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Na diversidade cultura uma 'Docência Artistica'

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NA DIVERSIDADE CULTURAL, UMA 'DOCÊNCIA ARTÍSTICA'
Sandra Mara Corazza - Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS.
O mundo, as relações e as identidades mudaram, assim como as concepções e as práticas educacionais. Em função dessas mudanças, não podemos mais pensar nem praticar a pedagogia e o currículo como antes. Neste contexto, a Pedagogia Cultural impele a novas concepções, fazeres e dizeres.
No início dos anos 70, quando comecei a trabalhar como professora da rede estadual em escolas da periferia de Porto Alegre, bastava entender, ver e falar de uma aluna apenas como um membro integrante da classe explorada da sociedade. Hoje isto não basta. Hoje é preciso compreender uma aluna de escola pública também como uma menina, da geração infantil, branca, negra, heterossexual, homossexual, migrante da zona rural, somente filha, filha e catadora de lixo, católica, espírita, evangélica, etc. Ou seja, é preciso considerá-la como uma "linguajadora" de muitas linguagens e "linguajada" por várias outras. Como ocupante de múltiplas posições discursivas e de diferentes posições de sujeito. Como uma menina escolarizada, constituída por vários discursos, simultaneamente diferentes e, às vezes, sobrepostos ou conflitantes. Como uma subjetividade "mestiça", não mais unitária, nem centrada, seja na classe, no gênero, na nacionalidade.
Por quê? Por que não é mais suficiente entender uma aluna de escola pública apenas como integrante da classe popular? Ora, porque os tempos são outros, o mundo, as relações, as identidades mudaram, e as concepções e as práticas educacionais também. Porque, em função dessas mudanças, não podemos mais pensar nem praticar a pedagogia e o currículo como antes. Porque existe uma fonte de pesquisa, integrada às teorias pós-críticas em educação, chamada Estudos Culturais, da qual deriva a Pedagogia Cultural, que nos impele a novas concepções, fazeres e dizeres.
Para desenvolver essa argumentação, inicialmente, apresento quatro pontos que, em meu entendimento, melhor caracterizam a Pedagogia Cultural. Após, articulo tal pedagogia a mudanças na prática e na formação do educador em uma dada direção. Direção que lança o desafio de uma "docência artística a ser vivida em tempos de diversidade cultural.
Diversidade e Pedagogia Cultural
Integrante da perspectiva pós-estruturalista/pós-modernista em educação, o campo dos estudos culturais oferece algumas ferramentas teóricas bastante instigantes para repensar a docência atual. Nesse campo, encontramos uma pedagogia, adjetivada como "cultural". Com essa adjetivação, fica marcada a diferença entre a pedagogia pós-crítica, as pedagogias tradicionais, de origem liberal e, inclusive, as pedagogias críticas de base marxista. Calcada nessa diferença, "a pedagogia" é entendida menos "pedagogicamente" e cada vez mais em termos "culturais". Termos que nos fazem compreender que, para além da instituição escolar, existe e ocorre "pedagogia" em todo o espaço social em que saberes são construídos, relações de poder são vividas, experiências são interpretadas, verdades são disputadas.
1 . Cultura: "problemática" e "de briga. A Pedagogia Cultural concebe a "cultura" como uma forma social e histórica de existência, constituída por idéias, atitudes, sentimentos, linguagens, proposições morais, relações e desejos. Também compreende tal forma de vida como produzida por textos, arquiteturas, mercadorias, organizações, regulamentos, enunciados científicos e instituições. A cultura é assim o solo privilegiado e bastante "problemático" no qual se realizam a educação, a pedagogia e o currículo.
Ela é um campo "de briga" em torno da formulação e da fixação de significados sobre as identidades e a sociedade. Sempre aberta ao conflito, a cultura é uma atividade incessante de produção de "verdades" que necessitam ser examinadas criticamente, seja em seu processo de fabricação, seja em seus efeitos sociais e subjetivos. Por isso, a cultura torna-se, ao mesmo tempo, o objeto de estudo, de pesquisa e de ensino dos educadores contemporâneos, bem como a "arma de combate" em suas intervenções pedagógicas e políticas.
2. Pedagogia: "hipercrítica" e "antidisciplinar". A Pedagogia Cultural não se enquadra em nenhuma concepção de pedagogia que possa reduzir-se a um conjunto de habilidades técnicas ou profissionais. Ao contrário, assume que a pedagogia é uma importante "prática cultural" que só pode ser exercida por meio de análises sobre poder, linguagem, diferença, multiplicidade. Desse modo, preocupa-se menos com questões metodológicas de transmissão e processos de avaliação do que com os modos como os saberes e os produtos culturais são fabricados, divulgados e consumidos. Ela se caracteriza como sendo uma prática que questiona, de forma "hipercrítica", os discursos culturais que moldam as experiências, as relações, os gestos e os gostos cotidianos.
Prática que, na ação pedagógica, privilegia a análise do "mundo da cultura" para compreender de que modo o funcionamento do poder, o estabelecimento de privilégios e a constituição de determinadas subjetividades movimentam a vida de uma sociedade e de seus membros em uma dada direção e não em outras. Prática cultural, de pesquisa e de ensino que centra seus esforços nas maneiras como definimos e como nos emocionamos com os textos eletrônicos, auditivos e visuais, característicos da cultura mediática de nosso tempo. E que, acima de tudo, integra tais definições e emoções a um "velho conhecido" nosso, chamado "currículo escolar".
A Pedagogia Cultural torna os currículos escolares mais atentos ao poder do discurso cultural e ao heteromorfismo de seus jogos de linguagem. Reorganiza esses currículos para que analisem como o discurso é usado para normalizar certas identidades, assegurar formas específicas de autoridade, calar e eliminar antagonismos irredutíveis. Ela os reconstrói para que diagnostiquem como a linguagem funciona, sob o primado de um suposto "consenso" que garante e marginaliza condutas: fortalece e enfraquece modos de existência; estimula e impede certos amores, prazeres e desejos; reabsorve a diversidade cultural em falsas unidades, sistemas estáveis e sínteses doutrinais. Para realizar essas tarefas, a Pedagogia Cultural atua de maneira radicalmente "antidisciplinar". Argumenta que vivemos em um mundo onde as distinções que separam e enquadram as disciplinas estabelecidas não têm mais como dar conta da grande diversidade de fenômenos culturais que caracterizam nossas condições pós-modernas de existência, produção e sociedade. Defende que somente conseguiremos educar para a contemporaneidade se não operarmos mais dentro das "camisas-de-força" das disciplinas modernas. Que estas disciplinas como linguagem, matemática, biologia e categorias técnico-administrativas delas derivadas como currículo, ensino, metodologia são hoje insuficientes para analisar as problemáticas atuais. Por isso, realiza uma "alquimia" de todos os saberes sem distinção por séries, ciclos, idades ou áreas de conhecimento que sejam necessários e úteis para criticar o movimento dos laços e desenlaces sociais.
3. Trabalho dos pedagogos culturais: "que faz diferença" Para a Pedagogia Cultural, os intelectuais da educação não são técnicos ou especialistas neutros, nem transmissores de conhecimentos legitimados. Antes, são "pedagogos culturais", comprometidos e implicados nas relações de poder, formas de saber e modos de subjetivação produzidos pela dinâmica social e pelos quais são sempre responsáveis em seus locais de trabalho e de vivências.
A partir dessa pedagogia, os pedagogos rejeitam a equivalência de "cultura" com "alta cultura" e negam a existência da chamada "baixa cultura", desconstruindo essa oposição binária de tanto tempo. Comprometem-se com o exame de todas as formas de produção cultural em relação a práticas sociais e históricas e a interesses e necessidades de governo dos indivíduos e das populações. Em seu trabalho, atribuem centralidade à questão:como agir curricular e pedagogicamente com a cultura? Portanto, consideram a sala de aula, o pátio, o ginásio de esportes, as ruas, as praças, os shopping centers, os cinemas, o rádio, a televisão, a publicidade, a discoteca, as organizações religiosas, as escolas de samba, etc., como espaços pedagogicamente culturais, onde sempre é possível desconstruir e reconstruir as relações entre cultura, conhecimento e poder. Assim, o seu trabalho é uma intervenção na cultura, articulada à problemática política da sociedade e engajada em problemas sociais concretos. Um trabalho que emerge das necessidades dos grupos junto aos quais atuam. Um trabalho que nunca é apenas uma prática teórica, mas uma prática permanente de política cultural. Um trabalho que "faz diferença" uma diferença social.
4. Posição política: "transformação no múltiplo". A Pedagogia Cultural privilegia um projeto de reconstrução da sociedade em tudo oposto aos atuais projetos do neoliberalismo e às práticas da globalização, cujo ápice de superprodução e consumo de poucos encontra correspondência na hiperpauperizacão de muitos. Participantes dessa configuração, os pedagogos culturais acreditam que a pedagogia do final do século XX e início do XXI deve ser responsabilizada ética e politicamente pelas histórias que produziu até agora e pelas que negou. Pelas afirmações que fez das memórias sociais e pelas que emudeceu. Pelas imagens do futuro que considerou legítimas e pelas que borrou. Por todos os efeitos de verdade e poder produzidos pela longa história da educação escolarizada.
A teorização social e cultural contemporânea já nos forneceu ferramentas conceituais para ampliar a definição de pedagogia. Para ultrapassar as fronteiras disciplinares, os domínios de técnicas e metodologias, de esquemas afetivos e de desenvolvimento mental. Para alargar os parâmetros do que, até então, entendíamos por conhecimento, ensino, didática, currículo, aluno, professor. Essa teorização implodiu o status atribuído à escola pela modernidade, como a instituição privilegiada para a aprendizagem das novas gerações, descrevendo como estas vêm aprendendo, mais e melhor, "fora" da escola.
O alvo político da Pedagogia Cultural é a transformação da sociedade em uma instância menos injusta e mais coesa, fortemente multicultural e multirracial. Junto aos movimentos sociais de resistência, questiona tanto a pedagogia liberal quanto a crítica por usarem os conhecimentos tradicionais para silenciar os estudantes, seus grupos e suas culturas. Denuncia as formas como vêm sendo organizados e desenvolvidos os currículos escolares, apontando a necessidade de neles resgatar as ditas "subculturas": subordinadas, desqualificadas, sub-representadas, excluídas, negadas e tornadas abjetas.
A Pedagogia Cultural inclui na agenda educacional questões relativas à classe, por certo. Mas também, com a mesma importância, questões relativas a gênero, sexualidade, identidade nacional, colonialismo e pós-colonialismo, raça e etnia, cultura popular e seus públicos, discurso e textualidade, políticas de identidade, da estética, da diferença. Dispõe-se a fazer da pedagogia e do currículo novos territórios, nos quais seja possível discutir os processos de significação de nós mesmos e de nossas relações com os outros e com o meio ambiente. Equipa-nos para exercer uma docência que ponha em jogo inusitadas maneiras de ensinar a produção e as trocas de todos os saberes, as recepções e as disputas de todos os poderes.
Uma "docência artística"
De um jeito, para mim, sem retorno, a Pedagogia Cultural demanda que nos tornemos muito menos "escolares" e muito mais "culturais". De modo definitivo, modifica a prática de formação do intelectual da educação. Na direcão de constituí-lo menos como um "professor' e "pedagogo" e mais como um "analista", "crítico" e "artista-cultural". Intelectual analítico e crítico, engajado na reconceitualização e mudança das questões públicas e políticas. Intelectual artista, que já tem condições de pensar, dizer e fazer algo diferente com a sua docência neste mundo culturalmente diverso.
Docência que, ao modo de seu artífice, poderia ser chamada "artística". Que, ao se exercer, cria e inventa. Docência que "artista". Que, ao educar, reescreve os roteiros rotineiros de outras épocas. Desenvolve a "artistagem" de práticas pedagógicas ainda inimagináveis e, talvez, nem mesmo possíveis de serem ditas. Práticas que desfazem a compreensão, a fala, a visão e a escuta das mesmas coisas, dos mesmos sujeitos, dos mesmos conhecimentos. Desassossegam o sossego dos antigos problemas e das velhas soluções. Estimulam outros modos de ver e ser visto, dizer e ser dito, representar e ser representado. Em uma expressão: dispersam a "mesmice".
Uma artistagem, de ordem estética, ética e política. Derivada dos sobressaltos e das alegrias de trabalhar nas fronteiras entre as disciplinas e as pós-disciplinas, os sujeitos e os não-sujeitos, os sentidos e os sem-sentidos. De seres fronteiriços que, auto-recriando-se, fazem coisas que renovam e singularizam o seu trabalho cultural de Educação. Docência de um artista que promove o autodespreendimento, implicado no questionamento dos próprios limites. Que problematiza o que diz e como age, o que é, o que o fizeram ser, o que querem e insistem que ele seja. "Docência artística", portanto, com a qual estamos todos comprometidos. Que nos convoca a lutar na materialidade da cultura. Na criação de espaços, recursos e sustentação para todas as culturas diferenciadas que habitam o mundo e cada um de nós. Que busca instituir novos destinatários, novas significações, novos referentes para que "os sem" possam expressar-se e para que "os queixosos" deixem de considerar-se "vítimas". Que recupera e reformula os saberes locais, as línguas caladas, os sujeitos maltratados. Que, mais do que dialogar com as diferenças, trabalha e segue trabalhando com elas. Que não supõe nunca "partir das diferenças" para depois eliminá-las. Mas que, ao contrário, intensifica a diferença para superar as desigualdades, pois são estas que inferiorizam os diferentes.
Educar artistando. Diferenciar arriscando-se. Usufruir do prazer de criar, sem nos considerarmos nunca uma "obra de arte" acabada. Assumir o risco de educar "na diferença" para que o consenso nunca mais feche os horizontes sociais, empurre-nos para o conservadorismo ou violente a radical heterogeneidade da cultura. Trabalhar e viver assim para tornar nossa vida e a dos outros mais belas e dignas de serem vividas. Esta será nossa prática de liberdade em Educação no século que se inicia. Que tenhamos coragem, forças e vontade ética para tanto.
Artigo publicado na REVISTA PÁTIO, ano V, nº 17, maio/julho/2001

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