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Bruno_Bettelheim_-_Psicanálise_dos_contos_de_fadas

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Bruno Bettelheim (1991). Psicanálise Dos Contos De Fadas. 4ª Ed. Lisboa: Bertrand Editora (Ed. original: 1975-1976 pelo autor).
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força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que
gratuitamente.
Digitalização e arranjo de Fernando Jorge Alves Correia
Bruno Bettelheim PSICANÁLISE DOS CONTOS DE FADAS 4. a Edição TRADÚÇÃO DE
CARLOS HUMBERTO DA SILVA BERTRAND EDITORA VENDA NOVA
Título da edição original: The uses of enchantment 1975, 1976 by Bruno
Bettelheim Capa de: José Cândido Todos os direitos reservados para a
publicação desta obra em Portugal pela LIVRARIA BERTRAND, SARL, Lisboa
Composição: GRATELO, Soc. GráfIca do Restelo, SA Impressão e acabamento:
TIP. GUERRA, Viseu Acabou de imprimir-se em Novembro de 1991 Depósito
Legal nº 4394791 ISB N 972-25- 0017-1
AGRADECIMENTO Muita gente esteve envolvida na criação dos contos de
fadas. Muita gente contribuiu também para que este livro fosse escrito.
Em primeiro lugar, as crianças - as crianças, cujas respostas me deram
consciência da importância dos contos de fadas nas suas vidas; e a
psicanálise, que me permitiu um acesso ao significado mais profundo dos
contos. Foi a minha mãe que me abriu as portas do mundo mágico dos
contos de fadas; sem a sua influência, este livro nunca teria sido
escrito. Ao escrevê- lo, recebi sugestões úteis de amigos que se
interessaram gentilmente pelo meu esforço. Por tais sugestões estou
grato a Marjorie e Al Flarsheim, Frances Gitelson, Elizabeth Goldner,
Robert Gottlieb, Joyce Jack, Paul Kramer, Ruth Marquis, Jacqui Sanders,
Linnea Vacca e muitos outros. Joyce Jack reviu o manuscrito; foi graças
aos seus esforços pacientes e extremamente sensíveis que ele tomou a
forma que tem. Tive a sorte de encontrar em Robert Gottlieb o editor
raro que combina em si uma finíssima percepção e, portanto, a mais
encorajadora compreensão, com uma sã atitude crítica, o que o torna o
mais apetecível editor que um autor pode desejar. Por último, mas não
por ser de menor importância, desejo agradecer com gratidão o apoio da
Spencer Foundation, que me tornou possível escrever este livro. A
compreensiva simpatia e amizade do seu presidente, H. Thomas James, deu
apreciadíssimo encorajamento à minha tarefa.
INTRODUÇÃO: A LUTA PELO SENTIDO Se esperamos viver não somente de
momento a momento, mas na plena consciência da existência, então a nossa
maior necessidade e a nossa mais difícil realização é encontrarmos um
sentido para as nossas vidas. É sabido que muitos perderam a vontade de
viver e cessaram até de tentar fazê-lo porque a vida deixa de fazer
sentido para eles. A comprensão do sentido de vida de cada um não se
adquire de repente, em determinada idade, nem mesmo quando já tivermos
chegado à maturidade cronológica. Pelo contrário, a maturidade
psicológica consiste na aquisição de uma segura compreensão do que pode
ou deve ser o sentido da nossa vida. E esta realização é o resultado
final de uma longa evolução: em cada estádio procuramos, e temos de
encontrar, um mínimo de sentido, adequado à forma como o nosso espírito
e a nossa compreensão já evoluíram. Contrariamente ao mito antigo, a
sabedoria não irrompe plenamente desenvolvida, como Atenas da cabeça de
Zeus; é construída, passo a passo, a partir das origens mais
irracionais. Só na idade adulta é que uma compreensão inteligente do
sentido da existência de cada um neste mundo se pode obter, a partir
das experiências vividas. Infelizmente muitos pais desejam que os
espíritos dos seus filhos funcionem à sua imagem e semelhança - como se
a compreensão madura de nós próprios e do mundo e as nossas ideias
sobre o sentido da vida não tivessem de se desenvolver tão lentamente
como os nossos corpos e espíritos.
Hoje, como em tempos idos, a mais importante e mais difícil tarefa na
educação de um filho é ajudá-lo a encontrar um sentido para a vida.
Para se conseguir isso são precisas muitas experiências de crescimento.
Enquanto se desenvolve, a criança tem de aprender, passo a passo, a
compreender-se melhor a si própria; com isso ficará apta a compreender
os outros e, eventualmente, a relacionar-se com eles por vias
mutuamente satisfatórias e significativas. Para se encontrar um sentido
mais profundo, é necessário transcender os estreitos limites de uma
existência autocentrada e acreditar que havemos de dar uma
significativa contribuição para a vida - senão imediatamente, pelo menos
num qualquer tempo futuro. Este sentimento é necessário se quisermos
sentir-nos satisfeitos connosco próprios e com o que fazemos. De forma a
não estarmos à mercê dos caprichos da vida, é preciso desenvolvermos os
nossos recursos interiores, para que as nossas emoções, imaginação e
intelecto se apoiem e se enriqueçam mutuamente. Os nossos sentimentos
positivos dão-nos a força para desenvolver a nossa racionalidade; só a
esperança no futuro nos pode sustentar nas adversidades que inevitavel
mente encontraremos. Como educador e terapeuta de crianças com severas
perturbações, a minha principal tarefa era restituir-lhes um sentido
para as suas vidas. Tal trabalho tornou claro para mim que, se as
crianças fossem educadas de forma a que a vida para elas tivesse
significado, não precisariam de ajuda especial. Vi-me frente a frente
com o problema de deduzir quais as experiências que na vida de uma
criança eram mais adequadas para promoverem a sua capacidade para
encontrar um sentido na vida; para dotar a vida em geral de maior
sentido. Relativamente a esta tarefa, nada é mais importante do que
impacte dos pais e dos que tomam conta de crianças; a seguir em
importância, vem a nossa herança cultural, quando transmitida à criança
de forma acertada. Quando as crianças são pequenas é a literatura que
da melhor maneira contém essa informação. Sendo assim, tornei-me
profundamente desgostoso com muita da literatura destinada a desenvolver
o espírito e a personalidade da criança, porque não estimula nem ali
menta os recursos de que ela mais necessita, em ordem a enfrentar os
seus difíceis problemas interiores. As cartilhas 10
que lhe ensinam a ler na escola destinam-se a ensinar as habilidades
(skiles) necessárias, independentemente do seu sentido: A esmagadora
maioria da restante chamada literatura "infantil" tenta divertir ou
informar, ou ambas as coisas. Mas a maior parte destes livros são tão
frívolos de substância que muito pouco de significativo se aprende com
eles. A aquisição de habilidades, incluindo a capacidade para a
leitura, perde valor quando o que se aprende não acrescenta nada de
importante à nossa vida. Todos temos a tendência para avaliar os futuros
méritos de uma actividade com base naquilo que ela nos oferéce agora. E
isto é especialmente verdade para a criança, que, muito mais do que o
adulto, vive no presente e, embora sinta angústia em relação ao futuro,
tem a noção do que ele exigirá ou virá a ser. A ideia de que aprender a
ler nos pode habilitar a enriquecer posteriormente a nossa vida futura
é sentida como uma promessa vazia quando as histórias que as crianças
estão a ouvir ou a ler são estúpidas. A pior característica destes
livros para crianças é que eles burlam a criança naquilo que ela pode
ganhar através da experiência da literatura: acesso a um sentido mais
profundo e àquilo que é mais significativo para ela nesse estádio do
desenvolvimento. Para que uma história possa prender verdadeiramente a
atenção de uma criança, é preciso que ela a distraia e desperte a sua
curiosidade. Mas, para enriquecer a sua vida ela tem de estimular a sua
imaginação; tem de ajudá-la a desenvolver o seu intelecto e esclarecer
as suas emoções; tem de estar sintonizada com as suas angústias
e as
suas aspirações; tem de reconhecer plenamente as suas dificuldades e,
ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Em
suma, precisa de estar simultaneamente relacionada com todos os
aspectos da sua personalidade - e isto sem nunca a amesquinhar, mas,
pelo contrário, dando todo o crédito à seriedade das suas exigências e
dando-lhe conjuntamente confiança em si própria e no futuro. Neste e
noutros aspectos, em toda a literatura "infantil" - com raras excepções
- nada é mais enriquecedor e satisfatório, quer para a criança quer para
o adulto, do que o popular conto de fadas. É verdade que num primeiro
nível os contos de fadas ensinam pouco sobre as condições 11
específicas da vida da sociedade moderna de massas; estes contos foram
criados muito antes de esta sociedade aparecer. Mas podemos aprender
mais coisas com estes contos, acerca dos problemas interiores dos seres
humanos e das soluções acertadas para as suas exigências em qualquer
sociedade, do que em qualquer outro tipo de história que esteja dentro
do âmbito de compreensão das crianças. Uma vez que, em cada momento da
sua vida, a criança é exposta à sociedade em que vive, ela aprenderá
certamente a lidar com as suas condições, desde que os seus recursos
interiores lhe permitam fazê-lo. Exactamente porque a sua vida é muitas
vezes desconcertante, a criança precisa mais do que ninguém que lhe dêem
a possibilidade de se compreender a si própria neste complexo mundo que
vai enfrentar. Para o poder fazer, tem de ser ajudada a criar um senso
coerente no meio do turbilhão dos seus sentimentos. A criança precisa de
ideias sobre como pôr a casa interior em ordem e, nessa base, conseguir
dar certo sentido à sua vida. Precisa - e nisto quase não é preciso pôr
ênfase neste ponto da nossa história - de uma educação moral em que com
subtileza apenas se lhe transmitam as vantagens de um comportamento
moral, não através de conceitos éticos abstractos mas a través do que
parece palpavelmente acertado e portanto com sentido para a criança. A
criança encontra este género de sentido nos contos de fadas. Tal como
muitas outras intuições psicológicas, isto já tinha sido há muito
antecipado pelos poetas. O poeta alemão Schiller escreveu: "Existe um
sentido mais pro fundo nos contos de fadas que me foram contados em
criança do que na verdade que a vida ensina (The Piccolomini, III, 4)."
Ao longo de séculos (senão milénios) contados e recontados, os contos de
fadas foram-se refinando cada vez mais e acabaram por transmitir, ao
mesmo tempo, significações manifestas e latentes - dirigindo-se
simultaneamente a todos os níveis da personalidade humana e comunicando
de uma forma que chega ao espírito inculto da criança, assim como ao do
adulto sofisticado. Aplicando o modelo psicanalítico da personalidade
humana os contos - de fadas são portadores de mensagens importantes para
o psiquismo consciente, pré-consciente ou inconsciente, qualquer que 12
seja o nível em que funcione. Lidando com problemas humanos universais,
especialmente com os que preocupam o espírito da criança, as histórias
falam ao seu ego nascente, encorajando o seu desenvolvimento, enquanto,
ao mesmo tempo, aliviam tensões pré- conscientes ou inconscientes. A
medida que as histórias se vão desvendando, elas dão crédito e corpo
conscientes às tensões do id e mostram os caminhos para satisfazer as
que estão alinhadas com as exigências do ego e do superego. Mas o meu
interesse por contos de fadas não é o resultado de uma tal análise
técnica dos seus méritos. É, pelo contrário, a consequência de
perguntar a mim mesmo porque é que (de acordo com a minha experiência)
as crianças - quer as normais quer as anormais e em todos os níveis de
inteligência - acham os contos de fadas populares mais convenientes do
que todas as outras histórias infantis. Quanto mais eu tentava
compreender porque têm estas histórias tanto êxito no enriquecimento da
vida interior da criança, mais compreendia que elas, num sentido mais
fundo do que qualquer outra leitura, começam onde a criança realmente
está, no seu ser psicológico e emocional. Elas falam das suas severas
tensões interiores de maneira que a criança inconscientemente compreende
sem menosprezar as muito sérias lutas internas que o crescímento
implica - proporcionam exemplos de soluções, tanto temporárias como
permanentes, para as dificuldades prementes. Quando um subsídio da
Spencer Foundation me possibilitou o lazer para estudar quais as
contribuições que a psicanálise pode dar para a educação das crianças -
e já que ler ou ouvir ler são meios essenciais de educação -, parecia
ser próprio utilizar esta oportunidade para investigar, com maior
pormenor e profundidade, porque é que os contos de fadas populares são
tão valiosos na educação das crianças. A minha esperança é que uma
compreensão apropriada dos méritos ímpares dos contos de fadas levarão
pais e professores a conferir-lhes outra vez o papel central que eles
desempenharam durante séculos na vida da criança. 13
OS CONTOS DE FADAS E O DILEMA EXISTENCIAL Em ordem a dominar os
problemas psicológicos do crescimento (ultrapassagem das feridas
narcísicas dos conflitos edipianos, das rivalidades fraternas, obtenção
de um sentimento e valor próprio e um senso de obrigação moral), a
criança precisa de compreender o que se passa no seu consciente de forma
a que possa enfrentar o que se passa no seu inconsciente. Ela pode
conseguir este entendimento e, com ele, a capacidade de apontamento,
não através de uma compreensão racional da natureza e do conteúdo do seu
inconsciente, mas familiarizando-se com este por meio de devaneios -
ruminando, reajustando e fantasiando elementos adequados para responder
a tensões inconscientes. Procedendo assim, a criança acomoda o conteúdo
inconsciente a fantasias conscientes, que então lhe permitem lidar com
esse conteúdo. É aqui que os contos de fadas têm um valor ímpar, porque
oferecem à imaginação da criança novas dimensões que seria impossível
ela descobrir só por si. Mais: a forma e a estrutura dos contos de
fadas sugerem à criança imagens através das quais ela pode estruturar
os seus devaneios, e com isso orientar melhor a vida. Na criança ou no
adulto, o inconsciente é um poderoso determinante do comportamento.
Quando o inconsciente é reprimido e ao seu conteúdo é negada a
consciencialização, então o espírito consciente da pessoa acabará
finalmente por ficar em parte esmagado pelos derivativos destes
elementos inconscientes, ou então, ela será forçada a manter um controle
tão rígido e compulsivo sobre os mesmos que a sua personalidade poderá
vir a ser gravemente afectada. Mas quando se permite que material
inconsciente em certa medida, atinja a consciência e possa ser elaborado
através da imaginação, o seu potencial para fazer o mal - a nós
próprios ou a outros - torna-se muito reduzido; algumas das suas forças
podem então ser dirigidas para fins positivos. Contudo, a crença
paternal dominante é que a criança tem de ser poupada daquilo que mais a
perturba: as suas angústias sem forma nem nome, as suas fantasias
caóticas, enfurecidas, ou mesmo violentas. Muitos 14
pais acreditam que só a realidade consciente ou imagens agradáveis e que
satisfaçam os nossos desejos devem ser oferecidos à criança - que ela
deve ser exposta somente ao lado belo das coisas. Porém, um tal alimento
unilateral nutre o espírito também só unilateralmente, e a vida real
não é toda bela. Há uma recusa muito generalizada em deixar as crianças
saberem que a fonte de muito do que vai mal no mundo é devido às nossas
próprias naturezas- a propensão que todo o homem tem para agir
agressivamente, associalmente, egoistamente, por raiva ou angústia. Em
vez disso, queremos que os nossos filhos acreditem que todos os homens
são bons por natureza. Mas os miúdos sabem que eles não são sempre
bons; e muitas vezes, mesmo quando
o são, prefeririam não o ser. Isto
vem contradizer o que os pais lhes dizem, o que faz com que a criança
se veja a si própria como um monstro. A cultura dominante deseja
aparentar, especialmente no que diz respeito às crianças, que o lado
sombrio do homem não existe, declarando acreditar num umelhorismo
optimista. A própria psicanálise é encarada como tendo por fim tornar a
vida fácil - mas isso não era a intenção do seu fundador. A psicanálise
foi criada para habilitar o homem a aceitar a natureza problemática da
vida sem ser vencido por ela ou sem se entregar à fuga sistemática. A
"receita" de Freud é que só através da luta corajosa contra o que
parecem ser esmagadoras contrariedades é que o homem pode chegar a
encontrar um sentido para a sua existência. É esta exactamente a
mensagem que os contos de fadas trazem à criança, por múltiplas formas:
que a luta contra graves dificuldades na vida é inevitável, faz parte
intrínseca da existência humana - mas que se o homem se não furtar a
ela, e com coragem e determinação enfrentar dificuldades, muitas vezes
inesperadas e injustas, acabará por dominar todos os obstáculos e sair
vitorioso. Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os
problemas existenciais, ainda que estes sejam questões cruciais para
todos nós. A criança precisa muito especialmente de súgestões, em forma
simbólica, sobre como lidar com estes obstáculos para chegar sem risco
à maturidade. As histórias "inócuas" não mencionam a morte ou a velhice
15
nem os limites da nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O
conto de fadas, pelo contrário, confronta a criança sem rodeios com as
exigências básicas do homem. Por exemplo, muitos contos de fadas começam
com a morte da mãe ou do pai; nestes contos, a morte cria problemas
angustiantes, como a própria morte, ou o medo dela, o faz na vida real.
Outros contos falam de um pai idoso que decide que chegou a altura de a
nova geração tomar as rédeas. Contudo, antes que isso aconteça, o
sucessor tem de provar ser capaz e digno. O conto dos irmãos Grimm As
Três Penas começa assim: "Era uma vez um rei que tinha três filhos.
Quando o rei já estava velho e fraco, pensando no seu fim, não sabia
qual dos filhos deveria herdar o seu trono. Para se decidir, o rei dá
aos filhos uma tarefa difícil; o filho que melhor a desempenhar será
rei depois da minha morte". É característico dos contos de fadas expor
um dilema existencial, concisa e directamente. Isto permite que a
criança enfrente logo o problema na sua forma mais essencial, ao passo
que um enredo mais complexo seria para ela mais confuso. O conto de
fadas simplifica todas as situações. As suas personagens são definidas
com clareza; e os pormenores, a não ser que sejam muito importantes,
são eliminados. Todos os caracteres são mais típicos que invulgares.
Contrariamente ao que acontece nos modernos contos para crianças, tanto
a maldade como a virtude se encon tram omnipresentes nos contos de
fadas. Em praticamente todos os contos de fadas o bem e o mal aparecem
sob a forma de algumas personagens e suas acções, tal como o bem e o
mal estão omnipresentes na vida e as propensões para ambos se encontram
em cada homem. É esta dualidade que põe um problema moral e exige uma
luta para a resolver. O mal não deixa de ter os seus atractivos -
simbolizados pelo poderoso gigante ou pelo dragão, pelo poder da bruxa,
da astuta rainha em Branca de Neve - e muitas vezes está
temporariamente em ascendência. Em muitos contos de fadas o usurpador
consegue, por algum tempo, apoderar-se do lugar que, por direito
pertence ao herói - como as maldosas irmãs N'A Gata Borralheira. Não é o
facto de o malfeitor ser castigado no fim da história que 16
faz com que os contos de fadas sejam úma experiência de educação moral,
ainda que isso também seja uma parte da questão. Nos contos de fadas,
como na vida, o castigo (ou o medo dele) é somente uma dissuasão
limitada para o crime. A convicção de que o crime não compensa é uma
dissuasão muito mais eficaz, e é por isso que nos contos de fadas os
maus perdem sempre. Não é o facto de a virtude ganhar no fim que
promove a moralidade, mas sim o facto de que o herói é extremamente
simpático para a criança, a qual se identifica com ele em todas as suas
lutas. Por causa desta identificação, a criança imagina que sofre com o
herói todas as suas provações e tribulações, triunfando com ele quando
a virtude triunfa também. A criança faz tais identificações por si
própria, e as lutas interiores e exteriores do herói gravam nela a
moralidade. As personagens dos contos de fadas não são ambivalentes -
não são boas e más ao mesmo tempo, como na realidade o somos. Mas uma
vez que a polarização domina o espírito da criança, ela domina também os
contos de fadas. Uma pessoa é boa ou má, sem meios-termos. Um irmão é
estúpido, outro inteligente. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, a outra
vil e preguiçosa. Uma é bela, as outras feias. Um dos pais é todo
bondade, o outro maldade. A justaposição de personagens opostas não tem
por fim dar ênfase ao bom comportamento, como seria o caso nos contos
de advertência. (Há alguns contos de fadas amorais em que o bem e o
mal, a beleza e a fealdade não têm qualquer papel. ) Estas personagens
polarizadas permitem à criança compreender facilmente a diferença entre
ambos os pólos, coisa que ela não poderia fazer facilmente se os
protagonistas fossem desenhados mais próximos da realidade, com todas
as complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades têm
de esperar até que se tenha estabelecido uma personalidade
relativamente firme com base em identificações positivas. Só então é que
a criança tem bases para compreender que há grandes diferenças entre as
pessoas e que, portanto, tem de fazer uma opção sobre aquilo que quer
ser. Esta decisão básica, sobre a qual todo o desenvolvimento posterior
da personalidade será erigido, é facilitada pela polarização do conto
de fadas. 17
Mais: as preferências da criança baseiam-se não tanto na oposição entre
o bem e o mal como em quem desperta a sua simpatia ou a sua antipatia.
Quanto mais simples e boa for uma personagem, mais fácil será para a
criança identificar-se com ela e rejeitar a personagem má. A criança
identifica-se com o herói bom não por causa da sua bondade, mas porque a
situação do herói encontra nela um eco profundo e positivo. Para a
criança, a questão não é Quero ser bom?, mas sim Com quem me quero
parecer? A criança decide isso com base na sua completa projecção numa
personagem. Se esta é uma boa pessoa, então a criança decide que ela
também quer ser boa. Os contos de fadas amorais não mostram polarização
ou justaposição de pessoas boas e más porque têm uma finalidade
inteiramente diferente. Contos ou personagens como O Gato das Botas, em
que o herói é bem sucedido através das batotas que faz, e Jack, que
rouba o tesouro e os fracos podem triunfar. A moralidade não é o
objectivo destes contos, mas sim o sentimento de que é possível ser bem
sucedido na vida. Respondem assim a um importantíssimo problema
existencial: a questão de se encarar a vida com confiança, na
possibilidade de enfrentar e resolver as dificuldades ou, pelo
contrário, com o sentimento antecipado da derrota. Os profundos
conflitos interiores, que têm origem nas nossas pulsões primitivas enas
nossas emoções violentas, são denegados na maioria da moderna literatura
infantil e desta forma a criança não encontra aí apoio na sua
elaboração desses sentimentos. Mas a criança é sujeita a sentimentos
desesperados de solidão e abandono, e frequentemente sente uma angústia
mortal. As mais das vezes, não sabe exprimir tais sentimentos por
palavras, ou só o pode fazer por forma indirecta: tem medo da escuridão
ou de algum animal, sente angústia pelo seu corpo. Uma vez que
reconhecer estas emoções nos filhos cria mal-estar nos paiseles tendem a
ignorar ou a minimizar
esses receios, com base na sua própria angústia,
pensando que isso acalmará o medo manifestado pelas crianças. 18
O conto de fádas, pelo contrário, leva muito a sério estas angústias e
dilemas existenciais e aborda-os directamente: a necessidade de nos
sentirmos amados e o medo de que pensem que não prestamos para nada; o
amor pela vida e o medo da morte. Além disso, o conto de fadas oferece
soluções que a criança pode apreender no seu nível de compreensão. Por
exemplo, os contos de fadas põem o problema do desejo da vida eterna,
concluindo ocasionalmente: Se eles não morreram, ainda estão vivos.
Outros acabam assim: E viveram felizes para todo o sempre. Contudo, não
levam a criança a acreditar, nem por um instante, que a vida eterna é
possível. Mas indicam a única coisa que pode suavizar os estreitos
limites da nossa passagem por este mundo: a formação de uma ligação
verdadeiramente satisfatória com outrem. Os contos de fadas ensinam que
através das ligações afectivas com outra pessoa atingimos a suprema
segurança emocional e conseguimos as relações mais permanentes que estão
ao nosso alcance; e só isto pode dissipar o medo da morte. Se encon
tramos o verdadeiro amor adulto, diz-nos também o conto de fadas, então
não precisamos de desejar a vida eterna. Isto é sugerido por outro
final: "Eles viveram por muito tempo, felizes e contentes. " As pessóas
mal informadas sobre o conto de fadas vêem neste tipo de final a
satisfação de um desejo infantil irrealista e escapa-lhes completamente
a importante mensagem que é dirigida à criança. Estes contos dizem-lhe
que, através da formação de uma verdadeira relação interpessoal, pode
escapar à angústia da separação que a persegue (angústia essa que
constitui o cenário de muitos contos de fadas e acaba por ser sempre
bem resolvida no fim da história). Mais: a história diz-nos que este
final não se torna possível (tal como a criança deseja e acredita) se
uma pessoa se agarrar à mãe eternamente. Se tentarmos escapar à
angústia da separação e da morte agarrando-nos desesperadamente aos
nossos pais, acabaremos por ser cruelmente postos na rua, como Hansel e
Gretel. Só saindo para a vida é que o herói (a criança) pode
encontrar-se; e deste modo encontrará também "outrem" com quem poderá
viver feliz para sempre (isto é, sem ter de sentir outra vez a angústia
da separação). O conto de fadas é orientado para o futuro e guia a
criança (em termos 19
que ela possa entender tanto do ponto de vista do seu psiquismo
consciente como do seu inconsciente) no sentido de renunciar aos seus
desejos de dependência infantil e realizar uma existência independente
mais satisfatória. As crianças de hoje já não crescem na segurança de
uma grande família ou de uma comunidade bem integrada. Assim, mais
ainda do que no tempo em que foram imventados os contos de fadas, é
importante fornecer à criança moderna imagens de heróis que têm de se
lançar no mundo sozinhos e que, apesar de não saberem à partida como é
que as coisas se vão resolver, acham lugares seguros no mundo, seguindo
para a frente com profunda confiança interior. O herói dos contos de
fadas tem um percurso solitário durante uns tempos, tal como a criança
moderna frequentemente se sente isolada. O herói recebe ajuda porque
está em contacto com coisas primitivas - uma árvore, um animal, a
natureza -, tal como a criança se sente em contacto com estas coisas,
mais do que a maioria dos adultos. O destino destes heróis convence a
criança de que, como eles, se pode sentir abandonada no mundo,
tacteando no escuro; mas, como eles, no decorrer da sua vida será guiada
passo a passo, e receberá ajuda quando necessário. Hoje mais do que
noutros tempos, a criança precisa da confiança oferecida pela imagem do
homem isolado, que todavia é capaz de estabelecer relações
significativas e compensadoras com o mundo que o rodeia. O CONTO DE
FADAS: FORMA DE ARTE SEM PAR Ao mesmo tempo que distrai a criança, o
conto de fadas elucida- a sobre si própria e promove o desenvolvimento
da sua personalidade. Tem tantas significações, em tantos níveis
diferentes, e enriquece a existência da criança por tantas maneiras,
que livro algum é capaz de igualar a quantidade e diversidade de
contributos que estes contos trazem para a criança. Tento demonstrar
neste trabalho a forma como os contos de fadas representam, em fantasia,
o processo de um saudável desenvolvimento humano e como os contos
tornam 20
esse desenvolvimento atraente para a criança que neles se envolve. Este
processo de desenvolvimento começa pela resistência aos pais e pelo
receio de crescer e terminaquando o jovem verdadeiramente se encontra a
si próprio, quando consegue independência psicológica e maturidade
moral e quando tiver deixado de considerar o sexo oposto ameaçador e
demoníaco e com ele puder relacionar-se de forma positiva. Em suma,
este livro explica porque é que os contos de fadas contribuem tanto para
o crescimento interior da criança. O prazer que sentimos quando nos
permitirmos responder a um conto de fadas, o encantamento que sentimos
não provém do alcance psicológico do conto (embora isso também contenha
o seu peso), mas das suas qualidades literárias. Em si mesmos, os
contos são obras de arte; caso contrário, não poderiam ter o impacte
psicológico que têm na criança. Os contos de fadas não têm igual, não só
como forma de literatura mas como obras de arte plenamente
compreensíveis para a criança, como nenhuma outra forma de arte o é.
Tal como a verdadeira arte, o sentido mais profundo do conto de fadas
difere de pessoa para pessoa, e difere para a mesma pessoa em momentos
diferentes da sua vida. A criança extrairá um sentido diferente de um
mesmo conto, segundo os seus interesses e as necessidades de momento. Na
primeira oportunidade, ela regressará ao mesmo conto, quando estiver
pronta para alargar velhos sentidos ou substituí-los por outros novos.
Como obras de arte, os contos de fadas têm muitos aspectos que merecem
ser explorados, além do sentido e impacte psicológicos aos quais este
livro se devota. Assim, a nossa herança cultural encontra expressão nos
contos de fadas e através deles é comunicada à criança *. Um outro
livro poderia pormenorizar o contributo ímpar prestado * Um exemplo: na
história dos irmãos Grimm Os Sete Corvos sete irmãos desaparecem e
tornam-se em corvos quando uma irmã nasce. Tem de se ir buscar água a
um poço num jarro para o baptismo da pequena, e a perda do jarro é
acontecimento profético que prepara o cenário desta história. A
cerimónia do baptismo proclama também o princípio de uma existência
cristã. É possível encarar os sete irmãos como representando o que
tinha de desaparecer para que o cristianismo nascesse. Sendo assim, eles
representam (continua na página seguinte) 21
pelos contos de fadas para a educação moral da criança, tópico que é
apenas aflorado nas páginas que se seguem. Os folcloristas abordam os
contos de fadas sob o ponto de vista da sua disciplina; os linguistas e
os críticos literários examinam o seu sentido por outras razões. É
interessante observar, por exemplo, que há os que vêem no tema da menina
do capuchinho vermelho, engolida pelo lobo, o tema da noite que devora
o dia, da Lua que eclipsa o Sol, do Inverno que sucede às estações
quentes, de um deus engolindo uma vítima oferecida em sacrifício, e
assim por diante. Por muito interessantes que estas interpretações
possam ser, parecem oferecer pouco ao pai ou educador que queira saber
qual o sentido que um conto de fadas pode ter para a criança, cuja
experiência está, afinal, bastante longe das interpretações do mundo
baseadas na natureza e nos corpos celestiais. Também abundam contos de
fadas com motivos religiosos; muitas histórias bíblicas são da mesma
natureza que os contos de fadas. As associações conscientes e
inconscientes que os contos de fadas evocam no espírito do ouvinte
depende
da sua estrutura geral de referência e das suas preocupações
pessoais. As pessoas religiosas encontrarão neles muitos elementos
importantes e que não são aqui mencionados. A maioria dos contos de
fadas teve origem em períodos em que a religião era a parte mais
importante da vida; assim eles lidam directamente, ou por dedução, com
temas e histórias d'As Mil e Uma Noites. Estas histórias estão cheias de
referências à religião islâmica. Muitos contos de (continuação da nota
da página anterior) o mundo pré-cristão pagão no qual Os SCC laii
representavam os deuses celestes da Antiguidade. A recém-nascida é
então a nova religião, que só pode singrar se a velha crença não
interferir com o seu desenvolvimento. Com o cristianismo, os irmãos que
representam o paganismo são relegados para a escuridão. Mas como corvos,
vivem numa montanha nos confins do mundo, e isso sugere a sua
continuada existência num mundo subterrâneo e subconsciente. O seu
regresso à humanidade acontece só porque a irmã sacrifica um dos seus
dedos, o que é coerente com a ideia cristã de que só os que estão
prontos para sacrificarem a parte do seu corpo que os impeça de atingir
a perfeição, caso as circunstâncias o exijam, terão entrada no Céu. A
nova religião - o cristianismo - pode libertar mesmo aqueles que ao
princípio estavam presos ao paganismo. 22
fadas ocidentais têm conteúdo religioso; mas a maior parte destas
histórias é hoje desprezada e desconhecida do grande público, porque,
para muitos, estes temas religiosos já não despertam, universal e
pessoalmente, associações significativas. O esquecimento em que caiu O
Filho de Nossa Senhora, uma das mais lindas histórias dos irmãos Grimm,
é disso exemplo. Começa exactamente como em Hansel e Gretel: "Junto de
uma grande floresta vivia um lenhador com sua mulher. " Tal como em
Hansel e Gretel, o casal é tão pobre que não pode alimentar-se a si
próprio nem à filha de três anos. Comovida com a sua desgraça, a Virgem
Maria aparece-lhes e oferece-se para tomar conta da pequena, que leva
consigo para o Céu. A pequena vive uma vida maravilhosa até à idade de
catorze anos. Nessa altura, como em variadas versões do Barba Azul, a
Virgem confia à pequena as chaves de treze portas, doze das quais ela
pode abrir, mas não a décima terceira. A pequena não resiste à tentação:
mente e, em consequência, é mandada de volta para a Terra, muda. Sofre
provações severas e está para ser queimada viva. Nesta altura, como
deseja confessar a sua má acção, recupera a voz para o fazer, sendo-lhe
dada pela Virgem na felicidade para toda a sua vida". A lição da
história é esta: uma voz habituada a mentir só nos leva à perdição; é
melhor sermos privados dela, como a heroína da história. Mas uma voz
habituada a arrepender-se, para admitir os erros e dizer a verdade,
redime-nos. Bastantes das outras histórias dos irmãos Grimm começam por
alusões religiosas. O Velho Rejuvenescido começa assim: "No tempo em
que Nosso Senhor ainda andava neste mundo, ele e São Pedro pararam uma
noite em casa de um ferreiro". Noutra história, O Pobre e o Rico, Deus,
tal como qualquer outro herói dos contos de fadas, está cansado de tanto
andar. A história começa: "Nos velhos tempos em que Deus ainda andava
neste mundo por entre os homens, aconteceu uma vez que, cansado, foi
surpreendido pela noite antes de poder chegar a úma estalagem. Duas
casas estavam na sua frente, uma em face da outra. " Mas, por muito
importantes e fascinantes que sejam estes aspectos religiosos dos contos
de fadas, estão fora do alcance e fins deste livro, pelo que não serão
aqui abordados. 23
Apesar da finalidade relativamente restrita deste livro, que é sugerir
por que razão os contos de fadas têm tanto sentido para as crianças e
as ajudam a lidar com os problemas psicológicos de crescimento e da
interpretação das suas personalidades, tivemos de aceitar algumas
sérias, mas necessárias, limitações. A primeira delas reside no facto de
que hoje só um pequeno número de contos de fadas tem vasta audiência. A
maior parte dos argumentos aduzidos neste livro poderiam ser ilustrados
por forma mais viva se referíssemos alguns contos menos conhecidos.
Mas, uma vez que estes contos, outrora familiares, são desconhecidos
hoje em dia, teria sido necessário reproduzi-los aqui, o que tornaria o
livro pouco manuseável. Assim, tomou-se a decisão de nos concentrarmos
em alguns contos ainda popularizados, para mostrar alguns dos sentidos
subjacentes e a forma como eles se relacionam com os problemas do
crescimento da criança, com a compreensão de nós próprios e do mundo. E
a segunda parte do livro, em vez de procurar um estudo exaustivo, que
está fora do nosso alcance, examina alguns contos conhecidos e
predilectos com certo pormenor, pelo sentido e prazer que deles podemos
colher. Se este livro se tivesse devotado só a um ou dois contos, teria
sido possível mostrar muitas mais facetas, se bem que não fosse
possível uma sondagem completa da sua profundidade. Cada conto tem
sentidos vários a muitíssimos níveis. A importância que cada história
pode ter para uma determinada criança, em determinada idade, depende
inteiramente do estádio do seu desenvolvimento psicológico e dos
problemas que no momento sejam para ela mais prementes. Embora ao
escrever o livro nos tenha parecido razoável centrarmo-nos nas
significações essenciais dos contos de fadas, isso tem o inconveniente
de desprezar outros aspectos muito mais significativos para esta ou
aquela criança, em função dos problemas contra os quais ela luta em
determinada ocasião. Isso é, pois, outra limitação necessária deste
trabalho. Por exemplo, ao discutir o conto Hansel e Gretel, insisti no
esforço que a criança faz para se agarrar aos pais, apesar de ter já
chegado a altura de ela fazer frente ao mundo sozinha. Insisti
igualmente na necessidade de transcender a oralidade primitiva,
simbolizada pelo entusiasmo infantil 24
perante a casa de pão de trigo. Assim, parece que este conto tem muito
que oferecer à criança que se prepara para dar os seus primeiros passos
no mundo. Dá corpo às suas angústias e mostra que os seus medos, mesmo
na sua forma mais exagerada (a angústia de vir a ser devorada), são
injustificados: as crianças saem vitoriosas no fim e um inimigo muito
ameaçador - é completamente derrotado. Assim, pode-se afirmar que esta
história tem o seu maior atractivo e valor para a criança na idade em
que os contos de fadas começam a exercer o seu impacte benéfico, isto
é, por volta dos quatro ou cinco anos. Mas a angústia da separação (o
medo de sér abandonado) e o medo de morrer de fome, incluindo a avidez
oral não se restringem a determinado período de desenvolvimento. Tais
medos aparecem em todas as idades no inconsciente, e assim este conto
tem também sentido para encorajar crianças de muito mais idade. De
facto, uma criança mais velha pode achar consideravelmente mais difícil
admitir conscientemente o seu medo de ser abandonada pelos pais ou a sua
avidez oral; o que é uma razão a mais para deixar o conto de fadas
falar ao inconsciente, dar corpo às angústias inconscientes e aliviá-las
sem que isso se torne numa percepção consciente. Outros aspectos da
mesma história podem oferecer a necessária confiança e orientação a uma
criança já mais velha. Conheço uma jovem que, no princípio da
adolescência, ficou encantada com Hansel e Gretel, e obteve grande
satisfação com a sua leitura e releitura, fantasma tizando em torno da
história. Enquanto criança, tinha sido dominada por um irmão um pouco
mais velho. De certo modo, ele tinha-lhe mostrado o caminho que ela
devia seguir, tal como Hansel fizera quando colocou as pedrinhas que
haviam de reconduzi-lo e à irmã a casa. Na adolescência, tinha
continuado a confiar no irmão; e este aspecto da história tinha o seu
quê de reconfortante. Mas ao mesmo tempo, ressentia-se do domínio do
irmão. Sem ter consciência
disso na altura, a sua luta por
independência rondou a figura de Hansel. A história dizia ao seu
inconsciente que seguir a liderança de Hansel fazia-a recusar em vez de
avançar; e era também significativo que, ainda que Hansel fosse o líder
no princípio da história, foi Gretel que no fim conseguiu a liberdade e
a independência para 25
ambos, porque foi ela que venceu a bruxa. Já adulta, esta mulher
compreendeu que o conto de fadas a tinha ajudado grandemente a
desembaraçar-se da dependência do irmão, assim como a convenceu de que
essa dependência precoce não tinha necessariamente de interferir com o
futuro. Assim, a história, que tivera um determinado sentido para ela
enquanto criança, orientou a sua conduta na adolescência por uma razão
bastante diferente. O tema central de Branca de Neve é a história de uma
rapariga púbere que, por todos os meios, ultrapassa a sua maldosa
madrasta, a qual, por ciúme, lhe nega uma existência independente - o
que é simbolicamente representado pelo facto de a madrasta tentar a
destruição de Branca de Neve. Contudo, para uma determinada criança de
cinco anos, o sentido mais profundo está muito longe destes problemas
púberes. A mãe era fria e distante, a ponto de ela se sentir perdida. A
história garantia-lhe que não devia desesperar-se: Branca de Neve,
traída pela madrasta, foi salva por homens - primeiro pelos anões e
depois pelo príncipe. Também esta criança não desesperou por causa da
deserção da mãe, mas confiava em que a sua salvação proviria de homens.
Confiada no exemplo de Branca de Neve, a criança virou-se para o pai que
respondeu favoravelmente. O final feliz do conto, tornou possível a
esta criança encontrar uma solução para a falta de interesse da mãe.
Assim, um conto de fadas pode ter um sentido tão importante para uma
criança de cinco anos como para uma de treze, apesar de os sentidos
pessoais que dele retirem serem bastante diferentes. Em Rapunzel ficamos
a saber que uma bruxa fechou Rapunzel numa torre quando ela chegou aos
doze anos. Assim, a sua história é também a de uma púbere e de uma mãe
que tenta evitar que ela consiga a independência. - problema típico que
tem solução feliz quando Rapunzel se une ao seu príncipe. Mas um menino
de cinco anos obteve desta história uma gratificação bastante diferente.
Quando soube que a avó, que tomava conta dele quase todo o dia, teve de
baixar ao hospital por causa de uma doença grave (a mãe trabalhava o dia
todo e não havia pai naquela casa) pediu que lhe lessem a história de
Rapunzel. Neste momento crítico da 26
sua vida, dois elementos do conto eram importantes para ele: primeiro,
era a protecção contra todos os perigos em que a mãe substituta (a
bruxa) mantinha a criança, ideia que ao tempo muito o encantava. Assim,
o que podia normalmente ser considerado um comportamento negativo e
egoísta, passou a ter um sentido muitíssimo consolador dentro daquelas
circunstâncias específicas. E ainda mais importante para o menino foi o
tema central da história: o facto de Rapunzel ter encontrado os meios de
escapar à situação através do seu próprio corpo - as tranças, que deixa
cair ao longo da torre e pelas quais o príncipe trepa até ao seu quarto.
O facto de o corpo poder fornecer saída airosa garantiu-lhe que, se
necessário, ele poderia igualmente encontrar no seu corpo a fonte da sua
segurança. Isto mostra que um conto de fadas - porque se dirige pela
forma mais imaginativa a problemas humanos essenciais e o faz de uma
maneira indirecta - pode ter muito que oferecer a um menino, mesmo
quando a heroína do conto é uma adolescente. Estes exemplos podem ajudar
a compreender por que razão me concentro aqui nos temas principais de
uma história e demonstram que os contos de fadas têm grande sentido
psicológico para as crianças de todas as idades tanto rapazes como
raparigas, independentemente da idade ou sexo do herói da história. Os
contos têm significações pessoais riquíssimas, porque facilitam as
mudanças de identificações de acordo com os problemas com que a criança
lida. A luz da sua anterior identificação com uma Gretel que tinha
prazer em ser guiada por Hansel, a ulterior identificação com a Gretel
que venceu a bruxa tornou a progressão da adolescente para a
independência mais segura e enriquecedora. O facto de o rapazito ter
encontrado consolação na ideia de estar seguro, guardado numa torre,
permitiu-lhe posteriormente encontrar gratificação em saber que o seu
próprio corpo lhe podia oferecer uma muito maior confiança e
estabilidade. Como nos não é possível saber exactamente em que idade um
determinado conto de fadas será mais importante para uma determinada
criança, não podemos decidir qual dos muitos contos deverá ser contado
em determinado tempo ou porquê. Só a criança pode determinar isso
através da força das emoções com que reage ao que um 27
conto evoca no seu consciente ou inconsciente. Naturalmente, os pais
começarão por contar ou ler ao filho um conto de que eles próprios
gostaram em pequeninos ou de que gostam ainda hoje. Se a criança não
mostra entusiasmo pela história, isso significa que os motivos e temas
não evocaram nela uma resposta significativa nesta altura da sua vida.
Será então melhor contar-lhe outra história na noite seguinte. Depressa
indicará que determinada história se tornou importante para ela, pela
sua resposta imediata à mesma, ou por pedir que lha contem mais e mais
vezes. Se tudo correr bem, o entusiasmo da criança por essa história
tornar-se-á contagioso e a história será importante para os pais,
quanto mais não seja porque tem tão grande sentido para o filho.
Finalmente, virá o dia em que a criança retirou já tudo quanto podia da
sua história preferida, porque os problemas que o tinham feito responder
à história foram substituídos por outros, que encontrarão melhor
expressão num outro conto. Ela poderá então perder, temporariamente,
interesse por este conto e gostar muito mais de outro. Para contar
contos de fadas é sempre melhor seguir a indicação da criança. Mesmo
que os pais adivinhem correctamente as razões por que o seu filho se
envolveu emocionalmente com determinado conto, deve ser guardada só
para si esta descoberta. As experiências e as reacções de uma criança
são extremamente importantes e em grande parte inconscientes, devendo
permanecer assim até que ela chegue a uma idade em que uma compreensão
mais madura seja possível. É sempre inoportuno interpretar os
pensamentos inconscientes de uma pessoa, tornar consciente o que ela
deseja conservar pré-consciente, e isto é especialmente verdade no caso
de uma criança. É tão importante para o bem-estar da criança sentir que
os seus pais compartilham as suas emoções, através do gosto pelo mesmo
conto, como sentir que os seus pensamentos íntimos não são conhecidos
deles até que se decida a revelá- los. Se os pais indicam que já os
conhecem, estão a recusar à criança a sua mais preciosa dádiva, o
permitir-lhes que compartilhem com ela aquilo que até então era secreto
e privado. E como, ainda por cima, os pais são muito mais poderosos do
que a criança, o seu domínio pode parecer não ter limites (e ser por
isso avassaladoramente destrutivo) se eles derem a impressão 28
de que lêem os pensamentos secretos do filho, conhecem os seus mais
recônditos sentimentos, mesmo antes de o próprio filho começar a ter
consciência deles. Além disso, explicar a uma criança por que razão um
conto de fadas é para ela tão cativante destrói o encantamento da
história, que depende em grande parte do facto de a criança não saber ao
certo porque ficou tão deliciada com ela. E com a perda deste poder de
encantamento vai-se também o potencial da história para ajudar a criança
a lutar por si própria e resolver sem ajuda o problema que em sua
opinião deu sentido à história. As interpretações dos adultos, por muito
correctas que sejam, furtam à criança a oportunidade de sentir que foi
ela sozinha, por ouvir e ruminar repetidamente a história, que conseguiu
resolver com êxito uma situação difícil. Nós crescemos encontramos o
sentido da vida e confiança em nós próprios por termos compreendido e
resolvido os nossos problemas pessoais, e não porque outros no-los
explicaram. Os temas dos contos de fadas não são sintomas neuróticos,
qualquer coisa que seja melhor compreendermos de maneira racional de
forma a desembaraçarmo-nos rapidamente deles. Estes temas são sentidos
como maravilhas pela criança porque através deles se sente compreendida
e apreciada no seu âmago, nos seus sentimentos, nas suas esperanças e
angústias, sem que seja preciso trazer tudo isso à superfície para ser
investigado à luz crua de uma racionalidade que ainda está para além da
compreensão infantil. Os contos de fadas enriquecem a vida da criança e
apresentam-se com uma qualidade de encantamento exactamente porque ela
não sabe como é que as histórias produziram em si semelhante prodígio.
Este livro foi escrito para ajudar os adultos, muito especialmente
aqueles que têm filhos, a criar, a serem mais plenamente conscientes da
importância de tais contos. Como já se disse, são pertinentes as
inúmeras interpretações além das sugeridas no texto que segue: os contos
de fadas, tal como as verdadeiras obras de arte, possuem uma riqueza e
uma profundidade tão variadas que transcendem de longe o que o exame
discursivo mais meticuloso pode deles extrair. O que se diz neste livro
deve ser visto meramente como assunto ilustrativo e sugestivo. Se o
leitor se sentir estimulado para ir além da superfície, por si próprio,
29
extrairá destas histórias um sentido pessoal sempre mais variado, que se
tornará mais significativo para as crianças a quem ele conta as
histórias. Contudo, deve-se notar aqui uma limitação especialmente
crucial: o verdadeiro sentido, o impacte de um conto de fadas só podem
ser apreciados, o seu encantamento só pode ser sentido se a história for
contada na sua forma original. A simples descrição dos episódios
significativos de um conto de fadas empresta pouco sentimento àquilo de
que ele trata, assim como a narrativa seca dos assuntos de um poema.
Infelizmente, semelhante descrição dos temas principais é tudo quanto um
livro como este pode fazer, a menos que se reimprimam as histórias. Uma
vez que a maior parte destes contos de fadas são facilmente acessíveis,
espera-se que este livro seja lido conjuntamente com nova leitura dos
contos discutidos *. Seja A Menina do Capuchinho Vermelho, A Gata
Borralheira ou qualquer outro conto, só a própria história permite uma
apreciação das suas qualidades poéticas, e com ela a compreensão de
como ela enriquece um espírito receptivo. * As versões dos contos de
fadas discutidas neste livro acham-se referidas nas notas do fim do
livro. 30
Primeira Parte UM PUNHADO DE MAGIA
A VIDA ADIVINHADA DE DENTRO "A Menina do Capuchinho Vermelho foi o meu
primeiro amor. Sentia que se pudesse ter-me casado com ela teria
conhecido a verdadeira felicidade. " Esta afirmação de Charles Dickens
indica que ele, como incontáveis milhões de crianças por esse mundo
fora através dos tempos, também fora encantado pelos contos de fadas.
Mesmo já célebre, Dickens reconheceu o impacte formativo que as
fantásticas personagens e ocorrências dos contos de fadas tiveram nele e
no seu génio criador. Repetidamente exprimiu desprezo pelos que, em
nome de uma racionalidade desinformada e mesquinha, insistiam em
racionalizar, expurgar ou pros crever estas histórias, roubando assim
às crianças as importantes contribuições que os contos de fadas podem
trazer para as suas vidas. Dickens compreendeu que as imagens dos contos
de fadas ajudam as crianças, mais do que tudo na sua muito difícil e
todavia importante e satisfatória tarefa: a conquista de uma
consciencialização mais madura que ponha ordem nas pressões caóticas do
seu inconsciente. Hoje, como outrora, o espírito, quer das crianças
criativas, quer das crianças médias, pode ser aberto à compreensão de
todas as coisas elevadas da vida através dos contos de fadas, a partir
dos quais elas se podem facilmente deslocar para as delícias das
melhores obras de literatura. * As chamadas numéricas remetem para as
notas publicadas no fim do volume.
e de arte. Por exemplo, o poeta Louis MacNeice diz: - As verdadeiras
histórias de fadas sempre tiveram para mim grande significado pessoal,
mesmo quando no colégio onde andava confessar isso significava perder a
face. Contrariamente ao que muitas pessoas ainda hoje dizem, um conto de
fadas, pelo menos de estilo clássico popular, é coisa mais sólida do que
os romances realistas médioscujo impacte pouco mais profundo é do que o
de uma coluna de bisbilhotice. De histórias populares e sofisticados
contos de fadas, tais como os de Andersen ou a mitologia nórdica e
histórias como os livros de Alice e Water Babiespassei, por volta dos
doze anos, para Faerie Queene, Críticos literários como G. K. Chesterton
e C. S. Lewis sentiam que os contos de fadas eram explorações
espirituais, e daí as mais próximas da vida, já que revelam a vida
humana tal como ela é vista, sentida ou adivinhada por dentro 3. Os
contos de fadas, ao contrário de qualquer outra forma de literatura,
orientam a criança no sentido de descobrir a sua identidade e vocação e
sugerem também quais as necessárias experiências para melhor desenvolver
o seu carácter. Os contos de fadas insinuam que uma vida
boacompensadora, está ao alcance de todos, apesar da adversidade, desde
que não nos subtraiamos a enfrentar lutas árduas, sem as quais ninguém
pode conseguir verdadeira identidade. Estas histórias prometem que, se a
criança tiver a coragem de se embrenhar nesta terrível e esgotante
demanda, poderes benevolentes virão em seu auxílio e ela vencerá. As
histórias advertem também que os que são demasiado timoratos e acanhados
para se arriscarem a encontrar-se a si próprios têm de se sujeitar a uma
existência insípida - se lhes não for reservada sorte pior ainda. As
crianças das gerações passadas, que adoraram e sentiram a importância
dos contos de fadas, ficaram sujeitas ao escárnio somente dos pedantes
como aconteceu com MacNeice. Hoje, muitos dos nossos filhos estão muito
mais gravemente lesados - porque estão totalmente privados da
oportunidade de conhecer os contos de fadas. A maior parte das crianças
de hoje toma conhecimento dos contos de fadas em versões embonecadas e
simplificadas, as quais abrandam o seu sentido e lhes roubam qualquer
significado mais profundo - versões tais como as dos filmes e 34
espectáculos da TV, em que os contos de fadas se transformam em
divertimentos esvaziados de sentido. Durante a maior parte da história
do homem, a vida intelectual da criança (além das experiências mais
imediatas no seio da família) dependia de histórias míticas ou
religiosas e de contos de fadas. Esta literatura tradicional alimentava
a imaginação da criança e estimulava a sua fantasia. Simultaneamente,
uma vez que estas histórias respondiam às perguntas mais importantes da
criança, constituíam o principal agente da sua socilização. Mitos e
lendas religiosas (que com eles estão intimamente relacionadas)
ofereciam material com o qual as crianças formavam os seus conceitos
sobre a origem e a finalidade do mundo e sobre os ideais sociais que a
criança poderia imitar. Tais eram as imagens do invicto herói Aquiles e
do astuto Ulisses; de Hércules, cuja história mostrava que não era
indigno, mesmo para o mais forte dos homens, limpar a mais nojenta das
cavalariças; de São Martinho, que cortou ao meio a sua capa para vestir
um mendigo. Muito antes de Freud, o mito de Édipo tornou-se a imagem que
permite compreender os sempre novos e antiquíssimos problemas que nos
são postos pelos nossos complexos e ambivalentes sentimentos para com
os nossos pais. Freud referiu-se a esta velha história para nos dar
consciência do inevitável caldeirão de emoções que cada criança à sua
maneira, tem de enfrentar a partir de determinada idade. Na civilização
hindu, a história de Rama e Sita (incluída no Ramayana) relata a serena
coragem e apaixonado amor que os une e é o protótipo das relações
amorosas e do casamento. Álém disso, esta cultura convida toda a gente a
tentar reviver este mito na sua própria vida; todas as noivas hindus se
chamam Sita, e, como parte da cerimónia nupcial, elas representam em
mímica certos episódios io mito. Nos contos de fadas, os processos
internos são exteriores e tornam- se compreensíveis porque são
representados por personagens da história e pelas suas ocorrências. Por
isso é que na medicina hindu tradicional um conto de fadas, que era quem
punha em jogo o seu problema particular, era oferecido a uma pessoa
psiquicamente desperada, para meditação. Admitia-se que, através da
contenplação da história, a pessoa perturbada seria levada 35
a uma visão da natureza do impasse que vivia na altura e entreveria a
possibilidade da sua resolução. Aquilo que determinado conto contivesse
sobre o desespero, as esperanças e os métodos de vencer as tribulações
permitia ao paciente descobrir uma saída para a sua aflição e
encontrar-se a si próprio, à imagem do herói da história. Mas a
importância suprema dos contos de fadas para o indivíduo em crescimento
é qualquer coisa diferente dos ensinamentos sobre as formas correctas de
viver neste mundo (esta sabedoria é bastante suprida pela religião,
pelos mitos e pelas fábulas). Os contos de fadas não têm a pretensão de
descrever o mundo tal como ele é nem aconselham o que cada um deve
fazer. Se o fizessem, o doente hindu seria levado a seguir um padrão de
comportamento imposto - o que seria não só má terapêutica, mas o con
trário da terapia. O conto de fadas é terapêutico porque o paciente
encontra a sua própria solução contemplando o que a história parece
conter a seu respeito e aos seus conflitos interiores nesse momento da
sua vida. O conteúdo do conto escolhido não tem nada a ver com a vida
exterior do doente, mas muito com os seus problemas internos, que
parecem incompreensíveis e, portanto, insolúveis. O conto de fadas não
se refere claramente ao mundo exterior, ainda que comece de forma
bastante realista e contenha temas do quotidiano. A natureza irrealista
destes contos (a que tacanhos espíritos racionalistas se opõem) é
importante " porque torna óbvio que o objectivo dos contos de fadas não
é dar informação útil sobre o mundo exterior, mas sim sobre os
processos psicológicos interiores que têm lugar num indivíduo". Na maior
parte das culturas não há uma linha clara de separação entre o mito e os
contos populares ou de fadas; todos eles formam a literatura oral das
sociedades sem escrita. As línguas nórdicas têm uma palavra para
designar ambos: saga. O alemão reteve a palavra Saga para mitos,
enquanto os contos de fadas se chamam Mrchen. É infeliz o facto de, em
muitas línguas, os nomes para estas histórias realçarem o papel das
fadas - porque na maioria delas as fadas não aparecem. Os mitos e os
contos de fadas só atingem forma definida quando são passados a escrito
e deixam de estar sujeitos a uma mudança contínua. Antes de passarem a
escrito, estas histórias estavam 36
condensadas ou eram largamente elaboradas à força de serem contadas e
recontadas através dos séculos; algumas misturam-se com outras. Todas se
foram modificando por - aquilo que o contador pensava ser de mais
interesse para os seus ouvintes, pelas suas preocupações de momento ou
pelos problemas especiais da sua época. Alguns contos de fadas ou
populares evoluíram a partir de mitos; outros foram neles incorporados.
Ambos encarnavam a experiência acumulada da sociedade de acordo com a
maneira como os homens gostavam de recordar a sabedoria passada ou
transmiti-la às futuras gerações. Estes contos proporcionam profundas
intuições que ligaram a humanidade através das longas vicissitudes da
sua existência - herança essa que não é revelada às crianças por
qualquer outra forma tão simples e directamente sensível como esta. Os
mitos e os contos de fadas têm muito de comum. Mas nos mitos, muito mais
do que nos contos de fadas, o personagem central é apresentado ao
ouvinte como um herói se deve comportar, tanto quanto possível, durante
toda a vida. Por muito que nos esforcemos por ser iguais a esses heróis,
permaneceremos sempre e indiscutivelmente inferiores a eles. As
personagens e as ocorrências dos contos de fadas também personificam e
ilustram conflitos internos, mas sugerem com extrema subtileza como
resolver esses conflitos e quais os passos a dar em direcção a uma
humanidade mais nobre. O conto de fadas é apresentado de forma simples,
familiar; não se fazem exigências ao ouvinte - o que evita até à mais
pequenina das crianças o sentir-se compelida a actuar de uma maneira
específica - e nunca faz sentir à criança que ela é inferior. Longe de
fazer exigências, o conto de fadas sossega, dá esperanças no futuro e
contém a promessa de um desfecho feliz. É por isso que 37
Lewis Carroll lhe chamou uma prenda de amor - termo que dificilmente se
aplica a ùm mito *. É evidente que nem todas as histórias de uma
colecção de contos de fadas seguem este critério. Muitas delas são
simples diversões, contos preventivos, fábulas. Se são fábulas, contam
por meio de palavras, acções ou ocorrências - por muito fabulosas que
estas sejam - o que cada qual deve fazer. As fábulas exigem e ameaçam-
são moralistas - ou, simplesmente, distraem. Para decidir sobre se a
história é ou não um conto de fadas, poder-se-á perguntar se a ela se
pode aplicar o qualificativo prenda de amor para uma criança. Penso que
seria uma boa via para se chegar a uma classificação. Para
compreendermos como é que uma criança julga os contos de fadas,
consideremos por exemplo os muitos contos em que o jovem herói engana o
gigante que o aterra ou até ameaça a sua vida. Que as crianças sabem por
intuição o que estes gigantes representam, vê-se logo pela seguinte
reacção espontânea de uma criança de cinco anos: Animada pela discussão
acerca da importância que têm os contos de fadas para as crianças, uma
mãe vence a sua hesitação em contar ao seu filho histórias tão sangren
tas e ameaçadoras. Assim, contou-lhe a história de Jack, o Mata Gigantes
4. No fim, a resposta do filho foi: Os gigantes não existem, pois não?
Antes que a mãe pudesse dar ao filho a resposta tranquilizadora que lhe
estava na ponta da língua - e que estragaria o valor da história para
ele -, o pequeno continuou: Mas há pessoas crescidas que são como os
gigantes. Com os seus cinco anos, ele compreendeu a encorajadora
mensagem da história: apesar de os adultos poderem parecer gigantes
assustadores, um rapazinho esperto pode vencê- los. Criança de fronte
sem nuvens E olhos cheios de sonhos e encantosApesar do tempo veloz E de
estarmos separados por meia vida eu e tu, O teu amoroso sorriso
certamente acolherá A prenda de amor de um conto de fadas. C. L.
Dodgson (Lewis Carroll), em Through the Looking Glass 38
Esta observação revela uma fonte da relutância dos adultos em contarem
contos de fadas: nós sentimo-nos mal com a ideia de que, por vezes,
possamos parecer gigantes aos nossos filhos, como de facto acontece. Nem
queremos aceitar o facto de quão fácil é para eles pensar que nos
intrujam ou que somos uns idiotas e quanto eles se sentem deliciados com
semelhante ideia. Contudo, quer lhes contemos ou não contos de fadas -
como se prova com o exemplo do pequeno-, nós aparecemos a seus olhos
como gigantes egoístas que querem guardar para si todas as coisas
maravilhosas que dão força. Os contos de fadas criam nas crianças
confiança, no sentido de que, eventualmente elas podem levar a melhor
sobre o gigante - isto é, que elas podem crescer e ficar como eles e
adquirir os mesmos poderes.
Estas são as poderosas esperanças que fazem
de nós homens". Mais significativamente, se nós, os pais, contarmos
estes contos de fadas aos nossos filhos, podemos dar-lhes a mais
importante de todas as confianças: a de que concordamos com a ideia de
que podem levar a melhor sobre os gigantes. Mas atenção: ler não é o
mesmo que ouvir contar uma história, porque, lendo sozinha a criança
pode pensar que só uma pessoa estranha - aquela que escreveu a história
ou editou o livro - aprova que se engane e diminua o gigante. Mas quando
os seus pais lhe contam a história, a criança tem a certeza de que eles
aprovam a sua resposta, fantasmática, à ameaça que a dominação adulta
implica. O PESCADOR E O GÉNIO O CONTO DE FADAS COMPARADO COM A FÁBULA Um
dos contos d'As Mil e Uma Noites" O Pescador e o Génio, apresenta um
quadro quase completo do tema do conto de fadas que caracteriza um
gigante em conflito com uma pessoa vulgar. Este tema é comum a todas as
culturas sob uma forma ou outra, dado que todas as crianças, em toda a
parte, têm medo e aborrecem-se com o poder 39
que os adultos têm sobre elas. (No Ocidente, isso é mais conhecido na
forma exemplificada pela história dos irmãos Grimm, O Espirito Que
Estava Dentro da Garrafa. ) As crianças sabem que, a não fazerem o que
os adultos querem, só têm uma saída contra a sua ira: intrujá-los. O
Pescador e o Génio conta como um pobre pescador lançou quatro vezes a
sua rede à água. Da primeira vez pescou um asno morto; da segunda, um
cântaro cheio de areia e lodo. Da terceira vez, foi menos feliz: lixo e
vidros partidos. Da quarta vez, o pescador içou um jarro de cobre. Assim
que o abriu, saiu de lá de dentro uma nuvem imensaque se materializou
num génio, que o ameaçou de morte, apesar de todas as suas súplicas. O
pescador salva-se graças à sua argúcia: faz pouco do génio, duvidando em
voz alta que tão grande como ele é pudesse alguma vez ter cabido dentro
do pequeno jarro; convence-o assim a voltar para o jarro, para provar
que tal é possível. Rapidamente o pescador fecha e veda o jarro e
atira-o outra vez para o oceano. Noutras culturas, o mesmo tema pode
aparecer numa versão em que o mau da história se materializa num animal
grande e feroz que ameaça devorar o herói, o qual, se não fosse a sua
calma, não poderia enfrentar o adversário. O herói reflecte em voz alta
que deve ser fácil para um tal espírito tomar a forma de uma criatura
imensamas que não poderá tornar-se num pequeno animal - por exemplo, um
rato ou um pássaro. Isto aguça a vaidade do espírito, e é o seu fim.
Para mostrar que nada lhe é impossível, o espírito mau transforma-se num
animal minúsculo, que é então facilmente derrotado pelo herói.
 A história de O Pescador e o Génio é mais rica de mensagens
escondidas do que as outras versões do mesmo tema, dado que contém
pormenores significativos que nem sempre se encontram noutras versões.
Ficamos a saber
 a razão por que o génio se tornou tão implacável, a ponto de
querer matar quem lhe deu a liberdade; outro elemento é que houve três
tentativas infrutíferas antes da recompensa (quarta tentativa). Segundo
a moralidade adulta, quanto mais tempo demora a prisão mais grato ficará
o preso a quem o libertar. Mas não é isso que o génio diz. Durante os
primeiros cem anos em que ficou preso dentro do jarro, ele jurou 40
que havia de enriquecer para sempre quem o libertasse. Porém, passou-se
um século e, como ninguém me libertou, entrei no segundo dos cinco
grupos de vinte anos, e disse: "A quem me libertar abrirei os tesouros
da terra." Mas ninguém me libertou, e assim se passaram quatrocentos
anos. Então disse: "A quem me libertár satisfar-lhe-ei três desejos."
Nem assim fui libertado, de forma que, enraivecido, disse a mim próprio:
"A quem me libertar, hei-de matá-lo." Isto é exactamente o que a criança
sente quando se sente "abandonada". Primeiro, pensa que feliz ela será
quando a mãe voltar; ou, quando o mandam de castigo para o quarto, que
contente ficará quando a deixarem sair e como compensará a mãe. Mas vai
passando o tempo e a criança começa a ficar cada vez mais zangada. E
fantasia então a vingança terrível, que fará recair sobre aqueles que a
frustraram. O facto de ela ficar realmente muito contente quando é
perdoada não modifica a forma como os seus pensamentos se movem da
recompensa para o castigo daqueles que lhe infligiram momentos de
aflição. Assim a maneira como evoluem os pensamentos do génio constitui
na criança uma realidade psicológica. Um pequenino de três anos cujos
pais se ausentaram para o estrangeiro por várias semanas é um bom
exemplo désta "progressão de sentimentos." O pequeno falava muito bem
antes da partida dos pais e continuou a fazê-lo com a mulher que passou
a tomar conta dele, assim como com outras pessoas. Mas, no regresso dos
pais, não lhes disse palavra nem a eles nem a ninguém, durante duas
semanas. Segundo disse a ama que o tratou, era evidente que, durante os
primeiros dias da ausência dos pais, tinha ansiado pelo seu regresso. No
fim da primeira semana, porém, começou a dizer que estava muito zangado
por os pais o terem deixado, e que haviam de pagar quando voltassem.
Uma semana depois, recusava-se até a falar dos pais e zangava-se
violentamente com quem quer que fosse que os mencionasse. Quando o pai
e a mãe acabaram por voltar, silênciosamente, virava-lhes as costas.
Apesar de todos os esforços para o cativarem, o pequeno permanecia
firme na sua decisão. Durante semanas, os pais tentaram compreender
solicitamente a situação, até que a criança voltou a ser o que era
antes. Parece claro que, à medida que o tempo 41
corria, a raiva do pequeno tinha aumentado até se tornar tão violenta e
esmagadora que ele receava que, se se desse rédea livre a si próprio,
destruiria os pais ou seria por eles destruído como retaliação. A sua
recusa em falar era a sua defesa: a sua maneira de se proteger e aos
seus pais contra as consequências da sua enorme raiva. Não há forma de
se saber se na linguagem originalle d'O Pescador e o Génio há algum
conceito parecido com o nosso sobre os "sentimentos engarrafados"
(bottled-up feelings). Mas a imagem de confinamento dentro de uma
garrafa era então tão apropriada como é hoje para nós. De uma forma ou
de outra, todas as crianças passaram por experiências semelhantes às do
pequenito de três anosainda que geralmente de maneira menos extrema e
sem a sua forte reacção. Conscientemente, a criança não sabe
 o que lhe aconteceu - sabe só que ela tem de proceder assim.
Quaisquer esforços para ajudar a criança a compreender racionalmente o
que se passa não a afectarão; pelo contrário, deixá-la-ão derrotada
porque ela ainda não tem idade para pensar racionalmente. Se se disser a
uma criança pequena que um menino ficou tão zangado com os pais que
deixou de lhes falar por duas semanas, a sua reacção será: É parvo!, Se
se tentar explicar por que razão o miúdo não falou durante duas semanas,
a criança que ouve a história ainda sente mais que proceder desta
maneira é uma parvoíce, não só porque ela considera isso um disparate,
mas porque a explicação não tem para ela qualquer sentido. Para
compreender isso tem de aceitar o facto de que as suas próprias emoções
a possam subjugar a tal ponto que ela perca o controle sobre as mesmas
- o que é um pensamento deveras assustador. A ideia de que haja forças
que residem dentro de nós e estão fora do nosso controle é
demasiadamente ameaçadora para poder ser bem acolhida, e isto não tem a
ver apenas com as crianças *. * Eis um exemplo que mostra quão
intranquilizador é para uma criança pensar que, sem que ela o saiba, se
desenrolam dentro de si processos poderosos. Aconteceu a um garoto de
sete anos, quando os seus pais tentaram explicar-lhe que as suas
emoções (continua na próxima página) 42
Na criança, a acção toma o lugar da compreensão, e isto tanto mais
verdadeiro quanto mais fortes são os
sentimentos dela. Pode ter
aprendido a dizer outra coisa de acordo com o que os adultos lhe
ensinaram, mas, a seusolhos, as pessoas não choram porque estão
tristes: choram porque sim. As pessoas não batem e destroem ou deixam de
falar porque estão zangadas: fazem isso porque sim. Uma criança pode
ter aprendido a aplacar os adultos explicando as suas acções: "Fiz assim
porque estou zangado," mas isso não modifica o facto de que a criança
não sentiu a zanga como tal, mas como simples impulso para bater,
destruir ou ficar calada. Só na puberdade é que começamos a reconhecer
as nossas emoções tal como são, sem que imediatamente procedamos de
acordo com elas ou desejemos fazê-lo. Os processos inconscientes da
criança só podem ser claros para ela através de imagens que falem
directamente ao seu inconsciente. As imagens evocadas pelos contos de
fadas fazem isso. Tal como a criança não pensa: "Quando a mamã voltar
vou ficar contente", mas "Hei-de dar-lhe qualquer coisa", também o
génio disse a si próprio: "Aquele que me libertar, enriquecê-lo-ei." Tal
como a criança não pensa "Estou tão zangado que podia matar este
homem", mas "Quando o vir, mato-o", também o génio disse: "Hei-de matar
quem quer que seja que me liberte." Se uma pessoa real falasse ou
procedesse assim, uma tal ideia criaria demasiada angústia para permitir
a compreensão. Mas a criança sabe que o génio é uma personagem
imaginária, e assim pode reconhecer o que a motiva, sem ser forçada a
aplicar a si própria a ideia. A medida que a criança vai fazendo girar
os seus fantasmas em torno da história (e, se não o faz, o conto perde a
maior parte do seu impacte) vai-se familiarizando com a maneira como o
génio responde à frustração e à prisão, o que é um importante passo
para se familiarizar com as (continuação da nota da página anterior) o
tinham levado a fazer coisas que eles - e a própria criança meramente
reprovavam. A reacção do pequeno foi: "Quer dizer então que há uma
máquina dentro de mim que trabalha a toda a hora e que em qualquer
altura me pode fazer explodir?" Desde então, esta criança viveu durante
algum tempo no terror da autodestruição iminente. 43
reacções paralelas dentro de si. Sendo um conto de fadas de um país
imaginário, a oferecer à criança estes modelos de comportamento, ela
pode fazer oscilá-los no seu espírito entre É verdade, é assim que uma
pessoa procede e reage e É tudo mentira, não é senão uma história, tudo
dependendo do facto de estar ou não apta a reconhecer tais processos em
si própria. O mais importante é que, uma vez que o conto de fadas
garante um desfecho feliz, a criança não receia permitir ao seu
inconsciente que alinhe com o conteúdo da históriaporque sabe que,
aconteça o que acontecer, viverá feliz para sempre. Os fantásticos
exageros da história (tais como ter estado engarrafado durante séculos)
tornam plausíveis e aceitáveis reacções que, em situações apresentadas
de forma mais realista, como a ausência dos pais), o não seriam. Para a
criança, a ausência dos pais parece durar uma eternidade - sentimento
que não é nada afectado pela explicação, dada pela mãe, de que só
esteve ausente meia hora. Portanto, os exageros fantásticos do conto
dão-lhe uma aura de verdade psicológica - ao passo que as explicações
realistas parecem psicologicamente falsas, por mais conformes com a
realidade que sejam. O Pescador e o Génio ilustra a forma como o conto
de fadas perde todo o seu valor se for simplificado e expurgado. Vendo a
história pelo lado de fora, pareceria desnecessário fazer passar o
pensamento do génio por mudanças que vão desde o desejo de recompensar a
pessoa que o libertar ao desejo de a castigar. A história podia ser
simplesmente a de um génio malvado que desejasse matar o seu libertador,
o qual, não passando de um fraco ser humanoconseguiria iludir o espírito
poderoso. Porém, nesta forma simplificada, o conto não é senão uma
história atemorizadora com um desfecho feliz, sem verdade psicológica. E
a mudança do génio, de desejar recompensar para desejar castigar, que
permite à criança sintonizar-se com a história. Uma vez que a história
descreve com tanta verdade o que se passa na cabeça do génio, a ideia de
que o pescador pode ser mais esperto do que ele, dá-lhe foros de
verdade. A eliminação destes elementos, aparentemente insignificantes,
faz com que os contos de fadas percam 44
o seu significado mais profundo, tornando-os assim sem interesse para a
criança. Sem estar disso consciente, a criança regozija-se por ver num
conto de fadas uma crítica àqueles que detêm o poder de a engarrafar.
Há muitas histórias infantis modernas em que a criança leva a melhor
sobre o adulto. Contudo, porque são demasiado directas, estas histórias
não oferecem alívio à imaginação dos que vivem sempre sob o jugo do
poder adulto; ou, então, amedrontam a criança, mas segurança assenta no
facto de o adulto ser mais perito do que ela e poder protegê-la
convenientemente. É por isso que é importante que o enganado seja um
gigante ou um génio, e não um adulto. Se disserem à criança que ela pode
enganar alguém como os seus pais, é possível que a coisa lhe pareça
agradável, mas cria ao mesmo tempo uma certa angústia. Porque, se tal é
possível, então como é que a criança pode estar convenientemente
protegida por gente tão crédula? Como o gigante é uma figura imaginária,
a criança pode fantasiar que o vence por meio da astúcia, ao ponto de
não só o subjugar como o destruir, ttendo ao mesmo tempo os adultos
reais como prova. O conto O Pescador e o Génio tem várias vantagens
sobre as do ciclo de Jack (Jack, o Mata Gigantes, Jack e o Feijoeiro
Gigante). Como o pescador não é somente um adulto, mas, diz-nos o
conto, é também pai, a criança sente implicitamente que o pai pode
sentir-se ameaçado por forças mais fortes do que as suas, mas é tão
esperto que as subjuga. Neste conto, pode dizer-se que a criança ganha
todas as situações. Ela pode projectar-se no papel de pesccador e
imaginar- se a levar a melhor sobre o gigante. pode dar o papel de
pescador ao pai e projectar-se no Génio que ameaça o progenitor, ficando
à mesma segura que o pai acabará por vencer. Um aspecto, aparentemente
insignificante mas importante, d O Pescador e o Génio é que o pescador
sofre três meses antes de apanhar o jarro com o génio dentro. Apesar de
parecer ser mais simples começar a história com a pesca da garrafa
fatídica, este elemento informa a criança, sem moralizar, que na vida
se não pode esperar ter êxito à primeira, ou mesmo à segunda ou terceira
tentativa. As coisas não se conseguem tão facilmente como 45
imaginamos. Para uma pessoa menos persistente, os três primeiros
fracassos do pescador poderiam levá-lo a desistir, tanto mais que cada
um dos seus esforços levou a malogros cada vez piores. Nunca devemos
desistir, não obstante um revés inicial: é uma mensagem muito importante
para as crianças, contida em muitas fábulas e contos de fadas. A
mensagem é efectiva se for dada não como lição de moral ou como uma
exigência, mas de maneira casual, indicando que a vida afinal é assim
mesmo. Mais, a magia da subjugação do génio gigante não tem lugar sem
esforço ou argúcia. Estas razões são boas para aguçar o espírito e
encorajar a persistência nos esforços, custe o que custar.
 Outro pormenor da história que pode igualmente parecer cer
insignificante, mas cuja eliminação poderia também enfraquecer o impacte
da narrativa, é o paralelo entre os quatro esforços do pescador, que são
finalmente coroados de êxito, e os quatro graus da fúria crescente do
génio! o que justapõe a maturidade do pai-pescador e a imaturidade do
génio, apontando para o problema crucial que muito cedo, na vida, se
nos põe: devemos ser governados pelas nossas emoções ou pela razão.
Traduzindo o conflito em termos psicanalíticos, ele simboliza a difícil
luta que todos temos de enfrentar: devemos ceder ao princípio do prazer,
que nos leva

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