Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
História: Espaços e Experiências Urbanas Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profa. Dra. Marcia Barros Valdivia Revisão Textual: Profa. Ms. Selma Aparecida Cesarin Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II 5 • Introdução • Administração colonial nos primeiros núcleos urbanos: cotidiano e poder · Refletir sobre os significados da arquitetura e do urbanismo colonial; conhecer e reconhecer a arquitetura do controle e da punição no universo do trabalho e das classes subalternas, como também o espaço/lugar edificado para a elite; perceber detalhes da arquitetura que faz menção ao espaço/lugar destinado às mulheres, entre outros sujeitos sociais. Caro(a) aluno(a) Nesta Unidade, vamos abordar o espaço urbano colonial, com foco nos sujeitos históricos inseridos naquele contexto entre o século XVI ao século XVII. Procure fazer as leituras e desenvolver todas a s atividades propostas. Assim, certamente você terá um excelente aproveitamento. É importante lembrar que vários recursos, como as atividades de sistematização e aprofundamento, assim como o fórum de discussão e a videoaula são contribuintes no processo de aprendizagem. Após usufruir desses recursos, registre as dúvidas e as discuta junto ao professor tutor. Tenha bons estudos! Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II 6 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Contextualização A colonização de toda a América ocorreu devido à política europeia do Absolutismo e da economia mercantilista do século XV. Assim, desenvolveu-se em terras americanas todo o aparato político, econômico e militar que modificou totalmente a vida das civilizações que habitavam o continente, que passou a ser explorado do ponto de vista territorial e étnico, onde homens, mulheres, jovens, crianças e idosos foram submetidos à escravidão e ao massacre pelo fato de não serem europeus, não praticarem o Cristianismo, em especial o Catolicismo, religião da maioria dos países europeus naquela época. Enfim, por não terem os mesmos hábitos dos colonizadores, foram submetidos às mais variadas formas de violência, que era explicada em nome da ambição colonizadora, apoiada pelo poder da Igreja Católica, que elaborou discursos justificativos para tal opressão. Como diz Laura de Mello e Souza: “O Novo Mundo era inferno, sobretudo, por sua humanidade diferente, animalesca, demoníaca, e era purgatório, sobretudo, por sua condição colonial”.1 Para iniciarmos a Unidade, vamos refletir sobre o início da colonização da América, incluindo as terras brasileiras, e a exploração das civilizações, que possuíam diversos hábitos culturais diferente dos europeus, e que ocupavam todo o território antes do domínio europeu. Populações indígenas do brasil: experiências antes da conquista, resistências e acomodações à colonização O início do domínio europeu e as tentativas de resistências indígenas na América hispânica colonial Antes de analisarmos este processo de conquista na América Continental, devemos fazer uma rápida passagem pela conquista inicial nas ilhas da América. Lá foram implantados os “repartimentos” que consistia na distribuição de indígenas a indivíduos espanhóis, conhecidos como encomendeiros, estes tinham que cuidar dos índios e instruí-los forçadamente na fé cristã, em troca teriam uma mão de obra indígena gratuita. Em 1500 a coroa espanhola tornou os indígenas livres e não mais sujeitos a servitude, porém se podiam escravizar os indígenas através da “guerra justa”. O estabelecimento formal do trabalho forçado entre a população indígena somente precipitou um processo que já estava resultando na sua extinção total. Aos 20 anos da chegada de Colombo, a população que havia sido densamente povoada, desapareceu por guerra, pelas enfermidades e pelos maus tratos. No ano de 1512 surgiu a lei de burgos que tentou regular o funcionamento da encomienda, porém nas ilhas não se encontravam autoridades para fazer executar as leis, estava-se também começando a observar que a mão de obra indígena estava se tornando insuficiente para a economia agroexportadora. A chegada dos conquistadores com os seus cavalos na América hispânica continental lhe deram uma grande vantagem inicial, porque causou um choque e estranheza nas populações nativas, e também os espanhóis mesmo em menor número tinham uma confiança de superioridade moral, organizacional, técnica e religiosa, estes acreditavam que os cristãos teriam uma superioridade natural a simples “bárbaros”. 1 MELLO e SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1986, p. 77. 7 Na mesoamérica e nos Andes, os espanhóis encontraram sociedades indígenas acostumadas a guerras em grande escala, era um tipo de guerra com um ritmo e um ritual diferente a dos europeus, as armas de pedra e madeira não se podiam comparar com as armas trazidas pelos espanhóis (muitas armas indígenas se quebravam contra a armadura do europeu). Então podemos notar que em uma batalha campal as forças dos indígenas astecas e incas apesar de sua superioridade numérica teriam poucas esperanças de derrotar a força espanhola composta de cavalaria e infantaria, talvez a melhor possibilidade da vitória indígena fosse atrair pequenos grupos de espanhóis desprevenidos e fora de suas guarnições, com essa desorganização espanhola estaria a oportunidade da vitória nativa. Notamos que as populações nativas submetidas aos impérios (asteca e inca) estavam vinculadas a um poder centralizado exercido por um único indivíduo, os espanhóis se aproveitaram deste fato e voltaram suas forças para tirar de cena este único indivíduo, estas populações indígenas ficavam desestruturadas e desorganizadas. No caso Asteca, a rendição dos últimos elementos de resistência indígena nas ruínas de Tenochtitlan foi mais um triunfo das enfermidades levadas pelos espanhóis do que as suas armas. Ainda os espanhóis tiveram a ajuda de populações indígenas inimigas aos Astecas, estes indígenas não eram submetidos ao poder do império asteca, a derrota asteca significou tanto a vitória dos espanhóis como a das populações nativas contrárias a seus senhores supremos. Porém estas populações nativas aliadas aos espanhóis acabaram por ter um fim trágico semelhante a dos astecas. A resistência inca após a conquista espanhola foi possível devido à atitude dos espanhóis de fundarem a nova capital em lima, uma cidade costeira, deixando Cuzco, terras de grande altitude, nas mãos de seus subordinados incas, também a discórdia crescente entre os conquistadores na distribuição de botins, fez com que mano inca passa-se a reagrupar o resto das forças incas em uma tentativa desesperada para derrotar os espanhóis, as revoltas de 1536-1537 sacudiram temporariamente esta região, mas não detiveram o processo de conquista, estes indígenas conseguiram assimilar alguns métodos de guerras empregados pelos espanhóis, mas não eram suficientes. Até 1572 a fortaleza inca de Vilcabamba não havia caído em mãos europeias, neste caso a geografia física dos Andes deu uma grande vantagem e permitiu a continuação de um movimento de resistência indígena, outra vantagem indígena seria a de operar entorno do familiar, os europeus teriam que aclimatar-se, combater os efeitos do calor e da altura. As populações nativas que se encontravam nas periferias destes impérios, asteca e inca, fizeram uma grande resistência a conquista espanhola, isto somente foi possível porque possuíam um poder descentralizado e a assimilaram rapidamente o modo de lutar europeu. Por exemplo, os araucanos em 1533 derrotaram os espanhóis em Tucapel. A resistência indígena através das Guerras de Arauco no final do século XVII significou uma grande perda para a economia colonial chilena, pois estava havendo enormes gastos para a defesa europeia nesta região. A resistência Chichimecadeteve o avanço europeu no norte do México central, a Rebelião Mixteca de 1540- 1541, originada entre as numerosas tribos ainda não pacificadas da nova Galícia e expandida até o sul, mostrava, em tom alarmante a ameaça da resistência constante que existia nestas inquietas regiões fronteiriças para as zonas mais colonizadas da conquista. O domínio português: resistência indígena como forma de conter a opressão. Desde a chegada dos primeiros colonizadores houve uma batalha contra os indígenas, essa luta não raro se fez com a permissão do governo metropolitano português até com a utilização de suas tropas militares e mercenárias. No primeiro século de colonização, foram os indígenas do litoral leste e sudeste do Brasil os que entraram em choque com os brancos. Estes não somente desejavam 8 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II se apropriar das terras dos indígenas para fazer suas lavouras de cana de açúcar, como queriam se apoderar dos próprios indígenas com o objetivo de transformá-los em escravos. Durante o período pré-colonial, houve várias expedições, nos relatos feitos pelos portugueses ocorria a antropofagia (portugueses sendo comidos pelos indígenas), ao surgir as pequenas feitorias houve uma tentativa de manter uma vida amistosa com determinados tribos destas regiões. No século XVII, a economia brasileira já era dominada pela lavoura e a indústria da cana de açúcar, o gado estava avançando pelo interior do nordeste e pelo rio São Francisco, moviam-se lutas contra tribos que habitavam esta região, as quais eram dizimadas. O governo português promovia a ocupação do Maranhão e do Pará, e combates sangrentos se davam entre os brancos e os indígenas destas regiões. No sul, os paulistas começavam a realizar expedições contra os indígenas do interior, com o objetivo de obter novos escravos. Um século depois a economia brasileira se caracterizou pela a exploração do ouro, novas lutas se deram entre brancos e índios destas regiões auríferas, são índios de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Nessa época começavam a desaparecer os Kayapó do Sul, que habitavam o triângulo mineiro, já no maranhão, os criadores de gado invadiram as terras dos índios Timbíra. Outra frente agrícola seria a dos colonos alemães em Santa Catarina, que entrou em choque com os índios xokléng (na capitania do espírito santo não houve um grande desenvolvimento colonial devido às ações de resistência dos indígenas que travavam duras batalhas contra os colonizadores). A frente pastoril no século XVI, por todos os lugares onde avançou, acabou encontrando índios, que dizimou, chegou mesmo a empregar os serviços de bandeirantes no combate aos índios. Nem todas as tribos indígenas desapareceram devido aos choques armados com os brancos ou devido à escravização. Um grande número de indígenas desapareceu devido às doenças que eram desconhecidas por seu meio, nos primeiros tempos da colonização, quando os missionários reuniam índios de vários lugares num só aldeamento para facilitar a catequese cristã, o surto de qualquer uma doença era algo desastroso, pois o ajuntamento de um grande número de indígenas facilitava o contágio. As epidemias da varíola de 1562-1563, na Bahia, mataram muitos índios assim aldeados. Durante todo o período colonial, o governo português no que concerne à legislação sobre os indígenas, oscilou entre os interesses dos colonos, que desejavam escravizar os índios, as ações oficiais e privadas são regulamentadas na condução das expedições punitivas, os bugreiros eram caçadores profissionais de índios que tiveram importância no combate aos kaingang (São Paulo e Paraná) e nas lutas contra os índios de Goiás, Mato Grosso, Maranhão e Pará, e os esforços dos missionários, que tinham por objetivo convertê-los ao cristianismo e ao mesmo tempo fazê-los adotar forçadamente os costumes dos “civilizados”. No primeiro governo geral em um regimento se dizia que a conversão dos indígenas é que constituía o motivo do povoamento do Brasil, sendo recomendado que fossem bem tratados, mas este mesmo documento permitia que se desse combate aos índios que agissem como inimigos, que se matassem e fossem feitos prisioneiros, esta lei entre outras eram cercadas de contradições. De todas as medidas legais ficou famoso o regimento aprovado em 1758, essa legislação reconhecia os índios como livres, sem nenhuma ressalva. Também esta legislação retirava dos missionários todo o poder temporal/religioso sobre os indígenas. Desta data em diante houve um novo retrocesso na legislação indígena, em 1808, ordenou-se a guerra contra os botocudos de minas gerais e a índios de São Paulo, estabelecia-se um governo que ao declarar guerra aos indígenas, podiam-se organizar bandeiras contra eles e os que fossem presos estavam sujeitos a um cativeiro de 15 anos. 9 A entrada dos bandeirantes e sua ida para o interior nada tinha a ver com a expansão territorial e a busca de metais preciosos, e sim a captura de índios, este índios iriam para a economia paulista, os índios do maranhão é que iam para as lavouras de cana. Com a historiografia é omitido o escravo indígena, o estado fazia alianças com determinadas populações/tribos indígenas com o objetivo de chegar a outras populações (os indígenas também participavam do tráfico), em algumas situações os indígenas e os negros se aliavam e formavam grupamentos miscigenados de resistência. Os bandeirantes foram responsáveis pelo despovoamento do Brasil, o Brasil não era despovoado (as populações indígenas se encontravam em grandes quantidades nas margens dos rios da Amazônia), se despovoou devido aos aprensamentos e os aldeamentos, este último referido aos jesuítas. A escravidão já fazia parte de algumas culturas indígenas, já existiam grandes rotas de comércio entre os indígenas, isto gerava alianças ou rivalidades entre as populações indígenas. Na Amazônia a coroa deu grande importância aos aprensamentos indígenas, isto se fez através do financiamento de expedições, a fuga dos escravos indígenas eram constante, a justiça colonial foi utilizada por alguns indígenas para poder obter a liberdade. As missões acabaram não somente pelos bandeirantes e pombal, mas também porque os índios morriam, fugiam e resistiam. No litoral brasileiro foi a região onde se implantou os primeiros núcleos coloniais e onde ocorreu, ainda no século XVI, processos despopulativos radicais que exterminaram quase toda a população indígena. Em um primeiro contato com os portugueses, no início da colonização em Belém, os índios se mostraram pacíficos e acolhedores, mas a experiência real foi desde o início brutal. Os tupinambás diante dos maus tratos praticados pelos portugueses e de suas dissensões internas, foram se tornando cada vez mais hostis, recusando-se a estabelecer relações de paz com quem o traía e nem sequer tinha paz interna. Diante desta atitude dos tupinambás, ocorreram várias expedições com o objetivo de puni-los. O primeiro contato dos índios da foz do rio negro, onde haveria mais tarde um grande foco de resistência indígena, foi também desfavorável, por ocasião da expedição de Pedro Teixeira, quando os soldados queriam a todo custo subir o ri0 para fazer escravos com o objetivo de compensarem o custo da expedição. Semelhante comprovação de um primeiro contato com os conquistadores, como experiência de traição e brutalidade, foi o caso também dos pacíficos tapajós, estes índios eram inofensivos, mas logo que partiu a expedição de Pedro Teixeira, desencadeou-se uma luta contra os indígenas, violações, abusos sexuais e até mesmo escravizações, a partir destas ocorrências os índios tapajós assumiram uma atitude de inimigos dos seus opressores. Uma vez “descidos” para os aldeamentos, engenhos, etc... os índios iriam tomar contato com toda uma experiência de trabalho “violentador” de seu modo de ser, trabalho que tomaria a forma de escravidão. O abuso da mão de obra indígena,tanto pelos colonos quanto pelos próprios missionários, dava ocasião a atos rebeldes dos índios, os atos de violência praticados pelos índios mostravam-se pequenos e ineficazes diante da violência maior do aprensamento. Desde o século XVI, os missionários jesuítas e de outras ordens haviam adotado o expediente de reunir grupos culturalmente diversos e, não raro, inimigos tradicionais, nos mesmos aldeamentos, com propósito de destruir a autonomia e a funcionalidade das várias tradições culturais específicas. 10 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II No período inicial da colônia o cativeiro dos indígenas tinham dois objetivos básicos para a colonização, primeiro, a questão militar, segundo, o fornecimento de mão de obra para a economia açucareira. Os grupos indígenas que se mostravam resistentes às pretensões dos conquistadores europeus estavam sujeitos a guerras movidas pelos portugueses e seus aliados indígenas, e os prisioneiros seriam distribuídos ou então vendidos como escravos. Devido às guerras justas passou-se a organizar poderosas expedições militares que tinha o objetivo final de derrotar os focos de resistência tupi ao longo do litoral de São Vicente a Paraíba e fornecer, mão de obra a economia açucareira. Muitas destas guerras feitas pelos europeus contra os indígenas tinham como um ponto de partida um falso pretexto, vejamos o exemplo da investida portuguesa contra os índios caeté, os conquistadores alegaram que os caetés mataram um bispo em rituais de antropofagia, porém esta denúncia somente foi feita seis anos após este incidente ocorrido. Conclusão, os colonos baianos realizaram guerras contra estes índios, logicamente estes portugueses aumentaram consideravelmente os seus números da sua mão de obra cativa. Muitos povos indígenas submetidos ao controle dos senhores de engenho ou dos jesuítas procuravam resgatar a sua liberdade através de violentas revoltas, outros articulavam complexos movimentos de protesto e resistência. Porém a estratégia mais eficaz a alternativa ao confronto e a submissão residia na fuga coletiva e na reconstituição da sociedade em regiões distantes dos conquistadores, durante o século XVI, muitos grupamentos tupi abandonaram o litoral e foram para áreas longínquas com o objetivo principal de reestabelecer a sua autonomia. Em São Paulo, sempre quando a camada senhorial aperfeiçoava seus mecanismos de controle e opressão, os indígenas desenvolviam contra estratégias para visar um espaço para a sua sobrevivência humana, as revoltas organizadas, embora tenham existido, não foram tão frequentes, estas revoltas poderiam ser dar de várias maneiras. Fugindo do cativeiro, furtando seus senhores e vizinhos, invadindo propriedades e negociando seus produtos livremente. Neste último caso apresentado, os índios por volta do ano de 1650 estavam ameaçando as atividades dos mascates portugueses ao se envolverem em uma economia informal. Em diversos casos na São Paulo colonial os índios apelavam para a violência para combater a injustiça do seu cativeiro, nestas revoltas eram normais os índios aniquilarem seus opressores e depois destruir as plantações e criações que estavam nas fazendas, muitos destes levantes chegaram a balançar as bases da escravidão indígena. Também no Maranhão e no Pará a resistência à escravização começava ainda no sertão, vide o caso do grupamento indígena juruna que ao sofrerem repetidos ataques dos conquistadores se fortaleceram rapidamente ao desenvolverem estratégias de ataque e defesa. Existe abundante documentação sobre as guerras de extermínio movidas contra vários grupos amazônicos. Os Mura foram enormemente visados durante o século XVIII, com a pacificação dos índios Mura em 1784, nada se fez para aldeá-los ou assisti-los, ao contrário do que ocorreu com os indígenas maué e mundurucu. Abandonados e hostilizados, os Mura voltaram a atacar os colonos, matando em 1820 dois soldados da guarnição de Crato. Um ano antes, os mura já tinham voltado a dificultar as comunicações fluviais entre o Pará e o Mato Grosso; os portugueses logo trataram de mobilizar os mundurucus contra os muras com o objetivo de enfraquecê-los, era possível que a hostilidade entre os mura e os mundurucu, documentada desde o século XVIII, fosse mais antiga, estendendo-se a épocas pré-coloniais. Com isso, as autoridades regionais e os colonos passaram a capitalizar, em seu proveito, as tensões e rivalidades tradicionais que existiam entre os indígenas. A guerra contra os uaimiri- atroari foi um exemplo da continuidade dos esforços pela eliminação de um grupo considerado “incivilizável”, sofrendo as primeiras agressões ainda no século XVII. 11 Mesmo antes da carta régia de 1798, a situação nas comunidades indígenas era de intranquilidade e, mesmo, de revolta aberta quando os nativos eram ameaçados em seus bens ou em sua liberdade, um exemplo foram os índios sapará que se haviam revoltado na região do acre em 1781, abandonando as suas aldeias e atacando uma patrulha militar, matando seus membros e soltando os índios que estavam aprisionados. No caso dos tapuios estes se apresentaram muito mais vulneráveis que os indígenas tribais, pois a esses sempre restaram o recurso das áreas de refúgio de difícil acesso ou, como solução final, a hostilidade aberta. É provável que algumas comunidades tapuias, contando com a aliança de um ou outro grupo tribal, tenham voltado à floresta para refazer as bases culturais de sua vida indígena autônoma. Os levantes indígenas foram um dado constante na história da região amazônica, em alguns casos as forças disponíveis dos portugueses eram poucas em números e equipamentos, em uma guerra aberta contra os índios as forças portuguesas seriam inevitavelmente anuladas e absorvidas. Muitos portugueses levantavam alternativas a repressão armada e começavam a fazer planos para estabelecer relações pacíficas com os índios, porém estas relações pacíficas, como no caso dos índios mundurucu muitas vezes esbarraram nas decisões de governantes que determinavam as ações punitivas em direção as áreas rebeldes, mesmo assim os indígenas não se intimidavam e continuavam com as suas resistências. Portanto, as gestões de paz estavam sendo seriamente quebradas / ameaçadas junto com os programas de pacificações com as ações punitivas que resultava no massacre de indígenas, ressaltando que estas expedições punitivas representavam os interesses de determinados grupos portugueses que se beneficiavam. Outros índios, os maué jamais conseguiram vencer a contradição entre as relações com os brancos e a preservação de sua identidade étnica, isto os levou a numerosos conflitos que se iniciaram a partir do século XVII, um século depois, ainda ocorrendo uma sucessão de conflitos e de expedições punitivas, os maué seguiam intratáveis. As consequências destes fatos se encontram na carta instrutiva datada em 3 de outubro de 1769, aos diretores do Pará e rio negro pelo governador Athaide Teive: “Ao cabo da canoa dará para você ordens em meu nome no ato da partida para o sertão de não entrar em rio grande conste que se poderá encontrar com índios da nação maués, porque tendo mostrado a experiência que estes miseráveis homens resistem as práticas que se lhe fizer, para caírem nas trevas do paganismo ... é necessário reduzi-los a necessidade, para deles tiremos os frutos de os descer, o que há de certamente vir a suceder, vendo-se destituídos do socorro que até aqui inconsideravelmente lhe tem levado...” Podemos observar novamente nesta carta que os indígenas que teimavam a fazer resistência a vontade do europeu estavam condenado a ser exterminado. E através de uma continuada opressão e de uma política absurda destrutiva de suprir com força de trabalho indígena, os centros produtivos da Amazônia, à custa do esvaziamento sistemático das comunidades dos altos rios, que devem ser entendidas as causas da decadência e porque não das sucessivas“revoltas” que se perceberá em grande parte da população indígena da região. Texto Escrito por RicardoO endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.) 12 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Introdução Foi devido às atividades econômicas dos países europeus, como o caso de Portugal, que necessitava buscar sua expansão marítima para chegar ao Oriente, onde existiam produtos interessantes ao mercantilismo praticado pela burguesia mercantil, que foram feitas diversas navegações. Nessa busca, os portugueses tiveram de encontrar o melhor caminho para chegar aos portos comerciais, bloqueados militar e economicamente pelos turcos, que tomaram Constantinopla, importante centro comercial, em 1453. Portugal, uma nação localizada na Península Ibérica, tinha privilégios, porque possuía proximidade com o mar, importante local para se comunicar com o mundo. Naquela época, era também um país experiente na prática das navegações, aprimoradas na Escola de Sagres, que já desenvolvia pesquisas na área náutica desde 1416. O desejo dos navegadores comerciantes era contornar a costa africana, passar por postos comerciais e chegar ao Oriente, desviando do domínio turco. Naquelas viagens, com rotas traçadas, a embarcação do português Pedro Álvares Cabral avistou a costa litorânea brasileira em 1500, território que pertencia à América, já conhecida pelos espanhóis, na ocasião das viagens do italiano Cristóvão Colombo, em 1492. Houve concorrência entre as duas nações, de práticas econômicas mercantilistas e administração absolutista, que passaram a disputar o território americano, para que fosse explorado física e etnicamente. Para resolver essa questão, os governantes de Portugal e da Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas, em 1492, antes mesmo da chegada de Pedro Alvares Cabral. O Tratado estabelecia uma linha no mapa, definindo os limites dos territórios pertencentes a Portugal e à Espanha. A partir desse acordo, com a chegada de Cabral, foi consolidado o sistema colonial no Brasil. Você sabia? Antes de receber o nome de Brasil, nosso país teve oito nomes: Pindorama (nome dado pelos indígenas); Ilha de Vera Cruz, em 1500; Terra Nova, em 1501; Terra dos Papagaios, em 1501; Terra de Vera Cruz, em 1503; Terra de Santa Cruz, em 1503; Terra Santa Cruz do Brasil, em 1505; Terra do Brasil, em 1505 e Brasil, desde 1527. E por que Brasil? Nosso país recebeu este nome porque nos primeiros anos de sua colonização era retirada das matas na costa brasileira a madeira da Caesalpinia echinata, chamada popularmente de pau-brasil. Confira no site http://www.sohistoria.com.br/curiosidades/nomes/. 13 Administração colonial nos primeiros núcleos urbanos: cotidiano e poder Após as expedições exploratórias portuguesas que vieram ao Brasil para fazer o reconhecimento do território e verificar as possibilidades de extração de produtos do novo Continente, houve também expedições militares para guardar o território da invasão de outras nações, como, por exemplo, a França, a Holanda e a Inglaterra que, por meio das atividades dos corsários, saqueavam navios e invadiam territórios que já pertenciam a outros países colonizadores, como o caso de Portugal que, devido às legislações formuladas pelos próprios portugueses, tinham para si a posse das terras brasileiras. Saiba Mais À luz do direito internacional, Corsário é o termo aplicado aos donos de um navio armado e comissionado por uma determinada nação, que é empregado na promoção da guerra naval, atacando navios, portos e demais benfeitorias inimigas. Os capitães destes navios recebiam comissões navais ou autorizações, que eram chamadas de “cartas de corso”. O corsário se distingue do pirata, que age sem o apoio de um governo, ou então do bucaneiro, que ataca geralmente cidades litorâneas e ilhas, raramente entrando em combate com outras embarcações. Além disso, o pirata responde ao capitão de seu navio, enquanto o corsário está subordinado a um rei ou governador. A prática de corso precedeu à criação de marinhas nacionais. Além da comissão, os corsários agiam sob a sanção oficial, ou seja, estavam amparados pelas leis de seus patrocinadores, e dispunham Da proteção de sua força naval, além de ter direito a uma parte naquilo que pilhavam. Alguns historiadores consideram piratas e corsários como semelhantes, pois ambos realizavam virtualmente a mesma atividade predatória. Disponível em: http://www.infoescola.com/historia-europa/corsarios/. Os anos de 1500, até aproximadamente 1532, foram chamados de período pré-colonial, porque Portugal ainda se ocupava com o comércio do Oriente. Assim, as terras brasileiras foram fiscalizadas por meio das expedições exploratórias e guarda-costas do litoral. 14 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Diante dessa atividade, os colonizadores constataram a presença abundante da árvore de pau-brasil, que foi utilizada para a extração de tinta vermelha vendida para as tinturarias de países europeus, como o caso da Inglaterra. Você sabia? Portugal possuía outras colônias na África, na Ásia e no Extremo Oriente, além do Brasil, como o caso do Japão e da China. Os portugueses chegaram ao Japão em 1543, que era conhecido desde o tempo de Marco Polo, que o chamou de Cipango. Mas foram efetivamente os portugueses os primeiros europeus a chegar ao Japão. Em 1557, eles se estabeleceram em Macau, na China, o que ajudou o comércio com o Japão, principalmente o comércio de prata. O contato entre as duas civilizações deixou marcas duradouras. A Língua Portuguesa foi, no início, o meio de comunicação dos estrangeiros com o Japão. Ainda hoje há inúmeros vocábulos de origem portuguesa. Foi com os portugueses que chegou ao Japão a imprensa de tipos metálicos, sendo um missionário português quem escreveu a primeira gramática da Língua Japonesa. Foram também os portugueses que introduziram no Japão as armas de fogo, e também novos conhecimentos nos domínios da Medicina, Astronomia, Matemática, além de ensinarem a arte da navegação. Confira em: http://www.infopedia.pt/$chegada-dos-portugueses-ao-japao. De início, o Brasil foi administrado por meio do sistema de feitorias, que compreende um complexo arquitetônico formado inicialmente por um forte, com um farol, torre de vigia e sinalização para as embarcações, um porto para embarque e desembarque, um armazém para estocar diversos gêneros extraídos da colônia e alguns barracões, para atividades cotidianas e da vida privada. Todas as edificações foram erguidas por meio de arquitetura vernacular, ou seja, com elementos retirados do meio ambiente natural onde as fundações das construções foram feitas, com madeiras e pedras. A técnica de pau a pique foi utilizada para fabricar as argamassas, compostas de barro, água, fibra vegetal, fezes e sangue de animais. Os tijolos eram fabricados de barro, fibras e água, colocados em fôrmas para secar. Após essa etapa, eram desenformados e utilizados. Os tetos eram cobertos de palha, casca, cavaco, gravetos e madeiras. Posteriormente, foi utilizada a cerâmica de barro, que deu origem às telhas. Os revestimentos do chão eram feitos de terra batida, seixos e outras pedras. As guarnições, como portas e janelas, eram feitas de madeira. Segundo Freire: Durante os primeiros anos, a metrópole portuguesa ocupou-se em explorar o pau-brasil e mandar expedições de reconhecimento das terras. No litoral, foram estabelecidas feitorias que não bastavam para o processo efetivo de colonização. Para tal empreendimento, a mão-de-obra utilizada foi a indígena, depois a negra africana. Viram-se, nesse momento, nobreza e clero unidos, pois se o rei queria garantir seu espaço (riqueza nessa época era sinônimo de conquista e exploração de terra), o Papa pretendia receber almas em seu rebanho,consolidando a hegemonia católica na América.1 1 FREIRE, Gláucia de Souza. Do viver Ao Praticar: Sincretismo religioso no Brasil colonial, In: Anais do Encontro Internacional de História Colonial. Meme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24, Set/out. 2008, pp. 3-4. ISSN 1518-3394. Disponível em: www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais. 15 A mão de obra nativa foi usada para realizar o trabalho de extração da madeira, como também em outras tarefas ligadas à organização do território colonial. O indígena desempenhou trabalho duro e pesado. Além da exploração sexual das mulheres indígenas que, por várias vezes, foram estupradas pelos colonizadores, elas também serviam de mão de obra nas lavouras de subsistência: [...] a mulher indígena foi utilizada na conveniência do conquistador (...) o desejo obsessivo dos europeus era multiplicar-se nos ventres das índias e por suas pernas e braços, a seu serviço, para plantar, colher suas roças, para caçar, pescar o que comiam (...) Estes nativos indígenas eram assim condenados à tristeza mais vil, ao mesmo tempo em que eram os provedores de suas alegrias, sobretudo do sexo bom de fornicar, de braço bom para trabalhar e de ventre fecundo para prenhar.2 Outra questão a ser resolvida, além da fiscalização da extensa faixa de terra que formava a costa brasileira contra invasões dos corsários em terras coloniais, foram os problemas com o comércio junto ao Oriente, que se tornou inviável, devido às concorrências econômicas das outras nações e dos ataques dos corsários durante as viagens. Assim, o percurso até aqueles mercados orientais foi cada vez mais caro e ineficaz. O rei de Portugal, que na época era D. João III, tomou uma atitude diante da sua colônia na América, por meio da fixação de colonos estabelecidos no solo brasileiro pelo sistema de capitanias hereditárias. Segundo Viana: Para proteger a costa brasileira da concorrência de países rivais, que vinham também mantendo feitorias em nosso território, impunha-se uma forma mais estável de ocupação. A partir de 1532, iniciou-se a instalação das capitanias hereditárias. O sistema era, ao mesmo tempo, feudal e mercantil, pois delegava poderes da Coroa aos donatários, mas os objetivos eram comerciais. Aos donatários cabia a criação de vilas, que lhes pagavam tributos e a concessão de terras para atividades rurais. Todas as atividades administrativas e de defesa deviam ser exercidas pelos representantes dos donatários, pelas câmaras das vilas e pelos senhores de terra. Cabia aos donatários a criação de vilas.3 As capitanias foram entregues pelo governo português aos donatários, pessoas particularmente nomeadas pelo Rei, que passaram a ter autoridade máxima nas terras brasileiras, e deveriam fazê-las prosperar diante da necessidade econômica de Portugal. Assim, o Brasil foi dividido inicialmente em quatorze capitanias, que deveriam ser hereditárias aos descendentes dos donatários. A maioria não se desenvolveu e a população se concentrou no início em apenas três. Foram elas a capitania da Bahia, a de Pernambuco e a de São Vicente. No ano de 1532, Martim Afonso de Souza fundou a Vila de São Vicente, que deu origem posteriormente à província de São Paulo. 2 Artigo As Mulheres no Brasil Colonial. Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0812079_10_cap_03.pdf, p.43. 3 VIANNA, Hélio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1972. Cf também o site: www.histeo.dec.ufms.br/.../03%20Urbanismo%20no%20. 16 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Assim, iniciou-se o sistema fundiário brasileiro, com grandes proprietários que dividiram as capitanias em lotes menores chamados de sesmarias, para facilitar a administração. Com o passar dos anos4, outras capitanias prosperaram, como demonstra o quadro a seguir: Capitania (Vilas principais) População Branca (1570) População Branca (1585) Itamaracá 600 300 Pernambuco 6.000 12.000 Bahia 6.600 12.000 Ilhéus 1.200 900 Porto Seguro 1.320 600 Espírito Santo 1.200 900 Rio de Janeiro 840 900 São Vicente 3.000 1.800 Totais 20.760 29.400 Apesar de o quadro acima focar a etnia europeia, é importante dizer que o povo brasileiro foi formado por uma diversidade étnica e cultural que merece destaque. Logo de início, os colonizadores já trouxeram consigo os degredados, pessoas que eram consideradas desajustadas socialmente e, por isso, tornaram-se indesejáveis em Portugal. Entre eles, estavam os judeus, os ciganos e os árabes, que praticavam o Islamismo e que, por sua vez, tiveram forte presença na Península Ibérica devido à invasão dos povos árabes, que se iniciou no século VII, até serem expulsos, no século XV, além de muitas pessoas que foram capturadas no continente africano para serem vendidas nos portos comerciais como objetos, destinadas a serem escravos em toda a América colonial. O degredo era uma forma jurídica de punição, já que, no imaginário europeu, as colônias eram lugares inabitáveis, povoados por seres selvagens. Assim, muitas pessoas foram obrigadas a desembarcar em terras coloniais porque praticaram homicídio, roubo, fraude, prostituição e homossexualismo. Poderiam receber esta pena pessoas (em especial mulheres) que estivessem envolvidas em maledicências, fofocas e lascívias. Também se enquadravam na lei pequenos furtos cometidos por pessoas famintas, promessas de casamento não cumpridas, vício em jogos, seduções, adultérios, práticas homossexuais, de bigamia, práticas religiosas contrárias ao Catolicismo como o Judaísmo, o Islamismo, o Protestantismo e o misticismo, praticado pela etnia cigana, entre outros usos e costumes contrários à ordem religiosa católica, à moral e aos bons costumes cristãos portugueses . Os judeus, para se livrarem das perseguições do Governo e da Igreja, converteram-se ao Catolicismo e passaram a ser chamados de cristãos novos, embora deva ser analisado que a fé é uma questão pessoal. Assim, não se sabe se, de fato, abandonaram o judaísmo em seus corações. Já os ciganos foram muito perseguidos na Europa. Em Portugal, sofreram diversas acusações e foram rotulados como ladrões, feiticeiros, sedutores e enganadores, entre outras adjetivações negativas. 4 BETHEL, Leslie. História da América Latina Colonial. Edusp: São Paulo,1984, p.435. 17 Essas duas etnias foram marginalizadas pela sociedade portuguesa e muitos deles foram para o Brasil e para outras colônias, ou por degredo ou voluntariamente, por não suportarem a intolerância por parte de muitos da sociedade cristã católica europeia. Segundo Teixeira: Mas não há dúvida alguma que os primeiros ciganos que desembarcaram no Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes não vieram voluntariamente, mas expulsos daquele país. Foi o que parece ter acontecido, por exemplo, já em 1574, com certo João de Torres e sua mulher Angelina, que foram presos apenas pelo fato de serem ciganos. Inicialmente, João foi condenado às galés e Angelina deveria deixar o país dentro de dez dias, levando seus filhos. Alegando, no entanto, que “era fraco e quebrado, e não era para servir em coisa de mar e muito pobre, que não tinha nada de seu”, João pediu para poder sair do Reino, ou então que pudesse ir para o Brasil para sempre. O “pobre” cigano João de Torres deve ter pago um bom suborno porque logo, em poucos dias, seu pedido foi deferido e a pena foi mudada para “cinco anos para o Brasil, onde levará sua mulher e filhos”. O número de filhos não é mencionado, mas devem ter sido alguns poucos, talvez dois ou três, porque certamente não iriam deportar gratuitamente para o Brasil um (auto-declarado) miserável e inútil cigano João, sua mulher e uns dez ou quinze filhos.5 A capitania de São Vicente será focada nessa Unidade para elucidar o cotidiano da formação dos primeiros núcleos urbanos, por meio da divisão administrativa das terras ao Sul, que foram divididas em três capitanias: Rio de Janeiro,Santo Amaro e São Vicente, que já formava um povoado desde 1510. Assim, Martim Afonso de Souza elevou oficialmente São Vicente à categoria de vila em 1532. No ano seguinte, por motivos de viagem, o colonizador passou a administração política para sua esposa, Ana Pimentel, que foi considerada a primeira mulher a ocupar a função de donatária. Ela, então, decidiu nomear Brás Cubas para ser capitão mor e ouvidor da capitania. O nome de São Vicente se estendeu a todo o território da capitania hereditária recebida por Martim Afonso de Sousa pelo Rei de Portugal. Mas é preciso esclarecer que o primeiro nome do atual estado de São Paulo foi capitania de São Vicente, localizada na serra do mar. Por causa das dificuldades para transpor os obstáculos geográficos, as terras localizadas no planalto atraíram pessoas que tiveram o desejo de povoá-las. Assim, em 1553, a Vila de Santo André da Borda do Campo foi fundada. No ano seguinte, em 1554, os padres da Companhia de Jesus fundaram, em uma colina de Piratininga, um colégio para os índios, berço da Vila de São Paulo. Em 1560, a Vila de Santo André foi extinta e seus moradores foram transferidos para São Paulo de Piratininga. Assim, a Vila de São Paulo foi crescendo em número de habitantes e se desenvolvendo aos poucos economicamente. A equipe do colonizador iniciou as obras arquitetônicas na Vila de São Vicente com técnicas ainda vernaculares. Dessa forma, foi edificado todo o aparato jurídico, religioso, militar, policial e econômico necessário para a época. 5 TEIXEIRA, Rodrigo Correia. História dos Ciganos no Brasil. Núcleo de Estudos Ciganos no Brasil. Recife: 2008, p.15. Disponível em: www.educadores.diaadia.pr.gov.br/.../historia_ciganos_brasil2008.pdf. 18 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Entre as edificações, destacam-se o forte, o porto, o estaleiro, a Igreja Católica, a casa do conselho, órgão administrativo que tomava decisões a respeito das normas jurídicas, o pelourinho, o engenho para fabricar açúcar, produto de alto valor nos mercados europeus, e algumas casas para abrigar os colonizadores. Os primeiros engenhos foram construídos por iniciativa de Martim Afonso de Souza e seus companheiros na fundação da Vila de São Vicente, primeiro núcleo institucionalizado em todo o território brasileiro.6 Vale ressaltar que, posteriormente, as capitanias produziram e comercializaram produtos como frutas, legumes, cereais, grãos, tabaco, açúcar, sal, couro, lã, entre outros, produzidos pela atividade agropecuária. As capitanias da região nordeste foram prósperas na produção açucareira, devido ao clima e ao solo favorável aos canaviais, diferentemente da região sudeste, que teve maior visibilidade econômica no próximo ciclo exploratório do ouro. A mentalidade social foi edificada por meio de valores paternalistas e excludentes. A arquitetura do controle, da punição e da reclusão esteve presente em todo o período colonial, fosse ela expressa nos pelouros usados para o castigo público dos escravos, nas forcas, onde pessoas desobedientes ao sistema foram condenadas, nos conventos destinados às órfãs que se recusavam a casar com homens muito mais velhos, nas portas e janelas revestidas de muxarabis, onde as mulheres brancas e de elite sentadas nas conversadeiras podiam apenas observar entre as frestas o movimento porta afora. Figura 1 - Janela com muxarabi Fonte: portalarquitetonico.com.br Figura 2 - Conversadeiras Fonte: abaretiba.blog.br 6 REIS, Nestor Goulart. Os Engenhos da Baixada Santista e os do Litoral Norte. Revista USP. nº 41. São Paulo: USP, 1999, p.64. 19 As mulheres brancas estavam totalmente submetidas à figura masculina na sociedade colonial, entre os séculos XVI ao XVIII. Se fossem solteiras, deviam obediência ao pai e/ou ao irmão mais velho. Se casadas, ao marido. Se viúvas, deveriam dedicar-se a atividades religiosas e prestar contas aos sacerdotes da Igreja Católica. Se órfãs, ficavam sob a custódia da Igreja ou de uma irmandade religiosa, e deveriam ser obedientes a todas as normas sociais. Eram muito controladas e se sentiam desamparadas, ansiosas e temiam pela própria vida. As moças deveriam se casar virgens entre o aniversário de 13 a 15 anos. Aquelas que ainda não tinham realizado o matrimônio, sofriam preconceitos e estavam destinadas a se casar obrigadas ou irem para a reclusão em um convento. Em casos da perda da virgindade antes do casamento, a moça podia ser expulsa de casa e o homem que a desonrou ser morto pelo pai ou irmão da considerada vítima. Muitas mulheres sem vocação ao sacerdócio católico ainda assim preferiam tornar-se freiras a se casarem com um desconhecido. O espaço privado era o lugar das mulheres brancas e de elite, que saiam à rua sempre acompanhadas do homem. Iam apenas à Igreja em casamentos, velórios ou na casa de outras famílias. Não era socialmente aceitável que uma mulher considerada de bem estivesse sozinha em lugares públicos. As mulheres deveriam, ainda, apresentar seus corpos vestidos decentemente, com atitudes de recato e obediência: Os primeiros anos da empresa colonial na América Portuguesa caracterizavam um ambiente de grandes desafios e novas experiências para todos que aqui aportavam. Da mesma forma foi para as mulheres que aqui chegaram pré- destinadas a constituir família de acordo com as exigências da Igreja. De acordo com o fragmento acima, podemos averiguar determinadas características inerentes a essas mulheres, padre Manuel da Nóbrega solicita que elas sejam brancas, ‘puras’ e obedientes. Na Europa católica e no Brasil daquela época, a mulher era considerada objeto, posse de prazer (que somente o homem deveria sentir, pois o prazer da mulher estava ligado ao pecado) e de procriação, Nesse sentido a união com a mulher branca e pura significava a pureza da ‘raça’ e também a prova inconteste de temor a Deus indispensável a um bom cristão.7 No corpo da mulher estava a honra e a desonra do homem, que também tratava com diferença as mulheres na sociedade, de acordo com sua posição social e etnia. Aquelas que possuíam poucos recursos financeiros ou eram africanas e indígenas ou mestiças descendentes desses povos eram em sua maioria maltratadas. O padrão do homem de classe dominante foi e talvez ainda seja o do uso sexual das mulheres de classes inferiores, sobretudo das mulatas, de indiferença sentimental e social e de irresponsabilidade para com os filhos de tais intercursos.8 7 OLIVEIRA, Diovana Ferreira. Desmundo: O cotidiano da mulher no Brasil colonial. Uma análise cinematográfica, In: Anais do II Encontro Internacional de História Colonial. Meme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24. Set./out. 2008. ISSN 1518-3394. Disponível em: www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais. 8 Artigo As Mulheres no Brasil Colonial. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/16570/16570_4.PDF. 20 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Vale destacar que a opressão e a repressão não recaíram apenas sobre o sexo feminino. Homens, crianças, idosos e todos aqueles que não obedecessem ao sistema patriarcal, como também causassem algum tipo de desordem, poderiam ser reprimidos. Os discursos criados e proferidos pelo Catolicismo, aliados à moral e ao bom costume patriarcal, auxiliavam a normatização da vida privada das pessoas naquela sociedade. Até mesmo a intimidade sexual permitida às “mulheres honestas” era diferente das práticas das mulheres conhecidas como públicas. O corpo de uma mulher decente deveria ser recatado e puro, e pertencer apenas ao seu marido. Já os corpos das mulheres que se dedicavam ao trabalho, como as escravas, as pobres ou as profissionais do sexo, poderiam ser expostos e usados como objetos sexuais lascivos, para satisfazerem os desejos dos homens, que não deveriam se relacionar sexualmente com a esposa da mesma forma quese relacionavam com aquelas consideradas “da vida”. Isso não significa que essas mulheres poderiam ter uma vida sexual livre de julgamentos e adjetivações negativas. A vida sexual e as intimidades porta adentro tinham regras para homens e mulheres, que deveriam obedecê-las, para não serem punidos ao menos com a culpa do pecado. Os bígamos, por exemplo, deviam amar, e muito, o matrimônio pois, se assim não fosse, por que se casariam tantas vezes? Os fornicários, como ‘bons’ cristãos que eram, não admitiam desrespeito com moças direitas e mulheres casadas. No entanto, não viam pecado em se deitar com as solteiras (solteira não no sentido de hoje, mas como mulher pública, sem compromisso com família), identificadas, sobretudo, na imagem das escravas, nativas, mulatas e negras forras. Esse último fato, sem dúvida, revela o estigma social a que estavam submetidos escravos e mestiços, mas, de forma alguma configura intenção de subverter o sacramento do matrimônio. Por outro lado, os acusados de sodomia, ainda que entre eles existissem pecadores convictos, talvez fossem menos produto da devassidão dos trópicos do que vítimas da opressão escravista e social a qual muitos estavam submetidos. Na verdade, a Inquisição rastreava heresias em falas populares, culpabilizando as moralidades de gente simples, gente essa que, no ultramar português, estava longe de ser atingida pela devoção moderna em desenvolvimento no mundo europeu a partir do século XVI.9 Nas Vilas coloniais, a vida rural sobrepunha-se à urbana, mesmo naquelas localizadas no litoral. Na Vila de São Paulo de Piratininga, os jesuítas tinham o objetivo de ensinar, além da fé católica e das letras da Gramática Portuguesa, também Matemática, Física, Ciências Naturais e ofícios como de cozinheiro, alfaiate, sapateiro, carpinteiro, pedreiro, entalhador de madeira, tecelão, oleiro, farmacêutico, agricultor, entre outros aprendizados, que não foram direcionados apenas ao indígena. 9 CARDOSO, Patrícia Domingos Wooley. A Sociedade Colonial: Uma reflexão sobre as moralidades e religiosidade popular na América Portuguesa. Séculos XVI-XVIII. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 13-4. 21 Segundo Rosário e Silva: No longo período em que os jesuítas por aqui estiveram, no Brasil, exerceram um destacado papel tanto na educação como na catequese dos índios e dos colonos e na organização burocrática da nascente sociedade brasileira (...) As escolas e colégios jesuítas, subsidiados pelo Estado português, se obrigava a formar gratuitamente sacerdotes para a catequese, instruir e educar os indígenas, os mamelucos e os filhos dos colonos brancos. O estudo é encarado como fundamental, um espaço para a guerra de ideias contra o protestantismo e na preservação dos valores morais e na difusão da cultura cristã europeia.10 Naquele cotidiano permeado de poderes pré-estabelecidos, muitos foram obrigados a se submeter às ordens do sistema. As vilas que deram origens às cidades possuíam os espaços para morar, trabalhar, aprender, punir, brincar, entre casas, casebres, casarões, igrejas, engenhos, lavouras, feiras, ruas, praças, cadeias e pelouros, entre outros, povoados de pessoas famosas ou anônimas, que ocupavam seus lugares sociais. O lugar que ocupavam os homens na sociedade não devia ser o mesmo das mulheres. Da mesma forma, as mulheres pobres, mestiças e escravas também diferenciavam-se socialmente em relação ao lugar ocupado pela mulher de elite. Cada sujeito histórico tinha uma função a desempenhar em meio à trama da vida, com códigos de posturas tão rígidos e difíceis de ultrapassar. A própria organização das vilas e cidades do ponto de vista urbanístico e arquitetônico sinalizava e impunha os limites a cada classe e gênero dentro daquela sociedade, onde era muito bem demarcado o lugar dos homens, das mulheres, dos escravos, das crianças, entre outros sujeitos que deram vida aos primeiros núcleos coloniais urbanos, os quais esta Unidade de estudos apresentou. Figura 3 Fonte: Benedito Calixto 10 ROSARIO, Maria José Aviz; SILVA, Carlos, José. A Educação Jesuítica no Brasil Colônia. Universidade Federal de São Carlos, 2004, p. 5. Disponível em: http://www.ufpi.br/subsiteFiles/ppged/arquivos/files/eventos/evento2004/GT.11/GT3.PDF. 22 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II Material Complementar Vídeos: Faça a leitura do filme “Desmundo”, com base naquilo que foi estudado na Unidade II, destacando os seguintes aspectos do período colonial: as construções arquitetônicas e as condições de higiene nas vilas; a comunicação social; a catequização dos nativos; a relação do Estado português no que diz respeito aos órfãos; a mulher na visão da sociedade colonial portuguesa; o conceito de matrimônio; a violência sexual; o incesto e a maternidade. Filme disponível em: www.youtube.com/watch?v=oxQe_BeRba0 23 Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 2000. ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e Vida Doméstica, In: MELLO e SOUZA, Laura de (Org.). Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. Coleção História da Vida Privada no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Cia das Letras, 1999. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. BETHEL, Leslie. História da América Latina Colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,1984. CARDOSO, Patrícia Domingos Wooley. A Sociedade Colonial: Uma reflexão sobre as moralidades e religiosidade popular na América Portuguesa. Séculos XVI-XVIII. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2008. DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Estampa, vol. I. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. FEVRE, Lucien. O Problema da Descrença no Século XVI: A religião de Rabelais. Porto: Início, 1971. FREIRE, Gláucia de Souza. Do Viver ao Praticar: Sincretismo religioso no Brasil colonial, In: Anais do Encontro Internacional de História Colonial. Meme – Revista de Humanidades. UFRN, Caicó (RN), v. 9. n. 24,set/out. 2008. HERMANN, Jacqueline. História das Religiões e Religiosidades. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997. MOTT, Luiz. Cotidiano e Vivência Religiosa: Entre a capela e o calundu, In: MELLO e SOUZA, Laura de (Org.). Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. Coleção História da Vida Privada no Brasil. vol. 1. São Paulo: Cia das Letras, 1999. OLIVEIRA, Diovana Ferreira. Desmundo: O cotidiano da mulher no Brasil colonial. Uma análise cinematográfica, In: Anais do II Encontro Internacional de História Colonial. Meme – Revista de Humanidades. UFRN, Caicó (RN), v. 9. n. 24,Set/out. 2008. REIS, Nestor Goulart. Os Engenhos da Baixada Santista e os do Litoral Norte. Revista USP, nº 41. São Paulo: USP, 1999. ROSARIO, Maria José Aviz; SILVA, Carlos José. A Educação Jesuítica no Brasil Colônia. São Paulo: Universidade Federal de São Carlos, 2004. 24 Unidade: Conhecendo a cidade: seus espaços, seus lugares seus sujeitos nos primeiros núcleos coloniais II SOARES, Mariza. Devotos da Cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. TEIXEIRA, Correa Rodrigo. História dos Ciganos no Brasil Recife: Núcleo de Estudos Ciganos no Brasil, 2008. VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. ______. Moralidades Brasílicas: Deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In: MELLO E SOUZA, Laura de (Org.). Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. Coleção História da Vida Privada no Brasil. vol. I. São Paulo: Cia das Letras, 1999. ______. Trópico dos Pecados – Moral,Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. VIANNA, Hélio. História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1972. 25 Anotações
Compartilhar