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Em defesa de um Matemático

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Prévia do material em texto

Em Defesa de um Matemático
 
 
 
 
G. H. Hardy
 
Em Defesa de um Matemático
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Com uma introdução de
C. P. SNOW
 
 
 
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Martins Fontes
São Paulo 2000
 
Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título
A MATHEMATICIAN’S APOLOGY,
por press Syndicate of the University of Cambridge.
Copyright © C. P. Snow 1967 para o prefácio.
Copyright © 2000, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
 
1a edição
setembro de 2000
 
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
 
Revisão da tradução
Marcelo Brandão Cipolla
 
Revisão gráfica
Célia Regina Camargo
Sandra Rodrigues Garcia
 
Produção gráfica
Geraldo Alves
 
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
 
Hardy, G. H„ 1877-1947.
Em defesa de um matemático/G. H. Hardy; com uma introdução de C. P. Snow; tradução Luís Carlos Borges. - São
Paulo: Martins Fontes, 2000. - (Tópicos)
 
Título original: A mathematician’s apology.
Bibliografia.
ISBN 85-336-1314-8
 
1. Hardy, Godfrey Harold, 1877-1947 2. Matemática I. Snow, C. P, 1905- n. Título, m. Série.
00-3792 CDD-510
 
Índices para catálogo sistemático:
1. Matemática 510
 
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340
01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11)239-3677 Fax (11)3105-6867
e-mail: info@martinsfontes.com
http://www.martinsfontes.com
mailto:info@martinsfontes.com
http://www.martinsfontes.com
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para
JOHN LOMAS
que me pediu que escrevesse este livro
 
INTRODUÇÃO
 
 
Era uma noite perfeitamente comum no jantar solene do Christ’s, exceto pelo fato de
que Hardy era um dos convidados. Acabava de voltar a Cambridge, como professor da
cadeira Sadler, e eu ficara sabendo alguma coisa a seu respeito através de jovens
matemáticos de Cambridge. Estavam deliciados em tê-lo de volta: era um matemático
de verdade, diziam, não era como os Diracs e Bohrs de quem os físicos estavam
sempre falando: era o mais puro dos puros. Também era heterodoxo, excêntrico,
radical, pronto a falar sobre qualquer coisa. Isso foi em 1931, e ainda não se usava a
expressão, mas em tempos mais recentes diriam que, de um modo indefinível, ele tinha
a qualidade do astro.
Assim, do meu lugar na mesa, a distância, continuei a estudá-lo. Ele tinha então uns
cinquenta e poucos anos: o cabelo já estava grisalho, coroando uma pele tão
profundamente queimada pelo sol que adquirira uma espécie de bronzeado índio. Tinha
o rosto bonito - maçãs salientes, nariz fino, espiritual e austero, mas capaz de
dissolver-se nas convulsões de um contentamento como que de menino. Tinha olhos de
um castanho opaco, brilhantes como olhos de pássaro - um tipo de olho que não é
incomum entre os que têm o dom do pensamento conceituai. Cambridge, naquela época,
estava repleta de rostos incomuns e distintos - mas, mesmo assim, pensei naquela noite
que Hardy se destacava.
Não lembro como estava vestido. Podia muito bem estar de casaco esporte e calças
de lã cinza por baixo da beca. Como Einstein, vestia-se para agradar a si mesmo:
embora, ao contrário de Einstein, variasse o vestuário informal com certo gosto por
camisas caras de seda.
Quando estávamos sentados à mesa do combination-room após o jantar, tomando
vinho, alguém disse que Hardy queria falar comigo sobre críquete. Eu fora eleito havia
apenas um ano, mas o Christ’s College, na época, era uma escola pequena e mesmo os
passatempos dos professores mais novos eram logo identificados. Levaram-me para
sentar ao lado dele. Não fui apresentado. Conforme descobri depois, ele ficava
constrangido e embaraçado em todos os atos formais e tinha pavor de apresentações.
Apenas inclinou a cabeça como que em reconhecimento e, sem nenhum preâmbulo,
começou:
“Dizem que você entende de críquete. É verdade?” Eu disse que sim, que entendia
um pouco.
Imediatamente, ele me submeteu a uma rígida sabatina. Eu jogava? Jogava bem? De
certa maneira, adivinhei que ele tinha horror das pessoas então dominantes na
sociedade acadêmica, que estudavam devotamente a literatura, mas nunca tinham
jogado críquete. Mostrei-lhe as minhas credenciais, tais como eram. Ele pareceu
tranquilizar-se um pouco com a resposta e passou para questões mais táticas. Quem eu
teria escolhido como capitão para o último jogo teste, um ano antes (em 1930)? Se os
selecionadores tivessem dado a Snow o encargo de salvar a Inglaterra, quais teriam
sido minha estratégia e minhas táticas? (“Tem permissão para atuar, se for
suficientemente modesto, como capitão fora de campo.”) E assim por diante, alheio ao
resto da mesa. Estava totalmente absorto.
Conforme tive a oportunidade de perceber mais tarde, Hardy não confiava em
intuições ou impressões, suas ou dos outros. A única maneira de avaliar o
conhecimento de alguém, na opinião de Hardy, era examiná-lo. Isso valia para
matemática, literatura, filosofia, política, qualquer coisa que se possa imaginar. Se o
homem blefava e depois sucumbia às perguntas, azar dele. Naquela mente brilhante e
concentrada, as coisas mais importantes vinham em primeiro lugar.
Naquela noite, no combination-room, era necessário descobrir se eu seria aceitável
como companheiro de críquete. Nada mais importava. No fim, ele sorriu com um
enorme encanto, com uma franqueza infantil, e disse que talvez o Fenner’s (o campo de
críquete da universidade) finalmente se tornasse tolerável na próxima temporada, com a
possibilidade de uma convivência razoável.
Assim, da mesma maneira que eu devia meu contato com Lloyd George à sua paixão
pela fre- nologia, minha amizade com Hardy foi devida ao fato de eu ter desperdiçado
uma parte desproporcional de minha juventude no críquete. Não sei qual é a moral
dessa história, mas foi um grande golpe de sorte para mim. Intelectualmente, essa foi a
amizade mais valiosa da minha vida. Sua mente, como acabo de dizer, era brilhante e
concentrada: tanto que, ao lado da sua, a mente de qualquer outra pessoa parecia um
pouco embotada, rasteira e confusa. Não era um grande gênio, como Einstein e
Rutherford. Disse, com a clareza de costume, que, se a palavra significava alguma
coisa, ele não era um gênio mesmo. Na melhor das hipóteses, ele dizia, foi por um
breve período o quinto melhor matemático puro do mundo. Como seu caráter era tão
belo e puro quanto sua mente, sempre afirmou que seu amigo e colaborador,
Littlewood, era um matemático consideravelmente mais capaz do que ele, e que seu
protegido, Ramanujan, tinha realmente um gênio natural no sentido em que o tinham os
maiores matemáticos (embora não na mesma extensão e não com a mesma eficácia).
As pessoas às vezes achavam que estava se subestimando quando falava desses
amigos. É verdade que ele era magnânimo, tão pouco invejoso quanto possível: acho,
porém, que estaríamos depreciando sua capacidade se não aceitássemos seu
julgamento. Prefiro acreditar na declaração que faz em Em defesa de um matemático,
ao mesmo tempo tão orgulhosa e tão humilde:
“Ainda digo a mim mesmo, quando estou deprimido e me vejo obrigado a ouvir
gente pomposa e cansativa: ‘Bem, fiz uma coisa que você nunca seria capaz de fazer,
que foi colaborar com Littlewood e Ramanujan em condições de quase igualdade.’”
Seja como for, sua classificação exata deve ficar a cargo dos historiadores da
matemática (embora seja este um trabalho quase impossível, já que grande parte dos
seus melhores trabalhos foram feitos em colaboração). Há mais um aspecto, porém, sob
o qual ele era claramente superior a Einstein, Rutherford ou qualquer outro grande
gênio: transformava qualquer obra do intelecto, maior, menor ou mesmo uma mera
brincadeira, numa obra de arte. Acho que foi esse dom, mais do que tudo, que o fez,
quase que sem perceber, proporcionar tanto deleite intelectual. Quando Em defesa de
um matemáticofoi publicada pela primeira vez, Graham Greene escreveu numa
resenha que se tratava da melhor descrição de o que era ser um artista criativo. Ao
pensar no efeito que Hardy tinha sobre todos ao seu redor, creio que essa é a pista a
seguir.
Ele nasceu em 1877, numa família modesta de profissionais liberais. Seu pai era
Tesoureiro e Mestre em Humanidades em Cranleigh, que, na época, era uma escola
pública (o que, em inglês, significa privada) de menor importância. A mãe fora diretora
do Colégio de Treinamento de Professores de Lincoln. Ambos tinham o dom e a
inclinação para a matemática. No caso dele, como no da maioria dos matemáticos, não
é preciso procurar pelas origens genéticas. Boa parte da sua infância, ao contrário da
de Einstein, foi típica de um futuro matemático. Mostrou um QI excepcionalmente alto
tão logo aprendeu a falar, ou mesmo antes. Aos dois anos escrevia números de milhões
(um sinal comum de capacidade matemática). Quando o levavam à igreja, distraía-se
fatorando o número dos hinos: brincava com números desde aquela época, um hábito
que deu origem à cena emocionante no leito hospitalar de Ramanujan: a cena é bem
conhecida, só que, mais tarde, não resistirei à tentação de repeti-la.
Foi uma infância vitoriana esclarecida, cultivada, altamente literária. Seus pais
eram provavelmente um pouco obsessivos, mas também muito carinhosos. A infância
em uma família vitoriana como essa era tão tranquila quanto a infância hoje, embora
intelectualmente fosse mais rigorosa. A infância de Hardy foi incomum em apenas dois
aspectos. Em primeiro lugar, ele sofria de uma timidez aguda numa idade
excepcionalmente precoce, bem antes dos doze anos. Os pais sabiam que era um
prodígio de inteligência, e ele também. Foi o primeiro da classe em todas as matérias.
Mas, por ser o primeiro da classe, tinha de receber os prêmios na frente de toda a
escola, e isso ele não podia suportar. Jantando comigo certa noite, disse que tentava
errar de propósito para ser poupado dessa provação intolerável. Sua capacidade de
dissimulação, contudo, sempre foi mínima: ganhava os prêmios do mesmo jeito.
Parte da timidez se dissipou. Tornou-se competitivo. Como diz na Defesa: “Não me
lembro de ter sentido, quando garoto, nenhuma paixão pela matemática, e a ideia que eu
tinha da carreira de matemático estava longe de ser nobre. Pensava na matemática em
função dos exames e bolsas de estudo: queria vencer os outros garotos, e aquela me
parecia a maneira mais decisiva de fazê-lo.” Contudo, tinha de conviver com uma
natureza excessivamente delicada. Parece que tinha nascido com a pele fina demais. Ao
contrário de Einstein, que teve de subjugar seu poderoso ego no estudo do mundo
exterior até conseguir atingir sua estatura moral, Hardy teve de fortalecer um ego que
não era muito protegido. Posteriormente, isso às vezes o fez ser autoritário (o que
Einstein nunca foi) quando tinha de assumir uma postura moral. Por outro lado, deu-lhe
o seu discernimento introspectivo e a sua bela franqueza, que o fazia falar de si com
absoluta simplicidade (o que Einstein nunca conseguiu).
Acredito que esta contradição ou tensão no seu temperamento estava ligada a um
curioso tique de comportamento. Era o antinarcisista clássico. Não suportava tirar
fotografia: que eu saiba, existem apenas cinco instantâneos seus. Não tinha nenhum
espelho nos seus aposentos, nem mesmo um espelho de barbear. Quando se hospedava
num hotel, a primeira coisa que fazia era cobrir todos os espelhos com toalhas. Isso já
seria bem estranho se ele tivesse cara de gárgula; superficialmente, podia parecer mais
estranho ainda, já que, a vida inteira, foi de uma beleza acima da média. Mas é claro
que narcisismo e antinarcisismo não têm nada a ver com a aparência vista pelos
observadores externos.
Esse comportamento parece excêntrico, e era mesmo. Entre ele e Einstein, porém,
havia uma diferença de tipo. Os que passaram muito tempo com Einstein - como Infeld -
descobriram que, quanto mais o conheciam, mais ele se tornava estranho e menos
parecido com eles. Tenho certeza de que eu teria sentido o mesmo. O caso de Hardy era
o contrário. Seu comportamento muitas vezes era diferente, estranhamente diferente do
nosso, mas acabava por parecer uma espécie de superestrutura colocada sobre uma
natureza que não tinha nada de diferente da nossa, exceto o fato de ser mais delicada,
menos protegida, com nervos mais sensíveis.
A outra característica incomum da sua infância foi mais mundana, mas acarretou a
remoção de todos os obstáculos práticos ao longo de toda a sua carreira. Hardy, com
sua honestidade límpida, seria o último homem a ser melindroso nessa questão.
Conhecia a importância do privilégio e sabia que o tivera. A família não tinha dinheiro,
apenas o salário de um professor, mas tinha acesso às melhores informações
educacionais da Inglaterra de fins do século XIX. Esse tipo específico de informação
sempre foi mais significativo neste país do que qualquer riqueza. As bolsas de estudo
existiam, era preciso saber como conquistá-las. Nunca houve a menor possibilidade de
se desperdiçar o jovem Hardy - ao contrário do jovem Wells ou do jovem Einstein.
Desde os doze anos, bastava ele sobreviver, que os outros cuidariam do seu talento.
Aos doze, com efeito, recebeu uma bolsa de estudos em Winchester, que era na
época, e foi durante muito tempo, a melhor escola de matemática na Inglaterra,
simplesmente por causa de certos trabalhos matemáticos que fizera em Cranleigh. (A
propósito, será que alguma grande escola seria tão flexível hoje?) Lá aprendeu
matemática sozinho com o professor; nas clássicas, era tão bom quanto os melhores
colegas. Mais tarde, admitiu que tivera uma boa educação, mas admitiu com relutância.
Não gostou da escola, exceto pelas aulas. Como todas as escolas particulares
vitorianas, Winchester era um lugar duro. Houve um inverno em que quase morreu.
Invejava Littlewood, com seu lar bem-cuidado, estudante não interno em St. Paul’s, e
outros amigos que frequentaram as nossas agradáveis grammar-schools. Nunca chegou
perto de Winchester depois de sair de lá: mas saiu, tão certo como o trem que há de
chegar ao seu destino, com uma bolsa de estudos aberta no Trinity.
Tinha uma queixa curiosa contra Winchester. Era dotado de um talento natural para
jogos com bola e de uma mira excelente. Aos cinquenta anos, geralmente conseguia
vencer a segunda série da universidade jogando tênis, e, com sessenta, eu o vi acertar
rebatidas surpreendentes no críquete. Ainda assim, não tivera nem um segundo de
treinamento em Winchester; seu método era precário; se tivesse sido treinado, pensava,
teria sido um batedor bom de verdade, não exatamente de primeira, mas não muito
distante disso. Como todos os juízos que fez a respeito de si, creio que também esse é
verdadeiro. É estranho que, no zénite da veneração vitoriana pelo esporte, tal talento
passasse inteiramente despercebido. Imagino que ninguém achou que valesse a pena
procurar por ele no melhor aluno da escola, tão frágil e doentio, tão tímido e
circunspecto.
Teria sido natural para um aluno de Winchester desse período ir para o New
College. Não teria feito muita diferença para sua carreira profissional (embora, já que
sempre gostou mais de Oxford do que de Cambridge, pudesse ter ficado por lá a vida
toda, e alguns de nós teriam perdido o prazer de conhecê-lo). Ele decidiu, porém, ir
para o Trinity, por uma razão que descreve com humor, mas com a sinceridade sem
retoques de costume, na Defesa. “Tinha cerca de quinze anos quando (de um jeito bem
estranho) minhas ambições tornaram-se mais aguçadas. Existe um livro de ‘Alan St.
Aubyn’ [na verdade, a sra. Francês Marshall] chamado A Fellow of Trinity, parte de
uma série que trata do que se supõe ser a vida universitária em Cambridge [...] Há dois
heróis, um herói principal chamado Flowers, que é quase inteiramente perfeito, e um
herói secundário, um tipo bem mais frágil, chamado Brown. Flowers e Brown
encontram muitos perigos na vida universitária [...] Flowers sobrevive a todos essesproblemas, tira o segundo lugar nas competições de matemática [...] e torna-se
automaticamente um fellow (como acho que acontecia então). Brown sucumbe, arruina
os pais, começa a beber, só é salvo do delirium tremens durante uma tempestade pelas
preces do decano, tem muita dificuldade até para conseguir um diploma comum e, por
fim, torna-se missionário. A amizade não é abalada por esses acontecimentos infelizes
e os pensamentos de Flowers voltam-se para Brown, com uma comiseração afetuosa,
enquanto ele, pela primeira vez, come nozes e bebe vinho do Porto no Sênior
Combination-Room.
“Ora, Flowers até era um sujeito decente (pelo menos tão decente quanto ‘Alan St.
Aubyn’ era capaz de conceber), mas mesmo a minha mente, que é bastante simples,
recusou-se a considerá-lo inteligente. Se ele podia fazer aquelas coisas, por que não
eu? Em particular, a cena final no Combination- Room fascinou-me completamente e,
daquela época até o momento em que isso aconteceu, a matemática significou para mim,
antes de mais nada, tornar-me um fellow do Trinity.”
O que ele devidamente conseguiu, depois de obter o primeiro lugar no concurso
Mathematical Tripos, Parte II, com a idade de 22 anos. No caminho, ocorreram duas
vicissitudes de menor importância. A primeira foi teológica, à maneira trágica
vitoriana. Hardy decidira - penso que antes de deixar Winchester - que não acreditava
em Deus. Para ele, essa decisão era inequívoca, tão nítida e clara como todos os outros
conceitos na sua mente. A frequência à capela era compulsória no Trinity. Hardy disse
ao decano, sem dúvida à sua maneira tímida mas firme, que não podia frequentá-la de
boa consciência. O decano, que devia ser um funcionariozinho pretensioso, insistiu para
que Hardy escrevesse aos pais e lhes contasse. Eles eram pessoas religiosas e
ortodoxas, e o decano sabia, Hardy mais ainda, que a notícia lhes causaria mágoa - uma
mágoa que nós, setenta anos depois, mal conseguimos imaginar.
Hardy lutou com sua consciência. Não era mundano o suficiente para ignorar a
questão. Não era nem sequer mundano o suficiente - segundo me contou certa tarde no
Fenner’s, pois a ferida ainda doía - para pedir o conselho de amigos mais tarimbados,
como George Trevelyan e Desmond Mac Carthy, que saberiam lidar com a questão. Por
fim, ele escreveu a carta. Em parte por causa do incidente, ele permaneceu franca e
ativamente descrente até o fim da vida. Recusava-se a entrar na capela de qualquer
college, mesmo para compromissos formais, como a eleição de um mestre. Tinha
amigos no clero, mas Deus era seu inimigo. Em tudo isso havia um eco do século XIX;
mas estaríamos errados, como sempre no caso de Hardy, se não o levássemos a sério.
Não obstante, ele transformou a coisa em diversão. Lembro-me, um dia na década
de 1930, de vê-lo desfrutar um pequeno triunfo. Aconteceu em uma partida de
Cavalheiros contra Jogadores no Lord’s. Era cedo, o jogo da manhã, e o sol brilhava
sobre o pavilhão. Um dos batedores, voltado para a enfermaria, reclamou que não
conseguia enxergar por causa de um reflexo que não sabia de onde vinha. Os juízes,
confusos, olharam ao redor do campo. Automóveis? Não. Janelas? Nenhuma daquele
lado do campo. Por fim, com justificável regozijo pela vitória, um dos árbitros
conseguiu achar o reflexo - vinha de uma grande cruz peitoral, pousada no meio de um
enorme clérigo. Educadamente, o árbitro pediu que ele a tirasse. Perto dali, Hardy
dobrava-se de rir com um prazer mefistofé- lico. Na hora do almoço, não teve tempo de
comer: estava escrevendo postais (postais e telegramas eram seus meios favoritos de
comunicação) a todos os seus amigos clérigos.
Mas, na sua guerra contra Deus e os representantes de Deus, ele nem sempre
obtinha a vitória. Numa tarde adorável e silenciosa de maio, no Fenner’s, mais ou
menos naquela mesma época, as badaladas das seis horas soaram no campo. “É triste”,
disse Hardy com simplicidade, “que algumas das horas mais felizes da minha vida
tenham se passado perto do som de uma igreja católica.”
O segundo incidente menor de seus anos de graduação foi profissional.
Praticamente desde o tempo de Newton, e ao longo de todo o século XIX, Cambridge
fora dominada pelo exame para o velho Mathematical Tripos. Os ingleses sempre
tiveram mais fé em exames competitivos que qualquer outro povo (exceto, talvez, pelos
chineses imperiais): tradicionalmente, conduziram esses exames com justiça, mas
muitas vezes mostraram uma notável insensibilidade em decidir como eles deviam ser.
Isso, por sinal, é verdade até hoje. E certamente era verdade no caso do Mathematical
Tripos em seus tempos de glória. Era ele um exame cujas questões eram geralmente de
considerável dificuldade mecânica - mas que, infelizmente, não oferecia nenhuma
oportunidade para que o candidato demonstrasse imaginação matemática, discernimento
ou qualquer qualidade de que necessita um matemático criativo. Os principais
candidatos (os Wranglers - termo que ainda sobrevive e significa de primeira classe)
eram ordenados, com base nas notas, em ordem numérica estrita. Os colleges
comemoravam quando algum dos seus tornava-se Sênior Wrangler: os dois ou três
primeiros Wranglers eram eleitos Fellows imediatamente.
Tudo era muito inglês. Tinha apenas uma desvantagem, como Hardy assinalou com
a sua polêmica clareza, tão logo se tornou um matemático eminente e se dedicou,
juntamente com o duro aliado, Littlewood, a abolir o sistema: durante cem anos, o
Tripos conseguira arruinar a boa matemática na Inglaterra.
No primeiro trimestre que passou no Trinity, Hardy viu-se preso nesse sistema.
Tinha de ser treinado como um cavalo de corrida, em um curso de exercícios
matemáticos que ele, aos dezenove anos, já sabia que não tinham sentido. Foi mandado
a um famoso treinador, ao qual recorria a maioria dos possíveis Sênior Wranglers.
Esse treinador conhecia todos os obstáculos, todos os truques dos examinadores, e
manifestava um sublime desinteresse pela matéria em si. Nesse ponto, o jovem Einstein
teria se rebelado: ou teria saído de Cambridge ou não faria nenhum trabalho formal
pelos três anos seguintes. Hardy, porém, nasceu no ambiente inglês, bem mais
profissional (e que não tem só seus deméritos, mas também seus méritos). Depois de
cogitar a ideia de passar ao curso de história, teve a sensatez de procurar um
matemático de verdade para ensiná-lo. Hardy prestou-lhe tributo na Defesa: “Quem me
abriu os olhos pela primeira vez foi o professor Love, que me deu aulas durante alguns
trimestres e me transmitiu a primeira concepção séria de análise. Mas a grande dívida
que tenho para com ele - ele se dedicava, no fim das contas, antes de tudo à matemática
aplicada - advém de ele ter me recomendado o famoso Cours d’analyse de Jordan;
nunca esquecerei a surpresa com que li essa obra notável, a primeira inspiração para
tantos matemáticos da minha geração; e, quando a li, aprendi pela primeira vez o que
realmente significava a matemática. Daquela época em diante, me tornei, à minha
maneira, um matemático de verdade, com sadias ambições matemáticas e uma paixão
verdadeira pela matemática.”
Hardy foi o quarto Wrangler em 1898. Costumava confessar que isso o irritou um
pouco. Era competitivo o suficiente para achar que, embora a competição fosse
ridícula, ele devia tê-la vencido. Em 1900 participou da Parte II do Tripos, um exame
mais digno de respeito, e conseguiu a colocação certa e a condição de fellow.
Desde então, sua vida estava essencialmente encaminhada. Ele sabia qual era o seu
objetivo, que era dar rigor à análise matemática na Inglaterra. Não se afastou das
pesquisas, que chamou “a única grande felicidade permanente da minha vida”. Não teve
angústias quanto ao que devia fazer. Nem ele nem mais ninguém duvidava do seu
grande talento. Foi eleito para a Royal Society com trinta e três anos.
Sob vários aspectos, então, teve uma sorte in- comum. Não teve de pensar a
respeito da carreira. Desde os vinte e três anos teve todo o tempo livre que um homem
poderia querer e todo o dinheiro de que precisava.Um lente de Trinity, na década de
1900, solteirão, estava bastante bem de vida. Hardy era sensato com o dinheiro,
gastava-o quando sentia vontade (às vezes com propósitos singulares, como corridas de
táxi de oitenta quilômetros) e, no mais, não era nem um pouco tolo quanto aos
investimentos. Jogava os seus jogos e satisfazia as suas excentricidades. Convivia com
algumas das melhores companhias intelectuais do mundo - G. E. Moore, Whitehead,
Bertrand Russell, Trevelyan, a alta sociedade do Trinity, que em breve encontraria o
seu complemento artístico ern Bloomsbury. (O próprio Hardy tinha vínculos com
Bloomsbury, tanto de amizade como de solidariedade.) Numa roda brilhante, ele era um
dos jovens mais brilhantes - e, embora de maneira discreta, um dos mais
entusiasmados.
Vou antecipar agora o que direi mais tarde. Sua vida continuou a ser a vida de um
jovem brilhante até ele ficar velho; assim também o seu espírito: suas brincadeiras,
seus interesses, conservaram a leveza como de um jovem lente. E, como acontece com
muitos homens que conservam os interesses de um jovem até os sessenta, seus últimos
anos de vida foram mais sombrios por causa disso.
Boa parte da sua vida, porém, foi mais feliz do que a da maioria das pessoas. Teve
muitos amigos, de tipos surpreendentemente diferentes. Esses amigos tinham de passar
por alguns dos seus testes particulares: precisavam ter uma qualidade que ele chamava
spin (é um termo de críquete, intraduzível; implica certa obliquidade ou ironia de
atitude; dentre as figuras públicas recentes, Macmillan e Kennedy conseguiriam notas
altas em spin, mas Churchill e Eisenhower não). Era, porém, tolerante, leal,
extremamente bem-humorado e, de maneira discreta, muito afeiçoado aos amigos. Certa
vez fui obrigado a visitá-lo de manhã, que era sempre o período reservado para os
trabalhos matemáticos. Ele estava sentado à escrivaninha, escrevendo com sua bela
letra. Murmurei uma formalidade qualquer, querendo dizer que esperava não estar
incomodando. Ele, de repente, derreteu- se no sorriso malicioso. “Como você deveria
ser capaz de perceber, a resposta é que você está. Mesmo assim, geralmente fico muito
contente quando o vejo.” Nos dezesseis anos em que nos conhecemos, ele nunca disse
nada mais afetuoso do que isso; exceto no seu leito de morte, quando disse que
esperava ansiosamente pelas minhas visitas.
Acho que a minha experiência foi a mesma que tiveram a maioria dos seus amigos
mais chegados. Mas ele teve, espalhadas pela vida, duas ou três relações de uma outra
espécie. Eram afetos intensos, envolventes, não físicos, mas exaltados. Um dos que tive
conhecimento tinha como objeto um jovem cuja índole era tão espiritualmente delicada
quanto a sua. Creio, embora tenha notado isso a partir de observações casuais, que o
mesmo valia para os outros. Para muitas pessoas da minha geração, tais relações
pareceriam insatisfatórias ou impossíveis. Não eram nem uma coisa nem outra, e, a
menos que aceitemos a existência delas, jamais compreenderemos o temperamento de
homens como Hardy (eles são raros, mas não tão raros quanto rinocerontes brancos)
nem a sociedade de Cambridge da sua época. Ele não teve as satisfações que a maioria
de nós não vive sem; mas conhecia-se extraordinariamente bem e isso não o tornava
infeliz. Sua vida interior era sua e muito rica. A tristeza veio no fim. Afora a irmã
devotada, ele morreu sem nenhuma companhia íntima.
Com um estoicismo sarcástico, ele diz na Defesa - que, apesar de todo o bom
humor, é um livro desesperadamente triste - que, quando um homem criativo perdeu o
poder ou o desejo de criar: “E uma pena, mas, nesse caso, ele não tem mesmo muita
importância, e seria tolice importar- se com ele.” Era assim que ele tratava a sua vida
pessoal fora da matemática. A matemática era a sua justificativa. Era fácil esquecer
isso no brilho de sua companhia: assim como era fácil, na presença da paixão moral de
Einstein, esquecer que, para ele, a justificativa da sua vida era a busca das leis físicas.
Nenhum dos dois jamais esquecia isso. Essa foi a essência da vida de cada um deles,
da juventude até a morte.
Hardy, ao contrário de Einstein, não deslanchou logo cedo. Seus primeiros
trabalhos, feitos entre 1900 e 1911, eram bons o suficiente para colocá-lo na Royal
Society e conferir-lhe reputação internacional, mas ele não os considerava importantes.
Mais uma vez, isso não era falsa modéstia: era o juízo de um mestre que sabia muito
bem quais dos seus trabalhos tinham valor e quais não tinham.
Em 1911, deu início a uma colaboração com Littlewood que durou trinta e cinco
anos. Em 1913, descobriu Ramanujan e começou outra colaboração. Toda a sua obra
principal foi feita nessas duas parcerias, a maior parte dela com Littlewood, a mais
famosa colaboração na história da matemática. Não houve nada parecido com ela na
história de qualquer ciência nem, que eu saiba, em nenhum outro campo da atividade
criadora. Juntos, eles produziram quase cem trabalhos, muitos deles “na classe
Bradman”. Os matemáticos que não foram íntimos de Hardy nos seus últimos anos, e
que não sabem nada de críquete, vivem repetindo que o seu elogio mais elevado
consistia em situar algo “na classe Hobbs”. Não era: com muita relutância, já que
Hobbs era um dos seus favoritos, ele teve de alterar a escala de mérito. Uma vez recebi
um postal seu, provavelmente em 1938, que dizia: “Bradman está uma classe acima de
qualquer batedor que jamais existiu: se Arquimedes, Newton e Gauss continuam na
classe Hobbs, tenho de admitir a possibilidade de uma classe superior, o que acho
difícil de imaginar. Melhor mudá-los, de agora em diante, para a classe Bradman.”
As pesquisas de Hardy e Littlewood dominaram a matemática pura na Inglaterra, e
em grande medida no mundo inteiro, por uma geração. Segundo me dizem os
matemáticos, ainda é muito cedo para determinar em que grau eles mudaram a história
da análise matemática e o quão influente será o trabalho deles daqui a cem anos. Quanto
à perenidade do seu valor, não resta nenhuma dúvida.
A colaboração deles foi, como eu disse, a maior de todas. Mas ninguém sabe como
ela aconteceu; e, a menos que Littlewood nos conte, ninguém jamais saberá. Já revelei o
juízo de Hardy a respeito de Littlewood, de que, dos dois, o último era o melhor
matemático: Hardy certa vez escreveu que não conhecia “nenhum outro que possuísse
tal combinação de discernimento, técnica e energia”. Littlewood era e é um homem
mais normal do que Hardy, tão interessante quanto ele e provavelmente mais complexo.
Nunca teve o gosto de Hardy por certa espécie de vistosidade intelectual refinada e,
portanto, não estava tão no centro do panorama acadêmico. Isso provocou piadas de
matemáticos europeus, tais como a de que Hardy o inventara para levar a culpa se
houvesse algo de errado em um dos seus teoremas. Na verdade, ele é um homem de uma
individualidade pelo menos tão obstinada quanto a do próprio Hardy.
À primeira vista, nenhum deles pareceria ser um parceiro de fácil convivência.
Para começar, é difícil imaginar qualquer um dos dois sugerindo a colaboração. Ainda
assim, um dos dois deve tê-lo feito. Durante o seu período mais produtivo, não estavam
na mesma universidade. Harald Bohr (irmão de Niels Bohr e ele próprio um excelente
matemático) teria dito que um dos princípios deles era este: se um escrevesse ao outro,
quem recebesse não tinha nenhuma obrigação de responder ou mesmo de ler a carta.
Não tenho o que dizer a respeito. Hardy conversou comigo, ao longo de muitos
anos, sobre praticamente todos os assuntos concebíveis, exceto a colaboração. Disse, é
claro, que ela fora a maior sorte da sua carreira criativa: falava de Littlewood nos
termos que descrevi, mas nunca deu uma pista sequer sobre os seus procedimentos. Eu
não sabia o bastante de matemática para compreender os trabalhos deles, mas peguei
um pouco da linguagem que usavam. Se Hardy tivesse deixado escapar qualquer coisa
sobre seus métodos, acho que eu o teria percebido. Tenho quase certeza de que o sigilo
- bem pouco característicodele em questões que, para a maioria, pareceriam muito
mais íntimas - foi deliberado.
Sobre a descoberta de Ramanujan não houve nenhum sigilo. Foi, segundo ele
escreveu, o único incidente romântico de sua vida; de qualquer modo, é uma história
admirável e que cobre de honra quase todos os envolvidos (com duas exceções). Certa
manhã, no início de 1913, ele encontrou, entre as cartas na mesa do desjejum, um
envelope grande e amarfanhado, decorado com selos indianos. Ao abri-lo, ele
encontrou folhas de papel bem sujas, nas quais, em manuscrito não inglês, sucediam-se
linhas e mais linhas de símbolos. Hardy passou-lhes os olhos sem entusiasmo. Nessa
época, com trinta e seis anos, ele já era um matemático mundialmente famoso; e já
descobrira que os matemáticos mundialmente famosos são um dos alvos prediletos dos
malucos. Estava acostumado a receber manuscritos de estranhos provando a sabedoria
profética da Grande Pirâmide, as revelações dos Sábios de Sião ou os criptogramas
que Bacon inserira nas peças do suposto Shakespeare.
Assim, Hardy sentiu-se, antes de mais nada, aborrecido. Passou os olhos pela carta,
escrita em inglês hesitante, assinada por um indiano desconhecido, pedindo-lhe uma
opinião sobre aquelas descobertas matemáticas. O texto parecia composto de teoremas,
a maioria deles extravagante ou de aparência fantástica, um ou dois já bem conhecidos,
expostos como se fossem originais. Não havia provas de espécie alguma. Hardy não
ficou apenas aborrecido, mas irritado. Parecia um tipo curioso de fraude. Ele pôs o
manuscrito de lado e continuou com a rotina do dia. Como essa rotina foi sempre a
mesma ao longo de toda a sua vida, é possível reconstruí-la. Primeiro, ele leu o Times
durante o desjejum. Isso aconteceu em janeiro e, se houvesse quaisquer resultados do
críquete australiano, começaria por eles, estudando-os com lucidez e intensa atenção.
Maynard Keynes, que começou a carreira como matemático e foi amigo de Hardy,
certa vez repreendeu-o: se ele tivesse lido as cotações da bolsa durante meia hora
todos os dias com a mesma concentração que dedicava aos placares do críquete, não
teria como não tornar-se rico.
Então, desde mais ou menos nove horas até uma hora, a menos que tivesse de dar
aula, trabalhava com a matemática. Costumava dizer que quatro horas de trabalho
criativo por dia é o limite para um matemático. O almoço, uma refeição leve no
Refeitório. Depois do almoço, saía para jogar tênis na quadra da universidade. (Se
fosse verão, iria até o Fenner’s para ver o críquete.) No fim da tarde, uma caminhada
de volta para os seus aposentos. Naquele dia específico, porém, embora a programação
fosse a mesma, dentro dele as coisas não estavam indo de acordo com o planejado. No
fundo da sua mente, impedindo-o de sentir todo o prazer do jogo, o manuscrito indiano
continuava a incomodá-lo. Teoremas extravagantes. Teoremas como nunca vira antes
nem imaginara. Uma fraude de gênio? Uma questão se formava na sua mente. Como se
tratava da mente de Hardy, a questão se delineava com clareza epigramática: será uma
fraude genial mais provável que um matemático genial desconhecido? Evidentemente, a
resposta era “não”. De volta aos seus aposentos no Trinity, deu outra olhada no texto.
Avisou Littlewood (provavelmente por meio de um mensageiro; certamente não por
telefone, pelo qual, como por todas as engenhocas mecânicas, inclusive canetas-
tinteiro, nutria uma profunda desconfiança) que tinham de conversar depois do jantar.
Terminada a refeição, pode ter havido uma pequena demora. Hardy gostava de
vinho, mas, apesar das esplêndidas perspectivas abertas por “Alan St. Aubyn”, que
haviam incendiado a sua imaginação juvenil, descobrira que não gostava de fazer hora
no combination-room tomando vinho do Porto e comendo nozes. Littlewood, muito
mais homme moyen sensuel, gostava. Então pode ter havido uma demora. De qualquer
maneira, por volta das nove, eles estavam nos aposentos de Hardy, com o manuscrito
aberto diante de si.
Eis aí uma ocasião em que seria bom estar presente. Hardy, com sua combinação de
lucidez impiedosa e ostentação intelectual (era muito inglês mas, nas discussões, exibia
as características que as mentes latinas muitas vezes tomaram como suas); Littlewood,
imaginativo, vigoroso, bem-humorado. Aparentemente, não lhes levou muito tempo.
Antes da meia-noite eles sabiam, e sabiam com certeza: o autor daqueles manuscritos
era um homem de gênio. Foi a conclusão a que puderam chegar naquela noite. Foi só
depois que Hardy decidiu que Ramanujan, no que diz respeito ao gênio matemático
natural, estava na classe de Gauss e Euler, mas que não podia, em virtude das falhas da
sua educação e do fato de ter entrado em cena muito tarde na história da matemática, ter
a esperança de fazer uma contribuição na mesma escala.
Tudo parece muito fácil, o tipo de juízo que os grandes matemáticos deviam ser
capazes de fazer. Mencionei, porém, que duas pessoas não saíram com honra da
história. Por cavalheirismo, Hardy ocultou isso em tudo o que disse ou escreveu sobre
Ramanujan. As duas pessoas em questão, porém, morreram há muitos anos e é hora de
contar a verdade. É simples. Hardy não foi o primeiro matemático eminente a receber
os manuscritos de Ramanujan. Dois outros os tinham recebido antes, ambos ingleses e
do mais elevado padrão profissional. Os dois tinham devolvido os manuscritos sem
comentários. Suponho que a história não relate o que disseram, se é que disseram
alguma coisa, quando Ramanujan ficou famoso. Qualquer um que
tenha recusado um material de primeira terá para com eles uma solidariedade furtiva.
De qualquer maneira, Hardy entrou em ação no dia seguinte. Decidiu que
Ramanujan tinha de vir para a Inglaterra. Dinheiro não era problema. O Trinity tem, em
geral, o costume de dar apoio a talentos heterodoxos (fez o mesmo por Kapitsa alguns
anos depois). Assim que Hardy decidiu, nenhum ser humano poderia deter Ramanujan,
mas eles precisaram de certa ajuda de um ser sobrehumano.
Ramanujan era um escriturário pobre de Madras, vivendo ao lado da esposa com
uma renda de vinte libras por ano. Mas era também um brâmane excepcionalmente
rígido quanto à observância religiosa e com uma mãe mais rígida ainda. Parecia
impossível que ele pudesse violar as prescrições e atravessar o oceano. Felizmente,
sua mãe tinha o máximo respeito pela deusa de Namakkal. Certa manhã, a mãe de
Ramanujan fez uma declaração estarrecedora. Ela tivera um sonho na noite anterior, no
qual vira o filho sentado em um grande salão, no meio de um grupo de europeus, e a
deusa de Namakkal lhe ordenara que não se opusesse à realização do objetivo da vida
de seu filho. Isso, segundo os biógrafos indianos de Ramanujan, foi uma agradável
surpresa para todos os envolvidos.
Em 1914, Ramanujan chegou à Inglaterra. Pelo que Hardy pôde perceber (embora,
nesse pormenor, eu não possa confiar muito no seu discernimento), Ramanujan, apesar
das dificuldades que tinha para romper as prescrições de casta, não acreditava na
doutrina teológica muito mais do que o próprio Hardy, exceto por uma vaga
benevolência panteísta. Mas, com certeza, acreditava no ritual. Quando Trinity o
instalou no colégio - tornou-se fellow em quatro anos - não houve para ele nenhum
regozijo estilo “Alan St. Aubyn”. Hardy costumava encontrá-lo ritualmente vestido de
pijama, no quarto, cozinhando legumes numa frigideira, meio aflito.
A relação entre eles foi estranhamente comovente. Hardy não se esquecia de que
estava na presença de um gênio, mas de um gênio que, mesmo em matemática, quase
não tinha instrução. Ramanujan não conseguiu entrar na Universidade de Madras porque
não conseguira matricular-se em inglês. Segundo o relato de Hardy, era sempre
amistoso e bem disposto, mas, sem dúvida, às vezes julgava um pouco desconcertantes
as conversas de Hardy fora do campo da matemática. Parece que as ouvia com um
sorriso paciente no rosto bom, amigo, despretensioso. Mesmo na matemática eles
tiveram de resolver a diferença de educação. Ramanujan era um autodidata, não
conhecianada do rigor moderno; em certo sentido, não sabia o que era uma prova. Num
momento de descuido, que lhe era atípico, Hardy certa vez escreveu que, se ele tivesse
recebido uma educação melhor, teria sido menos Ramanujan. Mais tarde, ao recuperar
o bom senso irônico, Hardy corrigiu-se e disse que a declaração era uma bobagem. Se
Ramanujan tivesse recebido uma educação melhor, teria sido ainda mais maravilhoso
do que era. Na verdade, Hardy foi obrigado a ensinar-lhe um pouco de matemática
formal, como se Ramanujan fosse um candidato a bolsa de estudos em Winchester.
Hardy disse que essa foi a experiência mais singular da sua vida: como seria a
matemática moderna para uma pessoa dotada do mais profundo discernimento, mas que,
literalmente, nunca ouvira falar da maior parte dela?
De qualquer modo, eles produziram juntos cinco trabalhos da mais alta categoria,
nos quais Hardy mostrou uma originalidade própria e suprema (conhecem-se mais
detalhes desta colaboração do que sobre a colaboração entre Hardy e Littlewood).
Generosidade e imaginação, dessa vez, foram plenamente recompensadas.
Esta é uma história sobre a virtude humana. Depois que as pessoas começaram a
comportar-se bem, passaram a comportar-se melhor ainda. É bom lembrar que a
Inglaterra deu a Ramanujan as honras que foram possíveis. A Royal Society elegeu-o
como membro quando tinha trinta anos (o que, mesmo para um matemático, é bem
cedo). O Trinity também o elegeu fellow no mesmo ano. Ramanujan foi o primeiro
indiano a receber tanto um título como o outro e ficou amavelmente grato. Mas logo
ficou doente. Era difícil, em tempo de guerra, transportá-lo para um clima mais
saudável.
Hardy costumava visitá-lo enquanto ele agonizava em um hospital de Putney. Foi
em uma dessas visitas que aconteceu o incidente da chapa do táxi. Hardy tinha ido para
Putney de táxi - como sempre, o seu meio de transporte predileto. Entrou no quarto em
que estava deitado Ramanujan. Hardy, sempre inepto para iniciar uma conversa, disse,
provavelmente sem cumprimentá-lo e certamente sem explicar nada: “Acho que o
número do meu táxi era 1729. Pareceu-me um número bastante sem graça.” Ao que
Ramanujan retrucou: “Não, Hardy! Não, Hardy! É um número muito interessante. É o
menor número exprimível como a soma de dois cubos de duas maneiras diferentes.”
Foi essa a conversa tal como Hardy a relatou. O relato deve ser substancialmente
preciso. Ele era o mais honesto dos homens e, além disso, ninguém poderia tê-la
inventado.
Ramanujan morreu de tuberculose, em Madras, dois anos depois da guerra. Como
Plardy escreveu na Defesa, ao arrolar os grandes matemáticos: “Galois morreu com
vinte e um anos, Abel com vinte e sete, Ramanujan com trinta e três, Riemann com
quarenta [...] Não conheço nenhum grande progresso matemático importante realizado
por um homem com mais de cinquenta anos.”
Não fosse pela colaboração com Ramanujan, a Guerra de 1914-18 teria sido mais
sombria do que foi para Hardy. Mas foi sombria o suficiente. Infligiu-lhe uma ferida
que foi reaberta na Segunda Guerra. Hardy sustentou opiniões radicais durante toda a
sua vida. Seu radicalismo, porém, era marcado pelo esclarecimento da virada do
século. Para os membros da minha geração, ele às vezes parecia ventilar uma brisa
mais leve, menos carregada, do que aquela com que estávamos acostumados.
Como muitos dos seus amigos intelectuais edwardianos, Hardy alimentava
sentimentos muito favoráveis à Alemanha. A Alemanha, afinal, fora a grande força
educadora do século XIX. As universidades alemãs é que haviam ensinado o que era a
pesquisa à Europa Oriental, à Rússia e aos Estados Unidos. Hardy não apreciava a
filosofia e a literatura alemã; seu gosto era clássico demais para isso. Mas, na maioria
dos aspectos, inclusive na previdência social, a cultura alemã parecia-lhe superior à
sua.
Ao contrário de Einstein, que tinha uma noção muito mais concreta da realidade
política, Hardy não conhecia diretamente a Alemanha guilhermina. E, embora não fosse
nem um pouco vaidoso, não teria sido humano se não gostasse de ser mais apreciado na
Alemanha do que no próprio país. Há uma anedota divertida que data desse período.
Hilbert, um dos maiores matemáticos da Alemanha, soube que os aposentos de Hardy
no Trinity não eram muito agradáveis (na verdade, eram em Whewell’s Court). Hilbert
escreveu prontamente ao diretor, assinalando em palavras bem cuidadas que Hardy era
o melhor matemático, não apenas do Trinity, mas de toda a Inglaterra, e que, portanto,
devia ter os melhores aposentos.
Assim, Hardy, como Russel e muitos outros membros da intelligentsia de
Cambridge, acreditava que a guerra não devia ter sido declarada. Além disso, com sua
inveterada desconfiança dos políticos ingleses, achava que o lado mais errado era o da
Inglaterra. Não conseguiu encontrar um fundamento satisfatório para a objeção de
consciência; seu rigor intelectual era severo demais para isso. Na verdade, alistou-se
como voluntário pelo esquema Derby e foi rejeitado por motivos médicos. Mas sentia-
se cada vez mais isolado no Trinity, boa parte de cujos membros eram ruidosamente
belicistas.
Russel foi despedido de sua cadeira em circunstâncias complexas e acaloradas
(Hardy escreveria o único relato detalhado do caso vinte e cinco anos depois, para
consolar-se durante a outra guerra). Os amigos próximos de Hardy estavam na guerra.
Littlewood estava trabalhando em balística como segundo-tenente na Artilharia Real.
Graças à sua alegre indiferença, teve a honra de continuar como segundo-tenente
durante os quatro anos da guerra. A colaboração sofreu uma interferência, mas não foi
interrompida inteiramente. O trabalho de Ramanujan é que foi o consolo de Hardy
durante as amargas lutas no colégio.
Às vezes penso que ele, naquela época, foi um tanto injusto para com seus colegas.
Alguns estavam em frenesi, como ficam os homens em tempo de guerra. Mas outros
eram pacientes e tentavam manter em dia as amenidades sociais. Afinal, foi um triunfo
de probidade intelectual eles terem eleito seu protegido, Ramanujan, numa época em
que Hardy mal falava com alguns dos eleitores e não falava em absoluto com alguns
outros.
Ainda assim, estava muito infeliz. Tão logo pôde, abandonou Cambridge.
Ofereceram-lhe uma cadeira em Oxford em 1919 e ele, imediatamente, entrou na fase
mais feliz da sua vida. Já fizera um grande trabalho com Ramanujan e Littlewood, mas,
agora, a colaboração com Littlewood atingia o seu vigor pleno. Hardy estava, na
expressão de Newton, “na flor da idade para a invenção”, e isso aconteceu quando
tinha quarenta e poucos anos, excepcionalmente tarde para um matemático.
Vindo tão tarde, esse ímpeto criador deu-lhe a sensação, mais importante para ele
do que para a maioria dos homens, de juventude eterna. Estava vivendo a vida de
jovem que correspondia à sua índole natural. Jogava mais tênis e foi se tornando cada
vez melhor nisso (o tênis era um jogo caro e engolia uma larga fatia do salário de um
professor). Fez muitas visitas a universidades norte-americanas e adorou os Estados
Unidos. Foi um dos poucos ingleses de seu tempo que se afeiçoou, mais ou menos na
mesma medida, pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Foi, certamente, o único
inglês de sua época ou de qualquer outra a escrever uma sugestão séria à Liga
americana de Beisebol propondo uma emenda técnica a uma das regras. A década de
1920, para ele e para a maioria dos liberais da sua geração, foi um falso amanhecer.
Ele pensava que a infelicidade da guerra perdera-se no passado.
No New College, sentiu-se em casa como nunca se sentira em Cambridge. O clima
doméstico, sociável, era bom para ele. Foi lá, em um colégio então pequeno e íntimo,
que ele levou à perfeição o seu estilo de conversação. Muitos ficavam ansiosos para
ouvi-lo após o jantar. Eram capazes de aceitar as suas excentricidades. Perceberam que
ele não era apenas grande e bom, mas também divertido. Se ele quisesse jogar jogos
verbais ou jogos de verdade (embora estranhos) no campo de críquete, estavam prontos
para atuarcomo coadjuvantes. De maneira informal e humana, eles o paparicavam. Ele
já tinha sido admirado e estimado, mas nunca o haviam paparicado daquele jeito.
Ninguém parecia se importar - era uma piada maledicente do colégio - com o fato
de ele ter uma grande fotografia de Lênin nos aposentos. O radicalismo de Hardy era
um tanto desorganizado, mas era sincero. Tinha nascido, como expliquei, numa família
de profissionais liberais; passara quase toda a sua vida entre a haute bourgeoisie; na
verdade, porém, comportava-se muito mais como um aristocrata, ou melhor, como as
imagens românticas que se fazem de um aristocrata. Talvez essa atitude lhe viesse, em
parte, do seu amigo Bertrand Russell. A maior parte, porém, era inata. Por baixo de sua
timidez, ele não estava nem aí.
Dava-se bem, sem nenhum paternalismo, com os pobres, os abandonados pela sorte,
os tímidos e acanhados, os prejudicados por causa da raça (foi um golpe simbólico do
destino ter descoberto Ramanujan). Preferia estes às pessoas que, como ele dizia,
tinham o traseiro grande. A descrição era mais psicológica que anatômica, apesar do
famoso aforismo do Trinity do século XIX, proferido por Adam Sedgwick: “Ninguém
jamais conseguiu sucesso neste mundo sem um traseiro grande.” Para Hardy, quem tinha
traseiro grande eram os ingleses autoconfiantes, espalhafatosos, imperialistas e
burgueses. A categoria incluía a maioria dos bispos, diretores de escolas, juízes e todos
os políticos, sendo Lloyd George a única exceção.
Para mostrar de que lado estava, aceitou um cargo público. Durante dois anos
(1924-26) foi presidente da Associação dos Trabalhadores Científicos. Disse
sarcasticamente que foi uma escolha estranha, já que ele era “o membro menos prático
da profissão menos prática do mundo”. Nas coisas importantes, porém, não era tão
destituído de senso prático. Estava expondo-se deliberadamente ao juízo do público.
Muito mais tarde, quando vim a trabalhar com Frank Cousins, tive um prazer secreto ao
me lembrar de que tivera dois amigos que haviam participado do movimento sindical:
ele e G. H. Hardy.
Aquele verão tardio - mas nem tanto - passado em Oxford, na década de 1920, foi
tão feliz que as pessoas se surpreenderam por ter ele voltado a Cambridge, o que fez
em 1931. Penso que foram dois os motivos. O primeiro, e o mais decisivo, era o fato de
ser um grande profissional. Cambridge ainda era o centro da matemática na Inglaterra e
a cadeira principal de matemática ali era o lugar correto para um profissional da sua
estatura. O segundo, um tanto estranho, o de que estava pensando na velhice. Os
colégios de Oxford, que sob muitos aspectos eram tão humanos e calorosos, são
impiedosos com os velhos: se tivesse permanecido no New College, seria colocado
para fora de seus aposentos caso se aposentasse da cadeira antes da idade-limite. Ao
passo que, se voltasse ao Trinity, poderia ficar no colégio até morrer. E foi isso que de
fato aconteceu.
Quando voltou a Cambridge - foi essa a época em que comecei a conhecê-lo -,
estava vivendo a fase derradeira de seu grande período. Ainda era feliz. Ainda era
criativo, não tanto quanto na década de 1920, mas o suficiente para sentir que o poder
ainda estava presente. Era tão enérgico quanto fora no New College. Portanto, tivemos
a sorte de vê-lo bem perto da sua melhor forma.
No inverno, depois de ficarmos amigos, oferecíamos jantares um ao outro de quinze
em quinze dias, cada qual em seu colégio. Quando o verão chegava, era certo que nos
encontraríamos no campo de críquete. Exceto em ocasiões especiais, ele ainda
trabalhava na matemática pela manhã e só chegava ao Fenner’s depois do almoço.
Costumava andar pela pista de corrida com passadas longas, elásticas, sonoras (era um
homem magro, esbelto, fisicamente ativo mesmo perto dos sessenta, ainda jogando
tênis), cabeça abaixada, cabelos, gravata, suéter, papéis, tudo ondulando ao vento, uma
figura que atraía os olhares de todos. “Lá vai um poeta grego, com toda certeza”, disse
certa vez um fazendeiro alegre quando Hardy passava pelo placar. Estava indo para seu
lugar favorito, em frente ao pavilhão, onde podia aproveitar todos os raios do sol - era
obcecado pela luz solar. Para enganar o sol e fazê-lo brilhar, carregava consigo, mesmo
numa bela tarde de maio, o que chamava de o seu “arsenal anti-Deus”. Este era
composto de três ou quatro suéteres, um guarda-chuva que pertencia à irmã e um
envelope grande contendo manuscritos de matemática, tais como uma dissertação de
doutorado, um trabalho que estava julgando para a Royal Society ou algumas respostas
do Tripos. Explicava para os conhecidos que Deus, achando que Hardy queria que o
tempo mudasse para oferecer-lhe uma chance de trabalhar, só para contra- riá-lo fazia
com que o céu permanecesse sem nuvens.
Lá ele se sentava. Para coroar o seu prazer numa longa tarde assistindo ao críquete,
gostava que o sol estivesse brilhando e que houvesse um companheiro para divertir-se
com ele. Técnica, tática, beleza formal - esses eram os principais atrativos do jogo para
ele. Não tentarei explicá-los: são incomunicáveis a menos que se conheça a linguagem,
do mesmo modo que alguns dos aforismos clássicos de Hardy são inexplicáveis a
menos que se conheça a linguagem do críquete ou a da teoria dos números - ou, de
preferência, ambas. Felizmente para muitos de nossos amigos, ele também tinha certo
prazer com a comédia humana.
Teria sido o primeiro a negar que possuía um discernimento psicológico especial.
Mas era extremamente inteligente, vivera com os olhos abertos, lera muito e adquirira
uma boa percepção geral da natureza humana - forte, misericordiosa, satírica e
inteiramente destituída de vaidade moral. Ele tinha uma franqueza espiritual que poucos
homens têm (duvido que alguém pudesse ser mais franco) e um horror zombeteiro da
pretensão, da indignação hipócrita e de todo o pomposo bazar das virtudes farisaicas.
Ora, o críquete, o mais belo dos jogos, é também o mais hipócrita. Supostamente, é a
manifestação máxima do espírito de equipe. Deve-se preferir não marcar nada e ver o
time vencer a marcar cem pontos e vê-lo perder (um jogador excelente, que era tão
sincero e franco quanto Hardy, observou certa vez que nunca conseguira sentir isso).
Esse ethos particular inspirou o senso de ridículo de Hardy. Como resposta, costumava
expor uma série contrária de máximas. Exemplos:
“O críquete é o único jogo em que você joga contra onze do outro lado e dez do
seu.”
“Se você está nervoso quando entra primeiro, nada melhor para restaurar a
confiança do que ver o outro homem sair.”
Se tivesse sorte, seu público podia ouvir outras observações, que nada tinham a ver
com o críquete, tão aguçadas na conversa como na escrita. Na Defesa há alguns
espécimes típicos; aqui vão mais alguns.
“Um homem de primeira classe nunca deve perder tempo em expressar uma opinião
da maioria. Por definição, há uma porção de gente para fazer isso.”
“Quando eu era estudante, mesmo os mais heterodoxos mal ousavam insinuar que
Tolstoi chegava aos pés de George Meredith como romancista; e olhe lá!” (Disse isso a
respeito da embriaguez da moda; vale a pena lembrar que fez parte de uma das gerações
mais brilhantes de Cambridge.)
“Para qualquer objetivo sério, a inteligência não vale muita coisa.”
“Os jovens devem ser convencidos, mas não devem ser imbecis.” (Dito depois que
alguém tentou convencê-lo de que Finnegans Wake era a obra- prima definitiva da
literatura.)
“Às vezes é preciso dizer coisas difíceis, mas deve-se dizê-las da maneira mais
simples possível.”
Às vezes, quando assistia ao críquete, ele perdia o interesse pelo jogo. Exigia então
que escolhêssemos times: times de impostores, sócios de clubes, falsos poetas, chatos,
times com nomes que começassem com HA (números um e dois, Hadrian [Adriano] e
Hannibal [Aníbal]) ou SN, times de grandes membros do Trinity, do Christ’s, e assim
por diante. Nessas brincadeiras eu ficava em desvantagem: que qualquer um tente
formar um time de personagens famosos com nomes começando com SN. O timedo
Trinity é fortíssimo (Clerk Maswell, Byron, Thackeray e Tennyson não têm lugar
assegurado), ao passo que o do Christ’s, que começa forte com Milton e Darwin, não
tem muito a mostrar do número três em diante.
Tinha também outra diversão favorita. “Vamos dar notas para o sujeito que
conhecemos ontem à noite”, ele dizia, e o pobre fulano tinha de receber notas, de 0 a
100, em cada uma das categorias que Hardy tinha inventado e definido havia muito
tempo. DURO, GELADO (“um homem duro não é necessariamente gelado, mas todos
os homens gelados, sem exceção, querem ser considerados duros”), APAGADO,
CONHAQUE VELHO, SPIN e algumas outras. DURO, GELADO e APAGADO
explicam-se por si mesmas (o Duque de Wellington conseguiria 100 em DURO e
GELADO e 0 em APAGADO). CONHAQUE VELHO vinha de um personagem mítico
que dizia não beber nada além de conhaque velho. Portanto, por extrapolação,
Conhaque Velho veio a significar um gosto excêntrico, esotérico, mas dentro dos
limites da razão. Como pessoa (e, na opinião de Hardy, embora não na minha, também
como escritor), Proust tinha notas altas como CONHAQUE VELHO, assim como F. A.
Lindemann (mais tarde Lord Cherwell).
Os dias de verão se passaram. Ao fim das breves temporadas de Cambridge, havia
o jogo da Universidade. Nem sempre era fácil combinar de encontrá-lo em Londres,
pois, como eu já disse, ele tinha um terror mórbido das engenhocas mecânicas (nunca
usou um relógio), especialmente do telefone. Nos seus aposentos em Trinity ou no
apartamento que tinha em St. George’s Square, costumava dizer, num tom reprovador e
levemente sinistro: “Se você cismar de usar o telefone, tem um no outro quarto.” Certa
vez, numa emergência, ele foi obrigado a me telefonar; zangada, sua voz chegou até
mim: “Não vou ouvir nem uma palavra do que você vai dizer; portanto, quando eu
terminar, vou desligar o telefone. É importante que você apareça entre nove e dez horas
hoje à noite.” Clonque!
Não obstante, chegava pontualmente ao jogo da Universidade. Era lá que aparecia
em todo o seu brilho, ano após ano. Rodeado de amigos, homens e mulheres, sentia-se
liberto da timidez. Era o centro de todas as atenções, o que não o desgostava. Às vezes,
do outro lado do campo, podiam-se ouvir as risadas dos que o rodeavam.
Nesses últimos anos felizes, tudo o que fazia era elegante, ordenado, cheio de
estilo. O críquete é um jogo de ordem e elegância, e era por isso que Hardy via nele a
beleza formal. Sua matemática, segundo me disseram, tinha essas mesmas qualidades
estéticas, do primeiro até o último trabalho criativo. Imagino ter dado a impressão de
que, no trato pessoal, ele era um conversador de salão. Até certo ponto isso era
verdade, mas, no que ele chamaria de ocasiões “não triviais” (referindo-se a ocasiões
importantes para todos os participantes), era também um ouvinte concentrado. Dentre as
outras pessoas famosas que, por vários motivos, conheci no mesmo período, Wells, no
geral, era um ouvinte pior do que se esperava; Rutherford já era bem melhor; Lloyd
George foi um dos melhores ouvintes de todos os tempos. Hardy não destilava
impressões e conhecimento das palavras dos outros, como Lloyd George, mas deixava
a sua mente à disposição. Quando soube, anos antes de eu escrever o texto, da ideia do
The Masters, ele me fez uma série de perguntas e me deixou falar. Expôs então algumas
boas ideias. Gostaria que ele tivesse podido ler o livro e acho que talvez o apreciasse.
De qualquer maneira, com essa esperança, dediquei-o à sua memória.
Na observação feita ao final da Defesa, ele se refere a outras discussões. Uma
delas foi muito prolongada e, às vezes, violenta de ambos os lados. Na Segunda Guerra
Mundial cada um de nós tinha opiniões exaltadas, mas, como direi mais tarde,
diferentes. Não mudei as opiniões dele em nada. Não obstante, embora estivéssemos
separados por um abismo emocional, no plano da razão ele entendia o que eu estava
dizendo.
Ao longo da década de 1930, viveu a vida de um jovem, segundo ele a concebia.
Então, de repente, tudo ruiu. Em 1939, teve uma trombose coronária. Ele recuperou-se,
mas o tênis, o squash, as atividades físicas de que gostava terminaram para sempre. A
Segunda Guerra tomou-o mais sombrio ainda, à semelhança da Primeira. Para ele, as
duas eram episódios interligados de demência, todos nós tínhamos culpa; não conseguia
identificar-se com a guerra - tão logo tornou-se claro que o país sobreviveria - mais do
que o conseguira em 1914. Um de seus amigos mais íntimos morreu tragicamente. E
finalmente - me parece que, sem dúvida, esses sofrimentos estavam entrerrelacionados
-, com sessenta e poucos anos de idade, ele perdeu o seu poder criativo na matemática.
É por isso que Em defesa de um matemático, se for lido com a atenção textual que
merece, é um livro de uma tristeza enorme. É verdade que se encontram nele o espírito
e a mordacidade do bom- humor intelectual; a clareza cristalina e a franqueza ainda
estão lá; o livro de fato é o testamento de um artista criativo. Mas também é, de um
modo estoico e discreto, um lamento apaixonado por um poder criativo que existira,
mas nunca voltaria a existir. Não conheço nada semelhante a ele na nossa língua, em
parte porque a maioria das pessoas que têm o dom literário para expressar tal lamento
nunca o sentem: é muito raro um escritor perceber, com o caráter definitivo da verdade,
que está absolutamente acabado.
Vendo-o naqueles anos, não pude deixar de pensar no preço que ele estava pagando
pela sua vida de jovem. Era como se um grande atleta, que durante anos fora orgulhoso
de sua juventude e habilidade, tão mais jovem e alegre que nós, de repente tivesse de
aceitar que perdeu o dom. É comum encontrar grandes atletas que chegaram, como se
diz, na “curva da estrada”; logo os pés ficam mais pesados (muitas vezes os olhos
aguentam mais), os golpes não saem, Wimbledon torna-se um lugar temido, as
multidões ocorrem para ver outro. É nesse ponto que muitos atletas começam a beber.
Hardy não começou, mas caiu numa espécie de desespero. Recuperou-se o bastante
para bater bola por dez minutos na quadra de tênis ou para jogar sua agradável versão
(com um complicado esquema de vantagens) do boliche de Trinity. Muitas vezes,
porém, era difícil despertar-lhe o interesse - três ou quatro anos antes, seu interesse por
tudo era tão esfuziante que por vezes nos cansava a todos. “Ninguém deve jamais ficar
entediado”, fora um de seus axiomas. “Podemos ficar horrorizados ou enojados, mas
não entediados.” No entanto, era justamente assim que ele muitas vezes se sentia:
simplesmente entediado.
Foi por essa razão que alguns de seus amigos, eu inclusive, o encorajaram a
escrever a história do conflito entre Bertrand Russell e o Trinity College na guerra de
1914-18. As pessoas que não sabiam como Hardy estava deprimido achavam que todo
o episódio estava encerrado fazia tempo e que não devia ser ressuscitado. A verdade
era que Hardy se animava quando se propunha a um objetivo qualquer. O livro teve
circulação privada. Nunca foi posto ao alcance do público, o que é uma pena, pois
trata-se de um pequeno acréscimo à história acadêmica.
Usei o poder de persuasão que tinha para convencê-lo a escrever outro livro, que
ele, em dias mais felizes, prometera escrever. Iria se chamar A Day at the Oval e seria
ele assistindo a jogos de críquete um dia inteiro e tecendo considerações sobre o jogo,
a natureza humana, reminiscências, a vida em geral. Teria sido um classicozinho
excêntrico, mas nunca foi escrito.
Não lhe fui de grande ajuda nesses últimos anos. Eu estava profundamente
envolvido no Whitehall do tempo de guerra, preocupado e muitas vezes cansado; era-
me difícil ir a Cambridge. Mas devia ter feito esse esforço mais vezes do que fiz.
Tenho de admitir, com remorso, que houve, não exatamente um esfriamento, mas um
certo distanciamento entre nós. Ele me emprestou seu apartamento em Pimlico - um
apartamento escuro e ca- quético diante dos jardins da St. George’s Square, dotado de
um certo fascínio “conhaque velho”, como Hardy o chamava- durante toda a guerra.
Mas não gostava do fato de eu estar tão comprometido. As pessoas que ele apreciava
não deviam dedicar-se tão apaixonadamente a funções militares. Ele nunca me
perguntou sobre o meu trabalho. Não queria conversar sobre a guerra. Enquanto eu, da
minha parte, ficava impaciente e não queria demonstrar nem um pouco de consideração.
Afinal, pensava, não estava fazendo aquele trabalho por diversão: já que tinha de fazê-
lo, podia muito bem extrair dele o máximo de interesse. Mas isso não é desculpa.
No fim da guerra não voltei para Cambridge. Visitei-o várias vezes em 1946. A
depressão continuava, ele se achava combalido fisicamente e ficava sem fôlego depois
de dar uns poucos passos. O passeio longo e alegre por Parker’s Piece depois do fim
do jogo fora-se para sempre: eu tinha de levá- lo de táxi para o Trinity. Estava contente
por eu ter voltado a escrever livros: a vida criativa era a única vida digna de um
homem de verdade. Quanto a si, quisera poder viver a vida criativa outra vez,
exatamente como antes: sua vida estava acabada.
Não estou citando suas palavras exatas. Essa atitude era tão pouco característica
dele que eu quis esquecê-la e tentei, mediante uma espécie de ironia, apagar o que
acabava de ser dito. Portanto, nunca mais me lembrei disso com precisão. Tentei
considerá-lo como se fosse um floreio retórico.
No início do verão de 1947, eu estava tomando o café da manhã quando o telefone
tocou. Era a irmã de Hardy. Ele estava gravemente enfermo; será que eu podia ir a
Cambridge imediatamente? Podia ir ao Trinity primeiro? Na ocasião, não captei o
significado do segundo pedido. Mas obedeci e, na portaria, encontrei um recado dela:
eu devia ir aos aposentos de Donald Robertson, pois ele estava esperando por mim.
Donald Robertson era professor de grego e amigo íntimo de Hardy; era outro
membro da mesma Cambridge edwardiana, elevada, liberal e elegante. A propósito, era
uma das poucas pessoas que chamavam Hardy pelo primeiro nome. Ele me
cumprimentou em silêncio. Pela janela do seu quarto via-se uma manhã calma e
ensolarada. Ele disse:
“Você precisa saber que Harold tentou se matar.”
Sim, ele estava fora de perigo; estava bem por enquanto, se é que se devia usar essa
expressão. Mas Donald era, de um modo menos acentuado, tão direto quanto o próprio
Hardy. Segundo ele, era uma pena que a tentativa tivesse falhado. A saúde de Hardy
ficara pior; de qualquer modo, não ia viver muito; mesmo caminhar dos aposentos até o
refeitório tornara-se um esforço. Tomara uma decisão perfeitamente lúcida. A vida
daquele jeito ele não podia suportar; não havia nada nela. Tinha reunido uma porção
suficiente de barbitúricos; tentara fazer um serviço meticuloso e tomara-os em
quantidade demasiada.
Eu gostava de Donald Robertson, mas o encontrava apenas em festas e nos jantares
solenes do Trinity. Essa foi a primeira ocasião em que conversamos intimamente. Ele
disse, com delicada firmeza, que eu devia visitar Hardy tantas vezes quanto pudesse;
seria difícil, mas era uma obrigação; provavelmente não seria por muito tempo.
Estávamos ambos arrasados. Despedimo-nos e nunca mais o vi.
No sanatório Evelyn, Hardy estava na cama. Num detalhe cômico, tinha um olho
roxo. Enquanto vomitava por causa das drogas, tinha batido a cabeça na pia do
lavatório. Zombava de si mesmo. Tinha feito a maior confusão. Alguém já tinha feito
confusão maior? Nunca tive menos vontade de ser sarcástico, mas tinha de entrar no
jogo. Falei sobre outros suicídios fracassados e famosos. E os generais alemães na
última guerra? Beck e Stulpnagel tinham sido de uma incompetência notável. Era
estranho ouvir-me dizer essas coisas. Curiosamente, isso pareceu alegrá-lo.
Depois disso, fui a Cambridge pelo menos uma vez por semana. Eu temia cada
visita, mas, logo de início, ele disse que aguardava ansiosamente o dia de me ver.
Falava um pouco sobre a morte, quase sempre que eu o via. Ele queria morrer, não
tinha medo: o que havia a temer no nada? Seu severo estoicismo intelectual tinha
voltado. Não tentaria matar-se novamente. Não era bom nisso. Estava preparado para
esperar. Com uma incoerência que poderia tê-lo vexado - pois ele, como a maioria dos
que com ele conviviam, acreditava na racionalidade a um ponto que me parecia
irracional -, mostrava uma intensa curiosidade hipocondríaca pelos próprios sintomas.
Constantemente estudava o edema dos tornozelos: estava maior ou menor naquele dia?
Na maioria das vezes, porém - cerca de cinquenta e cinco minutos em cada hora que
passava com ele eu tinha de falar sobre críquete. Era o seu único conforto. Eu tinha de
fingir uma devoção pelo jogo que já não sentia, que inclusive já fora morna na década
de 1930, a não ser pelo prazer que eu tinha na companhia dele. Agora eu precisava
estudar os placares do críquete com a mesma atenção de um escolar. Ele não conseguia
ler sozinho, mas teria identificado um blefe meu. Às vezes, por alguns minutos, a antiga
vivacidade voltava a brilhar. Mas se eu não conseguisse pensar em outra pergunta a
fazer ou notícia a contar, ele ficava lá, deitado, na espécie de solidão sombria que
acomete algumas pessoas antes de morrerem.
Uma ou duas vezes tentei animá-lo. Não valeria a pena, mesmo que fosse arriscado,
vermos mais um jogo de críquete juntos? Eu agora estava em melhor situação financeira
do que antes, disse. Estava preparado para bancar um táxi, seu meio de transporte velho
e conhecido, para qualquer campo de críquete que ele quisesse. Ele ficou entusiasmado.
Disse que eu podia acabar com um homem morto em minhas mãos. Respondi que estava
pronto para enfrentar isso. Achei que ele iria: ele sabia, eu sabia, que sua morte podia
ser apenas uma questão de meses; queria vê-lo passar uma tarde num clima de certa
alegria. Na próxima vez que o visitei ele sacudiu a cabeça com tristeza e raiva. Não
podia sequer tentar; não havia por que tentar.
Para mim já era difícil ter de conversar sobre críquete. Era ainda mais difícil para a
irmã, uma mulher inteligente e encantadora, que nunca se casara e que havia passado
boa parte da vida cuidando dele. Com uma habilidade bem-humorada, não muito
diferente dele mesmo em sua melhor forma, ela reunia todas as notícias de críquete que
conseguia encontrar, apesar de nunca ter aprendido nada sobre o jogo.
Uma ou duas vezes, o amor sarcástico pela comédia humana irrompia. Duas ou três
semanas antes de sua morte, ele soube que receberia a maior condecoração da Royal
Society, a Medalha Copley. Mostrou o sorriso mefistofélico; pela primeira vez eu o via
em todo o esplendor naqueles últimos meses. “Agora sei que devo estar bem perto do
fim. Quando as pessoas se apressam para dar honrarias, só há uma conclusão a extrair.”
Depois de ouvir isso, acho que o visitei duas vezes. A última vez foi quatro ou
cinco dias antes de sua morte. Havia um time experimental indiano jogando na Austrália
e conversamos sobre ele.
Foi na mesma semana que ele disse à irmã: “Se eu soubesse que ia morrer hoje,
acho que mes- mo assim gostaria de ouvir os resultados do críquete.”
Foi mais ou menos isso que aconteceu. Toda noite, naquela semana, antes de pô-lo
para dormir, ela lia para ele um capítulo de uma história do críquete em Cambridge.
Um desses capítulos continha as últimas palavras que ele ouviu, pois morreu de
repente, de manhã cedo.
 
PREFÁCIO
 
 
Agradeço as muitas críticas valiosas do professor C. D. Broad e do dr. C. P. Snow,
que leram o manuscrito original. Incorporei a substância de quase todas as suas
sugestões ao meu texto e, com isso, eliminei muitos pontos imperfeitos e obscuros.
Em um caso particular, lidei com elas de maneira diferente. Meu parágrafo 28 se
baseia em um pequeno artigo que ofereci ao Eureka (o periódico da Sociedade
Arquimediana de Cambridge) no início do ano, e julguei impossível remodelar o que
havia escrito tão recentemente e com tanto cuidado. Além disso, se eu tentasse
corresponder devidamente a críticas tão importantes, teria de ampliar tanto esta seção
que acabaria por destruir todo o equilíbriodo meu ensaio. Portanto deixei-o inalterado,
mas acrescentei uma breve formulação das principais proposições feitas pelos meus
críticos em uma nota no final.
 
G. H. H.
18 de julho de 1940
 
1
 
É uma experiência melancólica para um matemático profissional ver-se escrevendo
sobre matemática. A função de um matemático é fazer algo, provar novos teoremas,
contribuir para a matemática, e não falar sobre o que ele ou outros matemáticos fizeram.
Os estadistas detestam os jornalistas, os pintores desprezam os críticos de arte, e os
fisió- logos, físicos e matemáticos geralmente têm esse mesmo sentimento; não há
desprezo mais profundo ou, no geral, mais justificável, do que o dos homens que
contribuem para com os homens que explicam. Exposição, crítica, apreciação é
trabalho para mentes de segunda categoria.
Lembro-me de ter defendido essa ideia certa vez, em uma das poucas conversas
sérias que tive com Housman. Housman, na sua conferência Leslie Stephen, The Name
and Nature of Poetry, negara muito enfaticamente que fosse um “crítico”, mas o negara
de uma maneira que me pareceu singularmente desarrazoada e expressara uma
admiração pela crítica literária que me surpreendeu e escandalizou.
Começara com uma citação de sua palestra inaugural, proferida vinte e dois anos
antes:
 
Se a faculdade da crítica literária é a melhor dádiva que o Céu tem nos seus
tesouros não sei dizer; mas o Céu parece pensar que sim, pois, com certeza, é o dom
mais frugalmente distribuído. Oradores e poetas..., se raros em comparação com
amoras pretas, são mais comuns que os retornos do cometa de Halley; os críticos
literários são mais raros...
 
E continuara:
 
Nestes vinte e dois anos progredi em alguns aspectos e me deteriorei em outros,
mas não progredi o bastante para me tornar um crítico literário, nem me deteriorei
tanto a ponto de imaginar que me tornei um.
 
Parecera-me deplorável que urn grande estudioso e bom poeta escrevesse assim, e,
sentado ao seu lado no Hall, algumas semanas depois, disse- lhe isso. Ele realmente
pretendia que levassem a sério o que dissera? A vida do melhor dos críticos realmente
lhe parecia comparável com a vida de um estudioso e poeta? Discutimos essas questões
ao longo de todo o jantar e penso que ele finalmente concordou comigo. Não quero dar
a impressão de afirmar um triunfo dialético sobre um homem que já não pode me
contradizer, mas “Talvez não inteiramente” foi, no fim, sua resposta à primeira pergunta
e “Provavelmente não” a resposta à segunda.
Pode haver alguma dúvida sobre os sentimentos de Housman e não quero afirmar
que ele está do meu lado; mas não há nenhuma dúvida quanto aos sentimentos dos
homens de ciência e eu os compartilho plenamente. Então, se me vejo escrevendo
“sobre” matemática, e não fazendo matemática, isso é uma confissão de fraqueza pela
qual, com justiça, posso merecer o desprezo ou a piedade de matemáticos mais jovens e
vigorosos. Escrevo sobre a matemática porque, como qualquer outro matemático que
passou dos sessenta anos, já não tenho o frescor mental, a energia e a paciência
necessárias para levar a cabo com eficácia o meu trabalho propriamente dito.
 
2
 
Proponho apresentar uma defesa da matemática, e podem me dizer que ela não
precisa de defesa nenhuma, já que agora são poucos os campos de estudo tão
geralmente reconhecidos, por boas ou más razões, como proveitosos e dignos de
louvor. Isso pode até ser verdade; de fato, é provável, desde os sensacionais triunfos de
Einstein, que a astronomia estelar e a física atômica sejam as únicas ciências a ocupar
uma posição mais elevada no apreço popular. Agora, um matemático não tem mais
contra o que se defender. Não tem de enfrentar o tipo de oposição descrito por Bradley
na admirável defesa da metafísica que constitui a introdução de Appearance and
Reality.
Um metafísico, diz Bradley, ouvirá que “o conhecimento metafísico é inteiramente
impossível” ou que “mesmo que possível até certo ponto, na prática não é um
conhecimento digno desse nome”. “Os mesmos problemas”, ouvirá, “as mesmas
disputas, o mesmo fracasso puro e simples. Por que não abandoná-la e sair? Não existe
nada que mereça mais o seu esforço?” Não existe ninguém tão estúpido a ponto de usar
esse tipo de linguagem em referência à matemática. O volume da verdade matemática é
evidente e convincente; suas aplicações práticas, as pontes, máquinas a vapor e
dínamos, impõem-se à imaginação mais obtusa. O público não precisa ser convencido
de que há algo de bom na matemática.
Tudo isso é, de certo modo, um grande consolo para os matemáticos, mas nenhum
matemático de verdade há de contentar-se com isso. Qualquer matemático de verdade
há de sentir que não é nessas toscas realizações que reside o verdadeiro argumento a
favor da matemática; que a reputação popular da matemática baseia-se, em grande
parte, na ignorância e na confusão, e que há espaço para uma defesa mais racional. De
qualquer modo, estou disposto a tentar elaborar uma tal defesa. Deve ser uma tarefa
mais simples que a difícil defesa de Bradley.
Perguntarei, então: por que realmente vale a pena estudar com seriedade a
matemática? Qual é a razão de ser da vida de um matemático? E minhas respostas
serão, no geral, do tipo que se espera de um matemático: penso que vale a pena, que
essa vida tem uma boa razão de ser. Mas devo dizer desde já que a minha defesa da
matemática será uma defesa de mim mesmo; será, portanto, até certo ponto, um pouco
egocêntrica. Não pensaria que vale a pena defender o meu campo de trabalho se me
considerasse um dos seus fracassos.
Certo egocentrismo desse tipo é inevitável e não sinto que precise me desculpar por
ele. Nenhum trabalho bom é feito por homens “humildes”. Um dos primeiros deveres de
um professor, por exemplo, em qualquer matéria, é exagerar um pouco a importância da
matéria e a sua importância dentro dela. Um homem que está sempre se perguntando “O
que eu faço vale a pena?” e “Sou a pessoa certa para fazê-lo?” não será jamais
eficiente e, além disso, há de desencorajar os outros. Ele tem de fechar os olhos um
pouco e dar à sua matéria e a si mesmo um pouco mais de valor do que eles merecem.
Isso não é difícil: mais difícil é não tornar ridículos a sua matéria e a si mesmo,
fechando os olhos demais.
 
3
 
Um homem que se propõe a justificar sua existência e suas atividades tem de
distinguir duas questões diferentes. A primeira é se o trabalho que ele faz é um trabalho
que vale a pena; a segunda é por que ele o faz, qualquer que seja o seu valor. Muitas
vezes, a primeira pergunta é difícil, e a resposta, muito desencorajadora; mas a maioria
das pessoas achará a segunda fácil mesmo assim. A resposta a essa segunda pergunta,
se for uma resposta sincera, geralmente assume uma dentre duas formas, e a segunda
forma não passa de uma variante mais humilde da primeira, que é a única resposta que
precisamos considerar seriamente.
(1) “Faço o que faço porque é a única coisa que consigo fazer bem. Sou advogado,
corretor de ações ou jogador profissional de críquete porque tenho talento para esse
trabalho. Sou advogado porque tenho uma língua fluente e interesse por sutilezas
jurídicas; sou corretor porque meu juízo sobre o mercado é rápido e sensato; sou
jogador profissional de críquete porque sei rebater excepcionalmente bem. Concordo
que talvez fosse bem melhor ser poeta ou matemático, mas, infelizmente, não tenho
nenhum talento para essas coisas.”
Não quero dar a entender que esta defesa possa ser feita pela maioria das pessoas,
já que a maioria das pessoas não sabe fazer nada bem feito. Mas é inabalável quando
pode ser feita sem infringir a verdade, como no caso de uma boa minoria dos seres
humanos: talvez cinco ou mesmo dez por cento dos homens saibam fazer alguma coisa
razoavelmente bem. É só uma minoria bem mais restrita que sabe fazer algo realmente
bem, e o número de homens que sabem fazer duas coisas bem feitas é ínfimo. Se um
homem tem um talento verdadeiro, qualquer que seja, ele deve estar pronto a fazer
praticamente qualquer sacrifício

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