e, em seguida, afirmando ser uma pessoa mais feliz depois disso. O ser humano que dedicava um cuidado especial a mãe debilitada, se sentiu feliz em retirar a sua vida, com isso, vê-se personalidades totalmente diferentes. Houve uma ruptura drástica entre o ego e a realidade, ficando o ego sobre o domínio do id, isto é, dos impulsos. O ego é o que protege os kaliane Oliveira indivíduos, ditando o que pode ou não ser feito, ele controla o id que é os instintos, Arthur teve a sua vida controlada pelo id e, então, o ego reconstruiu a realidade de acordo com os desejos do ig, assim, as suas ações foram puramente instinto. É ainda por instinto que ele mata o seu ex colega detrabalho, pois o mesmo já havia feito mal a ele, não sendo suficiente, ele ainda matou o apresentador do seu programa de televisão favorito. O filme ainda deixa a impressão que ele matou a garota na qual ele estava fantasiando uma situação amorosa, Arthur invade a casa de Sophie que se assusta com a sua presença e pede para que ele saia da casa dela, até antes desse momento, imagina-se a situação dos dois como um relacionamento amoroso, mas diante do espanto e medo de Sophie, percebe-se que nunca houve um relacionamento amoroso e que, na verdade, Arthur, assim como a sua mãe, fantasiava as situações na sua mente, fazendo-as parecer realidade. Essas fantasias que são criadas pelos dois, deixam o questionamento se são fruto do estado de saúde mental ou da carência e do isolamento social em que viviam. Se sentir sozinho e tentar usurpar os desejos parecem ser uma realidade comum entre mãe e filho. O filme mostra o quanto a saúde mental é desprezada no mundo em que vivemos e como os nossos traumas podem ser geradores de adoecimento se não houver apoio, cuidado e proteção. A sociedade está preocupada em produzir, não importa o que isso cause, a produtividade é o foco e os que mais necessitam de apoio são abandonados pela falta de políticas públicas e de um olhar reparador. Se você não consegue suprir os desejos do Estado, você é simplesmente esquecido. Deveria haver politicas públicas pautadas em promover a saúde mental, em visualizar o homem como ser biológico, psicológico e sociológico, ofertando condições de vida que proporcionem bem-estar mental, físico e social. A saúde mental não é somente uma questão à nível psíquico, é uma questão politica que interessa a todos que estão devidamente comprometidos com a vida, mas como vimos no filme, são poucas as pessoas que se encontram comprometidas com essa causa e são muitos os Coringas que surgem. Quantas pessoas não são desamparadas pelo sistema devido as suas condições psíquicas, assim como, Coringa? E quantas delas não fizeram o mesmo que ele, se tornaram agressivas e normalizaram as situações más? A desumanização crescente, tem aumentado a violência na sociedade, o olhar menos humanitário, tem “coisificado” as pessoas e transformado sonhos em pesadelos. Trazendo para a situação atual, na situação pandêmica em que vivemos, quantas pessoas não já tiveram a sua saúde psicológica atingida e o Estado fez o mesmo do que foi feito com Coringa? O que aconteceu com Arthur, não é simplesmente uma situação criada para o cinema, ela é uma situação real que tem se feito cada vez mais presente na vida das pessoas, somos cada vez mais tornados objetos produtíveis e vistos como desprezíveis quando temos a nossa saúde mental atingida. O Coringa pode ser qualquer um de nós como fruto de um Estado desumano. kaliane Oliveira
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