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109 tradução e Criação: entrelaçamentos TRADUZINDO PLAUTO EM VERSO: O PRÓLOGO DE POENULUS Beethoven Alvarez (UFF) 1. TEATRO ROMANO E IMAGINAÇÃO Há mais ou menos dois mil e duzentos anos, durante um feria-do religioso, em Roma, muito antes de césares e do Coliseu, poderíamos encontrar numa rua a caminho do centro comercial, centenas de pessoas reunidas, entre homens importantes, mulheres ricas, estrangeiros de muitos tipos, libertos de muitas profissões, pobres vindo do campo, escravos de toda sorte e tantos outros personagens cotidianos, diante de um grande palco de madeira, muito bem enfeitado, em frente das escadarias de um templo qualquer, num lugar onde facilmente reconheceríamos que uma peça de teatro estava prestes a começar. A agitação e o frisson nos fariam notar ainda o apelo popular do evento. Num modelo antigo de “virada cultural” durante o dia, promo- vida pelo Estado, mas com financiamento privado de membros da “prefeitura” local, poderíamos encontrar, durante esses “feriados prolongados”, além de encenações teatrais, diversos outros modos de entretenimento, como lutas de boxe e dos famosos gladiadores, corridas de bigas e outros tipos de shows. Nesses grandes eventos do calendário cívico-religioso da ci- dade, algum sucesso entre aquele público parece ter feito o teatro de comédia. Um sucesso que ainda perdura, pois vale dizer que dessa mesma comédia evoluíram elementos dramáticos de ceno- 110 tradução e Criação: entrelaçamentos grafia, de enredo, de construção de personagens, etc. que hoje facilmente vemos ainda em qualquer sitcom estadunidense ou nas peças de um Miguel Falabella, ou no que conhecemos da comédia de Shakespeare, Molière ou Ariano Suassuna. Esse modelo aproximativo desenhado até aqui é uma tenta- tiva, com certeza, muito imprecisa, de descrever o teatro romano de meados da República;1 porém, o emprego não inadvertido de imagens e referências contemporâneas pode ter contribuído para criar, rapidamente, uma ideia mais ou menos geral do que foi o teatro em Roma naquele período, em especial, a um leitor não familiarizado com os mais de dois mil anos de filologia clássica, que, até hoje, possibilita também, de certa forma, apenas uma ideia aproximada e por vezes pouco acurada desse mesmo teatro. De todo modo, seja uma pouco precisa descrição que aproxima uma experiência distante a uma realidade contemporânea, seja uma científica e especulativa proposta que, em sua exegese, torna nítido o distanciamento de uma prática outra e antiga, ambos exercícios de conjectura são igualmente importantes para entendermos o que foi o teatro antigo em Roma e para compreendermos sua força e importância, cujas influências nos fazem rir e chorar até hoje. Se precisamos recorrer à imaginação, ou à especulação científi- ca, é porque o teatro antigo de Roma para nós é como um quebra- cabeças do qual muitas peças desapareceram ou são muito difíceis de serem encaixadas. Mesmo assim, contra todas as dificuldades, algumas peças fundamentais se preservaram: os textos teatrais (de fato, apenas alguns poucos), ou seja, os scripts daquelas encenações dramáticas a que aquelas pessoas, naqueles feriados, assistiram em teatros de madeiras nas ruas de Roma.2 1 Nesse tempo ainda não havia em Roma edifícios teatrais permanentes ou teatros de modelo grego. Para uma história do teatro romano, ver Bieber (1971). Sobre o teatro em Roma, leituras detalhadas e elucidativas que dão base a essa sumária descrição encontram-se em Duckworth (1952), Beare (1964), Beacham (1996), Moore (1998), McDonald e Walton (2007), Hunter (2010) e Manuwald (2011). 2 São outras importantes peças desses quebra-cabeças a iconografia encontrada em cerâmicas, afrescos e mosaicos; bem como referências feitas ao teatro por autores antigos em diversos tipos de texto, inclusive referências contidas nos próprios textos teatrais. 111 tradução e Criação: entrelaçamentos Daí então, tentando ajudar a criar alguma imagem nesse complicado jogo, proponho nas próximas páginas um exercício de reimaginar (parte de) um desses textos, num experimento ora inconsistente na sua aproximação, ora especulativo no seu distan- ciamento. Mais especificamente, neste capítulo, tenho o objetivo de apresentar minha tradução em versos, anotada e comentada, do prólogo da comédia Poenulus (O Pequeno Cartaginês, como tradi- cionalmente se traduz), do comediógrafo Tito M. Plauto (254-184 a.C.), um dos mais importantes autores do teatro ocidental, que escreveu dezenas de comédias (das quais conhecemos hoje 21) para os palcos de Roma por volta de 205 a 184 a.C.3 Para isso, muito objetivamente, trato de algumas característi- cas do teatro de Plauto e do teatro de língua portuguesa dos séculos XIX-XX para fundamentar e justificar minha proposta de tradução. Depois, passo propriamente à apresentação da tradução em verso rimado do prólogo do Poenulus, que sucede uma pequena síntese do enredo. A tradução aparecerá com notas de caráter explicativo, filológico e tradutório. Por último, faço comentários gerais que tornam mais explícitos certos procedimentos tradutórios, em especial, sobre o título, o tipo de verso empregado e o recurso da rima, ao que se adiciona uma nota de tradução sobre os versos 53-54. O texto em latim, como editado por Melo (PLAUTUS, 2012), é apresentado ao final. 2. O TEATRO DE PLAUTO: TRADUÇÃO E CRIAÇÃO O teatro de Plauto possuía forte apelo popular e sua ence- nação pressupunha uma forte conexão com o público. Embora a biografia de Plauto (254-184 a.C.) seja obscura e pouco confiável, 3 Ao que tudo indica, Plauto teria vindo de Sársina, na Úmbria, nordeste da península itálica; contudo, sua biografia é deveras incerta; até seu nome é provável que seja fictício, cf. Gratwick (1973). Anedótico é o relato de Aulo Gélio (NA, 3, 3) quando informa que, depois de enrique- cer com o teatro, Plauto perde todo seu dinheiro e acaba como trabalhador em um moinho de cereais. Uma boa apresentação da biografia de Plauto pode ser encontrada em Bravo (2013, p. 9-16). 112 tradução e Criação: entrelaçamentos os dados que dela se extraem demonstram um autor que conhecia o povo. Desde o enredo e os personagens até o texto e modo de performance, tudo aponta para a vida cotidiana, através de uma re- presentação do dia a dia e de referências a modelos populares de teatro.4 Contudo, as comédias de Plauto ou outros comediógrafos da época não eram, por isso, práticas artísticas simplificadas ou faltas de elaboração literária. A linguagem, ou, na verdade, o uso expressivo da linguagem nos textos teatrais de Plauto são marcas de um burilo técnico que unia discurso coloquial, fórmulas religiosas e expressões jurídicas, palavras arcaicas e pouco usadas, neologismos e modos de dizer estrangeirizados, e uma linguagem altamente estilizada, demonstrando, além de tudo, elegante domínio da lín- gua latina – tudo isso em verso e com música! Alguns versos eram destinados à enunciação sem o acompanhamento musical, mas a maioria dos versos foram compostos com a expectativa de algum acompanhamento musical e, muitas vezes, pressupondo o canto.5 Qualquer tentativa de tradução desse texto, mesmo que se esforce em captar de forma mais ou menos equivalente seus recur- sos expressivos, não conseguirá (nem pode se propor a) reproduzir seu ambiente de performance e seu significado social e religioso. Por outro lado, qualquer tentativa de tradução do texto de Plauto será bem-sucedida, a meu ver, se conseguir trazer um pouco de Plauto para o leitor ou espectador moderno e, ao mesmo tempo, transportar esse leitor/espectador para um Roma desconhecida. Mas como? A primeira motivação para isso foi manter o uso do verso. Toda comédia romana foi composta em versos. Essa ideia pode parecer simples, mas não é. Em língua portuguesa, são pouquíssimas as traduções de Plauto em verso. (São poucas, na verdade, as tradu- ções de Plauto de uma forma geral, autor que até hoje não contaainda com uma tradução completa de sua obra em vernáculo.)6 4 Cf. Bexley (2014, p. 462-476). 5 Cf. Moore (2012) e Bravo (2013, p. 64-74). 6 Sobre uma historiografia da tradução da literatura latina no Brasil, ver o excelente trabalho de Fernandes (2017). 113 tradução e Criação: entrelaçamentos Até onde tenho notícia, há apenas e unicamente duas traduções poéticas de peças plautinas: (1) A Marmita, de 1888, tradução da Aulularia “em versos portugueses”, do Barão de Paranapiacaba; e (2) Anfitrião, de 2012, “em versos que possam recriar as estruturas métricas”, empreendida por Leandro Cardoso, em sua dissertação de mestrado. A tradução chamada rítmica de Leandro Cardoso, que busca alguma correspondência entre sílabas longas do latim e sílabas tôni- cas do português,7 reflete uma tendência recente e alcança efeitos muito bem-sucedidos na transposição dos elementos formais do verso latino, porém, buscando uma dicção baseada em versos (mais ou menos) tradicionais, seguirei a outra via e proporei aqui uma tradução em versos de 12 sílabas, os dodecassílabos, que são uma variação moderna do alexandrino clássico. Assim, para começar uma argumentação, apresento um trecho da tradução do Barão de Paranapiacaba, que utiliza versos vernáculos, como decassílabos, alexandrinos (clássicos) e redondilhas. Reproduzo, então, o breve prólogo de sua A Marmita, vertido em versos alexandrinos com rimas emparelhadas: O DEUS LAR Para que não se estranhe o achar-me aqui presente, Eu vou dizer quem sou sucinta e brevemente. Da casa, cujo umbral acabo de transpor, Eu sou o Deus do lar, o Nume guardador. Muitos anos já faz que em toda esta família Exerço protetora e perenal vigília; Sou Deus familiar de quem hoje ali mora, Como fui de seu pai e avô paterno outrora. O avô me confiou a guarda de um tesouro, Que ninguém descobriu — marmita cheia de ouro. Numa cova a enterrou, no centro do fogão, Entregando-a, em seguida, à minha proteção. 7 Mais detalhes sobre o projeto de tradução rítmica, ver Gonçalves (2011), Cardoso (2012) e Flores e Goncalves (2014). Em breve, deverá vir a lume a tradução dos Adelfos, de Terêncio, por Gonçalves, seguindo os mesmos pressupostos. 114 tradução e Criação: entrelaçamentos E nem quando morreu (tal foi sua avareza!) Disse ao filho onde estava oculta essa riqueza. Achou melhor deixá-lo a braços co’a indigência, Conservando o segredo à estéril opulência. (PLAUTO, 1888, p. 12) Trata-se possivelmente da primeira tradução em versos de Plauto em língua portuguesa. Atesta isso o próprio Barão em seu agradecimento, publicado no início do livro, ao Visconde de Ouro Preto, à época Primeiro-Ministro do Império: “É, creio, o primeiro ensaio que do teatro latino se faz em verso português. Escasso é o seu mérito literário, mas representa paciente esforço para trasladar em vernáculo os modelos da arte antiga” (PLAUTO, 1888, p. 4).8 Registrado fica o intuito do tradutor de se valer de versos vernáculos, porém, em nenhum outro passo, comentam-se duas outras escolhas: por que os alexandrinos para traduzir os versos do prólogo em latim? E por que os decassílabos e as redondilhas para outras passagens? A resposta parece ser simples, pelo menos, para a primeira pergunta. O teatro cômico e literário (muito especialmente do sé- culo XIX e até do início do XX, em Portugal e no Brasil) reconhece o alexandrino como um verso típico da comédia para representar a fala cotidiana. E o Barão de Paranapiacaba não viu necessidade de explicar isso. Dá-nos testemunho disso ninguém menos do que Machado de Assis, que compõe em 1866, mais ou menos 20 anos antes da tradução do Barão, uma comédia intitulada Deuses de Casaca, sobre a qual comenta:9 Uma crítica anódina, uma sátira inocente, uma ob- servação mais ou menos picante, tudo no ponto de vista dos deuses, uma ação simplicíssima, quase nula, 8 Textos do século XIX e início do XX são citados aqui e passim com a ortografia modernizada. 9 Sobre as comédias de Machado, ver Faria (2012, p. 32). 115 tradução e Criação: entrelaçamentos travada em curtos diálogos, eis o que é esta comédia. O autor fez falar os seus deuses em verso alexandrino: era o mais próprio. Tem este verso alexandrino seus adversários, mesmo entre os homens de gosto, mas é de crer que venha a ser finalmente estimado e cultivado por todas as musas brasileiras e portuguesas. Será essa a vitória dos esforços empregados pelo ilustre autor das Epís- tolas à Imperatriz, que tão paciente e luzidamente tem naturalizado o verso alexandrino na língua de Garrett e de Gonzaga. (ASSIS, 1866, p. viii) O autor das Epístolas à Imperatriz a que alude Machado é An- tônio Feliciano de Castilho,10 a quem é creditada a importação do metro francês e quem, na década de 1870, traduz em versos alexan- drinos rimados o Tartufo, de Molière. No prólogo de Machado de Assis, ainda encontramos a justificativa para a propriedade do uso dos alexandrinos: a saber, sua capacidade de acolher uma dicção mais prosaica (note-se, em especial, o verso 52 na citação a seguir): Querem saber quem sou? O Prólogo. Mudado Venho hoje do que fui. Não apareço ornado Do antigo borzeguim, nem da clâmide antiga. Não sou feio. Qualquer deitar-me-ia uma figa. 5 Nem velho. Do auditório alguma ilustre dama, Valsista consumada aumentaria a fama, Se comigo fizesse as voltas de uma valsa. Sou o Prólogo novo. [...] Vai começar a peça. É fantástica: um ato, 50 Sem cordas de surpresa ou vistas de aparato. Verão do velho Olimpo o pessoal divino Trajar a prosa chã, falar o alexandrino, E, de princípio a fim, atar e desatar 10 Nas Advertências da referida Epístola, Castilho (1856, p. 5) aconselha aos poetas de então se acostumarem a “ver” e “ouvir” os dois hemistíquios de seis sílabas do alexandrino. 116 tradução e Criação: entrelaçamentos Uma intriga pagã. 55 Calo-me. Vão entrar Da mundana comédia os divinos atores. Guardem a profusão de palmas e de flores. Vou a um lado observar quem melhor se destaca. A peça tem por nome — Os deuses de casaca. (ASSIS, 1866, p. 3-5) Essa ideia do prosaísmo do alexandrino parece ter sido im- portada da tradição francesa, na qual o alexandrino, desde seus primórdios, esteve associado à poesia popular e à dicção prosaica: ainda na metade do século XVI, Joachim du Bellay, por exemplo, escreve Les Regrets (1558) em alexandrinos, porque queria expressar algum tipo de intimidade e informalidade, como aponta Peureux (2012, p. 35). Ronsard diz no prefácio de segunda edição de sua Franciade: “teria sido cem vezes mais fácil escrever meu livro em alexandrinos, já que este verso é o mais longo, se não tivesse a dúvida de que neles se ouve muito da prosa” (RONSARD, 1858, p. 11, minha tradução). Porém, desde cedo o alexandrino na França se fixa sob as bases de uma acentuação rígida e explora invariavelmente a rima final, normalmente aguda, como marca própria para sublevar sua qualidade e condição poética. Peureux (2012, p. 36) lembra que, no século XVII, o alexandrino em França se estabelece como o novo vers héroïque, no lugar do decassílabo, sendo a forma preferida da poesia elevada, em gêneros como a épica e a tragédia. É Corneille o responsável por introduzir o verso alexandrino com suas rimas emparelhadas no teatro cômico, como indica Kastner (1903, p. 148). Posteriormente, Molière, no final do séc. XVII, a partir de sua experiência como ator trágico, explorará as possibilidades do grand vers no teatro baixo. O teatro de língua portuguesa depois se valerá do modelo francês, muito influenciado pelas traduções do teatro francês e pela propaganda de Castilho. Além de Machado de Assis, diversos 117 tradução e Criação: entrelaçamentos dramaturgos lusófonos entre 1860 e o início do século XX prati- caram a comédia em versos. Pelo menos até o início do século XX, no Brasil e em Portugal, o teatro em verso prosperou. E, pelo menos, até a década de 1960, no Brasil, as traduções do teatro em verso estrangeiromantinham o verso vernáculo no espetáculo nacional.11 Desse modo, motivado por traduzir em verso o verso do teatro de Plauto, escolhi para traduzir o prólogo do Poenulus os versos de 12 sílabas (ou seja, dodecassílabos, que são hoje uma espécie de alexandrino sem acentuação rígida) com as rimas emparelhadas, seguindo a tradição do teatro de língua portuguesa.12 Mesmo sob pena de soar “datado”, creio que há espaço para o experimento pelo simples histórico do alexandrino e da rima na tradição. A crítica que poderia se levantar de pronto seria a de que essa tradição estaria associada a um teatro estritamente literário, muito distante do teatro popular de Plauto. Neste momento, sem desejar esgotar o assunto, chamo atenção para algumas semelhanças que podem tentar justificar o emprego de um verso regular do teatro cômico de língua por- tuguesa do início do século XX para traduzir Plauto hoje: (1) por mais popular que fosse o teatro de Plauto, devemos lembrar que o texto plautino era composto em verso, um verso de ritmo muito bem reconhecido e reconhecível, como nos dão testemunho vários autores antigos; e (2) por mais literário que fosse o teatro cômico do século XIX-XX na tradição luso-brasileira, era essa a comédia que o público de forma geral encontrava no teatro e que também fazia sucesso (junto com o teatro em prosa).13 11 Veja-se a tradução de Guilherme Figueiredo do Tartufo, de Molière (1959). Cf. Figueiredo (1980, p. 33-65). 12 Essa escolha funciona para o prólogo. Ainda desenvolvo um sistema de equivalências mais amplo para outras cenas. Importante registrar que a escolha de versos vernáculos parte também da experiência de tradução de tragédias de Sêneca, de José Eduardo Lohner, como em Agâme- mnon (2009). Junto comigo, seguem essa proposta, em seus trabalhos de iniciação científica e mestrado, Heloize Fortunato, com O Auto-Punidor, de Terêncio; e Renan Rodriguez, com a Asinária, de Plauto. 13 Embora houvesse outros subgêneros cômicos menores (burletas e farsas, por exemplo), no teatro brasileiro desse tempo, estes seriam mais comparáveis a outros subgêneros cômicos que 118 tradução e Criação: entrelaçamentos Dois outros aspectos, ainda que de forma especulativa, me fazem acreditar que as rimas e o ritmo marcado preenchem espe- cial espaço na construção de um teatro popular ainda hoje: (1) a literatura de cordel, de matriz popular desde sua origem, mantém o recurso da rima como marca definidora, apoiando-se num verso de sete sílabas bastante regular; e (2) as mais populares e recorrentes “rinhas de rap” contemporâneas se fundamentam num tipo de verso que, embora improvisado, é rimado e muito ritmado. Algo me leva a crer que se o “teatro de Plauto”, popular e musical, surgisse hoje, ele conteria muitas marcas desse improviso rimado das batalhas de MCs e muito do folclore cotidiano da literatura de cordel em rimas; ou seja, seria um teatro baseado na rima, no ritmo e na música. 3. O PRÓLOGO DO POENULUS E O ENREDO Os prólogos de Plauto serviam fundamentalmente para pedir disposição favorável do público e expor o argumento (enredo/ trama) da peça, antes de a peça começar propriamente. O prólogo do Poenulus começa com um pedido de boa disposição (captatio beneuolentiae) (1-45), e, endereçado a uma grande variedade de tipos que frequentam a plateia, nos dá um retrato curioso do público romano daqueles festivais. Em seguida, passa à exposição do en- redo (46-125), durante o qual apresenta a cidade em que se passa a peça (53-4) e identifica as casas dos personagens no cenário (78, 95), e se encerra com uma certa fórmula de despedida (125-128). O enredo do Poenulus é complexo e duplo, na verdade. Combina partes de uma comédia de reconhecimento com elementos de uma intriga padrão (um escravo esperto auxilia um jovem livre que está apaixonado por uma jovem, normalmente, no estado de cativa ou escrava, enganando o cafetão que a mantém como propriedade e está impedindo a união do casal). também conheceram os romanos (como mimos e farsas Atellanae), muito diferentes do teatro de Plauto. 119 tradução e Criação: entrelaçamentos Havia dois primos de uma família rica em Cartago, chamados Jahão e Hanão. Jahão teve um filho, mas este filho, Agorástocles, foi sequestrado e vendido em Cálidon. O homem que o comprou não tinha esposa nem filhos. Ironicamente, mesmo sendo amigo de Hanão, nunca percebeu que havia comprado e adotado o so- brinho desse amigo. O homem morreu e deixou grande riqueza a Agorástocles. Hanão tinha duas filhas, Anterástile e Adelfásia. Assim como Agorástocles, ambas foram sequestradas quando jo- vens e, junto com sua ama, Gidene, foram vendidas a um cafetão chamado Lobo. Quando Lobo se mudou para Cálidon, Agorástocles se apaixona por Adelfásia, a irmã mais velha. Tanto Jahão quanto sua esposa morreram em Cartago, então Hanão decide viajar para encontrar suas filhas e seu sobrinho, até que chega a Cálidon. Aqui começa a peça. A trama em si se passa durante uma Afrodisia, um festival a Afrodite/Vênus, a deusa do amor. Agorástocles se queixa ao seu escravo Milfião de que o cafetão lhe nega desfrutar do amor e dos serviços sexuais de Adelfásia. Milfião sugere enganar o cafetão. Assim, Colibisco, um capataz vindo do campo, veste-se de soldado estrangeiro e, com uma bolsa de dinheiro (falso, diga-se de pas- sagem), vai até Lobo, que lhe oferece seus serviços. Agorástocles então vai com testemunhas e pergunta a Lobo se ele está com seu escravo em sua casa. O cafetão naturalmente negará isso, porque também não conhecia o escravo anteriormente e, por isso, será culpado de perjúrio, tanto por manter em sua casa propriedade de outro (no caso, o escravo Colibisco) quanto por receber dinheiro roubado. A punição será tanta que o cafetão enganado terá que entregar toda a sua propriedade, incluindo Adelfásia. Nessa hora, Milfião descobre através de um escravo do cafetão que as moças são cativas de Cartago e corre para alertar Agorásto- cles, para que pudessem ser libertas. Sem ser visto, Hanão escuta o diálogo e entra em cena. Depois de um surreal diálogo com Milfião (vale lembrar que Hanão, cartaginês, também chamado de “púnico”, falava em fenício e Milfião fingia entender, traduzindo 120 tradução e Criação: entrelaçamentos tudo para Agorástocles), o escravo decide enganar o cafetão de novo, propondo a Hanão que se apresente como o pai legítimo das meninas. O púnico a essa altura sabe que é o pai delas de fato. Por fim, numa esperada cena de reconhecimento, as jovens descobrem que Hanão é seu pai e Agorástocles o sobrinho dele. Perto do fim, um soldado mercenário, Antamênides, está preocupado porque antes havia dado dinheiro adiantado para contratar os serviços de Anterástile, a mais nova. Assim, se encena um tribunal em que o cafetão é acusado por Agorástocles de re- ceber dinheiro de seu escravo, por Hanão de manter como cativas cidadãs livres, e por Antemênides de descumprir seus negócios. No final, o cafetão perde tudo e a peça termina com a promessa de casamento entre Agorástocles e Adelfásia.14 4. TRADUÇÃO ANOTADA Neste prólogo, o ator principal/diretor da companhia (dominus gregis), ainda sem estar caracterizado como qualquer personagem (v. 123), entra e realiza sua performance. Acompanha-o um anuncia- dor (um praeco, em latim, um arauto ou pregoeiro), cuja função era pedir o silêncio e a atenção ao público para o início da peça (11-15). Embora não haja marcações teatrais no texto em latim, optei por inseri-las na tradução, destacadas em itálico e entre parênteses, para propiciar uma maior projeção do ambiente cênico da peça. As notas buscam explicar referências mitológicas, geográficas ou literárias daquele tempo, ou destacar alguma menção ao universo teatral romano. Além das rubricas e das notas, deixei anotado um esquema numérico na lateral direita da página, que diz respeito à acentuação do verso, que será discutida mais à frente. Adiciono também algumas linhasem branco no texto para destacar os blocos de conteúdo do prólogo. Assim começa:15 14 Mais sobre a peça, ver Brandão (2016) e Gregoris (2010). Discute-se muito sobre a data da primeira encenação do Poenulus nos festivais romanos: possivelmente isso ocorreu entre 189 e 187 a.C., como argumento Melo (PLAUTUS, 2012, p. 14). 15 Serviram de apoio as traduções de Grimal (PLAUTE, 1971), Paratore (PLAUTO, 1992), Bravo (2005), Gregoris (PLAUTO, 2010) e Melo (PLAUTUS, 2012). 121 tradução e Criação: entrelaçamentos O PUNICOZINHO PRÓLOGO (Sem acompanhamento musical, entra o ator principal sem caracteri- zação) O Aquiles de Aristarco me apraz relembrar.16 Daí dessa tragédia, o início vou tomar: “Silenciai, e calai, e prestai toda atenção! Que ouçais vos ordena o General”... Histrião!17 5-9 5 Sentem-se em seus lugares, todos bem tranquilos,18 o que veio faminto e o que veio comido: quem comeu fez muitíssimo bem, foi sagaz, quem não comeu se farte de historinha em paz,19 mas quem tinha comida preparada em casa, 10 é estupidez vir com fome por nossa causa.20 4-7 (Chama o anunciador) “Levanta, anunciador, faz silêncio pro povo.”21 Faz tempo quero ver teu trabalho de novo. Solta essa voz, com ela você ganha a vida. Calado, a fome vai te matar, anda, grita! 16 Aristarco de Tégea (século V a.C.), tragediógrafo grego contemporâneo de Sófocles. Sua tragédia Aquiles, foi traduzida e encenada em Roma por Ênio (239-169 a.C.). São ainda discutíveis quais trechos do início do prólogo são realmente citações dessa peça. Contudo, fica claro o nível de “contaminação” entre os gêneros trágico e cômico no drama republicano. 17 Brincadeira com o alto título de imperator, conferido a alguns generais da República romana. Em latim, o adjetivo histricus (traduzido por “histrião”) vem da raiz de hister, não histrio (cf. histrionicus), configurando-se como uma paródia plautina de outros termos oficiais e que funciona aqui como recurso metateatral. 18 Referência aos locais do teatro: subsellis, algum tipo de assento. A expressão causa discussão, porque não se sabe ao certo como seriam esses assentos e em que formato arquitetônico estariam dispostos. 19 Em latim, “saturi fite fabulis”, “encham a barriga de histórias”, valendo-se de um jogo de pala- vras que se perde na tradução: já que fābulae são “histórias”, e făbulae, podem ser “favinhas”, “feijõezinhos”. 20 A imagem é retomada por Naharro, em sua Tinellaria (vv. 164-168): “Al yantar / os podéis también llegar/ los que yantado no habréis, / con un rëal singular / y un escaño en que os sentéis.” 21 Brincadeira com as fórmulas imperatori audientiam fac (faz silêncio para o general) e fac po- pulus audiat (faz o povo ouvir). Aqui se identifica uma mistura das duas fórmulas: fac populo audientiam. 122 tradução e Criação: entrelaçamentos (O anunciador pede silêncio ao povo) 15 Dá uma sentada, vai... vai que recebe em dobro.22 (Sai o anunciador. O ator do prólogo continua) “É mister que ouçam todos” as leis que promovo:23 puta velha nenhuma sente aqui no palco; nenhum litor24 ou seus cacetes cantem alto; 4-8 nenhum lanterninha25 fique perambulando 5-7 20 mostrando lugar quando o ator tiver atuando; quem dormiu muito em casa antes, convém agora que assista em pé calminho, ou dormisse outra hora; servos não sentam, o assento é do cidadão, 4-7 ou por sua liberdade paguem, mas, senão, 25 voltem pra casa e evitem o mal duplamente, aqui as varas de pau... e em casa as correntes, 4-7 se um pouco descuidam quando volta o senhor; 5-7 que as amas de leite dos bebês, por favor, 5-9 cuidem dos pequenos em casa, não aqui: 5-8 30 morrem elas de sede e de fome os guris, que berram de barriga vazia como cabras; as matronas assistam caladas, caladas riam, controlem o tinir da linda voz, 4-8 em casa deixem as conversas e os filós, 4-8 35 se não causam mal aqui e em casa aos maridos; 5-7 quanto a quem organiza esses jogos festivos, injusto prêmio não deem a ator nenhum26 5-7 nem eliminem outros por dinheiro algum, 22 Alguns tradutores indicam um duplo sentido de cunho sexual de “sentar”, o que justificaria o segundo pagamento. Parece haver uma lacuna de possivelmente um verso depois do verso 15. 23 “Bonum factum est”, fórmula utilizada pelos pretores, um tipo de magistrado romano. Nesse verso, há um trecho corrompido de reconstituição insegura. Sigo invariavelmente aqui a edição de Melo (2012). 24 Litor era uma espécie de guarda-costas dos magistrados romanos que carregavam uma espécie de porrete ou cassetete denominado fasces (no pl.). Daí, inclusive, vem a palavra “fascismo”. 25 O dissignator é aquele que aponta os lugares ao público no teatro, então traduzi por “lanterni- nha”, numa clara atualização do termo para causar uma certa estranheza cômica. 26 Em latim, “ne palma detur”, “que se dê a palma”. Dar a palma significa “dar um prêmio”. O ato de levantar a palma da mão para um ator significaria a concessão de um prêmio. 123 tradução e Criação: entrelaçamentos pra não, em vez dos bons, vencerem os piores; 40 e quase me esqueci de uns outros pormenores: durante os jogos, criadagem, sem demora, 4-8 em bando corram pra taberna – agora é a hora, 4-8 a bolinha de queijo27 agora tá quentinha! Essas foram as ordens que meu poder tinha. 45 Por Hércules, é bom que guardem na sua mente. Agora volto ao argumento novamente, 4-8 pra que saibam vocês e eu da mesma maneira. Vou lhes determinar as regiões, fronteiras, seus confins: assim me torno um “agrimensor”.28 5-7 50 O nome eu quero, se aborrecido não for, 4-(6)-9 da comédia lhes dar; vou dizer... não se irritem, se os edis que a compraram, claro!, me permitem. 53 Cartaginês, Karchedónios se chama, em grego, 4-7 53a a comédia: não é isso nenhum segredo!, 53b mas quis que fosse Poenulus, “Punicozinho”, Titio Plauto, o Papa-Minguau, em latim.29 55 Já têm o nome. Agora escutem o restante das “medidas”. Vai ser “contado” neste instante o argumento: o terreno é o palco, e serão vocês “ajudantes de censor”.30 Atenção! 5-9 Havia outrora dois primos cartagineses, 60 de importante família e de grandes riquezas; Um deles está vivo, o outro está bem morto. Digo isso com toda certeza a vocês todos. 5-8 Me embaso no embalsamador que disse a mim. (4)-8 Mas tinha o velho que morreu um filho sim, 4-8 65 único! Do pai, das riquezas, foi raptado, 5-8 27 A scriblitae devia ser uma comida simples e popular, uma espécie de bolo de queijo. Receita em Catão, Agr. 78. 28 Plauto usa o termo técnico finitor, “agrimensor”, para fazer uma brincadeira com a função do prologuista. 29 Papa-Minguau, de pultiphagonides, é uma brincadeira com os radicais de palavras que signi- ficam “comer” e “minguau [de aveia]”. Na seção 5.4, discuto essa passagem. 30 A tradução de iuratores pode ser o “oficial que recebe as declarações de pagamento dos im- postos” ou algum tipo de “auxiliar dos censores”. 124 tradução e Criação: entrelaçamentos menino ainda de sete anos em Cartago,31 4-7 exatos seis anos antes que o pai morreu. 5-7 Quando viu que o único filho então perdeu, 5-8 o pai se prostrou doente de sofrimento: 5-7 70 faz o primo de herdeiro seu nesse momento, pro Aqueronte ele próprio vai sem u’a moeda.32 O raptor do menino à Cálidon o leva,33 vende ele aqui a um certo senhor rico e velho, que queria ter filhos, que odiava mulheres. 75 Esse velho o compra, mas sem saber porém que é filho dum amigo, e o adota também como seu filho, e o faz herdeiro após morrer. Esse jovem mora ali, como podem ver. 5-7 Volto mais uma vez de novo pra Cartago: 80 Se querem me dar u’ encargo ou que eu cuide de algo, 5-7 Se não me der dinheiro, vai fazer besteira, Mas, se der, vai fazer a pior das besteiras. Mas aquele velho, o primo que é vivo ainda, 5-7 que é o cartaginês, duas filhinhas tinha: 85 uma de cinco aninhos, a outra então com quatro, desapareceram, com a ama, de Magara.34 5-8 Quem as raptou,as carregou para Anactório,35 4-8 vendeu todas, ama e filhas, em bom negócio, 5-8 a um homem, se é mesmo um homem um cafetão,36 5-7 90 o homem mais detestável que conhecerão. Agora, imaginem vocês, pensem um pouco, 5-8 que tipo de homem é o que se chama “Lobo”.37 Ele, de Anactório, onde antes residia 5-(6)-8 se mudou pra cá, Cálidon, faz poucos dias, 5-6-8 31 Cartago foi uma cidade no norte da África, uma antiga colônia fenícia. Sua localização hoje é a leste do lago de Túnis, na Tunísia. 32 Referência à moeda que era depositada embaixo da língua dos cadáveres (uiaticus) para a alma do morto pode pagar a Caronte, o barqueiro do rio Aqueronte, cuja travessia garantia a entrada das almas nas regiões infernais. 33 A peça se passa em Cálidon (ou Calidão), cidade grega da região da Etólia. 34 Magara, região do subúrbio de Cartago. 35 Anactório, cidade portuária próxima de Cálidon. Fica ao Norte do Golfo de Corinto. 36 Cafetão ou cáften, também chamado de rufião ou proxeneta, é o indivíduo que vive da exploração de prostitutas (escravas sexuais) ou faz a intermediação de encontros sexuais. Na comédia, é um tipo de personagem. 37 Em latim, Lycus, que, em grego, significa “lobo”. 125 tradução e Criação: entrelaçamentos 95 pra fazer uns lucros. Mora na casa ao lado. 5-7 O jovem ‘stá perdidamente apaixonado 4-8 por uma delas, sem saber que é sua parenta, 4-8 e nunca lhe tocou um dedo, então o atormenta 5-7 o cafetão; nunca também a violentou, 5-8 100 nem seus serviços contratou; nunca deixou 4-8 o cafetão; quer pegar no pulo o rapaz. 4-7 Um certo soldado se apaixona e lhe apraz 5-9 comprar a mais nova como sua concubina.38 5-7 Mas, depois que as perdeu, o pai das meninas, 105 busca-as pra baixo e pra cima, em terra e no mar. 4-7 Quando chega em uma cidade, no lugar, 5-8 descobre onde mora cada uma das escravas; 5-7 ele paga, contrata uma noite, então indaga: de onde são, qual país, se raptada ou cativa, 110 quem eram seus parentes, de qual família. Assim, esperto e astuto, procura suas filhas. Ele conhece todas as línguas,39 mas finge que não sabe: é um púnico nato. Quer mais? Ele chegou ontem de tarde aqui no cais, 115 o pai delas, também tio do rapazinho. Pegaram o fio da meada?40 É fininho, 5-9 larga, senão rebenta, vai, deixa correr. Hum, uma coisa quase esqueci de dizer. Aquele que adotou o jovem como seu filho, 120 era amigo do púnico que era seu tio. [Ele virá pra cá e achará hoje aqui suas filhas e o sobrinho, foi isso o que aprendi. Vo’ embora me vestir; vejam tudo tranquilos.]41 Ele hoje virá pra cá e achará suas filhas 5-7 38 O concubinato em Roma é uma espécie de “casamento” com uma prostituta sem valor jurídico e sem fins de constituição de família. 39 Outro lugar-comum de que se aproveita Naharro, na Tinellaria (vv. 134-138): “Su familia, / rica y grande a maravilla, / variis linguis que veréis / (bien que serán de Castilla / de siete partes las seis)”. 40 Brincadeira com o verbo “pegar” (tenere, em latim), que pode significar “pegar, segurar” e “entender”. A expressão em latim é “iamne hoc tenetis?”, “já pegaram isso?”. Melo (PLAUTO, 2012, p. 29) indica que é uma referência a uma dança em que os participantes seguram uma corda. 41 O texto entre colchetes alguns editores consideram interpolação. 126 tradução e Criação: entrelaçamentos 125 e o filho do seu irmão. No mais, vou-me embora. Adeus, atenção. Quero ser outro agora: o resto que o restante lhes revele, eu não pude. Adeus. Ajudem. Fiquem todos com Saúde.42 (Sai) 5. COMENTÁRIOS DA TRADUÇÃO 5.1 O TÍTULO Dos 128 versos deste prólogo, nada foi mais difícil de traduzir do que o título. Propositalmente, até a apresentação da tradução na seção anterior, não havia ainda estampado a tradução do título, postergando a discussão sobre o “Punicozinho”. Em latim, Poenulus (Poen- + -ulus) é a forma dimunitiva de Poenus,43 que, por sua vez, é um etnônimo que designava, para os romanos, os fenícios ocidentais, que são basicamente o povo de Cartago,44 cidade rival de Roma. O termo Poenus, em oposição ao gentílico Carthaginiensis, “cartaginês” simplesmente, denota uma significação difamatória e pejorativa.45 Porém, a tradução mais tradicional para o português do título da peça de Poenulus como O Pequeno Cartaginês perde completamente esse traço cômico desdenhoso. No Brasil, até onde sei, não há outra tradução desta peça para uma comparação dos títulos. Mesmo em Portugal, só tenho notícia de uma, empreendida por José Luís Brandão, e que, mesmo assim, apenas se destinou à encenação, em 2009, pelo grupo de teatro Thíasos, da Universidade de Coimbra. Por lá, preferiram O Fulaninho 42 Salus, deusa Saúde ou Salvação, divindade tipicamente romana. Aqui torno a deusa em subs- tantivo concreto, numa expressão de despedida comum, fazendo um anagrama com a palavra “adeus”, do início do verso. Agradeço a Carolina Paganine que primeiro observou essa feliz coincidência. 43 Como Phoinix, -ikos (Φοῖνιξ, -ῑκος), em grego. 44 Cartago significa “Nova Cidade”, em fenício. 45 Mais sobre o uso de Poenus e Carthaginiensis, ver Franko (1994). 127 tradução e Criação: entrelaçamentos de Cartago.46 Curiosamente um blogue pessoal, registra que houve uma tentativa de sugerir um título diferente em Coimbra: “Pois bem, já vi que a minha sugestão para que escolhesse O Punicozinho como tradução do título não foi aceite...” (NOGUEIRA, 2009). Quando pensei em Punicozinho como título, não tinha notícia dessa sugestão, que remonta, portanto, a 2009; contudo, não acre- ditava também que eu teria sido o primeiro a pensar na solução, a princípio, para mim, um tanto óbvia. Em português, “púnico” designa aquele ou aquilo de origem cartaginesa; juntando-se então “púnico” com o sufixo “-zinho” temos um diminutivo etnônimo de caráter gentílico cuja cacofonia produz efeito cômico de alguma sorte. Mesmo que não seja corriqueira a forma “púnico”, que deve gerar alguma dificuldade ou estranheza a um leitor menos acostu- mado a histórias das guerras de Roma, creio que o efeito sonoro do final da palavra “Punicozinho” seja nitidamente percebido como um chiste. Não é de se imaginar que resgatemos algum traço de insulto e agressão a um povo estrangeiro com esse “Punicozinho”,47 nem me ocorre outra denominação que alcançaria, em português do Brasil de hoje, esse efeito (não seria “cartaginesinho” a consegui- lo); assim, preferi a piada infame mesmo podendo perder alguns amigos. 5.2 O VERSO Anteriormente justifiquei, de forma geral, o uso dos versos ale- xandrinos rimados no teatro. Aqui, trato de alguns outros detalhes da proposta de tradução, pois, no lugar dos clássicos alexandrinos, de acentuação estrangeirizante e fixa, ou seja, aqueles versos que devem possuir sempre a 6ª sílaba acentuada, ou em posição de cesura aguda, ou com obrigada elisão na 7ª sílaba,48 optei pelos “irregulares” dodecassílabos, um verso também de 12 sílabas que 46 Agradeço a Pedro Martins por me ceder tão gentilmente sua cópia d’O Fulaninho de Cartago. 47 Em inglês, Richlin (2011) traduz, na tentativa de manter o ar insultuoso, como Towelheads (algo como “Cabeça de Toalha”, em referência aos turbantes usados por muçulmanos). 48 Como assinalam, por exemplo, Bilac e Passos (1905), e Said Ali (1999). 128 tradução e Criação: entrelaçamentos perdeu um pouco da natureza composta do alexandrino francês original, mas que goza de algum prestígio entre poetas e tradutores nacionais mais recentemente. Mesmo sem querer traçar uma história do alexandrino/dode- cassílabo e entendendo, junto com Chociay (1974, p. 123), dodecas- sílabo como o verso de 12 sílabas resultante da liberação da cesura fixa do alexandrino francês clássico, o nome de um poeta que se arroga é o do português Eugênio de Castro (1869-1944), como bem aponta Vieira (2011, p. 57, n. 134). Castro foi um poeta simbolista que defendia renovar a acentuação fixada do alexandrino e apo- esia portuguesa de modo geral. No prefácio à segunda edição de seu livro Oaristos (1899), nove anos após a primeira edição, Castro considera que seu projeto foi bem-sucedido: O efeito da minha tentativa excedeu em amplitude e rapidez os cálculos que eu próprio tinha deitado. Quase todos os meus camaradas, novos e velhos, alguns no galarim, tomaram pelo caminho que eu desbravara. A mobilização da cesura nos alexandrinos, e a dos acentos clássicos no decassílabo, o esmero no emprego das rimas, a escolha rigorosa dos epítetos, o alargamento do vocabulário, a restauração dos moldes arcaicos, o verso livre, a aliteração: – todas essas ino- vações, iniciadas nos Oaristos e continuadas depois nas Horas, são hoje formas correntes na poética nacional, que, evidentemente, saiu, por via delas, da paralisia que a entrevara. (CASTRO, 1927, p. 14) No início do século XX, então, o alexandrino já estava se libertando de sua acentuação fixa na 6ª sílaba, entretanto, como podemos perceber com a leitura da obra de Eugênio de Castro, a princípio, a grande novidade acentual era o dodecassílabo trimétri- co, também chamado de alexandrino romântico, com acentuação 4-8-12. 129 tradução e Criação: entrelaçamentos Mais tarde, esse alexandrino, ou antes, esse dodecassílabo será largamente empregado na tradução de poesia latina e grega, no Brasil, principalmente para transpor o hexâmetro datílico: como João Angelo da Silva Neto, com Catulo (1996); Haroldo de Campos, com Homero (2002); Raimundo de Carvalho (2010), com Ovídio; Brunno Vieira, com Lucano (2011); Fábio Cairolli, com Marcial (2014), entre outros.49 E a maior inovação que veremos aí, no decurso do século XX e em sua apropriação por tradutores brasileiros, junto com a opção do trimétrico, é desobrigação da sinalefa na 7ª sílaba quando há acentuação forte na 6ª. Seguindo mais ou menos esse caminho faço aqui uma proposta heteróclita de uso dos dodecassílabos: aceitando mais acentuações irregulares para recriar o verso dramático da comédia romana. Assim, além das disposições rítmicas prevalentes como 6-12 (com ou sem cesura) e 4-8-12, adoto as pouco ortodoxas possibilidades de 5-7-12 (em 16 versos), 5-8-12 (em 11 versos), 4-7-12 (em 8 versos) e 5-9-12 (em cinco versos). Essa proposta nasceu mais de uma necessidade da própria dicção, e menos de um projeto pré-definido. Contudo, satis- fez uma condição muito feliz. Essas quatro variações de acentuação interna do dodecassílabo por mais irregulares que pareçam guardam entre si uma característica em comum: todas possibilitam que se crie, em pelo menos um dos hemistíquios que surgem, uma redondilha, ou maior, ou menor. E, se observarmos com cuidado, isso é o mesmo que ocorre quando aceitamos a acentuação forte na 6ª sílaba sem sinalefa na 7ª, pois, caso haja fim de algum bloco sintático nessa 7ª posição, na verdade, cria-se uma redondilha menor no segundo hemistíquio. Em todas as acentuações, sejam clássicas, românticas ou irre- gulares, toda vez que se aceita alguma cesura grave sem sinalefa, pode-se evidenciar uma redondilha. E isso para traduzir o verso do teatro plautino, a meu ver, é muito funcional. Destaco alguns versos (com cesura grave e sem sinalefa) da tradução para tornar mais clara essa observação: 49 Carvalho (2005), com Virgílio, as Bucólicas, utiliza o alexandrino clássico. Sobre outros experimentos de tradução em dodecassílabos, ver Alvarez (2017). 130 tradução e Criação: entrelaçamentos (A) 6-12: redondilha menor no 2º hemistíquio O Aquiles de Aristarco ‖ me apraz relembrar (v. 1) “É mister que ouçam todos” ‖ as leis que promovo: (v. 16) (B) 4-8-12: redondilha maior no 2º hemistíquio riam, controlem ‖ o tinir da linda voz (v. 33) por uma delas, ‖ sem saber que é sua parenta (v. 97) (C) 5-7-12: redondilha menor no 1º hemistíquio nenhum lanterninha ‖ fique perambulando (v. 19) se um pouco descuidam ‖ quando volta o senhor; (v. 27) (D) 5-8-12: redondilha menor no 1º hemistíquio cuidem dos pequenos ‖ em casa, não aqui (v. 29) desapareceram, ‖ com a ama, de Magara (v. 86) (E) 4-7-12: redondilha maior no 2º hemistíquio servos não sentam, ‖ o assento é do cidadão, (v. 23) menino ainda ‖ de sete anos em Cartago, (v. 66) (F) 5-9-12: redondilha menor no 1º hemistíquio Um certo soldado ‖ se apaixona e lhe apraz (v. 102) No caso de cesura grave na 7ª posição, um verso de acentuação 4-7-12 também denota uma redondilha no 1º hemistíquio: (G) 4-7-12: redondilha maior no 1º hemistíquio Cartaginês, Karchedónios ‖ se chama, em grego, (v. 53) 131 tradução e Criação: entrelaçamentos E, num caso especial, quando há cesura aguda nessa 7ª posição do 4-7-12, criam-se duas redondilhas:50 (H) 4-7-12: redondilha maior no 1º hemistíquio e menor no 2º aqui as varas de pau... ‖ e em casa as correntes, (v. 26) Obviamente, além dessas possibilidades menos comuns de se ouvir uma redondilha aqui ou acolá, os dodecassílabos quase sempre sustentam um ritmo fundamentalmente iâmbico, com preferência de acentuação em posições pares. A mistura de ritmos, acentuações e possibilidades menos comuns resumem minha intenção de emular os invariavelmente variáveis senários iâmbicos de Plauto.51 Como nota prosódica, saliento que, na maioria das vezes, busquei a sinérese de ditongos crescentes, como em: anunciador (11), atuando (20), sua mente (45), sua parenta (92), Anactório, onde (93), sua concubina (103) e suas filhas (122); bem como respeitei ao máximo os hiatos intervocabulares, como: vivo, |o outro (61), que é |o (84), sabe: é |um (113), pra cá |e achará| hoje aqui (121). Aféreses, síncopes, ectlipses e apócopes são utilizadas quando necessário, a fim de manter o ritmo do verso. 5.3 AS RIMAS A utilização das rimas é assaz o recurso formal mais discutível. Em latim, como pode ser visto no texto mais abaixo, não há a utili- zação frequente de rimas. Poetas antigos conheceram um recurso semelhante, o homeoteleuto, mas não se valiam dele sistematica- mente em finais de verso. Fato é que o texto de Plauto não possui nada parecido com o que chamamos hoje de rima, mesmo que esse mesmo texto possuísse um elaborado repertório de repetições fô- nicas distribuídas pelos versos.52 50 O mesmo aconteceria com a cesura aguda na 5ª posição, em 5-9-12, criando duas redondilhas. Não há exemplos nos versos da tradução. 51 Não é escopo nem há espaço para se discutir aqui o verso de Plauto em latim, assim, para um detalhado tratamento sobre o senário iâmbico, verso utilizado nos prólogos, ver Alvarez (2016). 52 Sobre rimas e repetições fônicas na poesia latina, ver Guggenheimer (1972). 132 tradução e Criação: entrelaçamentos Busquei as rimas, como justificado anteriormente, por influ- ência da tradição teatral de língua portuguesa e de traduções do início do século XX do teatro em verso de língua estrangeira. Algo parecido fez Erich Segal na sua consagrada tradução para o inglês do Miles Gloriosus (The Braggart Soldier, ou “O Soldado Fanfarrão”) e, mais especialmente, no seu prólogo dos Menaechmi (The Brothers Menaechmus, ou “Os Menecmos”). O tradutor do inglês explica: “eu adicionei-as [as rimas] onde elas poderiam ter sido utilizadas em situações análogas no palco de língua inglesa. Os prólogos são um óbvio exemplo” (PLAUTUS, 1996, p. xli, minha tradução). Por fim, destaco que as rimas buscaram ser variadas numa larga medida, de soantes perfeitas até toantes incompletas. Assim, “sagaz” rima com “em paz” nos versos 7 e 8, bem como “novo” rima com “povo”, nos versos 11 e 12. Soantes perfeitas. Nem ricas nem pobres. Uma rima bem “classe média”, digamos. Essas foram muitas. Também ocorrem algumas soantes imperfeitas, como “aqui/ guris” (29-30), “besteira/besteiras” (81-82) e “concubina/meninas” (103-104). Na outra ponta, exploro com recorrência as toantes. Toantes completas como: “tranquilo/comido” (56-57), “vida/grita” (13-14), “maridos/festivos” (35-36), “alto/palco” (18-19), “raptado/Cartago” (65/66), “grego/segredo” (53-53ª),“moeda/leva” (71-72), “ainda/ tinha” (83-84), “escrava/indaga” (107-108), e “filho/tio” (120-121). Toantes imperfeitas, com sobra de fonemas consonantais ou semi- vocálicos, ora na sílaba tônica da rima, como: “casa/causa” (9-10), e “pouco/Lobo” (91-92); ora na sílaba átona, no caso de: “cabras/ caladas” (31-32), “morto/todos” (61-62), “Cartago/algo” (79-80), e “cativa/família” (109-110). Evitando a monotonia rímica, surgem ainda toantes incompletas, sem recorrência fônica na parte átona da rima, como em: “cartagineses/riquezas” (59-60), “quatro/Maga- ra” (85-86), “filha/finge” (111-112), “tranquilo/filhas” (123-124), e “velho/mulheres” (72-73), em que ainda há a repetição do fonema aproximante /ʎ/. 133 tradução e Criação: entrelaçamentos 5.4 MAIS SOBRE O TÍTULO (VV. 53-54) Que Poenulus se torna o “Punicozinho” nessa tradução já sa- bemos, mas vale adicionar mais uma nota sobre o título da peça, o qual, como mencionei antes, nem sabemos ao certo se é esse mesmo. Em grego, a peça que serve para a adaptação de Plauto se chamava Karchedónios, que em grego significa “o cartaginês”. Isso o próprio texto dá testemunha no v. 53. Contudo, o primeiro problema emerge. O texto não informa o autor dessa comédia, e temos notícia de dois Karchedónios na comédia grega do século III a.C.: uma de Menandro e outra de Aléxis. Bom, esse seria o menor dos problemas e o professor Wolfgang de Melo demonstra que há alguma evidência de que o “Cartaginês” grego de que o prólogo trata seja o de Aléxis (PLAUTUS, 2012, p. 3).53 Mas esse não é o único problema da passagem, pois, ao que parece, há uma lacuna textual nos manuscritos após esse v. 53: 53 Καρχηδόνιος uocatur haec comoedia; 53ª *** 54 latine Plautus patruos pultiphagonides. É possível que nesse texto lacunar houvesse menção ao au- tor grego, mas dificilmente saberemos. Contudo, há uma outra informação que parece ter sido mencionada nessa passagem que podemos ter perdido: o título da peça em latim que Plauto deu. Sim, conhecemos a peça por seu título Poenulus, mas não há nenhuma ocorrência dessa palavra no texto do prólogo, nem em outro lugar da peça. Esse título vem da tradição manuscrita, que remonta, no máximo, ao século II d.C., portanto quase 400 anos depois das encenações de Plauto. A confusão é tanta que diversos editores e tradutores modernos consideram que o título da peça seria, na verdade, “O tio” (Patruos), por causa do v. 54. Vejamos. Se não considerarmos a lacuna entre os versos 53 e 54, temos o 53 Gratwick (1968) discute o título e os prováveis modelos gregos do Poenulus. 134 tradução e Criação: entrelaçamentos seguinte texto: 53 Καρχηδόνιος uocatur haec comoedia; 54 latine Plautus patruos pultiphagonides. 53 Karchedónios se chama esta comédia; 54 em latim, Plauto, o comedor de minguau, [chama de] “O tio”. Pultiphagonides configura-se como um nome cômico inventado por Plauto, a partir de puls, pultis (de πόλτος), minguau, e φάγ- (fág-), raiz do verbo que significa “comer”, mais o sufixo grego formador de nomes próprios -ιδες (-ides). Algo como “comedor de minguau” (ou “Comeminguauson”, brincando com o sufixo “-son”, formador de nomes próprios). Plauto parece fazer graça com uma prática popular dos campesinos da época de comer um tipo de “minguau” de aveia. Porém, não há certeza de que o nome pultiphagonides se refira a Plauto (Plautus), como sugere a tradução acima, porque sintaticamente poderia estar relacionado a patruos (tio). Nesse caso, a brincadeira seria com um costume dos cartagineses de comer também um tipo de “minguau” de aveia (cf. Catão, Agr. 85), e a tradução poderia ser: “em latim, Plauto, [chama de] “O tio comedor de minguau.” Melo, então, argumenta, a partir da conjectura de Gepert, que há uma lacuna depois do verso 53, onde de fato apa- receria o título da peça como traduzido por Plauto, e afirma que no v. 54 tanto patruos quanto pultiphagonides se referem a Plautus. Assim, aceitando a lacuna e a concordância de “tio” e “comedor de minguau” com Plauto, teríamos: 53 Karchedónios se chama esta comédia; 53ª *** 54 em latim, o tio Plauto comedor de minguau. A lacuna então sugere alguma necessidade de ser preenchida. O texto como traduzido acima não teria sentido completo. Para concluir, volto ao início deste capítulo e proponho unir a imagina- 135 tradução e Criação: entrelaçamentos ção com a especulação filológica, ambas incertas e incompletas, mas ainda as únicas ferramentas de que dispomos. Se a tradição manuscrita pode ter aberto uma lacuna de um verso entre os versos 53 e 54, me pergunto por que a tradução não poderia reimaginar dois versos aí. Assim, numa proposta imaginativo-filológica, adi- ciono um verso para dizer o que Plauto pode ter querido dizer: 53 Cartaginês, Karchedónios se chama, em grego, 53a a comédia: não é isso nenhum segredo!, 53b mas quis que fosse Poenulus, “Punicozinho”, 54 Titio Plauto, o Papa-Minguau, em latim. 6. TEXTO EM LATIM POENVLVS PROLOGVS Achillem Aristarchi mihi commentari lubet: ind’ mihi principium capiam, ex ea tragoedia, “sileteque et tacete atque animum aduortite, audire iubet uos imperator” ... histricus, 5 bonoque ut animo sedeant in subselliis et qui esurientes et qui saturi uenerint: qui edistis, multo fecistis sapientius, qui non edistis, saturi fite fabulis; nam quoi paratum est quod edit, nostra gratia 10 nimia est stultitia sessum impransum incedere. “exsurge, praeco, fac populo audientiam.” iam dudum exspecto si tuom officium scias: exerce uocem quam per uiuisque et clues. nam nisi clamabis, tacitum te obrepet fames. 15 age nunc reside, duplicem ut mercedem feras. “bonum factum est, edicta ut seruetis mea.” scortum exoletum ne quis in proscaenio sedeat, neu lictor uerbum aut uirgae muttiant, 136 tradução e Criação: entrelaçamentos neu dissignator praeter os obambulet 20 neu sessum ducat, dum histrio in scaena siet. diu qui domi otiosi dormierunt, decet animo aequo nunc stent uel dormire temperent. serui ne opsideant, liberis ut sit locus, uel aes pro capite dent; si id facere non queunt, 25 domum abeant, uitent ancipiti infortunio, ne et hic uarientur uirgis et loris domi, si minus curassint, quom eri reueniant domum. nutrices pueros infantis minutulos domi ut procurent neue spectatum afferant, 30 ne et ipsae sitiant et pueri pereant fame neue esurientes hic quasi haedi obuagiant. matronae tacitae spectent, tacitae rideant, canora hic uoce sua tinnire temperent, domum sermones fabulandi conferant, 35 ne et hic uiris sint et domi molestiae. quodque ad ludorum curatores attinet, ne palma detur quoiquam artifici iniuria neue ambitionis causa extrudantur foras, quo deteriores anteponantur bonis. 40 et hoc quoque etiam quod paene oblitus fui: dum ludi fiunt, in popinam, pedisequi, irruptionem facite; nunc dum occasio est, nunc dum scriblitae aestuant, occurrite! haec quae imperata sunt pro imperio histrico, 45 bonum hercle factum pro se quisque ut meminerit. ad argumentum nunc uicissatim uolo remigrare, ut aeque mecum sitis gnarures. eius nunc regiones, limites, confinia determinabo: ei rei ego finitor factus sum: 50 sed nisi molestum est, nomen dare uobis uolo comoediai; sin odio est, dicam tamen, siquidem licebit per illos quibus est in manu. 53 Καρχηδόνιος uocatur haec comoedia; 53a *** latine Plautus patruos pultiphagonides. 137 tradução e Criação: entrelaçamentos 55 nomen iam habetis. nunc rationes ceteras accipite; nam argumentum hoc hic censebitur: locus argumento est suom sibi proscaenium, uos iuratores estis. quaeso, operam date. Carthaginienses fratres patrueles duo 60 fuere, summo genere et summis ditiis; eorum alter uiuit, alter est emortuos. propterea apud uos dico confidentius, quia mi pollictor dixit qui eum pollinxerat. sed illi seni qui mortuost, <ei> filius 65 unicus qui fuerat ab diuitiis a patre puer septuennis surrupitur Carthagine, sexennio prius quidem quam moritur pater. quoniam periisse sibiuidet gnatum unicum, conicitur ipse in morbum ex aegritudine: 70 facit illum heredem fratrem patruelem suom, ipse abit ad Accheruntem sine uiatico. ill’ qui surrupuit puerum Calydonem auehit, uendit eum domino hic diuiti quoidam seni, cupienti liberorum, osori mulierum. 75 emit hospitalem is filium imprudens senex puerum illum eumque adoptat sibi pro filio eumque heredem fecit quom ipse obiit diem. is illic adulescens habitat in illisce aedibus. reuortor rursus denuo Carthaginem: 80 si quid mandare uoltis aut curarier, argentum nisi qui dederit, nugas egerit; uerum qui dederit, magis maiores [nugas] egerit. sed illi patruo huius qui uiuit senex, Carthaginiensi duae fuere filiae, 85 altera quinquennis, altera quadrimula: cum nutrice una periere a Magaribus. eas qui surrupuit in Anactorium deuehit, uendit eas omnis, et nutricem et uirgines, praesenti argento homini, si leno est homo, 90 quantum hominum terra sustinet sacerrumo. uosmet nunc facite coniecturam ceterum 138 tradução e Criação: entrelaçamentos quid id sit hominis quoi Lyco nomen siet. is ex Anactorio, ubi prius habitauerat, huc commigrauit in Calydonem hau diu, 95 sui quaesti causa. is in illis habitat aedibus. earum hic adulescens alteram efflictim perit, suam sibi cognatam, imprudens, nec scit quae siet neque eam umquam tetigit, ita eum leno macerat; nec quicquam cum ea fecit etiamnum stupri 100 nec duxit umquam, neque ille uoluit mittere: quia amare cernit, tangere hominem uolt bolo. illam minorem in concubinatum sibi uolt emere miles quidam qui illam deperit. sed pater illarum Poenus, postquam eas perdidit, 105 mari te<rraque> usquequaque quaeritat. ubi quamque in urbem est ingressus, ilico omnis meretrices, ubi quisque habitant, inuenit; dat aurum, ducit noctem, rogitat postibi und’ sit, quoiatis, captane an surrupta sit, 110 quo genere gnata, qui parentes fuerint. ita docte atque astu filias quaerit suas. et is omnis linguas scit, sed dissimulat sciens se scire: Poenus plane est. quid uerbis opust? is heri huc in portum naui uenit uesperi, 115 pater harunc; idem huic patruos adulescentulo est: iamne hoc tenetis? si tenetis, ducite; caue dirumpatis, quaeso, sinite transigi. ehem, paene oblitus sum relicuom dicere. ille qui adoptauit hunc sibi pro filio, 120 is illi Poeno huius patruo hospes fuit. [is hodie huc ueniet reperietque hic filias et hunc sui fratris filium, ut quidem didici ego. ego ibo, ornabor; uos aequo animo noscite.] hic qui hodie ueniet reperiet suas filias 125 et hunc sui fratris filium. dehinc ceterum ualete, adeste. ibo, alius nunc fieri uolo: quod restat, restant alii qui faciant palam. ualete atque adiuuate ut uos seruet Salus. 139 tradução e Criação: entrelaçamentos REFERÊNCIAS ALVAREZ, B. B. Senário iâmbico em Plauto: efeitos em Persa e Estico. Campinas: Unicamp, 2016. Tese (Doutorado), Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016. ALVAREZ, B. B. Tradução poética de poesia latina: exercícios e práticas. In: SILVA, A.C.; et al. (orgs.). As fronteiras da Antiguidade Clássica e da cultura oriental: Imanências. Rio de Janeiro: Metáfora, v. 1, p. 318-331, 2017. ASSIS, M. de. Os deuses de casaca. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1866. BEACHAM, R. C. The Roman theatre and its audience. 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