Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Uma visão histórica do Design de Interiores U m a v is ã o h is tó ri c a d o D e s ig n d e I n te ri o re s EDIÇÃO ON-LINE DISPONIBILIZADA EM 2020 APENAS PARA ASSOCIADOS ABD. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dantas, Cristina Brasil porta adentro: uma visão histórica do design de interiores/ Cristina Dantas, Roberto Negrete. São Paulo: C4, 2015. ISBN: 978-85-99353-47-9 1. ABD – Associação Brasileira de Designers de Interiores 2. Arquitetura 3. Arquitetura – História 4. Design de interiores 5. Design de interiores – Brasil I. Negrete, Roberto. II. Título. 15-08837 CDD-747.0981 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Design de interiores: História 747.0981 Impresso no Brasil em 2015 © 2015 ABD Direitos reservados a Associação Brasileira de Designers de Interiores. www.abd.org.br BRASIL PORTA ADENTRO Uma visão histórica do Design de Interiores 4 - - - - Silvana Carminati Heckman Bacharel em Design de Interiores e Presidente da ABD Estamos construindo a história do design de interiores no Brasil. Embora a ABD – Associação Brasileira de Designers de Interiores – tenha chegado à idade madura, comemorando 40 anos em 2020, estamos apenas no começo de uma jornada que envolve diferentes gerações de designers de interiores – do passado ao futuro. E, para desenvolver uma narrativa que faça sentido no tempo em que vivemos e naquele que está por vir, precisamos analisar, questionar e entender o passado. Pois é o conhecimento histórico que nos ajuda a construir a nossa trajetória. Por isso convidamos você a conhecer os personagens e as histórias no “Brasil Porta Adentro” nesta edição on-line, feita exclusivamente para nossos associados, em comemoração aos 40 anos da ABD. Assim como hoje passamos por transformações profundas que impactarão diretamente nossa forma de viver e morar no amanhã, os últimos 100 anos tiveram influência na atual sociedade brasileira. O livro justamente propõe essa análise pelo prisma do designer de interiores. Fotos, curiosidades e depoimentos são as ferramentas que o ajudam a desvendar os primórdios da nossa profissão. Como não poderia deixar de ser em função das nossas origens, o jeito de viver e morar brasileiro foi diretamente influenciado pela cultura europeia, considerando ainda as diferentes influências que a sedimentou no país a partir do século 19. Os profissionais imigrantes demonstraram a força criativa através de novas possibilidades, como a admiração da arte local, a descoberta da natureza brasileira, a valorização do conforto, a praticidade e beleza da matéria-prima nacional. Na busca pela própria identidade, neste tempo, era fundamental ascender profissionais dispostos a estimular, valorizar e dar visibilidade à profissão. E é neste contexto que chegamos à década de 80, ano de fundação da ABD, que conta com um capítulo exclusivo e aponta para um grande futuro que está sendo escrito pelos novos profissionais e talentos atuais. Nosso legado se edifica a partir do olhar sobre o passado, a atuação no presente e a construção de um futuro que reconhece e valoriza cada vez mais o talento dos designers de interiores brasileiros. A criatividade dos brasileiros é reconhecida pelos mais diversos aspectos mundo afora e nosso design de interiores é visto como um dos melhores do mundo. Nosso trabalho é motivo de orgulho, mas sabemos que há muito a ser feito. Te convido a conhecer a acompanhar semanalmente a história do design de interiores no Brasil. Vamos juntos em mais uma jornada! Boa leitura! Este livro foi possível graças aos profissionais e aos familiares das pessoas que dão corpo à história aqui contada. Com sua generosi- dade, compartilharam conosco seus conhecimentos: Adélia Borges Ana Elisa Sestini Andréa Liberal Angela Borsoi Anna Affonso dos Santos Antonio Carlos Britto Arnaldo Danemberg Attilio Baschera Augusto Tiezzi Carolina Szabó Clarisse Reade Claudio Senna Conrado Malzone Fabrizio Rollo Felipe Dinucci Fiore Ambrosio Gilberto Terra Graça Bueno Gregorio Kramer Ideo Bava Jorge Hue Juliana Benfatti João Mansur João Pedrosa Lena Strumpf Márcio Roiter Maria Cândida Coutinho Marques Maria Izabel de Souza Franco Maria Liberal Marlene Tiezzi Piedade Grinberg Roberto Hirth Tibe Vieira da Silva Toninho Noronha Toninho Mariutti Valeria Ruchti Vera Bardella Ugo di Pace Yolanda Figueiredo 6 Coordenação editorial Cris Correa Organização/Curadoria Roberto Negrete Textos Cristina Dantas Pesquisa Cristina Dantas Roberto Negrete Simone Raitzik Pesquisa de imagens Lucy Amicón Roberto Negrete Revisão de textos Noemi Zein Telles Projeto gráfico Márcio Mettig Rocha Fotos capa Acervo Cristina Jafet Romulo Fialdini Tratamento de imagens Willy Kiyoshi Agradecimentos Alexandre Ferreira Ana Eliza Roder França Auresnede Pires Stephan Baba Vacaro Clarissa Schneider Cristina Jafet Cristina Scott Eduardo Pozella Elenice Ferrari Fernando Piva Flávia Chueri Guillermo Bindon Henrique Liberal Cardoso Hernan Tedin Ina Ouang João Braga Livia Pedreira Luciana Lorenzi de Carvalho Marcia Rosetto Marco do Carmo Maria Luiza Tocci Maria di Pace Marina Pereira de Almeida Natan Tiago Batista Serzedello Nazaré Rezende Roberto Dimbério Romulo Fialdini Simone Quintas Stela Vahanian Tomás Senna Valeria Ruchti Vilma Meirelles Biblioteca da FAU-USP Biblioteca Municipal Mário de Andrade Editora Abril Editora Globo Fundação Cultural Ema Gordon Klabin Futon Company Instituto John Graz Solar Grandjean de Montigny – PUC-RIO Prefácio Prólogo Os precursores A decoração a bordo dos paquebots Primeiros Modernistas Dinucci, o criador singular Decoradores, afinal Um novo olhar chega da Europa A decoração decola O Iade faz escola Estrelas de uma profissão consolidada A caminho de uma nova etapa 9 13 17 35 43 63 87 115 139 181 187 217 9 Para comemorar os 35 anos de sua fundação, a ABD, Associação Brasileira de Designers de Interiores, espanou a poeira de arquivos e escutou pessoas. Voltou no tempo, abrindo portas, mas bateu antes de entrar, reverenciando personagens e obras que foram a “pedra fundamental“ da profissão de Designer de Interiores no Brasil. O resultado dessa busca é mais que um livro histórico. O “Brasil Porta Adentro” é um valioso presente oferecido pela ABD aos desig- ners de interiores. Em suas páginas, estão escondidos verdadeiros tesouros em for- ma de fotos antigas, depoimentos e fatos curiosos que marcaram a passagem dos últimos 100 anos do design brasileiro. Ao folhear cada página, o leitor vai entender por que a profissão de designer de interiores nasceu de um abraço entre diversas áreas, uma das características dessa profissão que se mantém, e se amplia, acompanhando as mudanças da sociedade. Uma leitura atenta perceberá que, a partir do século 19, a influên- cia dos profissionais imigrantes direcionou o olhar da sociedade bra- sileira para o jeito europeu de morar e viver. O Brasil suspirava pelo deslumbrante design do além-mar! Entre um suspiro e outro, a profissão bebeu em fontes diversas. A cada década, a força criativa se movia, abrindo novas possibilidades. A semana de arte moderna, em 1922, mostrou que ser moderno era valorizar a arte nacional. O estranho era pura arte. O design des- cobriu a beleza, o conforto e a praticidade da matéria prima nacional. Algo novo começou a despontar. Na busca de uma identidade própria, era fundamental agregar profissionais dispostos a estimular, valorizar e dar visibilidade à pro- fissão. Foi nesse cenário que, em 1980, surgiu a ABD. Sua importância está descrita em um dos capítulos desse livro. Que a leitura deste capítulo, em especial, mobilize forças para coroar a vitória mais im- portante de toda essa trajetória: a justa e merecida regulamentação da profissão de Designer de Interiores. Hoje, mais de 80 mil profissionais atuam em todo o Brasil. Cen- tenasde cursos de design formam novos profissionais e milhares de jovens talentosos desejam atuar nessa área. A ABD trabalha para que essa nova geração chegue ao mercado de trabalho como profissio- nais reconhecidos de fato, e de direito. Antes de passar para a próxima página, a ABD deseja que os designers brasileiros continuem usando a criatividade para promover harmonia, que jamais se cansem de misturar texturas, que teimem em levar funcionalidade, insistam em iluminar e dar novo significado ao feio, que abram portas para o impensável e janelas voltadas para o futuro. E quando a poeira da obra assentar, quando cada objeto estiver em seu lugar, que o designer não esqueça que todo esforço só terá valido à pena se o brilho dos seus próprios olhos se refletir no brilho dos olhos de seu cliente. Boa leitura! Renata Amaral Designer de Interiores e Presidente da ABD 11 Este livro contém, com certeza, esquecimentos e silêncios que espero podermos corrigir numa segunda edição. Aqui, deixo o meu mais sincero pedido de desculpas a quem dei- xei de citar. Fico à disposição para ouvir novas histórias e um dia trazê-las ao presente fazendo, assim, justiça. Após décadas de embates, um dia engenheiros tornaram-se ar- quitetos. Outras tantas décadas levaram para que o artesão orgulho- so e conhecedor do modo de morar da sua época, pudesse expres- sar o seu pensamento e criação estampando a sua assinatura. No meio do caminho, quase andando em paralelo, arquitetos, en- genheiros e até geniais senhoras de sociedade inventaram uma pro- fissão nova e necessária. Esta é a trajetória do design de interiores no país, narrada desde o início até o momento em que a sociedade en- tende que, sem ele, a alma fica sem um cenário apropriado para viver. E é uma história que se expressa nomeando quem fez, quem construiu e quem deixou como legado o que somos no início do sé- culo XXI. Outra história, escrita no futuro, haverá de contar a evolução. Hoje, somente falaremos do princípio. Terra fértil, mãe gentil, que dá tapas e afagos, o Brasil recebeu muitos estrangeiros, que sem perceber deixaram de sê-los ao de- sembarcar. Como eu, muitos chegaram de fora e nunca mais pensa- ram em outra pátria. Como eles, sou grato. Imensamente grato. Roberto Negrete Designer de Interiores É para mim um orgulho e uma alegria ter a chance de levar este projeto adiante e apresentar um bem tão belo e precioso como o trabalho de todos os criadores que, por estas páginas, irão passar. Produzir o livro foi muito mais difícil do que sonhá-lo. Ao fazê-lo me deparei com dificuldades e limitações próprias da época. Entretanto, a que mais me afetou, foi constatar que, apesar do grande esforço empreendido, não seria possível obter imagens de maior tamanho, ou qualidade, para ilustrar essa história. Devo aqui agradecer à paciência dos envolvidos. A paixão da Cristina Dantas, a paciência de Lucy Amicón, a experiência da Cris Correa e a visão de Renata Amaral. Devo agradecer também a todos os entrevistados, colaborado- res, jornalistas e designers que ajudaram a fazer este livro materiali- zar-se. Livro que nasce para ser parte da história. Sei que pode parecer pretensioso, mas é a primeira vez que ten- tamos armar uma narrativa que ilustre como se formou a nossa pro- fissão e quem foram os muitos gênios, esquecidos por tantos, que mudaram o perfil das casas do nosso país. E é, para mim, uma ale- gria saber que com cada capítulo poderíamos escrever um novo livro. Foi preciso construir esta história para tê-la. Agora, espero que ela se multiplique. Lembremos que nosso passado é riquíssimo e que sempre devemos olhar para ele para inventar o futuro. ABD-3.indd 12 06/10/15 19:46 13 O barulho que aqueles homens produziam podia não ser dos mais agradáveis, mas o resultado valeria a pena. Vindos de Portugal especialmente para a tarefa, eles formavam uma classe profissional de respeito na Europa – os calceteiros – e agora exibiam seu ofício junto a uma das novas avenidas do Rio de Janeiro, batizada de Atlân- tica. O século 20 fazia sua estreia quando o grupo aplicava uma téc- nica apurada ao intercalar basalto (pedras pretas) e calcita (pedras brancas) sobre a areia, sem nada que lhes servisse de amálgama, deixando o passeio firme, porém livre para absorver a água das chu- vas. As ondas desenhadas na calçada, timidamente sinuosas, seriam redefinidas décadas mais tarde, em 1970, pelo arquiteto e paisagista Roberto Burle Marx. Não teria sido apenas por capricho que o prefeito Pereira Passos importara de Portugal, em 1906, tanto as pedras quanto os calcetei- ros, oferecendo ao Rio de Janeiro, entre outras obras e muito mais barulho, a famosa orla de Copacabana. Nem mesmo a capital da Re- pública havia formado muitas frentes de mão de obra especializada. Não o suficiente, ao menos, para as veleidades de Pereira Passos, que antevia um Rio mais cosmopolita, com avenidas largas e edifícios imponentes, ao estilo do que o Barão Haussmann havia talhado na Paris do século 19. Eram ainda incipientes as iniciativas no sentido de formar traba- lhadores qualificados, mas os liceus já se inscreviam na história do país, o Rio de Janeiro aparecendo como um dos precursores com a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, criada em 1828. Porém, a instituição que realmente mudaria a face do ensino e da formação de mão de obra surgiria na São Paulo de 1873. As levas de imigrantes que aportavam no Brasil, na segunda me- tade do século 19, depois que a lei Eusébio de Queirós, em 1850, proibiu a vinda de escravos, chegaram a ser subvencionadas pelo governo. Não por acaso. Elas tinham como destino as lavouras de café. Depois de exaurir as terras do Rio de Janeiro e do Vale do Pa- raíba, as sementes encontram solo fértil e técnicas mais depuradas no oeste paulista. O café viria para enriquecer o país e, de forma mais localizada, os fazendeiros de São Paulo. Com dinheiro e sem estirpe, tornavam-se barões por meio da compra de títulos de nobreza. E divi- diam o tempo entre as fazendas e os novos casarões que, a partir dos anos 1900, traçariam um itinerário preciso do dinheiro pelos bairros de São Paulo, começando na região dos Campos Elíseos, galgando a avenida Paulista e descendo novamente para povoar outro símbolo da opulência paulistana: a avenida Brasil. Suas casas, batizadas pa- lacetes pela população local, precisariam de alguém que ordenasse seus vastos espaços. Em 1900, o censo acusava 17 milhões de habitantes no Brasil. E a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fundada em 1827, já se consolidara como uma das instituições mais tradicionais de São Paulo, capaz de agremiar em seus quadros a intelectualidade da época. Muito natural, portanto, que ali fosse gestada a ideia de uma escola para a formação básica da população. E de mão de obra – condição essencial para que, poucas décadas mais tarde, a figura do decorador viesse a se firmar. “Em 1873, a vida intelectual e política da cidade de São Paulo ainda girava, quase que exclusivamente, em torno da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Em dezembro desse ano, um grupo com- posto por 131 eminentes cidadãos paulistas reuniu-se numa sala da academia e, sob a liderança de Conselheiro Carlos Leôncio da Silva Carvalho, fundou a Sociedade Propagadora de Instrução Popular, com o propósito de ‘formar o bom e consciente cidadão, sem distinção de classes’. Nesse tempo, as elites consideravam a ignorância como princípio básico da anarquia. Era preciso lutar contra ela”. 1 ABD-3.indd 13 06/10/15 19:46 14 Depois de ser rebatizada com vários nomes e se instalar em diver- sas sedes, a Sociedade Propagadora acabaria conhecida pelo título que mantém até hoje: Liceu de Artes e Ofícios. Ela absorveria, além de brasileiros, os mais escolarizados entre os imigrantes europeus que continuavam chegando aos magotes e, ao longo dos anos, te- riam influência direta na formação de bons marceneiros. Na Europa, o trabalhomanual, especialmente com a madeira, era transmitido de geração para geração, um conhecimento de séculos que chegou ao Brasil no bojo dos navios. O Liceu seria o lugar ideal para esses artesãos. Além da formação educacional básica, os alunos recebiam o instrumental para saírem especializados, por exemplo, em marcenaria e fundição artística. Me- sas, cadeiras, escadas e bibliotecas inteiras forjadas no Liceu de Ar- tes e Ofícios ainda são encontradas, em excelente forma, nas casas de quem soube dar valor a trabalho tão precioso – quase sempre, ré- plicas do que se fazia na Europa. O escopo das especialidades ofere- cidas aumentava progressivamente, a despeito das sucessivas crises financeiras pelas quais a instituição passou. Mas um novo cenário já se delineava. E incluiria, no rol das atribuições daquele que viria a ser o decorador, profissionais de outras áreas, aparentemente distintas, mas com requisitos em comum: criatividade, noções de composição, cor, espaço, proporção e, na medida do possível, um acúmulo de conhecimentos alinhados com o que se produzia no mundo. Artistas plásticos, desenhistas e até carnavalescos acabariam encontrando um denominador comum com marceneiros, gesseiros e ferreiros que tinham nas cidades, agora mais adensadas, maiores possibilidades de trabalho. Era o resultado da industrialização, que induziu parte da população a deixar as zonas rurais para tomar o rumo das futuras metrópoles. Os centros urbanos incorporavam as comodidades com as quais estamos tão acostumados que já nem nos lembramos que, um dia, alguém se debruçou sobre uma mesa à luz de velas para que elas nos fossem dadas. Na passagem do século 19 para o 20, paulatina- mente, uma revolução se deu no interior das moradias: a chegada da luz elétrica, que logo dotaria os tetos de mais e melhores lustres do que os usados com o fornecimento de gás, e a água encanada, reconfigurando cozinhas e, especialmente, banheiros. As inovações aos poucos se democratizavam, mas não uma noção mais aprofun- dada de conforto. Sequer as classes mais abastadas tinham plena consciência desse conceito. O que os integrantes das camadas pri- vilegiadas importavam da Europa podia ser declinado em um subs- tantivo: o luxo. À vastidão das terras e aos generosos espaços das casas de fa- zenda, especialmente em São Paulo, faltavam cortinas, estofados e qualquer outro sinal do que hoje consideramos confortável. Sentava- se em cadeiras duras de espaldar reto, sem concessão alguma aos apelos do corpo – no caso das mulheres, já premido em espartilhos e excesso de tecidos. A madeira reinava absoluta, tanto nos móveis portugueses quanto nos que se produziam aqui. E que paraíso para os portugueses havia sido a Colônia. “Os oficiais da madeira, além do pau-brasil, a histórica novidade colorística do Quinhentos, encontraram uma infinidade de árvores que apelidaram de lei e outras de menor valia. (...) Lentamente foram se formando oficiais cortadores e serradores, escolhendo-se na profusão as madeiras mais apropriadas aos vários empregos, o precioso jaca- randá tomando logo posição de exceção, novo achado dos ebanistas europeus”. 2 Nesse relato, Pietro Maria Bardi conta que, em 1590, já era re- conhecido o “carpinteiro de móveis”, mas no século seguinte uma linha separaria o marceneiro – dedicado ao mobiliário, encarregado de dar forma a liteiras e cadeirinhas – e o carpinteiro, a quem eram destinados reparos nas casas e mesmo trabalhos da alçada de um engenheiro. Os chamados oficiais, termo usado para os profissionais nomeados pelas autoridades locais, compreendiam uma vasta gama de artesãos, do sapateiro ao ourives, mas contemplava apenas colo- nos e portugueses. Aos escravos não era concedido o título e, menos ainda, a profissão. Um ano antes que os calceteiros portugueses desembarcassem no Rio de Janeiro para agrupar suas pedras na orla de Copacabana, um novo habitante chegava à cidade, ainda sem saber que também ele mudaria o traçado da capital da República. Nascido em São Pau- lo, em 1880, Antonio Borsoi era um dos filhos de imigrantes italianos que cursara o Liceu de Artes e Ofícios, então dirigido pelo arquiteto Ramos de Azevedo. Talentoso, já em 1906 encontrou trabalho na Mar- cenaria Auler, no Rio de Janeiro. Não foram poucos e nem modestos os interiores saídos de sua prancheta. Embora vários desses estabe- lecimentos tenham sucumbido à sanha imobiliária, outros mantêm-se de pé, em pleno funcionamento, atraindo as pessoas para o requinte de seu traço. Talvez seu mais famoso legado esteja no número 32 da rua Gonçalves Dias, centro do Rio, endereço da Confeitaria Colombo, até hoje reduto concorrido de quem quer experimentar um chá das 5 com perfume Art Nouveau. Antonio Borsoi foi o responsável pelo mobiliário e pelo detalhamento das molduras dos espelhos do primei- ro andar da casa, erguida no final do século 19. Na rua da Carioca, outro marco de Borsoi continua de pé: o Cinema Iris. Mas boa parte de seu vastíssimo portfólio, que soma os interiores da loja de artigos masculinos Tour Eiffel, da Joalheria Bernacci e da Charutaria Pará, resta apenas na memória de pessoas próximas, de jornais da época e do acervo do Solar Grandjean de Montingy, instituto ligado à PUC do Rio de Janeiro. Por ocasião de uma mostra sobre o seu trabalho, organizada pelo Solar, foi lançado o catálogo Antonio Borsoi, dese- nhista, artesão e decorador, que registra seus preciosos desenhos e algumas de suas peculiaridades: ABD-3.indd 14 06/10/15 19:46 15 “Morava na Tijuca. Trabalhava em casa, sem horário fixo, especial- mente à noite. Fazia seus desenhos detalhados com a ponta sempre bem afiada de um lápis preto, e dizem que de calças de pijama, grava- ta e colete. Às vezes usava aquarela, e aproveitava qualquer papel que lhe caísse nas mãos. Tinha o hábito de trabalhar em vários desenhos ao mesmo tempo, deixando-os fixos em várias pranchas de madeira, que substituía na prancheta. Trabalhava muito e com gosto”. 3 Borsoi passaria também por outras marcenarias cariocas que, no início do século 20, alçaram status de referência de trabalho bem de- senhado e bem executado. Além de dedicar 18 anos à parceria com a Auler, Borsoi deixaria sua marca também na Laubisch-Hirsch. A madeira brasileira era um incentivo e tanto para que empresá- rios de visão enveredassem pelo universo do mobiliário, mesmo que dessem às espécies brasileiras formato tão europeu. Os estilos usa- dos na França e na Inglaterra eram preferência nacional. Para lhes dar corpo, usavam-se vinhático, cedro e jacarandá da Bahia, madeira nobre que acabaria por desaparecer das terras brasileiras. Desde o século 17, o Brasil abastecia com ela o mercado europeu e, predomi- nantemente, a Escandinávia. O Rio de Janeiro do princípio do século 20 contava com o trabalho de marcenarias de qualidade, da Casa Leandro Martins à Le Mobilier e à Maison Basttefeld. Mas a que arrebanhou mais funcionários e maior fama seria outra. Os 300 funcionários que ocupavam o prédio de seis andares dos números 81-87 da rua Riachuelo, no Rio, poderiam reconhecer Georg Hirsh pela fumaça exalada de seu inseparável charuto. Era um em- preendedor incansável ao lado do sócio Carlos Laubisch, ambos ale- mães. A marcenaria abriu as portas em 1914 e ostentou a chancela de maior estabelecimento do ramo no país até os anos 1940. Os mó- veis desenhados e executados na fábrica exibiam um selo metálico que comprovava a sua assinatura. Foi de suas dependências que saiu o criador do móvel moderno, Joaquim Tenreiro, desenhista da marcenaria em duas temporadas – como assistente do francês Mau- rice Nozières, na primeira, e já como titular, na segunda. Compunham o acervo da Laubisch-Hirsh itens como tapetes e outros acessórios, em quantidade suficiente para que se fizessem projetos completos de residências. Esse período viu nascer ainda as primeiras lojas de artigos para casa, capazes de oferecer o serviço total de decoração, ao lado de engenheiros earquitetos, auxiliados por uma oferta de mó- veis que poderia ser adquirida aqui. Apesar da oferta, muitas casas ainda eram montadas com o mobiliário que vinha da Europa. A prática não se esgotaria como moda. Ao contrário. Por déca- das, os estabelecimentos comerciais formaram verdadeiras usinas de criação, formando alguns dos principais decoradores do país. Já na década de 1920, uma outra corrente virá unir-se ao grupo formador da profissão. Com os transatlânticos cada vez mais apare- lhados para transportar passageiros de todas as camadas sociais, cobrindo rotas que ligavam Europa, Estados Unidos e América do Sul, muitas senhoras acomodadas na primeira classe, que adquiriam uma visão mais atualizada e globalizada de design, arquitetura, artes e comportamento, também se aventuravam na composição de am- bientes. Aos que não era dado o privilégio de cruzar os oceanos para se informar sobre as transformações que ocorriam no mundo, era pos- sível conferir in loco os interiores luxuosos de navios como o L’Atlan- tique e o Normandie. Bastava comprar, nos escritórios das empresas desses luxuosos hotéis flutuantes, um ticket que lhes garantia um tour pelas suas fantásticas dependências, lojas e restaurantes enquanto estavam atracados no Rio de Janeiro. O programa era concorridíssi- mo nos anos 1930, com navios ricamente detalhados pelos melhores designers da época. Essa população, acostumada às novas tecnologias (o telefone já era comum, tendo chegado ao Brasil no final do século 19), in- formava-se sobre decoração nas revistas importadas e também nos teatros. “Além dos jornais e revistas mundanas, outra fonte de assimilamen- to (sic) dos mandamentos sempre fugazes do gosto era o teatro, mor- mente o das companhias estrangeiras, as francesas em primeiro lugar. Era nelas que Carlos Chagas, o personagem que encarna o decorador da moda no Rio de Janeiro do início do século, ia buscar a inspira- ção para suas composições cenográficas dos interiores das casas da nova burguesia.” 4 O termo decorador ainda não compunha o léxico mais abrangen- te da sociedade. Carlos Chagas era a personagem criada pelo cro- nista João do Rio, crítico das mazelas que as transformações da nova era tecnológica impingiam aos menos abastados. Nas casas das fa- mílias endinheiradas do final do século 19, os exageros prevaleciam – sucedia-se uma profusão de móveis, tecidos, tapetes, ambientes, porcelanas e cristais, miudezas de valor sentimental, além de uma vasta coleção de espelhos. 5 O Brasil só teria o seu primeiro decorador, cingido por uma clien- tela elegante e abastada, quando Henrique Liberal volta de sua tem- porada parisiense. Embora não tenha trabalhado na Maison Jan- sen, a casa de decoração mais prestigiada que o mundo conhecia, à qual acorriam os multimilionários desde sua fundação no final do século 19, Henrique Liberal esteve intimamente ligado a ela, que se perpetuou por cerca de cem anos. Liberal viveu apenas 48 anos. As gerações seguintes, por puro desconhecimento, não anotaram devi- damente o nome de quem abriu as portas, no Brasil, para o floresci- mento definitivo de uma nova profissão. 1. GORDINHO, Margarida Cintra e GARCIA, Marília Fontana. “Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo: Missão Excelência”, p. 21. 2. BARDI, Pietro Maria. “Mestres, Artífices, Oficiais e Aprendizes no Brasil”, Banco Sudameris Brasil S.A., p. 56. 3. “Antonio Borsoi – desenhista, artesão e decorador”. Catálogo do Solar Granjean de Mon- tigny – PUC/RJ, p.13. 4. SEVCENKO, Nicolau. “A Capital Irradiante: Técnica, Ritmos e Ritos do Rio”. In: “História da Vida Privada no Brasil”, vol. 3, p. 538. 5. SHAPOCHNIK, Nelson. “Cartões Postais, Álbuns de família e Ícones da Intimidade”. In: “História da Vida Privada no Brasil”, vol. 3, org. Nicolau Sevcenko. ABD-3.indd 15 06/10/15 19:46 ABD-3.indd 16 06/10/15 19:46 17 18 As artes decorativas não eram exatamente desconhecidas no Brasil do final do século 19. Os vitrais, uma técnica medieval, já filtra- vam a luz das residências e continuariam a colorir espaços públicos ao longo das décadas seguintes. Em São Paulo, a Casa Conrado, a quem o engenheiro Ramos de Azevedo recorria para dar a necessária dose de cor e arte a muitas de suas obras, havia sido criada em 1889 pelo alemão Conrado Sorgenicht. Nossas igrejas, especialmente as mineiras, já transformavam a dor dos santos em prazer barroco para os olhos. Os trabalhos com o ferro fundido e o ferro batido entraram para o vocabulário das construções e do mobiliário. No Rio de Janei- ro, as casas tinham suas paredes pintadas com motivos diversos – o faux marble, técnica de pintura que imita os veios da pedra, era uma escolha comum, mas outros motivos eram também empregados – menos como adorno do que como uma maneira de minimizar as im- perfeições de reboco tão pouco eficiente. E ninguém havia se dedicado ao tema de maneira mais aprofun- dada, em escolas europeias e com os mais destacados de seus ex- poentes do que Eliseu Visconti. A virada do século introduziria, no Brasil, uma ideia mais concreta do que viria a ser a decoração. Entre os passageiros a bordo do luxuoso transatlântico Aragon, que deixa a Europa em direção ao Brasil em fevereiro de 1906, um deles vai particularmente satisfeito. Dispensa seu tempo a desenhar os turistas que posam para seus esboços, outros que passam, al- guns que descansam no convés. Sua bagagem guarda um item pre- cioso: o estudo do pano de boca do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que viria a se concretizar em um óleo de proporções nunca vistas no país: 13 metros por 12. Também seria dele o painel central do foyer, com 16 metros por 7. Em um país em que começam a se misturar sotaques, modas, gestos e gostos, Eliseu D’Angelo Visconti encarnava a síntese do novo brasileiro e daria um passo à frente no conceito de artes decorativas. Em 1873, aos sete anos, Visconti havia deixado a Itália ao lado da irmã Marianella, imigrando para o Brasil, país que lhe seria generoso. Fez seus estudos na Imperial Academia de Belas Artes e desde cedo chamou a atenção para seu talento – até a do Imperador D. Pedro II, que via no garoto uma grande promessa. E via bem. Em 1892, Vis- conti arrebanhou um prêmio que, por uma dessas ironias do destino, o levaria de volta à Europa, com uma bolsa de estudos para a École de Beaux-Arts, na França. Uma vez matriculado, a vida acadêmica lhe pareceu um tanto enfadonha. Visconti preferiu perscrutar conhe- cimentos novos e, entre eles, um que parecia feito sob encomen- da para suas aspirações: o curso de desenho e arte decorativa de Eugene Grasset, nome de destaque do Art Nouveau. Muitos estu- dos e sete anos depois, ele estaria de volta ao Brasil, onde tratou de dar mostras de sua evolução e passar um recibo do dinheiro público nele empregado. Uma exposição de seu trabalho exibiu 60 pinturas e desenhos e 28 trabalhos de arte aplicada à indústria, uma novidade para o Brasil de 1901 e uma ideia que o artista jamais abandonaria: foi ele quem introduziu, anos mais tarde, o curso de Artes Decorativas que funcionava junto à Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Página anterior: Laubisch Hirth (Acervo Família Hirth). Acima: Antonio Borsoi (Arquivo Pesquisa Antonio Borsoi, Solar Grandjean de Montigny, Museu Universitário PUC-Rio). 19 Antonio Borsoi (Arquivo Pesquisa Antonio Borsoi, Solar Grandjean de Montigny, Museu Universitário PUC-Rio). 20 Antonio Borsoi (Arquivo Pesquisa Antonio Borsoi, Solar Grandjean de Montigny, Museu Universitário PUC-Rio). 21 Visconti continuou suas viagens transatlânticas. Em 1905, quando recebeu o convite de Pereira Passos para executar as pinturas do Theatro Municipal, que àquela altura era ainda um frenético canteiro de obras, Visconti se encontrava em Paris. Mas mesmo para alguém como ele, com seu lugar já assegurado entre os artistas de fama, esse não era o tipo de privilégio a ser recusado. O Municipal compu- nha o projeto de reurbanização da cidade, que via surgirimponen- tes edifícios e começava a cultivar um novo estilo de vida – atrações culturais incluídas. De feição renascentista, inspirado na Ópera de Paris, de Charles Garnier, o edifício projetado por Francisco de Oli- veira Passos e Albert Guibert empregava 280 operários trabalhando em sistema de turnos para que a obra estivesse concluída em 1909. Valéria Ochoa de Oliveira, estudiosa de Visconti e autora de dois livros sobre sua obra, descreve o trabalho do artista no novo teatro: “Visconti usou vários estilos e procedimentos artísticos – o ponti- lhismo ou divisionismo, o Art Nouveau e, sobretudo, o simbolismo, fru- tos de sua formação no Brasil e na França – para compor uma sinfonia de cores e formas em que vários nus femininos se movimentam num ritmo ondulante”. 1 Além de se voltar para temas nacionais, em uma visão de mundo cosmopolita, ele deixaria projetos para luminárias, castiçais, biom- bos, papéis de parede, tecidos e conjuntos de xícaras de chá. Mas foi na cerâmica que imprimiu, de maneira mais extensa e efetiva, sua arte. Os motivos eram quase sempre as mulheres e a flora brasileira – não faltaram flores de maracujá em belas peças produzidas artesa- nalmente. Suas moringas ajudaram a tornar mais atraente o próprio Municipal, desta vez adornando um outro espaço do teatro, instalado no subsolo, que trasladava para o Rio de Janeiro motivos orientais: o Salão Assyrius. 22 23 Não se sabe se Visconti e Antonio Borsoi se encontraram algu- mas vezes durante as obras do teatro. O certo é que esses dois ar- tistas, fundamentais para o desenvolvimento da decoração no país, trabalharam no mesmo lugar, na mesma época, e ali deixaram sua marca inconfundível. O Assyrius foi um imediato sucesso. A socie- dade carioca acorreu em peso ao novo ponto de encontro dos bem nascidos, repleto de referências ao universo do antigo Oriente. Ávido leitor de revistas estrangeiras, adquiridas com um vendedor italiano no Centro do Rio, Borsoi era um antropofágico antes da antropofagia. Assimilava estilos, traços, suspiros, emanações e, com os elementos à disposição, além do encanto pelo Oriente, forjava cadeiras, mesas, balcões, escrivaninhas e tantas outras peças que se transformam em verdadeiras obras primas. Art Nouveau, Império, Luis 16 e neogótico eram filtrados de publicações como L’Artista Moderno, Modelli di Arte Decorativa, Les Arts, Revue Mensuel des Musée, L’Art et Decoration. Com todo esse conhecimento, formou um estilo próprio e desenhou a madeira como se a bordasse. Entre os trabalhos de Borsoi estão interiores de alguns dos mais importantes prédios do Rio, como o Palácio Guanabara, a Biblioteca Nacional e Edifício do Corpo de Bombeiros. Muitos foram concluídos, outros apenas projetados, a maioria posta abaixo pela especulação imobiliária. Mas ao menos dois deles a população ainda pode conhecer: o cinema Iris e a Confeitaria Colombo. Mantendo todo o refinamento na época, a Colombo foi inaugurada em 1894, pequena ainda, mas com proprietários portugueses dispostos a fazer dela um exemplo bem acabado do que seria o novo Rio de Janeiro. Na reforma realizada em 1913, Borsoi tratou de colocar seu lápis de ponta afiada a serviço da confeitaria, um tipo de comércio que só fazia crescer. Coube à Mar- cenaria Auler executar, de forma primorosa, os desenhos que saíam de sua prancheta. Em estilo Luis 16, com intervenções Art Nouveau, a Colombo ain- da atrai levas de clientes que encontram o espaço como o conhece- ram os seus fregueses dos anos 1910 e 1920, quando passou por uma ampliação e recebeu críticas elogiosas dos jornais da época. As mesas exibiam pés de ferro batido e tampo de mármore. O jacaran- dá das cadeiras formava uma cintura feminina antes de culminar no sinuoso espaldar de palhinha. Nas paredes do salão, enormes espe- lhos atraíam os olhares menos para o seu reflexo do que para as es- petaculares molduras. O requinte estava onde os olhos pousassem. Antonio Borsoi (Arquivo Pesquisa Antonio Borsoi, Solar Grandjean de Montigny, Museu Universitário PUC-Rio). 24 25Leandro Martins & Cia (Revista Acrópole, dezembro de 1940). 26 Leandro Martins & Cia (Acrópole, dezembro de 1940). 27Leandro Martins & Cia (Acrópole, dezembro de 1941). 28 “Nas molduras dos espelhos, datadas de 1914, a criatividade e a habilidade de Antonio Borsoi reuniram folhas e flores de estilo Luis XVI em gradeados entalhados no jacarandá. Entre os grandes espelhos, as luminárias de vidro têm forma de flores, e suas curvas contrastam com as luminárias do teto, centralizadas nos quadros formados pelos vários planos de frisos retos”. 2 Borsoi trabalhou até o fim da vida, em 1953, aos 72 anos, depois de ter dado à cidade muitos de seus mais belos pontos comerciais e de ter visto vários deles irem abaixo para dar lugar a espaços sem qualquer valor estético ou histórico. Colocou seu talento a serviço das melhores marcenarias da época, como a Auler, uma das mais prósperas, que tinha entre seus clientes assíduos nomes como Car- los Gomes e Santos Dumont. Brasileiro de Petrópolis, o senhor Auler era um apaixonado pela madeira brasileira, dedicado ao estudo das espécies em tudo o que poderiam oferecer em termos de cor, tipos de veios e maleabilidade. Outras empresas se mostraram também exímias na arte de talhar a madeira – Carrara & Losito, Mendes Morais & Cardoso, F. Crivano & Irmãos, Costa Pereira, A.F. Costa, Salvador Storino, Le Mobilier, Leandro Martins & Cia. O crescimento desses empreendimentos apontava um incomensurável avanço: elas forma- vam mão de obra especializada, capaz de trabalhar com exatidão nossas excelentes madeiras, abrindo o caminho para abastecer as casas brasileiras com mobiliário de qualidade. É certo que o modelo a ser seguido ainda era o europeu – em particular o francês e o inglês. As marcenarias, pouco a pouco, preencheriam uma outra lacuna ao introduzir em seus espaços outros artigos para a casa, de tecidos a tapetes e luminárias. A Laubisch-Hirth, que mantinha sua posição no topo da lista de maior marcenaria do Rio de Janeiro, agregava tantos nomes estran- geiros que poderia até ter bandeira própria. Os sócios Carlos Laubis- ch e Georg Hirth colocaram no comando da equipe de designers o francês Maurice Nozières. Seu assistente mais precioso, já nos anos 1930, seria o português Joaquim Tenreiro. O mobiliário produzido não fugia à moda da época. Bem feito, forjado com madeiras de qualida- de por artesãos experientes, os móveis que saíam da Laubisch Hirth podiam abastecer uma casa inteira – salas de estar e de jantar, biblio- tecas e quartos. As próprias marcenarias se ocupavam de ambientar as residências, ao menos as que não tinham todos os detalhes espe- cificados por um arquiteto que desenhasse as molduras de gesso, as escadarias, frisos, portas e lareira. A empresa atuou de 1914 a 1940. Laubisch Hirth Acima: Acervo Família Hirth. Direita: Acrópole, dezembro de 1941. 29 30 1. <www.eliseuvisconti.com.br> 2. VASCONCELLOS, Patrícia. “Interiores”, Editora Sextante, 2001, p. 122. 3. Depoimento concedido por Marcio Roiter, presidente da Associação Art Déco do Rio de Janeiro. VISTO DE TRABALHO Michel Dufet desembarcou no Rio de Janeiro em 1922 a convite da Redstar, considerada a melhor loja do centro do Rio de Janeiro. A data de festa para o país, que comemorava o centenário da Independência, interferiu nos planos do desig- ner francês, com seu desejo de colocar em prática arroubos formais em uma cidade que se reinventava. O que era sonho se tornou um pesadelo quando Dufet, de carreira consolidada na França, se viu projetando ambientes clássicos ainda em voga nas casas brasileiras. Para aumentar sua decepção, cou- be a ele criar os interiores do Petit Trianon, a construção de dois andares erguida para abrigar o Pavilhão da França na Ex- posição Internacional, parte das comemorações do centenário e uma réplica do palácio de Versalhes. Dufet dotou os pisos de mármore, os tetos de lustres de cristalfrancês, os consoles apoiavam porcelanas de Sèvres. No ano seguinte, o governo francês doaria o Petit Trianon à Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 e até então sem sede própria. É no segundo andar da construção que os imortais ainda se reúnem às quin- tas feiras para o chá das cinco. Em 1924, apenas dois anos depois de sua chegada, Dufet voltaria à sua França natal, mas não amargaria uma derrota. Sabia lidar com as nossas madeiras e estava bem abastecido com móveis de jacarandá desenvolvidos em terras brasileiras. Em contrapartida, o designer deixou como herança a sua habi- lidade e sua excelência na fabricação de mobiliário. A Redstar sobreviveria até os anos 1940. 3 As primeiras grandes lojas a oferecer artigos de qualidade – e até de luxo – chegaram entre o final do século 19 e começo do 20. A Casa Allemã já havia se instalado na rua Direita, no Centro de São Paulo, quando se viu obrigada a enfrentar a concorrência inglesa do Mappin Stores, inaugurado a poucos metros de distância, na rua 15 de Novembro, em 1913. Embora vendesse joias e artigos femininos, o Mappin era uma paraíso para quem quisesse montar uma casa. Distribuíam-se, por seus generosos espaços, móveis, luminárias, ta- petes, porcelanas, cristais e prataria. As atrações não paravam por aí: o seu famoso salão de chá reunia a elite paulista todas as tardes, devidamente paramentada para a ocasião, chapéu e luvas incluídos. Os maridos que não se dispusessem a garimpar artigos com as es- posas poderiam se valer dos serviços da barbearia montada nas de- pendências da loja. O Mappin inovou em várias frentes – uma delas, literal. A fachada ganhou grandes vitrines exibindo o interior da loja para quem passasse na calçada. Em 1919, o Mappin iria para outro endereço, na Praça do Patriarca, e levaria seu salão de chá, a essa altura um consagrado ponto de encontro para as famílias e para o flirt dos solteiros. Em 1939, a loja atravessou o viaduto do Chá para des- bravar a rua Barão de Itapetininga, que se tornaria a rua do comércio de luxo de São Paulo. A Casa Allemã havia se instalado também no Rio de Janeiro, onde a concorrência podia ser mais pulverizada, com lojas menores. Ofe- recendo mobiliário, acessórios e uma consultoria informal para os clientes, essas empresas cresceram e apareceram, com nomes que têm o espírito do começo do século 20. Renascença, A Merecida, Casa Della Aurora, Móveis Lamas, Nova Era, e a Esthética formavam um bom conjunto de opções ao lado da Redstar, reconhecida como a melhor de sua época. Nem todas sobreviveriam aos anos 1940. Mas, antes que a Segunda Guerra estourasse, muita água haveria de rolar. 31Liceu de Arte e Oficios (Acrópole, março de 1942). 32 Liceu de Arte e Oficios (Acrópole, junho de 1943). 33Liceu de Arte e Oficios (Acrópole, fevereiro de 1941). 35 36 A única diferença entre os melhores hotéis e os transatlânticos que navegaram entre as décadas de 1920 e 1930 é que os hotéis não cruzam oceanos. Por isso, não há nada de espantoso no fato de que os navios tenham exercido um papel fundamental na formação do gosto, na troca de informação entre os passageiros, na sua tomada de consciência quanto ao mobiliário, à ambientação de qualidade e ao valor de uma boa assinatura. As grandes empresas de decoração, encarregadas da tarefa de transformar os interiores dos navios, submetiam-se a uma concor- rência acirrada. Algumas ficavam encarregadas das áreas comuns, como os restaurantes, outras tinham como tarefa dar corpo às várias cabines ou aos poucos apartamentos, espaços que contemplavam todos os ambientes de uma casa e, eventualmente, incluíam um de- que privativo de vários metros. Caso uma empresa elegesse um mes- mo escritório, também ele passaria pelo crivo de uma concorrência. No conjunto, o melhor da decoração e do design estava ali represen- tado, tornando esses transatlânticos, ou paquebots, mais assemelha- dos a mansões luxuosas do que a um meio de transporte. Paquebot, forma afrancesada para packet boat, era o nome dado aos barcos a vela que faziam o transporte de correspondência e de alguns passageiros no século 18, em rotas regulares, porém curtas. Mais tarde, esses navios, que acomodavam malotes e passageiros quase como se não houvesse diferença entre eles, aumenta o seu escopo e passam a se chamar packet trade, conduzindo todo tipo de carga e parando em muitos portos mundo afora. Até o final do século 19, o glamour mal tangenciava os paque- bots, mas o traslado de pessoas, com as grandes migrações a que o planeta assistiu nessa época, começa a interferir no modo de pensar das grandes companhias de navegação, que deram uma guinada e tanto na forma de construir seus futuros navios. As rotas são amplia- das, atraindo mais e mais viajantes, acomodados de forma luxuosa na primeira classe, adequada na segunda e mais humanizada na ter- ceira, contando agora com beliches, refeitórios e água corrente. O Brasil era visitado com frequência por navios de várias ban- deiras. A inglesa Royal Mail Steam Packet (RMSP) ou Mala Real In- glesa, já entre 1905 e 1914, construiu uma linha de paquebots para cobrir a rota de Ouro e Prata – Brasil, Uruguai e Argentina, países que viviam seu apogeu socioeconômico. Foram lançados às águas Aragon, Amazon, Araguaya, Avon, Asturias, Arlanza, Andes, Alcan- tara e Almanzora. O primeiro deles, o Aragon, teve em sua viagem inaugural visitantes credenciados pelas autoridades e sociedade lo- cais de cada porto para um tour por suas inovadoras dependências. Conhecer esses navios era uma experiência que ninguém gostaria de perder. Passaram pelo Brasil outros representantes de peso dos grandes estaleiros, como os alemães Cap Arcona, Cap Polonio e Cap Trafal- gar, da Hamburg-Sud, poderosos navios dos anos 1920. Os italianos Conte Bianco, Conte Rosso e Conte Verde foram construídos pela Lloyd Sabaudo, a partir de 1922, para perfazer o Atlântico Sul: Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires eram os principais des- Página anterior: L’Atlantique. Salão Principal. Acima: Alcantara (Salão Jardim de Inverno / Salão de Primeira Classe). (Coleção Guillermo Bindon). 37 tinos, embora outros portos da costa brasileira também os tenham recebido. Os interiores levavam a assinatura da Casa Artística Co- ppedè, de Florença, um negócio iniciado em 1875 com uma loja de móveis e decorações que se especializou nos interiores de navios. “Estilo Coppedè” seria um sinônimo, na Itália, do estilo eclético tão apreciado por Mariano e seu filho Gino Coppedè. Com o advento da Primeira Guerra, muitos desses hotéis flutuan- tes foram requisitados pelos países em luta. Enquanto alguns viram suas instalações adaptadas para o transporte de tropas, outros tive- ram os interiores transformados em hospitais da Cruz Vermelha. Boa parte deles acabou destruída, revelando o motivo do hiato entre essa leva de transatlânticos e a que a sucederia nos 1920 e 1930. No entreguerras, as companhias sediadas acima do Equador tra- varam uma outra batalha: colocar sua engenharia a serviço de navios melhor equipados e mais atraentes para os passageiros. Iniciava-se a fase áurea dos transatlânticos e o encontro mais afinado entre os brasileiros e os principais eventos europeus quando as vanguardas artísticas nos lançavam em uma nova era e conduziriam o mundo a uma revolução estética. O Brasil sairia ganhando na disputa travada pelas empresas marí- timas. Em 1931, a francesa Sud-Atlantique, dona de uma importante frota que contava com os emblemáticos Lutetia, de 1913, e Massilia, de 1920, projetou o L’Atlantique, um dos maiores e mais notáveis transatlânticos da história, lançado ao mar com a finalidade de fazer a rota sul-americana. Com capacidade para transportar 1208 pas- sageiros, o paquebot foi pensado desde os primeiros esboços para ser o luxuoso rei dos mares. Um concurso público escolheria o pro- jeto de decoração capaz de dar a ele a ambientação suntuosa que a companhia desejava. Venceu oescritório Pierre Patou, Raguenet e Maillard. O mármore e os lambris de madeira davam o tom nas áreas comuns da primeira classe, onde o tapete vermelho contribuía com o toque necessário de cor. Junto ao hall, em um extenso corredor, uma série de lojas vendiam roupas, cristais, porcelanas, joias, charutos, peles e até carros. Se não estavam se dedicando às compras, os passageiros usufruíam dos salões de estar, de festas e de senhoras, biblioteca, fumoir, espaço para crianças, doze bares e uma sala de jantar que ostentava, em várias paredes, painéis de Jean Dunand, suíço naturalizado francês e um dos nomes mais notáveis do Art Déco. Atualmente, o Jockey Club de São Paulo ostenta em suas ins- talações um painel assinado por seu filho Bernard Dunand. A ele foi dada a tarefa de terminar o trabalho iniciado pelo pai, morto durante a confecção da obra. No L’Atlantique, enquanto as cabines da segunda classe se res- tringiam a um pequeno número (contavam-se apenas 82), a primeira oferecia 72 cabines de luxo com dois quartos e 128 cabines um tan- to menos requintadas para duas pessoas, além de 46, nos mesmos moldes, para apenas um viajante. O ápice eram os oito apartamentos ainda mais glamourosos, com quarto, sala de estar, sala de banho, hall e compartimento para acondicionar a bagagem. Mas apenas dois deles ofereciam algo mais: sala de jantar e terraço particular de L’Atlantique (Salão Principal). 38 39 sete metros. O rei do Atlântico era o paquebot usado como um ex- pressivo cartão de visitas que chegava a vários cantos do mundo exibindo as habilidades e o bom gosto das empresas de decoração. Em 29 de setembro de 1931, o L’Atlantique partiu em sua viagem inaugural. Do Porto de Pauillac, no norte da França, ele passaria por Vigo, Lisboa, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu antes de chegar a Buenos Aires, seu destino final. As populações locais o aguardavam nos portos, apenas para encher os olhos, ainda que seu desenho externo não fosse dos mais arrojados. Era uma glória, e isso bastava. Uma delegação oficial, no Rio de Janeiro, foi convidada a conhecer os interiores do novo habitué do porto da cidade, reformado em 1930 para se adequar às novas necessidades da capital federal. Seria difícil a passageiros e visitantes não se deterem nas linhas do mobiliário que nos lançaram ao universo moderno – esse que cos- tumamos rotular, a partir dos anos 1960, como Art Déco. A falta de floreios e volutas não tornou o mundo mais simples. Novos mate- riais, madeiras nobres, traços ousadamente retos ofereciam desafios para a indústria e nos jogavam nos braços das vanguardas interna- cionais, não apenas para os felizes endinheirados que passavam a vida cruzando oceanos. A população podia fazer pequenas viagens no L’Atlantique, do Rio de Janeiro a Santos, por exemplo, ou a Mon- tevidéu e a Buenos Aires. A rota completa, porém, levava duas se- manas – uma imersão não apenas no conceito de luxo, mas no de decoração. Se o L’Atlantique foi o navio mais ambicioso construído antes da Segunda Guerra para a rota da América do Sul, nas águas do Atlân- tico Norte o Normandie reinava absoluto. Também saído dos estalei- ros da Cap-Sud, ele reunia o que havia de melhor no design francês da década de 1930. Aos seus serviços esteve uma constelação dos melhores decoradores e escritórios da época, com cômodos e áreas comuns distribuídos entre nomes como Jacques-Émile Ruhlmann, Jean Dunand, Maison Dominique, Maison Rothschild, Louis Sue, René Prou e Jules Leleu. Michel Dufet, que trabalhou no Brasil entre os anos de 1922 e 1924, também deixou a sua assinatura no paque- bot adornado com cristais Lalique e mesas de refeições em que se enfileiravam talheres Christofle ou Puiforcat. Essas pequenas delica- dezas foram tão bem pensadas quanto a fortaleza que era o Norman- die, com seus 313 metros de comprimento e capacidade para 3.329 pessoas, segundo narra Márcio Roiter, no livro “Rio de Janeiro Art Déco”. Mas o que encantava experts ou leigos na arte da navegação era mesmo o décor – o ápice do bom gosto. Por duas vezes, o Normandie deixou o Atlântico Norte em direção ao sul – ao Rio de Janeiro, mais especificamente. Por ocasião do carnaval, ele atracaria dois anos seguidos na capital brasileira. Em seu livro, Márcio Roiter conta a febre em que se transformaram essas viagens: “O primeiro cruzeiro aconteceu em 1938. Foi um sucesso total! Ba- tizado como ‘o cruzeiro do milhão de dólares’, todas as cabines esgo- taram-se imediatamente. Os aposentos de luxo, denominados Rouen, Trouvelle e Deauville, foram os primeiros a ser reservados, cada um deles vendido pelo equivalente a cerca de 130 mil dólares atuais”. 1 Durante quatro dias, os estrangeiros circulavam pelo Rio de Janei- ro deliciando-se com sua natureza e sua arquitetura. Já do porto se via o majestoso edifício de linhas Art Déco A Noite, na Praça Mauá. Construído pelo arquiteto francês Joseph Gire para abrigar o jornal de mesmo nome, ele oferecia uma bela vista da cidade no seu 22º andar. Os passageiros desembarcados também se embrenhavam pelos interiores do elegante hotel Copacabana Palace, outra obra de L’Atlantique Esquerda: Rue de la Paix (Rua comercial). Acima: Sala de Jantar. 40 Gire. No contrafluxo, os cariocas compravam entradas para conhe- cer aquela maravilha dos mares e da decoração, com direito a visita às lojas que, como no L’Atlantique, ofereciam de flores a automó- veis. A procura era tamanha que, segundo relata Márcio Roiter, na primeira visita houve um verdadeiro derrame de tickets – surgiram na cidade mais entradas do que as vendidas pela companhia marítima para o tour. A vinda frequente do L’Atlantique e as duas visitas arrebatadoras do Normandie coincidem com o adensamento e a verticalização das cidades brasileiras, criando na população a necessidade de repensar os espaços urbanos padronizados. O termo “decorar” já dá um pas- so em direção ao seu real significado: adequar os móveis de maneira proporcional e racional, pensar em tapetes e cortinas como comple- mentos indispensáveis, criar uma iluminação capaz de fazer de uma casa (ou apartamento) um espaço agradável. No francês, o adjetivo ensemblier, com a raiz que denomina “unidade”, traduz melhor o ca- ráter desse trabalho. Para além da globalização empreendida pelos transatlânticos, a década de 1930 marcou o surgimento de um público consumidor, uma urgência nascida do Crash da Bolsa de Nova York em 1929. Com o rádio e o cinema, ninguém estaria isolado – e nem imune à propaganda, a nova prática que andava de braços dados com o consumo. Quando a Segunda Guerra estourou, em 1939, a rota do planeta mudou. Como marca subjacente à sua época, o Normandie incendiou em porto norte-americano quando era adaptado para se tornar um porta-aviões. A decoração já havia sido removida para que o navio se adequasse à nova função. A Guerra custaria a vida de 60 milhões de pessoas. Para fugir de um fim trágico, milhares de euro- peus embarcaram rumo às Américas – e o destino de muitos deles foi o Brasil. O conhecimento trazido por esses novos imigrantes daria um impulso considerável às ciências, à tecnologia, à filosofia e à arquite- tura. Para o design de interiores, o bem seria incalculável. Terminada a Guerra, os transatlânticos continuaram a cruzar os mares com interiores assinados por mestres como Gustavo Pulitzer, Gio Ponti, Nino Zoncada e André Arbus. Mas navios emblemáticos como os das décadas de 1920 e 1930 tinham passado para a histó- ria. De tão grandes, completos e suntuosos, eram como países que se deslocassem sobre as águas, a ponto de uma passageira do bri- tânico Queen Mary, de 1936, ter um dia surpreendido o comandante ao lhe perguntar: “Quando este lugar chega a Nova York”? 1. ROITER, Márcio. “Rio de Janeiro Art Déco”, Editora Casa da Palavra, p. 38. O valor de 130 mil dólares é um dado de 2011. Normandie Acima: Apartamento Deauville. Direita: Salão Principal da primeira classe. 41 43 44 Algunsdos artistas e arquitetos que vieram bater à nossa costa nos anos 1920 traziam uma bagagem considerável – e não era de bens materiais. Já adultos, haviam se beneficiado da educação ar- tística de boas escolas europeias e se alinhado com as mudanças que aconteciam nas artes e na arquitetura, capazes de franquear às populações a sua real entrada no século 20. Gregori Warchavchik, o arquiteto que colocou de pé a primeira casa modernista brasileira, na São Paulo de 1928, nasceu em 1896 na cidade ucraniana de Odessa, então um importante centro do Império Russo. Em seus primeiros anos de vida, teria assistido a dois eventos antagônicos em seu signi- ficado e igualmente decisivos para o cenário que em breve se descor- tinaria aos olhos do mundo: o pogrom de 1905, em Odessa, um dos episódios que antecederam a crescente perseguição antissemita, e o surgimento das vanguardas artísticas russas da década de 1910 1. A Bauhaus sinalizaria o futuro ao ser fundada em Weimar, na Alema- nha, em 1919, dez anos depois que o arquiteto austríaco Adolf Loos tivesse publicado seu livro-manifesto Ornamento é Crime, propondo uma estética nova, mais econômica nas linhas e no custo. O planeta parecia começar a girar mais rapidamente. Warchavchik passaria dois anos estudando na Itália antes de aportar no Brasil para um trabalho de um ano na Companhia Cons- trutora de Santos, do engenheiro Roberto Simonsen, em 1923. A tem- porada acabaria se entendendo por toda a vida. Casado com Mina Klabin, filha de um industrial paulista, naturalizou-se brasileiro, fincou raízes e tornou-se protagonista das mudanças que se operariam na arquitetura e no design de interiores. Por desconhecimento do seu trabalho ou pelo impacto causado pela casa modernista da rua Santa Cruz, de 1928, seu nome acabou quase amalgamado a essa obra icônica. E talvez mais a ela do que à casa da rua Itápolis, no Pacaembu, que em 1930 ficou em exposição por quase um mês atraindo um público curioso. A planta, livre de cor- redores, liberava os espaços, preenchidos com móveis desenhados pelo próprio arquiteto. Na rua Itápolis, janelas de quina e platibandas que ocultavam o telhado eram alguns dos pontos que pasmaram os visitantes da exposição, além, é claro, da planta interna, que pedia inovações no mobiliário – e Warchavchik se revelou um mestre do móvel moderno brasileiro pensado para cada projeto. Página anterior: John Graz (Acervo Instituto John Graz). 45Gregori Warchavchik (Acrópole, fevereiro de 1940). 46 Gregori Warchavchik (Acrópole, fevereiro de 1940). 47 São Paulo e Rio de Janeiro viam, ao mesmo tempo, erguerem-se obras de Warchavchik. Os cariocas puderam conhecer uma das mais famosas delas, a Casa Nordschild, construída em 1931, que jamais abandonou as lembranças de Piedade Grinberg, pesquisadora do Solar Grandjean de Montigny, da PUC-Rio. “Não sei se cheguei a vê-la ou se o que guardei na memória eram as fotos da casa da rua Toneleros. Como era linda! Mas, mesmo tombada, ela foi demolida”. A construção de cinco pavimentos diferia das casas paulistanas por sua situação espacial. Erguida numa encosta, ela se projetava em vários níveis. Atraente por fora, teve os interiores detalhados em cada centímetro. “Warchavchik fora responsável pela especificação de todos os ele- mentos e cores, desenhara esquadrias metálicas moduladas, maça- netas, toldos, e corrimões cilíndricos em aço inoxidável, patenteando seus projetos tendo em vista a produção em série, projetando peças do mobiliário para serem executadas por firma especializada, dispon- do a parafernália mecânica e eletrodoméstica de uso dos proprietá- rios, frigoríficos, holofotes, antenas de rádio, em toda parte revelando forte controle técnico, utilitário e formal”. 2 A casa da rua Toneleros, posta abaixo em 1954, ficou em exposi- ção, como havia acontecido com a da rua Itápolis. E recebeu visitas ilustres – entre elas, a do arquiteto americano Frank Lloyd Wright, que via a arquitetura modernista com muito maus olhos. E podia ser tão mordaz quanto o escritor americano Tom Wolf, com sua particular opi- nião a respeito de Le Corbusier, Mies van der Rohe e outros arquitetos que, para o autor, construíam “caixas de vidro e aço” sem o menor sinal de conforto em seus interiores: 48 Gomide. Já estava impregnado pelo modernismo brasileiro, era parte dele e não figurante ou espectador. Graz e Gomide haviam se conhecido durante os estudos de ar- quitetura, decoração e desenho na Academia de Belas Artes de Ge- nebra. Cursara a escola também a irmã de Antonio, Regina Gomide, mais tarde conhecida por seus trabalhos de tapeçaria. A viagem de John Graz para o Brasil, em 1920, teve motivos mais românticos do que estéticos – ele vinha para pintar e, especialmente, para ver Re- gina, com quem se casou no mesmo ano de sua chegada. Encon- trou, além de uma família, um ambiente propício à sua expressão artística. A família Gomide integrava a elite intelectual e financeira de São Paulo. “Em uma exposição, durante a semana de 1922, Oswald de Andrade arrematou uma tela de John Graz e passou a chamá-lo de “Graz, o futurista”, relata a historiadora Anna Affonso dos Santos, autora da tese de mestrado John Graz, o arquiteto de interiores 5. Foi no círculo da família Gomide que o artista suíço estrearia em projetos de decoração. “Ele trazia a arte para o espaço, desenhava da maça- neta ao sofá, pintava afrescos e, em uma casa com panos de vidro, cuidava também do jardim”. O intelectual Caio Prado e o economista e empresário Roberto Simonsen foram alguns de seus clientes, além de Olívia Guedes Penteado, para quem Graz trabalhou no pavilhão modernista idealizado por ela. Sua decoração estava longe de ser comum no Brasil da época, ainda focado no século 19 europeu como principal referência. Os in- teriores orquestrados por Graz exibiam superfícies cromadas e deta- lhes de cobre, móveis de aço tubular, alguns com curiosas assime- trias, além de uma inovação que fazia toda diferença: a iluminação indireta. No início, artífices do Liceu de Artes Ofícios foram funda- mentais na produção de seus desenhos ousados. Aos clientes, era necessário um certo conhecimento do que acontecia nas vanguardas europeias para assimilar, visualmente, o trabalho de Graz. Ainda de acordo com Anna Affonso, uma curiosa saída encontrada por alguns admiradores da nova estética proposta pelo futurista era deixar a seu encargo as áreas íntimas do pavimento superior da casa, mantendo os ambientes sociais ao modo clássico ditado pelo gosto comum dos anos 1920. John Graz costumava se corresponder com a família na Suíça e ao menos uma vez por ano ele e Regina Gomide Graz viajavam para a Europa, o que o mantinha de olho nos movimentos europeus. Mes- mo tendo introduzido a decoração e produzido móveis Art Déco, que foram se perdendo com o passar do tempo, nos anos 1940 – conta “E daí se a pessoa vivia num edifício que parecia uma fábrica e tinha o aconchego de uma fábrica, e pagava uma nota preta por ele? Todo edifício moderno de qualidade parecia uma fábrica. Essa era a moda atual. Era só pensar no campus universitário que Mies construíra para o Ilinois Institute of Technology, a maior parte na década de qua- renta. O edifício principal com as salas de aula parecia uma fábrica de sapatos. A capela parecia uma usina de força. A usina de força em si, também projetada por Mies, parecia bem mais espiritual (conforme observaria Charles Jencks), graças à chaminé, que pelo menos se projetava em direção ao céu”. 3 Mas não foi com acidez que Wright, o defensor da arquitetura or- gânica, viu a arquitetura de Warchavchik. Chegou a posar, sorridente, ao lado do autor e de Lucio Costa, com quem Warchavchik viria a lecionar na Escola Nacional de Belas Artes e abrir um escritório no Rio de Janeiro 4. Como estagiário, os arquitetos contavam com um jovem estudante: Oscar Niemeyer. Quando chegou ao Brasil, Warchavchik, que teria um longo ca- minho na arquitetura brasileira, encontrouo país ainda respirando os ares da Semana de Arte Moderna de 1922. A essa altura, o artista plástico suíço John Graz já havia cruzado o oceano e exibido sua arte em exposição realizada ao lado do pintor modernista Antonio Acima: Gregori Warchavchik (Acrópole, fevereiro de 1941). Direita: John Graz (Acrópole, maio de 1938). 49 52 John Graz Página anterior: Acervo Instituto John Graz. Acima: Acervo Instituto John Graz. 53 Anna Affonso dos Santos –, Graz flexibilizou seu trabalho. Continuou atento a todos os detalhes, mas o moderno foi substituído por linhas mais clássicas. “Essa é a época da reedição dos Luíses, ele simplifi- ca seu estilo e se adapta ao gosto que imperava”, conta a historiado- ra, referindo-se aos estilos Luis 15 e Luis 16, especialmente em voga no Brasil. Alguns dos anúncios publicados na revista Acrópole 6, traziam o nome Graz-Teixeira. Não se tratava de um sócio decorador, mas da marcenaria que passou a executar todos os seus desenhos. Sinal de que ele continuava atento a cada detalhe e encarregado do desenho dos móveis que ocupariam cada espaço do projeto. Outra de suas iniciativas pioneiras foi abrir uma casa comercial já no início dos anos 1940, uma atividade fundamental para o decorador que quisesse se manter na profissão e prática usual a partir da déca- da seguinte. No número 38 da rua Avanhandava, no Centro de São Paulo, quase confluindo com a rua Augusta, Graz estabeleceu o seu showroom. O Centro aglutinava, na primeira metade do século 20, as melhores lojas – como o Mappin, com muitos objetos e móveis para a casa – e todo o comércio de antiguidades, moda, joias e outros produtos capazes de atrair uma boa clientela. Depois dos anos 1950, as lojas tomaram a praça Roosevelt e subiram pela rua Augusta, com sua improvável topologia de acentuadas subidas e descidas. Ali ele se instalou antes ainda que a região se tornasse a aglutinadora dos showrooms de decoração. Anúncios publicados na revista Acrópole indicavam o conteúdo do acervo: “móveis, tecidos, aubusson, corti- nas, tapetes, abat-jour”. Projetos dos anos 1930 e 1940 mostram ambientes em que Graz não apenas introduz seu olhar moderno entre os ambientes clássicos como mantém os painéis. Viver de arte estava fora de cogitação. Mi- grar as pinturas das telas para as paredes foi uma forma de manter-se ativo em uma área de que tanto gostava. John Graz Acima: Acervo Instituto John Graz. Abaixo: Acrópole, dezembro de 1943. 54 Tapetes desenhados por Regina Graz também compunham boa parte de suas ambientações. Que o mobiliário e os acessórios te- nham se perdido é relativamente natural: a decoração é uma ativida- de efêmera, muda com as necessidades do momento, com as mu- danças na vida dos moradores. Menos natural é que as casas com os seus murais tenham ido ao chão – muitas delas, de acordo com a tese de Anna Affonso, quando o decorador ainda era vivo e, curiosa- mente, não parecia se abalar com esse descalabro. Preferia pensar no que tinha a fazer. A década de 1950 assistiria ao aflorar da arquitetura moderna bra- sileira que culminaria, em 1960, com o nascimento de Brasília, abrin- do novas frentes para o decorador suíço. Ou reabrindo um caminho já trilhado, mas numa época em que poucos entendiam e assimila- vam sua visão vanguardista. Em 1960, ele se desliga da decoração para se dedicar exclusivamente à pintura. Viúvo de Regina, casa-se com a francesa Annie, em 1974. Depois da morte de Graz, em 1980, Annie tratou de organizar o acervo do marido, que cultivava o bom hábito de fotografar os seus projetos – mas não de catalogá-los. Enquanto Warchavchik fazia o mobiliário de suas plantas e John Graz alinhavava a arquitetura de interiores em todas as suas pontas, o pintor expressionista Lasar Segall representou uma nova faceta da função do decorador. Nascido em Vilna, na Lituânia, em 1891, Lasar Segall desembarcou no país 1923 e se casou com Jenny Klabin, irmã de Mina Klabin, mulher de Gregori Warchavchik. Com um trabalho sedimentado na Europa como artista plástico, Segall produziu uma série de móveis para a casa, projetada por Warchavchik, em que viveu com Jenny, na rua Afonso Celso, em São Paulo – hoje Museu Lasar Segall. Eram todos os móveis admiravelmente modernos, como o sofá modular e a mesa redonda de metal e madeira ebanizada. As linhas retas, o uso de madeiras de qualidade e do metal atestavam sua filiação aos preceitos bauhausianos. Como sócio fundador da SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna), fez da decoração dos bailes de carnaval da Sociedade e do figurino usado pelos artistas à pintura dos painéis. São dele também os cenários e figurinos desenhados para o balé O Mandarim Maravilhoso, com música do húngaro Béla Bartók, de 1954 7. Segall, no entanto, continuou mais artista do que designer. E sua pintura, como a de John Graz, ganhou uma forte iden- tidade brasileira. John Graz (Acrópole, junho de 1939). 55 56 57 John Graz Esquerda: Acervo Instituto John Graz. Acima: Acrópole, março de 1952. 58 59 John Graz Esquerda: Acrópole, setembro de 1944. Direita: Acrópole, março de 1952. 60 A década de 1920 foi pródiga em artistas de vanguarda – só a Semana de 22 já parecia suficiente, com a revolução que promoveu nas artes plásticas, na literatura, na arquitetura e nos costumes. Mas as revoluções, que contaram ainda com os três estrangeiros aqui nomeados, não terminariam por aí. Nos anos 1930, depois de uma temporada de estudos na França e na Inglaterra, Flávio de Carva- lho, nascido em Barra Mansa, no Rio de Janeiro, fazia sua entrada em cena como artista plástico, figurinista, cenógrafo, arquiteto, en- genheiro, crítico de arquitetura e, nome ainda não usado na época, performer. A Fazenda da Capuava, de propriedade da família, teve os interiores desenhados por ele 8. Na capital paulista, no bairro dos Jardins, projetou uma vila com dezessete sobrados geminados em que a arte se observa nos interiores abertos, bem planejados e dota- dos de minúcias como os ladrilhos hidráulicos arrematando, junto ao rodapé, o assoalho de tacos. Mas foi na arte que Flávio de Carvalho mais se projetou, mesmo no exterior. No Brasil, ficou marcado por suas performances, como a experiência Nº 3, quando saiu às ruas de saia, blusa de náilon, meia arrastão e sandálias de couro. Foi também o autor de uma cadeira com estrutura de ferro, de encosto redondo e percintas de couro, de 1950, que se tornou um ícone do design na- cional, e de telas da melhor estirpe da arte brasileira. Concretamente, portanto, pouco restou de seu trabalho na decoração e na arquitetura – talvez por ser dono de um talento que tangenciava o imaterial. Flávio de Carvalho Acima: © Objekto / Futon Company. Direita: Revista Casa e Jardim,1957. 1. LIRA, José. “Warchavchik, Fraturas da Vanguarda”, Editora Cosacnaify, 2011, p. 48. 2. Op. cit., p. 292. 3. WOLFE, Tom. “Da Bauhaus ao nosso Caos”, Editora Rocco, 1981, p. 56. 4. LIRA, José. Op. cit., p. 302. 5. Tese de mestrado defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 2008. 6. A revista Acrópole circulou entre maio de 1938 e dezembro de 1971, fundada por Roberto Corrêa de Brito, Eduardo Kneese de Melo, Walter Saraiva Kneese de Melo, Alfredo Becker e Henrique Mindlin, que compunham seu corpo editorial. 7. <http://www.museusegall.org.br> 8. Catálogo da exposição “Os Modernistas + 1”, realizada no Museu Oscar Niemeyer en- tre 23 de setembro e 28 de novembro de 2010 em Curitiba-PA, com curadoria de Consuelo Cornelsen. Informações disponíveis em: <www.museusegall.org.br>. 61 63 64 Cultuado entre colecionadores e antiquários, ganhou o respeito de decoradores e designers que lhe sucederam, sempre mencionado como marceneiro, tapeceiro ou, mais genericamente, criador. Ele foi tudo isso e também um decorador que abriu sua firma nos anos 1920, expandiu os negócios para quase uma dezena de capitais brasileiras e atravessou a fronteira da Argentina com seu escritórionuma época em que o decorador ainda não tinha o status que lhe é conferido hoje. Foi um dos primeiros, portanto, a vincular o trabalho de decorador com um comércio no gênero. Mais que uma loja, teve também uma marcenaria, nos moldes do que aconteceu no Rio de Janeiro, quando as marcenarias Laubisch-Hirth, Le Mobilier e Lean- dro Martins & Cia forneciam todo o conjunto necessário para o arranjo de uma casa. Atuante até os anos 1960, Felipe Dinucci teve um título que sempre o precedeu: Professor, grafado quase invariavelmente em letra maiúscula. A marcenaria e a tapeçaria, por sua materialida- de, englobam o espólio desse artista, o que acabou por restringir, para as gerações posteriores, o real alcance de seu trabalho. Menos tangível, de caráter transitório por sua natureza, a decoração não dei- xa tantos traços, especialmente se são raras as publicações dedica- das ao tema na época em que a obra foi executada. O que ficou re- gistrado, no entanto, nos permite delinear a carreira de Felipe Dinucci, que por décadas decorou mansões, especialmente na capital paulis- ta, colocando seu talento a serviço de alguns dos mais importantes empresários e banqueiros da cidade. Entre os anos 1930 e 1950 foi o decorador preferido da colônia sírio-libanesa, que aos poucos se es- tabelecia na avenida Brasil e, em parte, também na avenida Paulista. Felippo Dinucci deixou a cidade costeira de La Spezia e aportou no Brasil na década de 1920, já casado com a brasileira Ida Regoli, que conheceu na sua Itália natal. Com ela teve os filhos Francisco e Benito, dois braços direitos a alavancar a empresa do pai, que che- gou a contar com cerca de 40 marceneiros, além de estofadores e pintores na rua Dona Adma Jafet, no bairro da Bela Vista, um dos redutos da colônia italiana em São Paulo. Quem conta a história da família é Felipe Dinucci, o neto que lhe herdou o nome. Seu pai, Fran- cisco, tornou-se o responsável pela execução das pinturas e enta- lhes que lhe chegavam às mãos na forma de aquarelas. O “Felippo” logo foi aportuguesado para Felipe, mas Professor era como todos o chamavam e também o modo como as revistas o apresentavam. Sem formação acadêmica, era tão eloquente ao compor um ambien- te como ao discorrer sobre ele. E Professor se tornou, ao final e ao cabo, seu mais conhecido prenome. Já o filho Benito tratou de alterar a sílaba tônica: virou Bênito, nome mais palatável depois que o mun- do conheceu o fascismo de Benito Mussolini. Um projeto da lavra de Dinucci exibia alguns pontos em comum: as paredes claras, lareiras de mármore com aplicação de bronze, painéis de jacarandá, cabreúva ou peroba do campo, quando não de Felipe Dinucci Página anterior: Acervo Cristina Jafet. Acima: Acrópole, novembro de 1938 (esq.) / fevereiro de 1944 (dir.). Direita: Acrópole, agosto de 1938. 65 66 Felipe Dinucci Acima: Acrópole, dezembro de 1939. Abaixo: Acrópole, janeiro de 1952. 67 publicou seus trabalhos. Na quarta edição da revista, em agosto de 1938, o Professor Felipe Dinucci faz sua estreia nas páginas da publi- cação apresentando dois projetos. As casas decoradas por ele ofere- ciam plantas radicalmente diferentes das que o país veio a conhecer a partir da década de 1960, a era dos apartamentos e das medidas mais acanhadas. Entre os cômodos a cargo de Dinucci estavam o salão nobre, o fumoir, a sala de toalete, a biblioteca, o escritório, o corredor, a saleta para o bar, a sala de bridge, o vestíbulo, o jardim de inverno. Além de, naturalmente, sala de visitas, sala de jantar, quartos e banheiros, especificando cada detalhe do piso ao teto. Podia acontecer que, numa mesma casa, dois ambientes fossem inspirados em estilos totalmente diferentes. E a lista era grande: dos Luises à Espanha do século 15, o Tudor, o Renascença, o Etrusco- -pompeano. Ele fazia a ressalva sobre a escolha e sobre o modo couro, a pirogravura em portas e peças de mobiliário, desenhando ornamentos discretos que se tornaram, no entanto, uma marca regis- trada. Entre os tecidos, veludo, damasco, camurça, tafetá de seda e cetim cobriam poltronas e “divãs”, palavra usada sempre em lugar de sofá. Nos espelhos, molduras em ouro velho. A ferronerie tem lugar de destaque na sua produção em que, além do ouro velho, o bronze e outros metais estão presentes. Entre as revistas especializadas que circularam entre os anos 1930 e 1970, a maioria mais voltada à arquitetura, a Acrópole foi a mais longeva – circulou por 33 anos – seguida da Habitat, que vigo- rou por 15 anos. Outros títulos tiveram vida curta antes que Casa e Jardim, Casa Vogue e Casa Claudia chegassem ao mercado e se estabelecessem, voltadas para a decoração e para o design. Quando Dinucci estava em plena atividade, a Acrópole foi o título que mais Felipe Dinucci (Acrópole, fevereiro de 1949). 68 como a teria trabalhado: “de acordo com as necessidades estéticas e práticas do nosso tempo; sem cópias e falsas interpretações.” 1. Dei- xava claro, assim, que adequava – e era muito capaz disso – um estilo de outras épocas ao seu tempo. Ao final, restava como essência a sua assinatura particular, especialmente nas pinturas e no desenho dos móveis, elevados acima de qualquer estilo adaptado. Ainda que os filmes fotográficos coloridos tenham aportado no mercado em 1935, a cor ainda não havia chegado às revistas dos anos 1930 e 1940, e Dinucci era uma visão em preto e branco. Para dar cor aos espaços, recorria-se à palavra. Em uma mansão da ave- nida Brasil, publicada na Acrópole em maio de 1939 2, diz a legenda: “divã forrado com pele natural. Baguete de couro vermelho, faixa e pés de jacarandá com ornamentações douradas”. Para um fumoir de paredes bege-rosado, havia “móveis de cabreúva pirogravados com ornamentações levemente coloridas e prateadas”. Nesse espaço, há painéis de couro branco azulado e cortinas grená. É importante ressaltar o tom, já que não há um único vermelho, ou um só azul. A paleta de Dinucci é ampla no que se refere aos revestimentos dos estofados, nas cortinas e nos tapetes, que podem ser “cinzento prata com decorações coral” e “azul foncé” – certamente um azul profundo particular na sua variada cartela de cores. O vermelho era às vezes apenas vermelho, mas também surgia acompanhado do pálido, do salmão, do coral, do cobre ou do morango. Mesmo o branco exibia gradações: há o branco-marfim, o branco-pérola, o branco-bege, o branco-prata, o branco-neve e até o branco-antigo. Nos anos 1940, o verde-resedá entra em cena, e logo vemos a cor se multiplicando em verde-jade, verde-pastel, verde-esmeralda e verde claro. Um tapete chinês foi descrito como “bege claro, rosa pálido e azul celeste”. Felipe Dinucci (Acrópole, fevereiro de 1949). 69 Felipe Dinucci: Acrópole, fevereiro de 1944. Acrópole, março de 1945. 70 A fixação pelas cores chega a extremos em uma casa da rua Bah- ia, em Higienópolis, em que Felipe Dinucci manda encadernar todos os livros da biblioteca em couro azul, vermelho e pergaminho, com letras douradas, “formando um conjunto policrômico de grande ani- mação para o ambiente”. 3 O episódio revela o seu gosto pelas cores, não o desprezo pelos livros, que parecem, em uma leitura apressada, reduzidos à condição de objetos ilustrativos. Prova em contrário é o artigo em que escreve: “Não compreendo a casa de um povo civilizado sem a presença do livro. Diz Gio Ponti ‘O livro não deve ser relegado em um movelzi- nho, mas ser um dos elementos constitutivos do ambiente, marcando- lhe um caráter com a sua presença, a Arte de um arredamento não deve ser representada pelo empréstimo formal de algumas reminis- cências estilísticas, mas da presença ativa de uma cultura universal’”. 4 Até o final dos anos 1930, os anúncios publicados por Móveis e Decorações Dinucci indicavam o escritório na rua Cardoso de Almei- da, no bairro paulistano de Perdizes. No final de 1941, a empresa já está em seu endereço definitivo: no número 762 da rua Augusta, que manteve as portas abertas
Compartilhar