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Em frente do apresentado, é fundamental aferir que a população negra fora subalternizada e impulsionada ao subemprego e às categorias de trabalho q...

Em frente do apresentado, é fundamental aferir que a população negra fora subalternizada e impulsionada ao subemprego e às categorias de trabalho que reproduziam dinâmicas escravagistas, como é o caso do trabalho doméstico. Dito isto, o caráter colonial do trabalho doméstico se demonstra material e simbolicamente, sendo latente a realidade das meninas que trabalham em casas de terceiros em troca de comida, vestuário e aulas em escolas públicas dos centros urbanos (FELIZARDO, 2020), sem a percepção de uma contraprestação pecuniária. Tal contexto se respalda no discurso de naturalização do trabalho doméstico, bem como na acepção de que essa modalidade é uma espécie de socialização e auxílio às crianças, acarretando, portanto, uma maior invisibilização do fenômeno. É possível, no entanto, afirmar que essa relação homogeneizada não anula uma condição explícita de classes sociais desiguais, na qual não deixa de existir a exploração, mesmo envolta no manto da proteção e ajuda, particularmente entre as ‘afilhadas’ (meninas trabalhadoras domésticas) e ‘madrinhas’ (patroas). A chave do problema é desconstruir o paradigma dessa exploração oculta até mesmo para as próprias meninas, que, acometidas por profundas necessidades de afeto e inclusão, protagonizam relações amistosas com as patroas-mães na tentativa de fugir da condição social de ‘empregada doméstica’ (LAMARÃO, 2003, p. 72). Diante disso, urge compreender que o racismo não permeia somente as condições materiais nas quais as trabalhadoras infantis domésticas estão inseridas, mas as suas próprias corporalidades. Nesse sentido, Vivarta (2003) explicita que, consoante a socióloga baiana Marlene Vaz, é comum no Nordeste do Brasil a introdução da criança ao lar mediante um ritual de branqueamento da raça, no qual a patroa e a empregada doméstica adulta banham as meninas e lavam suas roupas, simbolizando, assim, um rito de passagem. Em relação ao cenário esposado, a significação social desse comportamento concerne a uma estratégia higienista com o intuito de demonstrar a diferenciação de classes. Ademais, imprime, também, uma visão patrimonialista acerca da criança, visto que o referido rito de passagem comunica à menina a mensagem de que ela não pertence mais ao círculo social do qual veio, mas àquela família que a empregou. Sendo assim, é possível depreender que o racismo e o sistema de gênero se expressam simbolicamente nos corpos das mulheres negras, uma vez que as reduzem à unidade material apropriada e não a simples portadoras da força de trabalho. Em razão disso, no campo ideológico-discursivo, cria-se a noção de que as mulheres negras são objetos. Tal fenômeno de coisificação se traduz, sobretudo, na hiperssexualização destas, a qual se relaciona historicamente à figura da mucama. Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas. Ao caracterizar a função da escrava no sistema produtivo (prestação de bens e serviços) da sociedade escravocrata, Heleieth Saffioti mostra sua articulação com a prestação de serviços sexuais. E, por aí, (...) constatamos que o engendramento da mulata e da doméstica se fez a partir da figura da mucama (GONZALEZ, 1984b, p. 230). Consubstanciada nas considerações tecidas por Gonzalez (1984b), conclui-se que o trabalho infantil doméstico é um fenômeno invisível não somente em razão da dificuldade de fiscalização em face do pretexto constitucional de inviolabilidade do lar, mas porque as estruturas socioculturais que se correlacionam ao desenvolvimento do trabalho doméstico no Brasil o projetaram para ser, por si só, invisibilizado. Acerca disso, Gonzalez (1984b, p. 233) questiona: Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam em ‘lidar com o público’? Ou seja, em atividades onde não pode ser vista? Por que os anúncios de emprego falam tanto em ‘boa aparência’? Por que será que, nas casas das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira e raramente copeira? Por que é ‘natural’ que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais, etc.? À vista disso, o entendimento sobre o trabalho infantil doméstico é indissociável da análise relativa às dinâmicas sociais perpetradas pelo sistema de gênero e pelo racismo no Brasil. Dessa maneira, como corolário da coisificação da mulher negra e, portanto, da sua redução à unidade material apropriada, o abuso sexual no âmbito do trabalho doméstico se faz presente na realidade de meninas e mulheres. Referências a maus-tratos e abuso sexual ocupam o quarto e quinto lugares entre as consequências do Trabalho Infantil mais citadas pelas 652 matérias analisadas pela pesquisa Crianças Invisíveis, mas referem-se quase que exclusivamente a casos de Trabalho Infantil Doméstico. Nas 150 matérias que abordavam apenas esse tipo de exploração de mão-de-obra infanto-juvenil, o abuso sexual fica em segundo lugar e maus-tratos em quarto (VIVARTA, 2003, p. 86). Relativamente ao exposto, Vivarta (2003) salienta que, em conformidade ao discutido pela socióloga Marlene Vaz, não se trata de uma questão de iniciação sexual, mas de dominação, fruto da imbricação entre gênero e racismo. Isto posto, Vivarta (2003, p. 86) que era comum a culpabilização das “negrinhas-criadas” pela propagação da sífilis nos anos 80, em virtude da “prostituição doméstica” – caracterizada, hoje, como abuso sexual. Diante disso, no contexto da pandemia da COVID-19, crianças e adolescentes, sobretudo meninas, encontram-se ainda mais vulneráveis ao abuso sexual, posto que o ambiente no qual decorre a maioria dos casos de violência sexual é o doméstico (VILELA, 2019). Conquanto não existam dados conclusivos concernentes à ocorrência de abuso sexual na relação de trabalho infantil doméstico em tal cenário, uma vez que esta é uma categoria de trabalho infantil de difícil fiscalização, os fatores apresentados apontam que a condição social das trabalhadoras infantis domésticas fora agravada, nos mais diversos aspectos, ante o aparecimento do Coronavírus, uma vez que as mulheres e os negros (SOARES, 2020) têm sido os mais atingidos pelas transformações socioeconômicas observadas durante a pandemia.

Essa pergunta também está no material:

E-book - Trabalho Infantil e Pandemia (2)
390 pág.

Metodologia de Pesquisa I Humanas / SociaisHumanas / Sociais

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