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Manual de Investigaçãoem É METODOLOGIA DA PREPARAÇÃO DE TESES E ARTIGOS JURÍDICOS 2020 - Reimpressão Luís Poças NA ALMEDINA MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO METODOLOGIA DA PREPARAÇÃO DE TESES E ARTIGOS JURÍDICOS AUTOR Luís Poças EDITOR EDIÇÕES ALMEDINA,S.A. Rua Fernandes Tomás, n.ºs 76-80 3000-167 Coimbra Tel.: 239 851 904. - Fax: 239 851 901 www.aimedina.net : editoraQDalmedina.net Design de colecção: FBA. Capa: Edições Almedina PRÉ-IMPRESSÃO EDIÇÕES ALMEDINA, SA IMPRESSÃO E ACABAMENTO Artipol - www.artipol.net 3º Reimpressão - Agosto, 2020 DEPÓSITO LEGAL 468985/20 Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es). Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infrator. GRUPOALMEDINA ALMEDINA BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO POÇAS,Luis Manual de Investigação em Direito: Metodologia da Preparação de Teses e Artigos jurídicos ISBN 978-972-40-8366-7 CDU 340 Ao meufilho, Tiago, para que siga com determinação o caminho daspedras naprocura do conhecimento A minha mulher, Paula, queincansavelmente tem prosseguido esse caminho NOTA PRÉVIA Estão atualmente disponíveis, no mercado editorial de língua por- tuguesa, mais de meia centena detítulos sobre metodologia da investi- gação científica visando a elaboração de teses e dissertações. Alguns destes livros estão especialmente focados nas metodologias de recolha de dados empíricos (trabalho de campo), enquanto outros se debruçam predominantemente sobre a correção gramatical da escrita e outros ainda sobre as regras de referenciação bibliográfica. Mesmo considerando as monografias mais generalistas, com uma abordagem abrangente do processo de investigação, o respetivo contexto metodológico, âmbito, terminologia e exemplos de referência situam-se no plano das ciências sociais e no das ciências exatas. Num cenário de ausência de manuais orientados para a pesquisa em Direito - e, convenhamos,de algum menosprezo académico dosjuristas por estas matérias — a aprendizagem metodológica dos estudantes e in- vestigadores é geralmentefeita por intuição, por processos de tentativa e erro, e, em suma, por um árduo - em tempo e esforço despendidos, e em críticas recebidas - caminho de experimentação pessoal. Acresce que o recurso aos manuais existentes produz frequentemente resulta- dos bizarros — quando o investigador jurista se convence de que lheserá exigido o teste de hipóteses, a formulação de modelos de análise,a iden- tificação de correlações entre variáveis ou até a recolha de material em- pírico — sempre com custos desnecessariamente pesados. O presente livro, que visa colmatar o mencionado cenário de alguma desolação metodológica em Direito, constitui um manual destinado aos colegas juristas — quer se trate de estudantes, quer de investigadores já 7 MANUALDE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO experientes - onde, a par de regras e orientações consagradas, partilho a minha experiência e reflexão pessoais. O meu interesse pelo tema não é recente. Ainda antes do ingresso na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,a leitura recreativa do clássico de Umberto Eco, que o leitor encontrará referenciado neste livro, constituiu uma aprazível revelação que iria marcar irreversivelmente o meu gosto pela investigação e pela inerente metodologia. Ainda hoje releio, com o mesmo agrado,o referido texto, que, embora retrate a pes- quisa na era pré-digital, permanece uma referência neste domínio. Entretanto, o curso delicenciatura em Direito, cuja avaliação era - e permanece ainda — muito centrada nos testes e provas orais, pouca ex- periência me proporcionou na elaboração de trabalhos escritos, limita- dos a dois ou três, todos de pequena dimensão. Ainda assim, tendo esse exercício ocorrido antes da era digital, o mesmo revelou-se muito rico na compreensão da lógica e na experimentação dos métodos e técnicas tradicionais: o manuseio de fichas bibliográficas (quer as de investiga- ção, quer as dos ficheiros das bibliotecas), de fichas temáticas e de fichas de leitura, todas em suporte de papel, bem como a construção prévia do texto para ser posteriormente datilografado em máquina de escrever. Radicalmente diverso foi, mais tarde, o meu trajeto no curso de licen- ciatura em Sociologia e Planeamento, no ISCTE. Para além de impor- tantes competências em matéria de metodologia de planeamento, relevou muito nesse percurso a importância central que, no respetivo currículo, assumiu a metodologia de investigação. Para além da existên- cia de várias disciplinas de métodos e técnicas de investigação, a pró- pria avaliação curricular assentou, em regra, na realização de projetos e relatórios de investigação, implicando, portanto, o manuseio prático e recorrente do indispensável arsenal metodológico das ciências sociais. O último ano do curso foi consagrado à realização da dissertação de licenciatura, evidenciando o papel da pesquisa de fôlego e do texto cien- tífico como meios de avaliação privilegiados. Aqui ganhei alguma desen- voltura no trabalho de investigação e consolidei definitivamente o meu gosto pelo mesmo. Esse apego pela pesquisa teve seguimento no trabalho de investiga- ção que vim a desenvolver, em três projetos de grande relevância, como membro do DiNÂmIA'CET-IUL - Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território, importante centro de estudos, com sede NOTA PRÉVIA no ISCTE-IUL, ao qual, como investigador doutorado integrado, man- tenho a ligação. Se, até aí, a minha experiência de investigação era muito confinada ao universo da Sociologia, o cenário veio a mudar quando retomei os estudos em Direito, primeiro no curso de especialização do mestrado em Ciências Jurídicas - Direito dos Seguros (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e, logo depois, na preparação da tese de douto- ramento em Ciências Jurídico-Empresariais, na mesma faculdade. Já no âmbito específico da pesquisa em Direito, e não obstante as divergên- cias manifestas face ao contexto das ciências sociais, foi-me de inestimá- vel valia a experiência anterior. Foi neste patamar, e com os precedentes mencionados, que construí e consolidei a minha experiência de investigação em Direito. Em abono do método de planeamento e de organização do trabalho que então desenvolvi, e que transmito nas páginas deste livro, direi apenas que o mesmo me permitiu preparar e elaborar a tese num período de três anos e meio, o que, considerando que desenvolvi a pesquisa e redação sem- pre em regime pós-laboral, penso ser evidência bastante da eficácia de tal método. O texto que agora se publica beneficiou igualmente do trabalho de sistematização e reflexão que desenvolvi na preparação de um módulo metodológico num curso de pós-graduação em Direito dos seguros, des- tinado a dotar os alunos de ferramentas adequadas à preparação dostra- balhosescritos finais, dos quais dependeria a respetiva avaliação. O presente livro resultou, assim, por um lado, do meu interesse pes- soal, de há longos anos, no tema; por outro lado, do desejo de partilha das soluções por mim adotadas, que espero tragam também sucesso ao | leitor; e, finalmente, da constatação de que, relativamente à metodo- logia da investigação em Direito, o mercado editorial permanece um deserto. Faltando um sólido e adequado suporte metodológico a todos os que se lançam em estudos pós-graduados no universo jurídico, consi- derei oportuno e pertinente o lançamento deste testemunho. Tive a aspiração de escrever este livro logo após a discussão da minha tese de doutoramento. No entanto, vieram a interpor-se várias outras prioridades, entre artigos científicos, outroslivros, participação em con- ferências e aulas de estudos pós-graduados — todas elas, portanto, no domínio da própria investigação em Direito. Desta forma, tendo iniciado MANUAL DE INVESTIGAÇÃOEM DIREITO este livro em 2015,a respetiva elaboração foi várias vezes interrompida, só vindo a concluir-se no final de 2019. O texto está organizado numa perspetiva lógica e cronológica, ini- ciando-se com aspetos mais gerais e de enquadramento, e focando-se de- pois nas várias etapas do processo de pesquisa e redação do texto cientí- fico, sem esquecer vertentes como a da ética da pesquisa, a preparação das próprias provas académicas e culminando com a eventual publicação do texto. Para maior facilidade de consulta, e para além das remissões internas, elaborei um índice ideográfico que reencaminha diretamente o leitor para as páginas onde são tratados os tópicos procurados. No presente livro recorri, quer a obras teóricas sobre metodologia e outras temáticas pertinentes (mesmo quando focadas em áreas do saber - estranhas ao Direito), quer — a título ilustrativo - à transcrição de argui- ções de provas académicas. Embora estes textos correspondam (na utilização que dos mesmos faço) ao que designo por material empí- rico, optei por integrar, todos eles, na mesmalista de bibliografia final. Quanto ao estilo, procurei adotar uma escrita ligeira, ilustrada por exemplos práticos e histórias verídicas, com que espero cativar a atenção e o interesse do leitor. Finalmente, os meus agradecimentos de sempre têm por credores a minha mulher e o meu filho, aos quais dedico este livro. Lisboa, 18 de janeiro de 2020 Luís Poças Ouve muito e fala pouco Aprende com paciência Quando souberes que não sabes Chegaste à melhor ciência! Quadra popular. Recolha oral de Maria Tavares, bisavó do autor. |. INTRODUÇÃO L1 Dificuldades metodológicas e objetivos deste livro I - Quando, há mais de três décadas, começómos a interessar-nos pela metodologia da investigação, as obras disponíveis sobre a matéria eram, no universo editorial português, quase inexistentes. O texto de referência era, à época, o clássico de Umberto Eco Como Se Faz Uma Tese Em Ciências Humanas”, cuja leitura, pela pertinência que mantém,suscita ainda interesse. Desde então, o mercado editorial tem vindo a ser inundado por li- vros sobre metodologia de investigação e redação de textos científicos, acompanhando, aliás, um momento de oportunidade que bafejou o universo editorial. Na verdade, em virtude do processo de Bolonha e de alguma pressão do mercado de trabalho, verificou-se uma autêntica in- flação das qualificações académicas e, com ela, um aumento da procura e da inerente oferta de cursos de pós-graduação, mestrado e doutora- mento, cuja avaliação assenta, em maior ou menor medida, na realização de artigos, relatórios, dissertaçõese teses. Porém, para o jurista que se dedique à pesquisa científica, a prolife- ração detais obras metodológicas (que, em boa parte, são referenciadas ao longo deste texto) tem umautilidade e alcance limitados, já que as mesmas se alicerçam numa realidade bem distinta — a das ciências so- 2? Umberto Eco, Como Si Fa Una Tesi Di Lautea, Milano, Casa Editrice Valentino Bompiani, 1977 — trad. port., Como Se Faz Uma Tese Em Ciências Humanas, 6.º Ed., Lisboa, Presença, 1995, 13 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO jais ou adasciências exatas -, descurandoas idiossincrasias rituais e [ | asespecificidades metodológicas e os critérios de avaliação uito próprios dos cursos de Direito, aspetos que fazem deste ramo do conhecimento um mundo à parte. - Com efeito, o universo da investigação em Direito prescinde, desde logo, da pesquisa de informação empírica, o que altera radicalmente a organização e planificação dotrabalho, bem comoa estruturação do texto científico. Na verdade, a matéria-prima fundamental da investigação em Direito são as normas jurídicas, não os factos do mundofísico ou social. É certo que as normas não podem ser descontextualizadas da realidade cultural onde se produzem, mas não é o sistema sócio-cultural o objeto central de investigação do jurista nem compete a este efetuar trabalho ' de campo (ou laboratorial) destinado a recolher e analisar dadoscarac- terizadores dessa realidade. Em suma, quer o objeto quer o método pró- prio da ciência jurídica tornam inaplicáveis à investigação em Direito parte substancial das regras, sugestões e conselhos vertidos naliteratura disponível sobre metodologia de investigação. Acresce que o mundo académico em Direito é igualmente muito ar- reigado aos seus rituais, a uma autêntica liturgia que envolve as provas académicas, bem como às práticas muito específicas de estruturação e redação de textos científicos, onde abundam, por exemplo,as notas de rodapé e nunca vingou o sistema de referenciação autor-data. A pro- pósito de referenciação, a comunidade jurídica? é também, paradoxal- mente, um pouco mais anárquica do que as suas congéneres das ciências sociais ou exatas. Em contrapartida, certos “pecados metodológicos”, que outras áreas toleram, são muito fortemente censurados no domínio do Direito. Por todas estas especificidades - e muitas mais, que iremos desven- dando ao longo deste livro - sentia-se a ausência de uma obra meto- dológica que atendesse às particularidades da investigação em Direito. * Entendemoso que designámos por comunidadejurídica num sentido amplo, envolvendo to- dos os juristas de formação (licenciados em Direito), independentemente da profissão con- creta para a qual sejam convocadas as competências académicas adquiridas. Afastamo-nos, assim, do sentido estrito - de comunidade jurídico-forense - em que a expressão é, por ve- zes, empregue (cfr., por exemplo, José Vigário Silva, Comunicação, Lógica e Retórica Forenses, Porto, UNICEPE,2004,pp. 15 ss.). lá L INTRODUÇÃO Uma honrosa exceção é o livro de José Manuel Meirimí, que, no entanto, incide fundamentalmente sobre a pesquisa informática em bases de dados jurídicas, assumindo, portanto, um escopo relativamente deli- mitado. O estado da arte em matéria de metodologia de investigação em Direito é, portanto, em geral, pobre. É essa lacuna — para usar uma expressão plena de conteúdo jurídico-metodológico — que o presente texto visa colmatar. Será esse o seu contexto, que permitirá algumas incursões à própria metodologia jurídica, ao método comparativo, à lógica argumentativa própria do Direito. As regras enunciadas e as soluções propostas serão também, em grande medida, acompanhadas de exemplos práticos, e ilustradas com algumas histórias e excertos de arguições de provas aca- démicas em Direito. HI - As próprias faculdades de Direito descuram, em grande medida, o tema da metodologia de investigação. Enquanto nos cursos de licencia- tura em ciências sociais as preocupações metodológicas acompanham transversalmente a generalidade das disciplinas ao longo de todo o per- curso curricular - havendo mesmo disciplinas específicas de caráter me- todológico -, em Direito não há, em regra, uma cultura da metodologia de pesquisa. Aqui, onde a avaliação em cursos de licenciatura assenta, em grandeparte, na realização de testes escritos e de provasorais, o tra- balho de investigação merece pouco destaque. Mesmo nos cursos jurídicos de pós-graduação, mestrado e douto- ramento não é frequente encontrarmos preocupações metodológicas na estrutura curricular. Neste quadro, o estudante que pretenda efetuar estudos pós-graduados encontrar-se-á, em regra, desprovido de bases metodológicas que o orientem na elaboração de textos científicos (aqueles em que se baseará a avaliação nessa fase de estudos). Tudo isso se reflete, normalmente, na (fraca) qualidade de muitostrabalhos finais (relatórios, dissertações e teses). * José Manuel Meirim, ComoPesquisar e Referir em Direito, Coimbra, Coimbra Ed., 2008. $ Boa parte desses exemplos são retirados de arguições publicadas, caso em que, em coerên- cia com os cânones do trabalho científico, não deixaremos de efetuar a devida referência bibliográfica, embora resguardando a identidade de cada candidato. MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO A regra, em Direito, no plano da metodologia de investigação,é a de um «saber só d'experiências feito», para citar Camõesº. Por vezes, a ar- guição em provas de mestrado e doutoramento constitui a melhor aula sobre metodologia. Neste caso, os alunos aprendem com os seus pró- prios erros, mas — tarde demais! - quando não vão já a tempo de corrigi- “los. Ora, não é uma inevitabilidade que o candidato tenha de passar pelo crivo de uma dura arguição para que, à sua custa, consolide os dita- mes metodológicos que lhe permitam evitar as mesmas fragilidades em trabalhos subsequentes. O propósito deste texto é também, assim, o de, partilhando expe- riências, prevenir erros metodológicos e antecipar o fornecimento de bases e orientações mais sólidas. Poderá, desta forma, o investigador (e potencial candidato) assumir, à partida, um patamar de maturi- dade mais elevado, potenciando a consistência científica do trabalho porsi produzido. Se é verdade que, como diz o povo, o barbeiro se faz na cara do cliente - e que, transpondo para as profissões jurídicas, o jovem advogado só ganha experiência à custa dosseus clientes - não é forçoso que o investigador sofra as consequências da sua própria inex- periência. HI - Mesmo considerando a abundância de textos metodológicos publicados na área das ciências sociais, uma parte significativa dos mes- . mos pouco mais é, com frequência, do que um receituário de regras de referenciação bibliográfica (limitando-se, por vezes, a reproduzir a norma do IPQ na matéria), de regras linguísticas e de recomendações formais. Ora, essa abordagem parece-nos insuficiente e alheia às reais necessidades do investigador, sobretudo do menos experiente. Assim, este livro não pretende ser umasíntese de regras de correção linguística (se for esse o propósito de leitor, recomenda-se a consulta de uma gramática da língua portuguesa ou de um prontuário ortográfico, de que o mercado está bem provido) nem uma transcrição ou síntese da Norma NP 405 (também facilmente acessível online). Diversamente, o presente trabalho incide sobre o processo de produção do conheci- mento nas ciências jurídicas, assumindo um escopo muito abrangente e * Luís de Camões, OsLusíadas, IV, 94, 7. I6 1 INTRODUÇÃO colocando especial enfoque em aspetos práticos de organização do tra- balho deinvestigação e de estruturação do texto dele resultante”, Em suma, este livro visa dar resposta a um triplo problema. Por um lado, analisar as especificidades das ciências jurídicas, que tanto diver- gem dos parâmetros das ciências sociais. Por outro lado, propor solu- ções para os principais problemase para as insuficiências mais frequen- tes dos trabalhos dos alunos. Por fim, suprir as lacunas pedagógicas, quer dos manuais disponíveis, quer da lecionação pós-graduada, em matéria de metodologia de pesquisa em Direito. L2 Noções-chavee terminologia 1 - Algumas noções-chave acompanhar-nos-ão ao longo do presente texto. Importa, assim, desde já, precisarmos o seu sentido e alcance, de modo a evitarmos qualquer margem de ambiguidade. Desdelogo, a noção de ciência, palavra com origem no termo latino scientia, que significa conhecimento. Em termos muito simplistas, pode- mos dizer que a ciência corresponde, assim, ao conhecimento siste- mático, proveniente da pesquisa metódica (com recurso ao método científico). II - Quanto ao termo método, o mesmo provém do grego methodus, que significa literalmente «seguir um caminho» tendo em vista um determinado fim. O método implica, portanto, um percurso — ou se- quência ordenada de procedimentos - orientado à consecução de um objetivo. Nesta medida, é configurável como um processo, obedecendo a regras. ? Por exemplo,algumaliteratura dá conta do desamparoinicial do investigador, quando con- frontado com um caos metodológico ou com um vazio de ideias relativamente à pesquisa visada. Essa situação conduz, não raramente, a uma precipitada fuga para a frente e aum consequente dispêndio de tempo em trabalho virtualmente inútil e nefasto, traduzindo- -se, em regra, numaavidez desnorteada deleituras, suscetíveis de proporcionar um volume de informação que alimentará o caos mas não preencherá o vazio - Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt, Manuel de Recherche en Sciences Sociales, Paris, Bordas, 1988 - trad. port., Manual de Investigação em Ciências Sociais, Lisboa, Gradiva, 1992, pp. 19-20. O investigador poderá ser conduzido a tal desnorte, designadamente, por uma má escolha do tema ou por um deficiente planeamento do trabalho de investigação. Em qualquer dos casos, encontrará neste texto pistas que lhe permitirão evitar colocar-se nareferidasituação. MANUALDE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO Neste sentido, René Descartes define método comoas «regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber»?. A metodologia, por seu turno, corresponde ao estudo do método. Como precisa Salvador Giner, «chamamos metodologia ao estudo sis- temático dos métodos utilizados por uma ciência na sua investigação da realidade, que inclui a análise lógica do processo deinvestigação e o exame dosprincípios e hipóteses que o guiam». HI - Uma outra noção-chave é a de pesquisa ou investigação. Michael. Salter e Julie Mason definem a pesquisa como «o estudo sistemático de um tema»'?, incluindo a respetiva delimitação e conceptualização, bem como a avaliação e análise das questões e problemáticas que o tema suscita", Ângelo DomingosSalvador”, por seu turno,distingue a pesquisa didá- tica da pesquisa científica. Na primeira, característica dos estudos gradua- dos (cursos de licenciatura) verificar-se-ia um predomínio da apreensão do conhecimento, desempenhando uma função de aprendizagem.Já na pesquisa científica, característica dos estudos pós-graduados (cursos de mestrado ou doutoramento), haveria um predomínio da função de pro- dução de conhecimento. Embora esta distinção se afigure demasiado rígida, a mesma contribui para a densificação da própria noção de pes- quisa, evidenciando comoasvertentes de inovação,originalidade e cria- tividade são inerentes à investigação de alto nível, mormente à que está associada à otenção do grau de doutor. * René Descartes, RegulaeadDirectionem Ingenii, 1684 - trad. port. de João Gama, Regraspara a Direção do Espírito, Lisboa, Edições 70, s.d.[1989], p. 8. ? Salvador Giner, Sociologia, Barcelona, Ed. Península, 1974, p. 36, apud Antonio Lucas Marin, Introducción a la Sociologia, Pamplona, BUNSA, 1979 - trad. port. Introdução à Sociologia, Lis- boa, Editorial Notícias, 1979, p. 129. “º Michael Salter e Julie Mason, Writing Law Dissertations - An Introduction and Guide to the Conduct ofLegalResearch, Essex, Pearson Education, 2007, p. 6 (trad. nossa). “ Michael Saltere Julie Mason,ibidem. 2 Ângelo Domingos Salvador, Métodos e Técnicas de Pesquisa Bibliográfica, 1,º Ed,, Porto Ale- gre, Sulina, 1986, p. 10. i8 1. INTRODUÇÃO Ao longo do presente texto, referir-nos-emos genericamente a inves- tigador no sentido amplo do potencial interessado na leitura do mesmo, quer se trate de um estudante a braços com uma dissertação ou de um jurista mais experiente que deseje elaborar um artigo jurídico ou um relatório científico no domínio do Direito. IV - A pesquisa científica materializa-se na elaboração de um texto monográfico, noção que importa igualmente reter. Etimologicamente, monografia significa uma obra ou estudo sobre um único assunto: monos (um, único) + graphos (escrito). A monografia é, assim, um texto sobre um tema específico, único (o tema objeto da pesquisa científica), distin- guindo-se dos textoscientíficos de caráter geral (obras gerais, compén- dios, manuais ou tratados). Quando, no presente escrito, aludimos à elaboração de textos cien- tíficos, estamos a referir-nos a monografias, as quais, consoante a sua extensão, exaustividade e aprofundamento, podem ser teses dedouto- ramento, dissertações de mestrado ou artigos científicos. Do sentido que vimos referindo (monografia em sentido substancial) distingue-se um sentidoformal, em que o termo monografia surge como sinónimo de publicação em formato livro. Assumiremos como paradigma do trabalho de investigação os textos de grandefôlego, comosãoasteses e asdissertações. A tese é o trabalho de investigação conducente à obtenção do grau de doutor - o mais elevado do percurso académico -, peloque é o exemplo por excelência da ativi- dade de pesquisa de maior envergadura. O termo tese provém do grego thésis, que significa posição. A tese corresponde, assim, a uma proposição que deve ser exposta, discutida e defendida. Já o termo dissertação é reservadoa trabalhosde investigação de am- plitude relativamente menor, conducentes à obtenção do grau de mes- tre (ou, em casos pontuais, de licenciado). V - Aproveitamos também,desdejá, para clarificar a distinção entre referência bibliográfica e bibliografia final. Quando aludirmos à primeira expressão reportar-nos-emos à referenciação em nota de rodapé,isto 3 Assim, a monografia constituirá um género de trabalho científico, do qual serão espécies a tese,a dissertaçãoe o artigo - Ângelo DomingosSalvador, idem, p. 33. 19 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO é, à identificação de uma fonte bibliográfica feita ao longo do texto mediante uma chamada para nota de rodapé (ou nota de pé de página). Por seu turno,a bibliografia final consiste na identificação completa — listada alfabeticamente no final do texto — das fontesbibliográficas que, ao longo do mesmo,foram referenciadas em nota de rodapé. 13 O Direito e as outras ciências I - Referindo-se às ciências sociais, Sedas Nunes identifica quatro ní- veis de diferenciação que permitem distingui-las entre si: (7) os fins ou objetivos de investigação; (ii) a natureza dos problemas sobre os quais deve incidir a investigação; (iii) os critérios de seleção das variáveis rele- vantes; e (iv) os métodos e técnicas de pesquisa e interpretação teórica!*, Esses critérios permitem também distinguir as ciências jurídicas relativamente aos outros ramos do conhecimento. Assim, em Direito: (i) os objetivos de investigação dirigem-se à busca de soluções nor- mativas; (11) estas visam regular problemas da vida corrente; (iii) para tanto, relevam os elementos da situação de facto passíveis de qualifica- ção jurídica e as normas e princípios potencialmente aplicáveis; e, por fim, (iv) os objetivos de investigação são prosseguidos através do mé- todo jurídico, distintivo do Direito. Vejamos, mais em detalhe, alguns destes elementos. H - Toda a ciência parte do equacionar de dados problemas, diri- gindo-se à busca de soluções para os mesmos', No caso do Direito, pro- cura-se soluções normativas - regras de conduta - para problemas da vida corrente. Assim, diversamente das ciências sociais ou até das ciên- cias exatas, o Direito assume um sentido normativo. Nesta medida, ao trabalho de investigação em ciências jurídicas não é alheio um propó- 4 A, Sedas Nunes, Questões Preliminares Sobre as Ciências Sociais, 11,º Ed,, Lisboa, Presença, 1994, pp. 26-27. 8 Como referem Augusto Santos Silva e josé Madureira Pinto, «ciência é também procurar soluções para problemas. Ela própria elabora e testa os meios necessários: conjuntos coeren- tes de conceitos e relações entre conceitos - as teorias -, uma linguagem conceptual ade- quada e tanto quanto possível exclusiva, instrumentos técnicos de recolha e tratamento de informação, métodos de pesquisa». Augusto Santos Silva e José Madureira Pinto, “Umavisão global sobre as ciências sociais”, in Augusto SantosSilva e José Madureira Pinto (Orgs.), Me- todologia das Ciências Sociais, 8.º Ed., Porto, Afrontamento,1986,p. 12. 20 1. INTRODUÇÃO sito prescritivo, discutindo hipóteses de regulação de problemas sociais e económicos, equacionados como problemasjurídicos. Logo, o propósito do trabalho de investigação jurídica não se atém ao conhecimento de um dado problema, mas visa a respetiva disciplina ou solução normativa. Não pergunta o que é?, mas sim como se regula? (quid iuris?). Nesta medida também, trata-se de um trabalho com uma im- portante vertente pragmática, tendo como público-alvo, para além dos académicos que partilham dos mesmosinteresses de pesquisa, a própria comunidade jurídica. HI - Se a investigação assenta, em grande medida, na recolha e aná- lise de dados, uma significativa diferença entre as ciências jurídicas e as outras ciências é que no Direito a matéria-prima do investigador são as normas jurídicas. Ou seja, os dados sobre os quais incide a investigação são fornecidos à partida, prescindindo-se do trabalho de campo. Esta constatação, que pode parecer evidente, é da maior relevância, porquanto determina, em Direito, uma organização do tempo e do pro- cesso de investigação radicalmente diferente das ciências sociais. Com efeito, nestas, após a definição da questão de partida, há lugar a uma fase prévia de estudo teórico (revisão da bibliografia e estado daarte); à qual se segue a formulação de hipóteses; depois, a construção de um modelo de análise (definição de um modelo teórico e respetiva opera- cionalização, explicitando dimensões, conceitos, variáveis e indicado- res); posteriormente, a seleção das técnicas de observação e recolha de informações; após o que se leva a cabo um extenuante trabalho de cam- po e - só depois (em função dos dados recolhidose analisados, da corre- lação identificada entre variáveis, da confirmação ou infirmação de hipó- teses) - pode haver lugar à redação do texto (ou, pelo menos, da parte mais substancial deste)'º. Já em Direito, em virtude da acessibilidade imediata às regras jurí- dicas - que assumem o papel do material empírico, chamemos-lhe as- sim -, o jurista pode começar desde logo a estudar os contributos teóri- cos produzidos pela doutrina, a analisar as normas pertinentes, a refletir 'é Em síntese, cfr. Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt, Manuel de Recherche en Sciences Sociales, cit, pp. 22 ss. Cfr. Também Daryl J. Bem, “Writing the empirical journal article”, in Mark Zanna e John Darley (Eds.), The Compleat Academic: A Practical Guidefor the Beginning Social Scientist, Maiwah (New Jersey), Lawrence Erlbaum Associates, 1987, pp. 172-173. 21 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO e a escrever. O processo de investigação é, assim, menos rígido e fa- seado, assumindo, de algum modo, uma forma circular em que a leitura, a reflexão e a escrita coexistem, interpenetrando-se e influenciando-se. L4 Sequência expositiva Este manual está organizado numa perspetiva lógica e cronológica. Assim, concluído o capítulo introdutório e de breve contextualização, passaremos (no Capítulo II), ainda numa abordagem generalista, a ana- lisar os vários requisitos de que depende a valorização e a credibilidade científica da investigação. Estes requisitos serão metas teleológicas que orientarão o investigador ao longo das várias etapas da metodologia de trabalho. No momento seguinte (Capítulo III), equacionaremos o trabalho de pesquisa científica como um processo, obedecendo a três grandes fases: o planeamento (momento indispensável de organização do trabalho subsequente); a investigação propriamente dita (que inclui a leitura, a reflexão e a escrita); e a revisão dotexto final. Posteriormente, consagraremos o Capítulo IV aos requisitos a que deverá obedecer a escolha do tema, contemplando também orientações quanto à formulação do mesmo e terminando com tipologias de temas jurídicos. Será depois tempo, no Capítulo V, para uma análise mais detida so- bre o planeamento do trabalho de investigação, o qual passa pela ela- boração da estrutura provisória que o texto haverá de seguir (plano do trabalho); pela alocação de fontes (bibliografia) a cada capítulo dessa estrutura; e pela distribuição no tempo, através de um cronograma,das leituras, reflexão e escrita (plano de atividades). O Capítulo VI, por seu turno, seráconsagrado à pesquisa das fontes (mormente, das bibliográficas), à organização de um ficheiro bibliográ- fico e de um arquivo de cópias, à definição das prioridades de leitura, bem como à recolha de contributos mediante fichas e notas de leitura. Será depois tempo (Capítulo VII) de nos determos sobre a estruturação do texto, sobre o processo de escrita, sobre a organização do discurso e sobre os tipos de texto científico em função do grau académico a que respeitam. 22 1. INTRODUÇÃO O Capítulo seguinte (VIII) será inteiramente dedicado à redação do texto científico, abrangendo, quer aspetos de estilo, quer de correção formal e metodológica, incluindo a função das notas de rodapé,as re- gras de citação e de referenciação das fontes, a organização da bibliogra- fia final, regras sobre argumentação, sobre o recurso aos métodos com- parativo e histórico e sobre a revisão e formatação do texto. Por seu turno, o Capítulo IX incidirá sobre a ética da pesquisa, dis- pensando a devida atenção às várias modalidades de fraude académica e de desonestidade intelectual, com necessária referência ao plágio e ao autoplágio. Quanto ao Capítulo X, foca-se o mesmo nas provas académicas - as arguições de mestrado e de doutoramento — clarificando o modelo de organização normal das provas e a estrutura de tópicos seguida por cada arguente, e deixando conselhospráticos ao candidato que será avaliado. Finalmente, o Capítulo XI é consagrado ao corolário do trabalho de investigação, normalmente visado pelo investigador: a publicação do respetivo texto, seja sob a forma de artigo (domínio onde se analisa o sistema de peer reviewing), seja em formato delivro. 23 |. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO Antes de nos embrenharmosnas várias etapas do processo de investi- gação e redação de textoscientíficos, importa que nos detenhamos numa questão prévia:a de saber oseesperade um texto científico ou, por outras palavras, quedistingueevalorizaumescritonoplanodacien- tificidade. Neste contexto, analisaremos no presente capítulo as várias qualidades que conferem cientificidade a um texto, valorizando-o e cre- dibilizando-o como discurso científico. Para tanto, iremos também dando conta de características que distinguem o Direito das demais ciências. Naturalmente que os requisitos do trabalho científico são tanto mais apertados - e mais exigentes os critérios de verificação dos mesmos - quanto mais elevado for o grau académico a que o mesmo dé acesso. Assim, os níveis de problematização, aprofundamento, exaustividade e originalidade exigíveis de umatese de doutoramento estão num plano muito superior aos que se esperam de uma dissertação de mestrado ou de um relatório final de uma pós-graduação. Hi A problematização I - Como afirma Ferrarotti, «a ciência não tem nada de divino, nem é a expressão, matematicamente demonstrável, do supremo arquiteto newtoniano, de Deus como pantokrator. A ciência é apenas uma ativi- dade humana e é, portanto,essencialmente 7 Franco Ferrarotti, Sociologia, Roma, Editori Laterza, 1985 - trad. port., Sociologia, Lisboa, Teorema,1993,p. 12. 25 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO logo, em todas as áreas do conhecimento a problematização constitui um fator de cientificidade, assumindo-se como um dos critérios de maior valorização do texto científico. O sentido dos termos problemati- zação e problemática não é univoco, sendo analisável em várias vertentes. Em sentido corrente, dizemos que é problemático o que é incerto, duvidoso ou equivoco (ou seja, o que não é óbvio, certo ou de entendi- mento pacífico). Por outro lado, a problemática constitui um conjunto de problemascientificamente equacionados. Vejamos, porém, mais detida- mente em queconsiste o requisito de problematização dotexto científico. 1 - Como o próprio termo sugere, problematiza significa|identif- ere AnthonyGiddens,numa afirmação generalizável aos vários ramos do conhecimento, que «todasasinvestigaçõespartemde umproblemaainvestigar». Podeafirmar-sequeopropósitodetodootextocientificoéodesituar “um1problema(científico)eresolvê-lodeformaoriginal, Transpondo “mática, assentando na resolução deje problemas da vida real que carecem de solução normativa”. A familiar locução latina quid iuris? - que signi- fica literalmente que Direito? ou, mais substancialmente, quala solução do Direito? - dá bem conta desta busca de solução para um problema equa- cionado?. * Anthony Giddens, Sociology, 2.º Ed. Cambridge, Polity Press, 1993 — trad. port., Sociologia, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 795. 2 A ciência do Direito assume precisamente por objeto, nas palavras de Larenz, a «solução de questões jurídicas no contexto e com base em um ordenamento jurídico determinado, historicamente constituído» Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschafi, 5.2 Ed., Berlin, SpringerVerlag, 1983 — trad. port., Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Fundação Calous- te Gulbenkian, 1989,p. 1. *” Escrevemos noutro local que «é precisamente função da ciência do Direito responder à questão quid iuris? inerente a cada problema jurídico, estabelecendo a ponte entre o univer- so normativo e o da realidade empírica, e promovendo a realização da justiça em cada con- texto cultural por apelo ao métodojurídico». Luís Poças, O Deverde Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Coimbra, Almedina, 2013, p. 24. 26 H. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO Neste domínio, importa precisar melhor em que consiste o problema : jurídico, que traduz o caráter pragmático — ou normativo — do Direito? Ora, o Direito visa a solução dos casos concretos,isto é, a regulação nor- mativaaosàs reais situações da vida corrente. Desta forma, roblemas interpessoais—eacomosituações de facto O enfoque nessas situações, sob uma perspetiva jurídica, na busca de uma solução normativa para as mesmas, corresponde já à passagem do domínio do problema concreto da vida real para o do problema jurí- dico. Neste quadro, lançar-se-á mão do método jurídico para formular e discutir hipóteses de solução normativa, de regulação das situações de facto na coerência sistémica e axiológica da ordem jurídica. 2 Ao nível das ciências sociais, é suscitada a distinção entre problemasocial e problema socioló- gico. O primeiro é, ele próprio, umaconstrução social, o produto (necessariamente condicio- nado) de uma perspetiva socialmente partilhada, que configura uma determinada matéria como preocupante, como uma disfunção ou um perigo para a ordem social que carece de um remédio. O problemasocial exige, portanto, soluções materiais, como uma doença exige uma cura. Como refere José MachadoPais, «os “problemassociais” são problemas que emer- gem de umarealidade material e social (real-social), para cuja solução é necessário pensar umarealidade distinta: a solução dos apregoados problemasvividos pela juventude (droga, delinquência, desemprego, etc.) passa pela liquidação desses problemas, pela projeção de uma modificação do real-social» - José Machado Pais, Culturas Juvenis, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996, p. 21. Já o problema sociológico é configurado numa perspe- tiva crítica, que pretende superar pré-entendimentosvisando a produção de conhecimento científico. Corresponde ao reequacionar de uma matéria como objeto de questionamento científico, como objeto de investigação. Assim, o problema sociológico requer explicações, ou hipóteses de explicação, como uma pergunta requer uma resposta. RetomandoJosé Ma- chado Pais,refere o autor que «os “problemas sociológicos” [são] dirigidos essencialmente à interrogação da realidade [...]. São interrogações deste tipo que podem originar proble- masde natureza teórica que, por sua vez, contribuem para umarelativa negação de um dado “real”, porque o complicam, destruindo-o virtualmente, aniquilando-o, criando-o como dimensão problemática, numa construção artificial que deveria ser irredutível - no plano estritamente científico - a qualquerfinalidadeprática» - ibidem. 2 António Menezes Cordeiro, “Ciência do direito e metodologia jurídica nos finais do séc. XX”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano XLVII, Vol. II (dez. 1988), p. 707. 27 MANUALDE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO Naanálise das normas positivadas, procurando a densificação do seu sentido”, deverá o investigador testar a plasticidade das mesmas e do seu potencial regulador na solução do problemajurídico”*. Em qualquer caso, o Direito não se basta com um non liguet, não pode ser inconclusivo: a solução, ou hipótese de solução — resolução do problema suscitado — terá de surgir, bem ou mal, da análise e discussão problemática. De resto, o texto científico pode incidir sobre um único problema, como sucede em escritos mais elementares e curtos, ou sobre uma di- versidade de problemas. No caso dos textos mais extensos e aprofun- dados, as problemáticas assemelham-se a constelações, compostas por múltiplos problemas relacionados entre si. Hi - Num outro sentido, que apresenta afinidades com o que acaba- mos de referenciar, a problematização apresenta-se como sinónima de controvérsia e densificação. Assim, uma matéria será tanto mais pro- blemática e fecunda, no plano científico, quanto mais questões sugerir, quanto mais carecida de solução legal estiver, e quanto mais debate, po- lémica, argumentação e demonstração - por contraposição de diferen- tes perspetivas, quadros teóricos, conceitos e considerandos - suscitar. “Por fim,a apresentação das perspetivas doutrinárias e jurisprudenciais convocadas e a respetiva análise e confronto deverão culminar numa tomada de posição crítica e fundamentada do investigador. Em suma, problematizar é densificar. Retomando Giddensº, o autor identifica dois tipos de questões. Por um lado, as que apenas requerem informação, gerando respostas funda- mentalmente descritivas. Por outro, as que constituem autênticos enig- mas, traduzindo lacunas no entendimento. Exemplifiquemos, transpondo a formulação para o mundo do Direito. À questão - “a quem incumbe, na responsabilidade civil aquiliana, o ónus da prova da culpa do autor da E Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, cit., p. 229. * Os cânones metodológicos do Direito serão, assim, convocados, em primeira linha, para a obtenção da premissa maior do silogismo jurídico: a determinação do sentido e alcance da norma, ou seja, a apreensão compreensiva do seu conteúdo material. Karl Engisch, Einfiihrung in das Juristische Denken, 8.º Ed., Stuttgart, W. Kohlhammer, 1983 — trad. port., Introdução ao Pensamento Jurídico, 6.º Ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. H5-116 e 127. * Anthony Giddens, Sociology, cit., p. 796. 28 Il. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO lesão?” - por muitos artifícios que o investigador pretenda introduzir para dar-lhe uma aparência de complexidade, a resposta é linear e de- corre diretamente de uma norma jurídica (o n.º 1 do artigo 487. do Có- digo Civil). O tratamento da questão seria necessariamente descritivo. Diversamente, a questão — “qual a solução do nosso ordenamento para a indução negligente em erro do declarante pelo declaratário?” — corres- ponde a um enigma, suscitando um tratamento problematizante”. A problematização não se coloca apenas ao nível das perguntas, mas também, em grande medida, ao das respostas. Mais importante do que apontar uma solução normativa para um dado problema, é fundamen- tar essa solução, é justificá-la, defendê-la com argumentos sólidos con- tracríticas potenciais (que o investigador antecipa) ou reais (que outros autores já equacionaram). Dizer-se - “a solução é esta” — é de nenhuma valia científica. Afirmar-se que “o legislador entendeu que a solução era esta” também não é melhor. Em qualquer dos casos, estaríamos perante um exercício especulativo. Assim, no exemplo acima, da indução negli- gente em erro,afirmar-se lapidarmente que “a solução visada pelo orde- namento consiste na aplicação analógica do regime dosartigos 253.º e 254.º do Código Civil”, para além de não ser um exercício sério, corres- ponderia a umtratamento descritivo de uma questão problematizante. A problematização apela, como referimos, ao debate doutrinário. Num texto jurídico, este debate processa-se como se o investigador sen- tasse à mesma mesa autores que estudaram e refletiram sobre um deter- minado problema e registasse em ata os argumentos e contra-argumen- tos por eles trocados. Este exercício imaginário — tão imaginário que alguns desses autores terão vivido em contextos geográficos e históricos tão diversos que lhes seria impossível conhecerem-se pessoalmente — dará conta das perspetivas que tais autores tenham formalizado por es- crito, deixando umareferência bibliográfica completa do respetivo local de publicação. Na procura do debate doutrinário, o investigador lançará mão dos argumentos, favoráveis ou contrários à sua posição, já manifestados por outros autores. E deverá reproduzir esses argumentos com seriedade e % A questão foi, aliás, tema de uma tese de doutoramento: Eva Moreira da Silva, As Relações Entre a Responsabilidade Pré-Contratual por Informações e os Vícios da Vontade (Erro e Dolo) - O Caso da Indução Negligente em Erro, Coimbra, Almedina, 2010. 29 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO rigor. Porém, onde a doutrina ou a jurisprudência não tenham assumido posição, deverá o investigador, à vez, assumir o seu papel e o de “advo- gado do diabo”. Deve imaginar-se a jogar xadrez sozinho: embora pre- tenda que vençam as peças brancas, essa vitória só terá valor se se empe- nhar também no sucesso das peças pretas, como adversário à altura de si próprio. Se, pelo contrário,o leitor sentir que o combate foi viciado, o investigadorsairá descredibilizado. Em Direito, a problematização corresponde também, portanto, à própria dialética, entendida como um diálogo, um debate de ideias diver- gentes ou conflituantes, no decurso do qual, por via da argumentação, é demonstrada uma tese”, Do mesmo modo que encontramos a dialé- tica na lide judicial - onde se opõem as posições de duas (ou mais) par- tes, também num trabalho de investigação, embora provindo de um só autor, haverá de verificar-se uma discussão, um confronto de ideias de onde triunfará, por efeito de uma argumentação honesta e persuasiva — portanto,eficaz -, a tese (ou teses) sustentada(s) pelo investigador. Finalmente, a problematização surge associada ao sentido crítico do investigador, manifestando-se, por exemplo, na recensão da bibliografia existente sobre um tema, onde o investigador identifique pré-entendi- mentos (ou enviezamentos de perspetiva), uma excessiva simplificação ou tratamento lacunar, inexatidões, vícios lógicos de argumentação, deficiências de fundamentação ou incongruências várias. IV - Diz-se que um texto não problemático é descritivo ou jorna- lístico. É o caso de um escrito que se limita a fazer uma exposição ou narração sobre um tema, a reproduzir um regime legal, ou que relata acriticamente a posição de um autor ou uma tendência jurisprudencial. Será também o caso quando o mesmo apresente de forma perentória hipóteses de solução como verdades incontroversas e indiscutíveis, que não admitem debate nem contradita. Na verdade, comenta McCormack, citando uma máxima Zen, que «nunca argumentar é nunca estar errado»?, Ora, aquilo que pode 2 Etimologicamente,o significado de dialética é precisamente o de arte de discutir. * Mark H. McCormack, The Terrible Truth About Lawyers: How Lawyers Really Work and How to Deal With Them Successfully, New York, Beech Tree Books, 1987 — trad. port., O Que Não Se Ensina nas Faculdades de Direito, 3.º Ed., Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995, p. 28. 30 Il. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO ser uma vantagem no relacionamento interpessoal é claramente uma desvantagem — ou mesmo uma falta grave — no plano científico. Se o investigador nada arrisca, se não assume uma tomada de posição, uma opinião crítica,um argumento ou a defesa fundamentada de uma pers- setiva, então o seu contributo - se de contributo podemosfalar - nada vale no plano científico. Sempre será preferível ser criticado e acusado “de estar errado (isso inevitavelmente irá suceder, qualquer que seja a “posição assumida pelo investigador) do que colocar-se na cómodasitua- ção de não assumir posição num debate e de, em virtude disso mesmo, anular a valia científica do trabalho. - Por vezes, encontramos textos descritivos que tentam assumir um “aspeto problematizante mediante o recurso a falsas problemáticas. Éo * caso quandoo investigador simula, sob uma aparência de complexida- de, um ou vários problemas que são, na verdade, de regulação simples e pacífica. V-A problematização é sempre valorizada em contexto académico, mesmo quando conjugada com uma vertente mais descritiva. Assim, no exemplo seguinte, elogia-se na arguição de uma tese de doutoramento “«o equilíbrio entre a dimensão descritiva e a dimensão problematizante, “nunca deixando o autor de, objetivamente, expor as opiniões dos outros, para depois dar a sua, ainda que às vezes num tom crispado em relação às opiniões da restante doutrina»?. Já o texto descritivo surge desvalorizado no plano científico, ficando vulnerável à crítica. Atente-se no seguinte exemplo, retirado de uma arguição de doutoramento: «o texto é largamente descritivo com trans- crições e citações de outros Autores (espanhóis, franceses, italianos) e surgindo, muitas vezes, a Doutoranda apenas a comentá-las ou a com- plementá-las»º, Considere-se também a seguinte crítica, feita em provas académicas: «a Candidata optou, em algumas matérias, por um discurso demasiado descritivo, que não é compatível com a natureza e a função de umadis- sertação ou tese universitária, ainda por cima quando esse estilo des- ? Jorge Bacelar Gouveia, “Arguição de provas de doutoramento”, Themis, Ano VII, n.º 12 (2006), p. 251. % Jorge Miranda, “Arguição de provas de doutoramento (1)”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLVI, n.º 1 (2005), p. 81. 3i MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO critivo se alicerça, repetidamente, na transcrição de longos excertos de documentos oficiais (como Acordos interinstitucionais, Relatórios da Comissão, do Parlamento Europeu, etc.), documentos esses que deve- riam ser resumidos ou simplesmente apenas citados ou levados porsi em conta somente como documentos de trabalho». I.2 O domínio do método jurídico I- Demosconta de que cada ramo do conhecimento se demarca dos demais, designadamente, em função do respetivo método de investigação e interpretação teórica. Neste quadro, constitui um fator particularmente relevante devalorização científica do texto jurídico o rigoroso domínio e uso do método próprio deste ramo do conhecimento. O Direito funda-se na Justiça. Nesta medida, no mundo jurídico, o método - que, como vimos, significa etimologicamente a prossecução de um caminho com um determinado fim — constitui um percurso que visa a efetivação da justiça”? Sendo o Direito uma ciência normativa, a respe- tiva metodologia, como metaciência, recorre também, necessariamente, a uma linguagem normativa?, Permitindo distinguir dois momentos de um mesmo método dirigi- do à realização do Direito, a atividade que consubstancia a ciência jurí- dica compreende uma função associada à aplicação prática e realização do Direito, e outra, com um crivo mais teórico-científico, de determina- ção do próprio Direito. Distingue-se, assim, respetivamente: «a função judicativo-decisória, chamadaa resolver os problemas jurídicos concretos em termos casuístico-jurisdicionais, da função dogmática, dirigida antes ao conhecimento objetivo-sistemático do direito constituído e vigente numa determinada comunidade histórica»? * Fausto de Quadros, “Arguição de provas de doutoramento (1)”, Revista da Faculdade de Di- reito da Universidade de Lisboa, Vol. KLIII, n.º 2 (2002), pp. 1459-1460. 2 Paulo Ferreira da Cunha, Iniciação à Metodologia Jurídica, 3.º Ed., Coimbra, Almedina, 2014, p. 175. & Karl Larenz, Methodenlehre derRechiswissenschafi, cit., p. 346. * António Castanheira Neves, “Método Jurídico”, in AAVV, Polis - Enciclopédia Verbo da Socie- dade e do Estado, Vol. IV, 2.º Ed., Lisboa, Verbo, 2004,cl. 226. Segundo o autor, o método juri- dico traduz-se, assim, na «atividade de juízo normativo ou de judicativa decisão normativa com fundamento e critério no direito pressuposto» — idem,cl. 224. 32 H. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO II - A dogmática jurídica visa estabelecer a unidade sistémica na coe- “rência de cada ordenamento, construindo, com recurso a processoslógi- “cos (assentes em elementos axiológicos), princípios gerais, institutos, conceitos, noções e classificações: em suma, um corpo doutrinal-con- ceptual no qual assentam,por seu turno, modelos normativos sistemica- mente coerentes de solução de casos concretos*. A dogmática pode, não obstante, ser entendida num sentido mais amplo, conjugando três vertentes inter-relacionadas: a descrição do Di- reito vigente; a elaboração conceptual e lógico-analítica; e a aplicação prática visando a solução normativa do caso concreto%. Neste âmbito, à dogmática é reconhecível uma principal função estabilizadora — na medida em que fomenta a institucionalização de padrões normativos de solução de problemas jurídicos?” — da qual decorrem funções de sim- plificação das alternativas e processos de decisão; de construção técnica, traduzida na conceptualização, classificação e sistematização do tecido normativo; de controlo da coerência e consistência das decisões jurídi- cas; e uma função heurística e de progressocientífico, marcada pela consoli- dação da cristalização conceptual e pelo seu alargamento a novos pata- mares decisórios*. II - Afirma Larenz que cabe à ciência do Direito, tanto a apreensão de expressões linguísticas, presentes, por exemplo, na lei, na jurispru- dência ou nos contratos, como a determinação do seu sentido norma- tivo. Ora, essa determinação do sentido de um texto — isto é, a respe- tiva interpretação - constitui uma atividade problemática, na medida em que consiste na seleção de um sentido entre vários possíveis. Essa seleção, porém, não é totalmente discricionária, antes obedecendo 3 Cfr. José Oliveira Ascensão, O Direito — Introdução e Teoria Geral, 13.º Ed. Coimbra, Alme- dina, 2005, pp. 416 ss.; Manuel Carneiro da Prada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2004 (Reimpr. 2007), p. 28; João Baptista Machado, Introdução ao Di- reito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1982 (reimpr., 1990), p. 359; Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. 1, Coimbra, Coimbra Ed., 2008, p. 75. % Fernando José Bronze, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão Problema- tizante dos Pólos da Radical Matriz Analógica do Discurso Jurídico), Coimbra, Coimbra Ed,, 1994, n. 81, p. 523. ” Fernando José Bronze, idem, pp. 526 ss. 3 Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, cit., pp. 28-29. 33 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO a regras e orientações, sem prejuízo da própria «fantasia criadora do intérprete»? Esta atividade metodológica de determinação e compreensão do sen- tidojurídico situa a hermenêutica geral na base da metodologia jurídica*. Assim, como nota Paulo Ferreira da Cunha, em virtude de o método do Direito ser indissociável do manuseio dos textos, a metodologia jurídica traduz-se, em grande medida, na hermenêutica (a interpretação da fonte normativa)*. A hermenêutica jurídica será, assim, «a disciplina da Meto- dologia do Direito votada à concretização (interpretação-aplicação) do. Direito, particularmente através do estudo das normas jurídicas escritas, mas também das sentenças, etc.»*?, Neste contexto, a hermenêutica jurí- dica compreende os métodos e técnicas de interpretação e de integração. das normas, bem comoas de aplicação dasleisno tempoe no espaço. IV - Paulo Ferreira da Cunha sublinha igualmente o papel da retórica (a persuasão do auditório através de uma argumentação eficaz) como vertente da metodologia jurídica$. A retórica, tomada em sentido am- plo, abarcará os conceitos próximos de retórica, em sentido estrito (isto é, a retórica geral aplicada ao contexto jurídico), de dialética e tópica: «a Tópica é o arsenal de ideias e de argumentos com que, por um lado, pensamos e organizamoso nosso pensamento e, por outro, nos prepara- mos para as batalhas solitárias de convencer um público (Retórica) ou vencer um adversário (Dialética)»**. 3 Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschafi, cit, pp. 282-285 e 344, Sobrea teoria da interpretação jurídica, Karl Engisch, Einfiirung in dasJuristische Denken,cit., pp.115 ss. *º Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, cit., p. 342. Explica o autor que, «por “hermenêutica” entendo aqui a doutrina sobre as condições de possibilidade e os modos específicos do “compreender em sentido estrito”, quer dizer, do compreender aquilo que é dotado de sentido enquanto tal, em contraposição ao “explicar” de objetos sem ter em conta as referências de sentido» — ibidem, * Paulo Ferreira da Cunha, Iniciação à Metodologia Jurídica, cit., pp. 66 ss. * Paulo Ferreira da Cunha, Princípios de Direito: Introdução à Filosofia e à Metodologia Jurídicas, Porto, Rés, s.d. (19932), p. 397. & Paulo Ferreira da Cunha,Iniciação à MetodologiaJurídica, cit., pp. 66 ss. * Paulo Ferreira da Cunha,idem, p. 139. Segundo referem Perelmane Olbrechts-Tyteca, «se- gundo Quintiliano, a dialética, como técnica do diálogo, era comparada por Zenão, por causa do caráter mais rigoroso da argumentação, com um punho fechado, ao passo que a retórica lhe parecia semelhante a uma mão aberta» - Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, 34 !. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO V - Embora esteja fora do âmbito deste trabalho — orientado para a metodologia de investigação - um aprofundamento da própria metodo- ogia jurídica de realização do Direito, deixamos no presente capítulo eferências bibliográficas que permitem um estudo em profundidade desta matéria. “. Em qualquer caso, não queremos deixar de nos demarcar do forma- “Jismo lógico, conceptualista e subsuntivo da jurisprudência dos concei- tosts, ou de um certo casuísmo — comprometedor da coerência do sis- “tema - a que tende a conduzir um excessivo enfoque na ponderação “dos interesses em presença. Neste contexto, reputa-se de seguir uma “orientação metodológica ancorada nas valorações subjacentes ao ordena- mento, entendido como construção social, isto é, como produto de um específico contexto histórico-cultural, configurando-se como subsis- tema dosistema social”. JL.3 A inovação 1- A produção de conhecimento é um processo de acumulação de contributos ao longo do tempo. O produto final da investigação cientí- fica deve, assim, adicionar algo ao estado do conhecimento. Esse acrés- cimo é o maior mérito que pode reconhecer-se ao texto científico, motivo pelo qual a inovação é tão valorizada em provas académicas, con- tribuindo para o sucesso das mesmas. Evidencia-se em múltiplas arguições de mestrado e (sobretudo) dou- toramento o reconhecimento académico resultante do caráter inovador Traité de PArgumentation, Bruxelles, Ed. Université de Bruxelles, 1988 - trad. port., Tratado de Argumentação, Lisboa, Instituto Piaget, 2006,p. 44. 8 Cfr. p. ex. Nuno Espinosa Gomes da Silva, Jurisprudência dos conceitos”, in AAVV, Polis - Enciclopédia Verbo da Sociedadee do Estado, Vol. III, 2.º Ed., Lisboa, Verbo, 1999,cls. 866ss. 46 José Oliveira Ascensão, Direito — Introdução e Teoria Geral, cit., p. 477; António Castanheira Neves, “Jurisprudência dos interesses”, in AAVV, Polis - Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. HI, 2.º Ed., Lisboa, Verbo, 1999, cls. 898 ss. ” António Menezes Cordeiro, “Ciência do direito e metodologia jurídica nos finais do século XX”, cit.pp. 735 ss. Cfr. uma síntese da perspetiva designada por jurisprudência dos valores - no quadro da qual os interesses deixam de ser vistos no plano individual ou subje- tivo, para passarem a sé-lo no plano objetivo, como valores sociais - em Luiz Fernando Coe- lho, “Jurisprudência dos valores”, in AAVV, Polis - Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol.III, 2.º Ed., Lisboa, Verbo, 1999,cl. 912. 35 MANUALDE INVESTIGAÇÃO EMDIREITO da investigação. Assim, no exemplo seguinte de provas de doutoramento, considera o arguente que «o candidato consegue escrever páginas de grande brilho, revelando ao leitor mundos desconhecidos ou só agora redescobertos, e fazendo avançar nitidamente o estado dos conheci- mentoscientíficos que encontrou ao encetar a sua dissertação», Nou- tras provas, afirma o arguente: «demolidor e iconoclasta, o doutorando procura ser, também, reconstrutivo e inovador. A sua dissertação é, sem margem para dúvidas, uma obra de elevada qualidade cientifica». Em contrapartida, a falta de inovação constituirá um fator de desva- lorização do trabalho académico: «se o [candidato] é sempre muito com- pleto na exposição das opiniões alheias, revela no entanto uma certa falta de criatividade e imaginação na elaboração de soluções próprias. O seu trabalho é um longo e sério repositório de conceitos e teorias de outros autores, mas deixa algo a desejar no plano do esforço de originalidade pessoal». Neste quadro, Oded Goldreich” defende que as deficiências dos tex- tos científicos resultam, em grande medida, da falta de consciência, por parte dos respetivos autores, da função destes textos: contribuir para o progresso do conhecimento científico. Para tanto, o texto deve comuni- car ideias (em sentido amplo) novas, isto é, que acrescentem algo ao está- dio do conhecimento num dado domínio dosaber. 1 - Neste contexto, é significativo que o Decreto-Lei n.º 216/92, 13 de outubro — que estabelece o quadro jurídico da atribuição dose graus de mestre e de doutor pelas instituições de ensino universitário - clarifique, no n.º 1 do seu artigo 17.º, relativamente a0 doutoramento que «o grau de doutor comprova à realização de uma contribuição inova- ra e original para o progresso do conhecimento, um alto nível culturalo P Pp «s Diogo Freitas do Amaral, “Arguição de provas de doutoramento (DY, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. KKKIX, n.º 2 (1998), p. 832. “ Diogo Freitas do Amaral, “Arguição de provas de doutoramento (2)”, Direito e Justiça, Vol. x, T. II (1996), p. 256. Veja-se outro exemplo em Jorge Miranda, “Arguição de provas de doutoramento (2)”, Direito eJustiça, Vol. RI, T. H (19993, p. 260. so Diogo Freitas do Amaral, “Arguição de provas de doutoramento (3)”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. KKK (1991), p. 93. st Oded Goldreich, How to Write a Paper, 2004, http://wwwwisdom.weizmann.ac.il/-oded/ R2/re-writingpdf, p. | (consult. 15/11/2015). 36 H. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO numa determinada área do conhecimento e a aptidão para realizar tra- “balhocientífico independente». Cabe questionar se a conjugação dos termos inovador e original não “será redundante, tendo apenas por propósito reforçar a ideia central do “requisito de acréscimo ao saber. Com efeito, poder-se-á questionar se algo “inovador poderá deixar de ser original (e vice-versa). Cremos que o re- quisito daoriginalidade assenta numa dupla vertente: por um lado, a obra - deve ser original, no sentido de ser da efetiva autoria do investigador que “ assume a sua paternidade, e não uma cópia, mais ou menos velada, de trabalhos alheios; por outro lado, deve ser inédita, não apenas no sentido estrito de que nuncatenhasido publicada (comoartigo ou comolivro), mas de que não constitua uma reciclagem de trabalhos de investigação anteriores,já objeto de avaliação ou apresentação pública. A relevância do trabalho do investigador em Direitoé tão signifi- cativa que, assumindo o papel de jurisconsulto, o produto da sua ativi- dade constitui uma fonte mediata de Direito: a doutrina. Isto, claro está, quando, para citar Paulo Ferreira da Cunha, a mesmase traduz naquilo «que os investigadores e os professores devem fazer quando não se limi- tam à vulgarização e à compilação de dados»*,isto é, quando é inovadora. HI - Em certos ramos do conhecimento (no domínio, por exemplo, das ciências sociais) é difícil inovar. Com efeito, quer pelo facto de pro- liferarem os investigadores, os centros de estudos e os projetos de inves- tigação, quer pela circunstância de as grandes matérias objeto de pes- quisa serem de interesse transversal aos vários países, os temas parecem encontrar-se quase esgotados à exaustão. Resta ao investigador procurar inovar no domínio do trabalho de campo ou, na melhor das hipóteses, na seleção de um microtema pouco estudado (o qual, porém, isoladamen- te tomado, pouca relevância assume para o progresso do conhecimento). Já na ciência jurídica estamos muito longe do referido nível de satu- ração. Por um lado, o Direito é um fenómeno cultural de matriz nacio- nal. As normas jurídicas — matéria-prima do investigador - assumem 2 Marcos Wachowicz, “Noções fundamentais sobre o plágio académico”, in Dário Moura . Vicente et al, (Coord.), Estudos de Direito Intelectual em Homenagem ao Prof. DoutorJosé de Oli- veira Ascensão: 50Anos de Vida Universitária, Coimbra, Almedina, 2015, p. 431. S Paulo Ferreira da Cunha,Iniciação à MetodologiaJurídica, cit., p. US. 37 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO características diferentes em cada país, configurando, portanto, diferen- tes objetos de pesquisa. Por outro lado, a profusão de produção legislativa e jurisprudencial propícia uma permanente emergência e mutação de normas, fornecendo diariamente novas oportunidades de investigação em domínios inovadores. Neste quadro, são múltiplos os exemplos de inovação na pesquisa científica em Direito. Desde logo, pode a investigação debruçar-se sobre temas pouco trabalhados (mormente, inéditos). Por exemplo, o estudo pode incidir em problemáticas associadas a um regime legal novo,ainda carecido de análise. Noutra abordagem, pode o investigador adotar uma perspetiva cria- tiva relativamente a um tema recorrente. Assim, poderá transpor para o Direito português a análise de temas apenas estudados no contexto de outros ordenamentos; ou propor soluções originais para problemáticas já identificadas e trabalhadas por outros; ou ampliar o âmbito ou o nível de aprofundamento de temas já estudados anteriormente. Relativamente à elaboração de textos de pequena dimensão (tipica- mente, os artigos jurídicos), considera Chodorow que o requisito da ori- ginalidade se bastaria com um novo tópico, perspetiva ou abordagem de um problema jurídico ou da respetiva solução, e a consequente organi- zação de todo o artigo em torno desse aspeto inovador“. Não é deslocado nem denota falta de modéstia que o investigador evidencie o caráter inovador do seu estudo. O local próprio para o fazer - como veremos melhor adiante - será numa parte introdutória do es- tudo. Assim, após um balanço correspondente ao estado da arte - retros- petiva crítica dos contributos científicos efetuados até ao momento so- bre o tema - o investigador deve sublinhar em que aspetos o seu estudo colmatará lacunas anteriores ou trará uma nova perspetiva ou um apro- fundamento do conhecimento sobre esse tema. IV - O requisito da inovação na pesquisa científica encontra na cons- trução teórica uma das suas vertentes mais valorizadas. Em Direito, a 5* Gary Chodorow, Thesis Writingfor Law Students, http://wwwgoogle.pt/url?sa=tBrrct=|&q =8esrc=sêrsource=webêLed=]&rved=0ahUREwjzudGTObDLARRCaxQKHTESBc4QFggb MAA&uri=httpW3AW2EW2Flawandborder.com%2FAcademic%W2ETW%ZEPPTs--Classl.pp t&usg=AFQ;CNGLALxTMOxGPWBewmy270bVeYXDMA&byvm=bv.116274245,d.Z2WU, (consult. 08/03/2016), p. 23. 38 IL FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO construção teórica estabelece, num patamar de abstração elevado, um “ sistemacoerente, nos planos lógico e axiológico, de soluções aptas a dar - resposta às questões — problemasjurídicos — que o tema suscita. De al- gum modo, podemos dizer que um trabalho problematizante pode in- duzir à construção teórica, o que dificilmente poderá suceder com um trabalho de pendor descritivo. A teoria assenta em conceitos abstratos - construídos a partir de de- finições -, Os quais colocam em evidência determinados fenómenos a que é atribuída especial relevância”. No contexto coerente de cada teo- ria, Os conceitos em que a mesma assenta encontram-se inter-relaciona- dos, formando expressões teóricas (theoretical statement)“. Por sua vez, o agrupamento de expressões teóricas constitui o que Jonathan Turner designa por formato teórico (theoreticalformat)”. Os formatos teóricos variam, no essencial, entre planos de maior abstração (que, no limite, poderão constituir abordagens meta-teóricas) e amplitude, e, no qua- drante oposto, outros mais concretos e casuísticos*. Como acima referimos, um dos aspetos mais valorizados em qualquer trabalho científico é a construção teórica. É disso exemplo o seguinte excerto de uma arguição: «a leitura da presente dissertação revela [...] umainvulgar capacidade de construção dogmática, ordenando de forma clara e sistematizada ideias e conceitos,[...] uma metodologia científica de permanente diálogo com a principal doutrina, jurisprudênciae legis- lação nacionais e estrangeiras,[...| assumindo sempre com coragem uma posição própria e fundada sobre os diferentes assuntos, [...] tudo isto numa constante preocupação de resolução dos problemasà luz do orde- namento jurídico português», SS Jonathan H. Turner, The Structure ofSociological Theory, 4* Ed., Chicago, The Dorsey Press, 1986, p. 5. SS Idem, pp. 7-8. S Idem, p.8. 88 O autor, escrevendo a propósito da teoria sociológica, identifica quatro formatosteóricos: os esquemas meta-teóricos (colocados num plano epistemológico e metafísico, superior e prévio à própria teoria sociológica); os esquemas analíticos (reconduzíveis a tipologias); os esquemas de proposições (que identificam e explicam a relação entre duas ou mais variá- veis); e os esquemas de modelos (que representam graficamente fenómenossociais) - Jo- nathan H, Turner,idem, pp. 8 ss. As categorias de formatos teóricos identificadas pelo autor não são, porém,transponíveis paraa teoria jurídica, atendendo às especificidades do Direito. 5 Paulo Otero, “Arguição de provas de doutoramento”, Revista da Faculdade de Direito da Uni- versidade de Lisboa, Vol. XLVI, n.º 1 (2005), pp. 841-842. 39 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO Neste quadro, o défice de construção teórica é também um ele- mento crítico nos trabalhos científicos: «é de lamentar umacerta fuga do [candidato] às tarefas de construção dogmática sobre os dados do direito positivo. O autor move-se com inteiro à vontade na descrição e interpretação dos regimes jurídicos, mas mostra uma tal ou qual aversão à construção teórica». Numa outra arguição podeler-se a se- guinte crítica: «julgo poder assacar-se à dissertação [...| o defeito de ser mais descritiva do que construtiva: na parte dos direitos estrangei- ros, descreve mas não compara, e portanto não constrói soluções-tipo, modelos ou sistemas; na parte relativa ao direito português, descreve e argumenta mas não constrói um sistema, um conjunto coerente, uma solução global», Embora a construção teórica seja um dos predicados mais reconhe- cidos do trabalho científico, o excessivo conceptualismo poderá tradu- zir-se num fator passível de crítica. Assim, numa arguição de doutora- mento foi censurada ao candidato «uma tendência acentuada para o conceptualismo, com múltiplas distinções, subdistinções e repetições e com pouca abertura à vida, o que poderia ter sido muito mitigado se, em vez de um título à parte, se tivesse inserido a jurisprudência dentro do travejamento do sistema»*?,V — Estamos agora em condições de propor o cruzamento de duas variáveis centrais de avaliação dos trabalhos científicos: a problemati- zação e a inovação. Assim, podemos cruzar num plano cartesiano dois eixos: o eixo da inovação, tendo por termos, respetivamente, os tra- balhos inovadores e os não inovadores; e o eixo da problematização, tendo por termos, respetivamente, os trabalhos descritivos e os pro- blematizantes. * Diogo Freitas do Amaral, “Arguição de provas de doutoramento (3)”,cit., p. 93. Cfr. outro caso crítico em Jorge Miranda, “Arguição de provas de doutoramento (3)”, Revista da Facul- dade de Direito da Universidade deLisboa, Vol. XLIV, n.º 1-2 (2003), p. 469. “ Diogo Freitas do Amaral, “Arguição de provas de doutoramento (4)”, Themis, Ano 1, nº 4 (2001), p. 227. “2 Jorge Miranda, “Arguição de provas de doutoramento (4)”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLVII, n.º 1-2 (2006), p.416. &OQ W. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO O resultado traduz-se no diagramaseguinte: Descritivo Não Inovador Inovador Problematizante Figura 1 - Tipos de trabalhoscientíficos em função da inovação e problematização Os vários quadrantes do diagrama, resultado do cruzamento dos dois eixos, permitem identificar os seguintes tipos de trabalho: A - Inovador mas descritivo: o trabalho tem marcasde originalidade, mas adota um tratamento jornalístico do tema. Por exemplo, poderá tomar como objeto um novo regime jurídico, nunca antes objeto de estudo, mas fazer do mesmo uma abordagem descritiva, limitando-se a reproduzir o texto legal sem lhe acrescentar muito mais. B - Não inovadore descritivo: o texto nadatraz de novo ao conheci- mento. Querna escolha do tema, quer na abordagem do mesmo,se- gue-se o caminhojá trilhado por outros, repetindo-se (naturalmente, com as devidas referências bibliográficas, ou estaríamos, adicional- mente, perante uma fraude académica), sem problematização e com um certo enfeudamento, o que já foi defendido em textos de outros autores. A valia científica deste tipo de trabalho tenderá a ser nula. C - Não inovador, embora problematizante: trata-se de um tipo de trabalho que incide sobre um tema recorrente e que se limita a dar conta do debate de ideias, da controvérsia que o mesmo suscita na doutrina e na jurisprudência. Note-se que o facto de o tema ser já muito trabalhado e dabatido não impede um tratamento inovador, 4 MANUALDE INVESTIGAÇÃO EM DIREITO bastando, para tanto, que o investigadortraga um contributo pessoal, | quer na sistematização do tema, quer na adição de novos argumentos e numa tomada de posição em cada problema suscitado. D - Inovador e problematizante: é este o modelo de trabalho cienti- fico por excelência e, portanto, o mais valorizado. O investigador não só acrescenta contributos novos ao conhecimento, mas fá-lo de for- ma enriquecedora, com densidade de análise, debate de ideias, poder argumentativo. A identificação destes vários modelos de trabalhos académicos traz reminiscências de uma velha história, segundo a qual, em provas de doutoramento, o arguente teria dito ao candidato: «a sua tese tem coisas novas e coisas boas - é pena que as novas não sejam boas e que as boas não sejam novas». IL4 A relevância Um critério adicional de avaliação dos textos científicos — e que, en- tre estes, valoriza especialmente os textos inovadores e problematizan- tes - é o da relevância. Digamos que um trabalho científico pode estar brilhantemente elaborado, ser denso e rico no plano da problematiza- ção, ser extremamente original e inovador. Pode mesmo reunir muitas outras qualidades, mas, se o objeto não for importante, se não lhe for reconhecidautilidade, se não suscitar o interesse da comunidade cienti- fica e da própria sociedadecivil, então o estudo em causa carece de rele- vância. Pode representar um progresso para o conhecimento, mas num domínio indiferente à comunidade, não lhe sendo, portanto, atribuído valor intrínseco. Como escreveu Isócrates, «é muito melhor opinar acerca de coisas úteis do que ter o conhecimento exato de coisas inúteis», Esta obser- vação é particularmente pertinente no que ao Direito respeita, na me- dida em que, como ciência pragmática, o texto jurídico é tanto mais valorizado quanto mais incida sobre temas de interesse geral. Esta va- S Isócrates, Elogio de Helena, 5 — trad. port. de Ticiano Lacerda, Contra os Sofistas e Elogio de Helena de Isócrates: tradução, notas e estudo introdutório, Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2011,p. 66. 42 H. FATORES DE VALORIZAÇÃO DO TEXTO CIENTÍFICO “lorização dá-se, não só no plano académico, mas, por maioria de razão e em maior escala, também no domínio editorial. “115 A exaustividade 1 - Um outro requisito de valorização do trabalho científico é o da “completude ou exaustividade com queé estudado o objeto de investiga- - ção. Nesta medida, o objeto deve ser tratado de uma forma aprofundada (por oposição a superficial, descritiva ou banal) e ampla (por oposição a “Jimitada, fracionada ou parcial). Significa isto que o investigador deverá identificar tendencialmente todas as problemáticas que o tema suscita e discuti-las em profundidade. De algum modo, este requisito decorre dos próprios pressupostos da obtenção dos graus de mestre e de doutor. Com efeito, pode ler-se no n.º 1 do artigo 5.º do citado Decreto-Lei n.º 216/92 que «o grau de mestre comprova nível aprofundado de conhecimentos numa área científica especifica [...]», retirando-se do n.º 1 do artigo 17.º do mesmo diploma que «o grau de doutor comprova [...] um alto nível cultural numa determi- nada área do conhecimento[...)». Um dos corolários do requisito da completude é o volume (exausti- vidade) de bibliografia utilizada**. Assim, por exemplo, numa arguição de doutoramento, louva-se «o significativo acervo bibliográfico com que [o candidato] trabalha, revelando um bom conhecimento da doutrina e da jurisprudência, dando com isso nota de um elevado esforço de séria investigação». Noutra arguição elogia-se a «análise exaustiva e escru- pulosa das fontes [ea] utilização cuidada e completa da bibliografia». Nesta linha, releva em especial a atualidade das fontes: os contributos mais recentes (sobretudo, quanto mais relevantes forem) não devem ser desprezados. Perante o requisito da exaustividade, quando um trabalho de inves- tigação (mesmo um artigo) tem portítulo “breves reflexões..”, “breves notas..”, “nótula..”, “pequeno contributo para..”, etc., embora possa ss Cfr., por exemplo, Jorge Miranda, “Arguição de provas de doutoramento (2)”, cit., p. 260. $Jorge Bacelar Gouveia, “Arguição de provas de doutoramento”, cit., p. 251. & Guilherme Braga da Cruz, “Apreciação crítica duma dissertação de doutoramento”, in Guilherme Braga da Cruz, Obras Esparsas, Vol. 1, 2.º Parte, Coimbra, Universidade de Coim- bra, 1979, p. 112. 43 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EMDIREITO simplesmente tratar-se de um exercício de modéstia do investigador, o | facto prenuncia, desde logo, que aos olhos do próprio autor o texto não obedece ao referido requisito. O título deve denotar, portanto, um nível de ambição equivalente ao que se espera do próprio texto. Importa também referir que o fator completude não funciona sozinho, - antes se conjugando com os demais critérios de valorização do trabalho - científico. Com efeito, se o tema tiver pouca relevância e interesse, se proporcionar um tratamento eminentemente descritivo, etc., de pouco - valerá que tenha sido tratado exaustivamente. II - O presente requisito é relativo, na medida em que se reporta à relação entre duas variáveis: por um lado, a amplitude do tema escolhido; por outro lado, o tratamento que o investigador dispensa ao mesmo. Assim, o tema deve ser perfeitamente circunscrito, mas o tratamento intensivo deve ser exequível, esgotando o tema e fornecendo um bom suporte para as teses ou perspetivas defendidas pelo investigador.
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