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ME. GRAZIELLA DINIZ BORGES Psicologia da Educação SUMÁRIO O SURGIMENTO DA PSICOLOGIA Processos histórico-filosóficos que deram origem à Psicologia 6 Pressupostos sobre o conhecimento 7 Dois Grandes Momentos da Psicologia 7 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA Origens das perspectivas e projetos de psicologia 10 A psicologia aplicada ao desenvolvimento da aprendizagem 12 Jean Piaget: um marco teórico único 13 PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O CAMPO DA EDUCAÇÃO Psicologia e Educação: acertos e desacertos 16 O objeto de estudo da Psicologia da Educação 17 Relações interpessoais entre quem aprende e quem ensina 18 PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS DO APRENDER E DO ENSINAR Concepções de infância 22 Infâncias hoje e o papel da escola 24 A CRIANÇA NA PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Concepções de criança: o lugar da criança no construtivismo piagetiano 27 A criança no construtivismo histórico-cultural de Vygotsky 29 DESENVOLVIMENTO HUMANO E OS FATORES INTERVENIENTES DESTE PROCESSO O ponto de vista inatista-maturacionista 32 O ponto de vista comportamentalista 32 Teorias psicogenéticas 34 Jean Piaget 34 Lev Semenovich Vygotsky 35 OS FATORES DO DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM NA TEORIA PSICOGENÉTICA DE PIAGET Epistemologia genética de Jean Piaget 38 Estágios sucessivos de desenvolvimento da inteligência 40 PRINCIPAIS IDEIAS DE VYGOTSKY NO DESENVOLVIMENTO E NA APRENDIZAGEM A mediação na teoria de Vygotsky 44 A linguagem 45 A formação das funções psicológicas superiores 46 PRINCIPAIS IDEIAS DE VYGOTSKY NO DESENVOLVIMENTO E NA APRENDIZAGEM Relação entre Desenvolvimento e Aprendizado 50 Memória, atenção, percepção e emoção 51 O PENSAMENTO, A LINGUAGEM E A CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS O Movimento Progressivo da Linguagem e a Construção de Conceitos 55 Pensamento e Linguagem 57 PENSAMENTO E LINGUAGEM PARA VYGOTSKY E A LINGUAGEM DA CRIANÇA Pensamento e Linguagem em Vygotsky 60 Estágios da Linguagem e do Desenvolvimento Conceitual em Vygotsky 62 AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS DA CRIANÇA A brincadeira do Faz-de-Conta 66 O Brincar na Vida da Criança 68 O Brincar, a Abstração e o Simbolismo de Segunda Ordem 69 O MUNDO DOS AFETOS A vida afetiva e as ideias da Psicanálise 72 Freud e o afeto 73 A escola, os alunos e o professor: o problema está dentro ou fora da escola? 74 O afeto em Vygotsky, Wallon e Piaget 75 UM NOVO OLHAR SOBRE A (IN)DISCIPLINA Indisciplina na sala de aula 78 A criança e a regra: o juízo moral na criança 79 Piaget e a consciência da regra 81 A CRIANÇA E A REGRA NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL Anomia, heteronomia e autonomia 83 Respeito unilateral e educação autoritária 83 Autonomia, respeito mútuo e cooperação 84 Os conflitos e as sanções na visão piagetiana 86 A CRIANÇA, A ESCOLA E A REGRA Os limites na escola 88 Regras negociáveis e não negociáveis 89 Formas cooperativas de trabalho escolar: o trabalho em grupo 90 A formação ética do educador 91 ELEMENTOS COMPLEMENTARES 94 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 98 3 INTRODUÇÃO Prezado(a) aluno(a), você está iniciando agora seus estudos no campo da psicologia. Em nossa vida cotidiana, a todo momento convivemos com alguns temas dessa área de conhecimento e ouvimos dizeres como: “Isso é psicológico!” Entretanto, esses psicolo- gismos ou “pseudopsicologia” do dia a dia são apenas formas populares e não científicas de falar de psicologia. Neste livro, vamos tratar do longo caminho percorrido pela psicologia para tornar-se ciência e identificar os processos históricos e os sistemas teóricos das quais ela se origi- nou. Também serão apresentados projetos das escolas de psicologia, seus precursores, suas propostas e a forma de compreender o ser humano e suas vicissitudes, além de discutirmos a importância do epistemólogo Jean Piaget, compreendido como marco teórico único devido às suas imensas contribuições. Nossa reflexão também será sobre a configuração progressiva da psicologia da edu- cação até se tornar uma psicologia a serviço da educação (denominada de disciplina- -ponte), sobre as concepções de infância na história da civilização e na escola contem- porânea e, consequentemente, sobre a Psicologia da Educação e de que forma ela pode contribuir com o trabalho pedagógico. Outros pontos importantes que vamos estudar são a teoria de Piaget e a concepção de criança no construtivismo piagetiano, a visão histórico-cultural de Vygotsky e suas contribuições para entender como o ser humano se apropria da cultura e ao mesmo tempo a produz e a relação entre desenvolvimento e aprendizagem com ênfase na me- mória, atenção, percepção e emoção. Vamos conversar também sobre as definições de Vygotsky quanto à linguagem e o pensamento, a importância da qualidade das interações ocorridas na escola, os co- nhecimentos formais (ou escolares) e o conhecimento do cotidiano e as várias formas como a criança pode se expressar. Aqui, faz-se importante falar sobre a brincadeira do faz-de-conta e de como o professor pode interagir melhor com a criança se observar o seu brincar e se comunicar com ela pela linguagem lúdica. No caminho, vamos falar um pouco sobre as ideias da Psicanálise de Sigmund Freud, “o pai da psicanálise” - digo um pouco porque os pressupostos da Psicanálise são exten- sos e não seria possível aprofundar, visto os objetivos desse momento. Mas Freud nos traz contribuições importantes sobre a afetividade e o desenvolvimento psicológico, e sobre esse assunto, retomaremos Vygotsky e Piaget, além de Wallon. Nossa conversa também abordará a (in)disciplina, tema que têm sido alvo de muitas pesquisas em Educação, Psicologia, entre outras áreas. Partindo desse ponto, entrare- mos em outras questões que fazem parte desse contexto e assim propomos reflexões e trazemos suportes teóricos, principalmente, referentes ao desenvolvimento moral e à ética. Como educadores, buscamos, além de formar academicamente o aluno, alcan- çá-los no campo moral e ético em favor da harmonia social. Dessa forma, apontaremos aqui a causa e a importância dessa formação. Ainda no campo do desenvolvimento moral, falaremos dos pressupostos da constru- ção do juízo moral e identificaremos as modalidades básicas das regras. Em um outro nível, veremos o caráter propriamente moral da regra, em que a criança começa a perce- ber os conteúdos morais sem a vigília externa, que é propriamente a autonomia moral. Por último, mas não menos importante, convidamos você a se lançar no mundo éti- co e moral para refletir sobre a prática pedagógica e sobre as relações sociais das quais você faz parte. Trataremos também da importância da reciprocidade nas relações entre professor e aluno e refletiremos sobre a autoridade do professor para trabalhar os limites. Enfim, desejo-lhe muito sucesso nessa jornada pelo conhecimento, e que possamos cons- truir vínculos que desabrochem o interesse pelo conhecimento! Tenha um ótimo estudo! AULA 01 O SURGIMENTO DA PSICOLOGIA 5 Estamos iniciando a nossa conversa sobre Psicologia. Para tanto, é preciso registrar que vamos transitar entre duas psicologias: a Psicologia Geral e a Psicologia da Educação, pois dado o vasto campo dessa ciência, faz-se necessário este registro. O objetivo desta aula é identificar os processos históricos e os sistemas teóricos dos quais se originaram a Psicologia como ciência. Podemos definir Psicologia como o estudo científico do comportamento e dos proces- sos mentais. Parece simples a definição, porém, a variedade desses tópicos é estonteante, já que eles cobrem várias áreas de pesquisas que também se ramificam e tecem uma grande rede de conhecimentos, que foram objeto de grandes estudos durante séculos. A Psicologia afeta sua vida sem que você perceba. Ela influencia leis, propagandas, programas de televisão e marketing, entre outros. Mesmo que você não queira se espe- cializar nesta área, é importante que tenha algum conhecimento a respeito. As teorias e pesquisaspsicológicas têm corroborado com a criação de leis envolven- do discriminação, pena de morte, pornografia, comportamentos sexuais, etc. Pensemos agora na televisão: os programas atuais passam por revisões e são submetidos a leis. Portanto, são menos violentos, pois, a partir de estudos, a psicologia apresentou evidên- cias e comprovou os efeitos nocivos desses programas sobre as crianças. Dessa forma, pode-se modificar as políticas de programação das emissoras (ATKINSON, 2002). A psicologia e sua influência em nossa vida diária Fonte: Pixabay. A exemplo de outras áreas, a psicologia como ciência encontra dificuldades para se so- lidificar cientificamente de forma autônoma e indiscutível no ramo das ciências, prin- cipalmente devido a uma “pseudopsicologia”. A título de exemplo concreto, pense nes- sas revistas geralmente encontradas nas salas de espera dos consultórios médicos, nas quais encontramos testes, perguntas e respostas rasas sobre todas as coisas. Essas inda- gações ocorrem desde há muito tempo, como na famosa pergunta do grande filósofo Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo?”. Outro fator a ser considerado é a suposta “separação” que a psicologia precisou fazer com a filosofia. Conforme Salvador (1999), durante o final do século XIX, a psicologia co- meçou a manifestar um forte interesse em se distanciar da filosofia e se transformar em uma disciplina científica e autônoma. 6 PROCESSOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS QUE DERAM ORIGEM À PSICOLOGIA Desde há muito tempo, somos intrigados com questões essencialmente humanas: “Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?” Cada povo, grupo ou cultura busca, da sua forma, encontrar respostas e sentido para a vida. Na antiguidade, quando as pessoas queriam respostas, buscavam compreender os mitos. Para Chauí (2000), o mito narra a origem das coisas, do homem ou de algo que esteja ligado à existência humana. Você pode se perguntar: “Por que o mito tinha tanto valor?” Porque as respostas tinham caráter sagrado e vinham de uma revelação divina, que era incontestável. Durante muito tempo, ocorreu dessa forma. Apoiados em Chauí (2000), podemos dizer que por volta de 600 anos a.C. os gregos perceberam que podiam pensar por eles próprios, e assim construir respostas para suas perguntas. Dessa forma, surge a Filosofia, que busca respostas apoiadas na razão. A dis- cussão sobre a origem da razão ocorre até hoje. Existem muitas dúvidas sobre como se deu a capacidade do homem de pensar, intuir ou raciocinar. Nascemos com essa capacidade? Ela nos é dada pela educação? Pela cultura? Ou ainda, é adquirida pela ex- periência? Muitos filósofos debateram esse tema e então surgiram algumas propostas. Platão e Descartes defenderam a ideia de que a razão é inata. Derivada dessa afir- mação, temos a posição conhecida como inatismo. Conforme o inatismo, nascemos dotados de inteligência, de princípios racionais e ideias. A mais famosa frase inatista é: “Penso, logo existo” (CHAUÍ, 2000). Na contramão dessa ideia, temos Locke e Hume, com o empirismo, que aposta que nascemos como uma tábula rasa, uma folha em branco, onde a razão e as ideias vão sendo adquiridas e impressas em nós por meio de experiências. Dessa forma, estamos todos dependentes do ambiente no qual vivemos (CHAUÍ, 2000). Para temperar essa discussão, temos Kant, no século XVIII, afirmando que o conheci- mento racional não é nem inato, nem adquirido. Para Kant, a razão ocorre na articulação dessas instâncias, ou seja, na junção do inatismo com o empirismo. Esses dois modelos isolados deixam a desejar em algum momento. Em Kant, a estrutura da razão é inata e também universal, os conteúdos são empíricos e podem se transformar conforme as experiências. Com isso, Kant identifica lacunas tanto dos inatistas quanto dos empiristas (CHAUÍ, 2000). ISTO ACONTECE NA PRÁTICA Quando você se deparar com uma criança que está apresentando dificulda- des de aprendizagem, você irá dispor de que tipo de visão? Temos a inatista, aquela que acredita que já nasceu assim, não tem jeito! Ou ainda: é imatura! Podemos ser empiristas, com a ideia de que o problema está no ambiente. Mas se você concordar com as ideias de Kant, entendendo que o sujeito vem ao mundo com muitas possibilidades, e que o problema apresentado pode estar em vários locais e situações, dentre eles a família, a escola, o material didático, nas relações sociais e outros. Fonte: Elaborado pela autora. 7 PRESSUPOSTOS SOBRE O CONHECIMENTO As ideias e os pressupostos trabalhados no inatismo de Platão e Descartes, no empiris- mo de Locke e Hume e ainda nas ideias kantianas nos servem de base para compreen- der muitos processos educativos. Onde está o conhecimento e a verdade? Fonte: Pixabay. ISTO ESTÁ NA REDE Metáfora dos cegos e o elefante: história do folclore Hindu, em que sábios cegos apalpam as partes do corpo de um elefante em busca da verdade. Conforme tateiam discorrem pela verdade. O resultado dessa experiência é incrível! Fonte: <http://www.esalq.usp.br/lepse/imgs/conteudo_thumb/Os-Cegos-e-o-Elefante.pdf> DOIS GRANDES MOMENTOS DA PSICOLOGIA Como já trabalhamos, a Psicologia nasceu da Filosofia. Vamos trabalhar dois momentos muito importantes para a psicologia. O primeiro ocorre quando a humanidade utiliza de narrativas míticas para explicar sua vida, sua origem no mundo. O outro momento é o que chamamos de psicologia científica. O problema é que para uma área de conhecimento tornar-se reconhecida como ciência, ela precisa ter seu objeto independente, ou seja, precisa deixar claro que irá se ocupar de algo cuja especificidade nenhuma outra ciência atende. Parece simples, mas não é! Por exemplo, o estudo do ho- mem pode vir a ser objeto de várias ciências. Portanto, é necessário demarcar qual dimen- são do homem certa ciência irá assumir como área de sua competência. No caso da psi- cologia, o objeto definido incialmente foram os processos mentais (FIGUEIREDO, 2008). Para atender a essas exigências, nesse período de transição, a atuação de Wundt foi decisiva. Foi se firmando uma nova ciência, que surge por volta de 1879, fundada por Wundt (1832-1920), fisiólogo alemão, pioneiro na Psicologia Experimental, que criou o primeiro laboratório de Psicologia Experimental, em Leipzig, na Alemanha, completan- 8 do as condições de cientificidade exigidas: objeto próprio, método científico adequado e laboratório para realização de experimentos. Tudo isso marca a entrada da psicologia como ciência independente. Wundt e Titchener (1867-1927) fundam a escola que respon- de pelo nome de estruturalismo, que define a psicologia como ciência da consciência. Para Wundt, a psicologia era algo muito complexo, pois precisava unir dois campos para explicar e compreender a experiência humana e imediata: o das ciências naturais e o da cultura. Entretanto, na hora juntar esses dois campos e transformá-los numa uni- dade psicofísica, as dificuldades eram imensas, por isso, a maioria de seus discípulos desistiu de acompanhá-lo e foi atrás de teorias mais simples, porém, por consequência, menos confiáveis (FIGUEIREDO, 2008). Os experimentos do psicofisiologista compreendem as sensações, percepções, sen- timentos e emoções por meio do método de “introspecção”, método e termo criados por ele. Nesse laboratório de Psicologia Experimental, Wundt se baseia em pressupostos empiristas e trabalha com comportamentos humanos que poderiam ser medidos, mo- delados e controlados. Desde então, Wundt ficou conhecido como o “pai da psicologia moderna” (BOOK; FURTADO; TEIXEIRA, 2005). ANOTE ISSO A psicologia que acaba de se separar da Filosofia é a disciplina para a qual estão voltados todos os olhares e na qual são depositadas as maiores ex- pectativas como fonte de informação e de ideias para a elaboração de uma teoria educativa de fundamento científico que permitirá melhorar o ensino e intervir sobre os problemas que se apresentam de forma generalizada. Como resultado das expectativas que foram depositadasa partir do mundo da educação, nasce a Psicologia da Educação. Isso ocorre por volta da pri- meira década do século XX (SALVADOR, 1999, p. 22). Como vimos, a psicologia nasceu e se desenvolveu no meio de muitos debates filosó- ficos, fisiológicos, sociais e culturais. Portanto, todas as reflexões vindas dessas diversas ciências pouco a pouco foram se tornando ideias psicológicas que os seres humanos fo- ram produzindo acerca deles mesmos. Compreender e discorrer sobre o que vem a ser essa ciência tem demandado grande esforço por parte dos pesquisadores e estudiosos dessa vasta e tão importante área de conhecimento. A história da Psicologia da Educação se mistura e se confunde com a da própria psicologia científica. Temos alguns pontos e marcos teóricos que merecem destaque e também nossa atenção. A psicologia da educação surge com o ofício de auxiliar na área da educação, até aqui estamos certos, não é mesmo! Portanto, vamos acompanhar o marcos teóricos e os principais projetos de psicologia. O processo pelo qual a psicologia conquistou sua autonomia conversa intimamente com o debate educacional e pedagógico ocorrido na primeira década do século XX. Isso posto, po- demos afirmar que psicologia e educação são mutuamente constituintes (ANTUNES, 2008). Os estudos em psicologia se desenvolvem marcados por contradições: por um lado, a ciência moderna pressupõe sujeitos livres; por outro lado, deseja conhecer e domi- nar a si mesmo, ou seja, quer dominar sua própria subjetividade, de forma a garantir a objetividade e eliminar as diferenças individuais. Muitos psicólogos se contrapõem a essa meta e desejam o contrário. Querem conhecer os aspectos profundos do “eu” para expandi-los, para fazê-los mais fortes e livres. Pensando dessa forma, deseja fazer da psi- cologia uma ciência com campo e objeto próprios (FIGUEIREDO, 2008). Diante desses elementos apresentados, acredito que estamos em condições de compreender os principais projetos de Psicologia. AULA 02 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA CIENTÍFICA 10 Depois dos pressupostos de Wundt, são inúmeros os autores que vão tentar inserir a psicologia no campo das ciências. Veremos perspectivas teóricas distintas e até confli- tantes, ora o comportamento e o desenvolvimento humano acontecem por processos biológicos, ora como produto do ambiente. O objetivo desta aula é apresentar um breve histórico da psicologia científica e seus projetos de psicologia, bem como os pressupostos epistemológicos que serviram de base para essas ideias. ORIGENS DAS PERSPECTIVAS E PROJETOS DE PSICOLOGIA Temos a psicologia funcional, que surgiu nos Estados Unidos, representada por alguns autores, dentre eles, J. Dewey (1859-1952). O funcionalismo é a primeira reação contra a escola de Wundt. Ao contrário do estruturalismo, que analisa a mente e sua estrutura, os funcionalistas concentram suas atenções no “para que serve” e “qual função”. Dessa forma, a psicologia para o funcionalismo é o estudo da vida psíquica constituindo um instrumento de adaptação ao meio. Essa escola é uma ciência biológica que se interessa em estudar os processos, as operações e atos psíquicos (mentais) que se expressam em comportamentos e que podem ser observáveis (FIGUEIREDO, 2008). Compreendendo a mente humana Fonte: Pexels.com Comportamentalismo: originariamente representado por B. Watson (1878-1958). Nessa corrente, o objeto não é a mente e sim o próprio comportamento e suas interações. O método é a observação e a experimentação, envolvendo comportamentos observáveis e evitando a auto-observação. Watson propõe estudar o comportamento e suas relações com o ambiente (FIGUEIREDO, 2008). Watson (1878-1958) sustentava a ideia de que estudando o que as pessoas fazem (seus comportamentos), é possível obter uma ciência objetiva. Dessa maneira, essa psi- 11 cologia foi chamada de behaviorismo. Dando corpo e sentido a essas ideias, temos o neobehaviorismo de B. F. Skinner (1904-1990). Skinner deu enormes contribuições ao estudo das interações entre organismos vivos e seus ambientes. Esse autor, quando se propõe a falar de subjetividade, não duvida das sensações e dos pensamentos, mas tra- ta de buscar entender sua gênese e natureza, além de acreditar que é o meio, que é a sociedade que controla o comportamento. Para Skinner, as experiências subjetivas são sempre construídas pela sociedade, pois é nela que se aprende a falar. A linguagem é social mesmo quando se trata do mundo privado. O que sinto e o que vejo tem a ver com a maneira com a qual a sociedade nos ensinou. O projeto de psicologia skinneriano é caracterizado como reconhecimento e crítica da noção de experiência imediata a par- tir do ponto de vista social (FREIRE, 2002). ISTO ESTÁ NA REDE Watson e Skinner foram os principais behavioristas, ambos pioneiros da psi- cologia científica. Conheça as diferenças entre o behaviorismo representado por Watson e o noebehaviorismo de Skinner. Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=ipHFpXAgjiA Ainda no início do século XX, na Alemanha, surge outro projeto, denominado de Psico- logia da Gestalt, cujo ponto de partida é o estudo da percepção, sendo esta a psicologia da totalidade. Para os autores do gestaltismo, dentre eles M. Wetheimer (1880-1943), o conceito permite unificar todas as ciências físicas, biológicas e da cultura, de forma que a psicologia não precisa se repartir entre elas para existir. Para os gestaltistas, são dois os aspectos essenciais: primeiro o reconhecimento de que a experiência é imediata, e se- gundo é a preocupação em relacionar essa experiência com a natureza física, biológica e com o universo dos valores socioculturais (FIGUEIREDO, 2008). O que você vê? Fonte: Pixabay. 12 Como você pode perceber, o fim do século XIX e início do século XX foram marcados pelo nascimento das grandes escolas psicológicas. Entre elas, não podemos deixar de mencionar a Psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), que nasce juntamente com o funcionalismo e a Gestalt. A psicanálise é a escola que mais se distancia das escolas de psicologia por estudar de modo especial as perturbações mentais. Freud ainda estuda a importância da infância na formação do caráter do indivíduo, na formação do senti- mento de angústia e das neuroses. Sobre a psicanálise freudiana há muito que se falar, mas nos deteremos aqui, pois no momento não nos convém adentrar nos conceitos psicanalíticos (FREIRE, 2002). A PSICOLOGIA APLICADA AO DESENVOLVIMENTO DA APRENDIZAGEM Nessa psicologia científica que está se configurando aos poucos, surge uma área de interesse e de questionamento denominada Psicologia da Educação, que engloba tra- balhos e pesquisas sobre aprendizagem, testes mentais, medidas de comportamento, psicologia da criança e de alguma forma se refere à problemática educativa e escolar. Durante as duas primeiras décadas do século XX, todas as áreas de investigação psicoló- gica são consideradas úteis para a educação (SALVADOR, 1999). A psicologia da educação se destaca na primeira década do século XX por desejar aplicar à educação todos os conhecimentos relevantes descobertos pelas pesquisas: o estudo e a medida das diferenças individuais, a elaboração de testes, a análise dos pro- cessos de aprendizagem e a psicologia da criança. Enquanto isso, na Europa, temos um psicólogo francês chamado Alfred Binet (1857-1911), autor da Escala Métrica da Inteligên- cia, cujo uso perdurou por muitas décadas. Para que você se familiarize com essa informação, lembremos o famoso Teste de QI. Sim! Foi Alfred Binet quem construiu o teste que mede a inteligência de crianças e de adul- tos. À psicologia são rendidas muitas críticas, pois a psicometria trouxe para a ciência uma forma de validar atitudes discriminatórias que gerou grandes problemas, como por exem- plo, a evasão escolar, a repetência e as salas especiais onde se acumulavam crianças com dificuldades que acabavam desistindo de dar sequência aos estudos (SALVADOR, 1999). ANOTE ISSO A Psicologiada Educação distingue-se das outras especialidades da psicolo- gia porque proporciona conhecimentos específicos sobre o comportamento humano em situações educacionais. Sua principal tarefa consiste em elabo- rar instrumentos teóricos tomando como ponto de partida as contribuições da psicologia científica, seus instrumentos teóricos, conceituais e metodo- lógicos relevantes para compreender o comportamento humano nos am- bientes educacionais e poder intervir neles (COLL; MARCHESI; PALACIOS, 2004, p. 24). 13 JEAN PIAGET: UM MARCO TEÓRICO ÚNICO Vimos que a Psicologia da Educação é a disciplina nuclear da teoria educativa. Junta- mente com essa ideia de núcleo, vamos trazer à tona as ideias de Jean Piaget (1896- 1980). As ideias e análises de Piaget preparam um terreno para algumas inferências e reflexões sobre o ensino. Piaget define sua metodologia como a Epistemologia Genéti- ca, porque estuda os processos mediante os quais a criança passa de estados de menor conhecimento, para estados mais avançados. A palavra genética está ligada a gênese, que significa origem e construção. Vem dessa terminologia o nome “construtivismo ge- nético”, por meio do qual Piaget explica o movimento de construção do conhecimento (FIGUEIREDO, 2008). Na virada do século XIX, a reflexão pedagógica sofre uma virada. A escola clássica é criticada juntamente com seus métodos tradicionais, em que a autoridade ocupa um lugar excessivo e impede a criança de descobrir por si mesma. Na pedagogia clássica, o programa gira em torno do professor; já na nova pedagogia pretende centrar-se na criança. Em 1921, Piaget chega ao Instituto Jean-Jaques Rousseau e participa de reu- niões e conferências sobre educação. Em 1929, torna-se diretor e permanece no cargo até sua renúncia em 1967. Piaget formula o problema da educação a partir do método e vai opor-se radicalmente ao ensino baseado na transmissão oral e na autoridade (PIA- GET, 1998). Piaget ainda analisa a pedagogia e a psicologia e acaba por estabelecer uma relação de dependência entre elas. [...] todo educador deve conhecer não apenas as matérias a ensinar, mas igualmente os mecanismos subjacentes às operações da inteligência e, por isso mesmo, às diferentes noções a ensinar (PIAGET, 1998, p. 17). Piaget traz a dimensão científica para a escola ativa e faz muitas referências ao papel do professor e sua importância na educação de crianças. Para o autor, o professor deve fa- zer o papel de fornecer informações, mas jamais deve impor a verdade, para que a crian- ça possa de fato encontrar soluções para os seus problemas, utilizando de seus próprios recursos intelectuais. “Que o professor cesse de ser conferencista, que ele estimule a pesquisa, que ele não transmita soluções prontas”, diz Piaget (PIAGET, 1998, p.21). Enfim, nos anos de 1970, Piaget, pede que o professor estimule seus alunos à pesquisa e que o próprio professor se torne um pesquisador (PIAGET, 1998). Jean Piaget estuda o funcionamento das funções cognitivas e da moralidade com o chamado “Método Clínico”. Nesse método, ele observa o comportamento das crianças e pede que elas descrevam e justifiquem o que estão fazendo. O objetivo era entender a experiência imediata das crianças, como elas percebem as coisas e como pensam (FI- GUEIREDO, 2008). Piaget concebe o desenvolvimento como sucessão de três estágios, que se dividem em três grandes períodos que trataremos mais adiante. O autor se utiliza de alguns fa- tores para explicar o desenvolvimento, tais como maturação e experiência com objetos e com as pessoas, e ainda evoca um quarto fator chamado de equilibração. Piaget e seus colaboradores da escola de Genebra tornam-se responsáveis pelo mais potente e mais compreensivo modelo de sistema explicativo de desenvolvimento humano, utilizado até a atualidade (COLL; MARCHESI; PALÁCIOS, 2004). Com o construtivismo de Jean Piaget, passamos a contar com uma teoria consisten- te que nos apoia no sentido de compreender como se dá, entre outras coisas, a constru- ção do conhecimento. Como esse teórico merece maior destaque, reservamos para ele um espaço neste material, onde iremos buscá-lo mais profundamente. 14 ISTO ACONTECE NA PRÁTICA É muito importante que os profissionais da educação saibam compreender as relações entre o ensinar e o aprender. Vimos alguns dos caminhos per- corridos pela psicologia para configurar-se como ciência. Você também está construindo seu caminho, caro aluno! Vimos que a psicologia passou por acertos e desacertos, não podemos dizer que foi algo linear, houve cami- nhos tortuosos. O ideal é nos apoiarmos em ideias integradas, na prática da docência, não é possível ficar apenas pensando no ambiente ou apenas no âmbito biológico. Lembre-se: o ser humano é biológico, psíquico e social. Fonte: Elaborado pela autora. AULA 03 PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O CAMPO DA EDUCAÇÃO 16 Durante um longo período, a Psicologia da Educação mostrou-se como a “rainha das ciências da educação”. A formação de professores, por exemplo, tem sua base na história da educação e da psicologia com as contribuições sobre a medida das diferenças indi- viduais e do rendimento escolar e com a psicologia do desenvolvimento, que deram à psicologia status científico (SALVADOR, 1999). A Psicologia da Educação pode ser considerada uma subárea da psicologia, que tem como vocação a produção de saberes relativos ao fenômeno psicológico no processo educativo. Nos anos finais do século XIX e nos primeiros anos do século XX, acontece- ram mudanças profundas na sociedade brasileira. O debate sobre a educação come- ça a tomar forma, influenciado pelas ideias pedagógicas crescentes e dos princípios da Escola Nova. As escolas normais passaram a ser o principal centro de propagação das novas ideias, com vistas à formação de professores. Dessa forma, percebemos uma in- terdependência entre psicologia e educação a partir da articulação entre saberes teóri- cos e prática pedagógica. O processo pelo qual a psicologia conquistou sua autonomia conversa intimamente com o debate educacional e pedagógico ocorridos na primeira década do século XX. Isso posto, podemos afirmar que psicologia e educação são mu- tuamente constituintes (ANTUNES, 2008). O objetivo desta aula é trazer para reflexão conceitos importantes dentro da psico- logia da educação, identificando neles conhecimentos relevantes para compreender as principais contribuições e as relações entre o ensinar e o aprender. PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: ACERTOS E DESACERTOS Segundo Coll, Marchesi e Palacios (2004), a psicologia e a educação passarem por mui- tas fases no decorrer do século XX. Somente a partir de 1960 foi que as relações começa- ram a se dar em uma dupla direção. É a fase que corresponde à psicologia da educação como disciplina-ponte. Essa nova forma significa uma renúncia ao reducionismo psico- lógico, em que as relações já não são mais vistas em uma única direção. Vamos esclare- cer essas diferenças: Duas psicologias da educação em contraposição. Fonte: Elaborado pela autora. Baseado em Coll, Marchesi e Palacios (2004). 17 A psicologia da educação pode em muito contribuir com a escola, com os professores e com os escolares. Quantas vezes nos sentimos angustiados diante de situações em que o aluno não consegue aprender? Ou quando nos vemos diante de alunos agressivos e ouvimos as queixas de profissionais da educação ante as incivilidades que eles presen- ciam nas salas de aula e então nos perguntamos: o que fazer? Sim, ser professor é um desafio. A psicologia da educação deveria ajudar-nos com essas situações, porém, vimos que não devemos pensar de forma reducionista ou apenas “psicologizante”. A psicologia contribui sim, mas o interessante é que cada situação seja vista na sua particularidade, com apoio de diversas vertentes e com outras disciplinas tais como a Sociologia, a Didá- tica e quais outras forem necessárias para um olhar multidisciplinar. Articulando os saberes em educação.Fonte: Pixabay. ANOTE ISSO Partindo da perspectiva de compreender a Psicologia da Educação como disciplina-ponte, interdependente, consequentemente nos leva a pensar sobre a complexidade dos fenômenos educativos, sua compreensão e sua interpretação exigem apreciação de diversas disciplinas, cada qual com seu ponto de vista peculiar. Caracterizar a psicologia da educação como discipli- na-ponte é o mesmo que admitir que as suas relações com as demais áreas de estudo são essencialmente bidirecionais (SALVADOR, 1999). 18 O OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO A Psicologia da Educação, como um mero campo de aplicação do conhecimento psico- lógico, é uma forma simplista, unilateral e rasa de conceber a relação entre psicologia e educação. Desde já, desejo expressar que as definições que trataremos se ajustam à concepção da psicologia da educação como disciplina-ponte. Feito esse acerto, seguimos com as ideias de Cool, Marchesi e Palacios (2004), que discorrem sobre essas propostas de for- ma clara recorrendo a dois grandes blocos de conteúdos dos quais irá tratar: 1. As mudanças comportamentais ocorridas como resultado de sua participação em situação ou atividades escolares e/ou educacionais; 2. Os fatores, as variáveis educativas que, de forma direta ou indireta, se relacionam com esses processos de mudanças de comportamento. Os fatores do primeiro bloco são especificamente os processos de aprendizagem, de desenvolvimento e de socialização. Na natureza desses processos, as teorias, os modelos que os explicam, estão sobretudo as relações em diferentes dimensões e outros impli- cadores, como a cultura, o desenvolvimento, a aprendizagem e a socialização, formando o conjunto mais importante da psicologia da educação. Devido ao seu panorama complexo e dadas as variáveis e às dimensões que se rela- cionam, Coll e seus colaboradores (2004) propõem a organização dos fatores do segun- do bloco em dois grupos: • Intrapessoais ou internos: • Nível de desenvolvimento; • Maturidade intelectual, emocional, social, relacional e psicomotora; • Experiências e conhecimentos prévios; • Características atitudinais (capacidade de aprender), afetivas (motivação, inte- resse) e de personalidade (estilo de aprendizagem, nível de ansiedade, auto- conceito, autoelaboração e autoeficácia). • Interpessoais, relacionados ao ambiente ou a situações escolares: • Características do professor, conhecimento da matéria, preparação pedagógi- ca, traços de personalidade e características afetivas; • Fatores de grupo e sociais e relações interpessoais dentro da instituição educativa; • Condições materiais (recursos didáticos); • Metodologia de ensino utilizada, intervenções pedagógicas, contexto institucional. ISTO ACONTECE NA PRÁTICA Do ponto de vista prático, pense que na sua sala de aula há certo(a) aluno(a) que se comporta de forma agressiva, atrapalha a rotina diária e se opõe pon- tualmente às suas solicitações e orientações. Conforme trabalhamos, pode- mos pensar em fatores de ordem intrapessoal (personalidade do escolar, questões de ordem afetiva, motivacional) e de ordem interpessoal (dificul- dades nas relações sociais). Todo esse olhar atento e investigativo sobre os fatos, sobre a busca de estratégias de como lidar com esse aluno com o ob- jetivo de construir mudanças são algumas das contribuições da psicologia da educação para o ofício do professor. Fonte: Elaborado pela autora. 19 RELAÇÕES INTERPESSOAIS ENTRE QUEM APRENDE E QUEM ENSINA Acompanhamos que toda aprendizagem acarreta dois processos muito diferentes: um processo interno, psicológico de elaboração e aquisição, e outro processo externo, de cunho sociocultural. Sendo assim, não é possível mais utilizar a velha forma mecânica de ensinar. Na verdade, isso nunca deu certo, porém, atualmente temos a nosso dispor pesquisas diversas que comprovam esse fato. Já nos dizia Paulo Freire nas suas críticas ao que ele denominou de “educação bancária”: Faz críticas intensas a relação professor-aluno, a relação de quem apren- de com quem ensina se mostra desleal, falha, assimétrica. Esta forma de lidar com o sujeito, faz com que todo o sentido se perca, pois, ele não é sujeito de suas ações, apenas executa a ordem (FREIRE, 1997, p. 57). É importante dar ao escolar a possibilidade de ser sujeito de suas ações e a chance de ser responsável por seus atos e por suas escolhas, além de aprender o sentido de suas ações. O professor não deve ocupar o lugar de doador do saber e o aluno o de recipiente. O professor precisa e deve ter domínio pedagógico e da didática dos conteúdos, pois ele é professor! O que desejo ressaltar é sua conduta, sua postura diante do sujeito apren- dente; sujeito esse que necessita ser desafiado, ser levado a inquirir, a criar, a construir, enfim, ser sujeito do processo juntamente com o professor. Essa forma de pedagogia abordada por Freire (1997) somente será possível a partir de um olhar sensível e reflexivo, que faz a leitura do individual e do social de forma con- jugada. Nesse sentido, a psicologia da educação e outras disciplinas parceiras ajudam a escola a repensar suas relações com o sujeito aprendente. Espero que a disciplina psi- cologia da educação possa contribuir para sua formação de modo que você, caro aluno, problematize, pense e transforme as pessoas e os espaços por onde passar. Weiss (2002) chama a atenção para o social que permeia todas as situações de de- senvolvimento e aprendizagem, [...] a ideia básica de aprendizagem como um processo de construção que se dá na interação permanente do sujeito com o meio que o cerca. Meio esse expresso inicialmente pela família, depois pelo acréscimo da escola, ambos permeados pela sociedade em que estão (WEISS, 2002, p. 26). A autora propõe que o sujeito aprendente seja visto em todas as dimensões em que é acometido: orgânica, cognitiva, emocional, social e pedagógica. Entretanto, ela dá maior enfoque ao social, pois este está presente na vida da criança desde o início da vida dela. ISTO ESTÁ NA REDE Tese de Mestrado apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que a autora Valéria Lima investiga se os conteúdos apresentados na disci- plina Psicologia da Educação (dada sua importância) nos cursos de forma- ção de professores atendem as necessidades do cotidiano profissional do professor das séries iniciais. Acesse: <http://www.fe.ufrj.br/ppge/dissertacoes/valerialima.pdf> 20 Podemos dizer que a psicologia da educação, juntamente com outras disciplinas, cola- bora na tarefa de pensar as relações intra e extraescolares, fornecendo subsídios para que você possa lidar com os problemas da vida escolar: violências, transgressões e difi- culdades de aprendizagem, entre outros. A ideia de disciplina-ponte seria exatamente ajudar na resolução de problemas que ocorrem na escola e colaborar na prática educa- tiva e no planejamento de ações que conduzam a situações eficazes de aprendizagem, no desenvolvimento e também nos processos de socialização, pois ensino e aprendiza- gem conversam intimamente com a concepção de ensino e de aprendizagem que o professor adota e pratica. AULA 04 PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS DO APRENDER E DO ENSINAR 22 Caro(a) aluno(a), antes mesmo de adentrarmos o tema desta aula, gostaria de propor que pensássemos sobre quem é o sujeito que aprende. Buscaremos construir o concei- to de criança e compreender como a infância foi se modificando na história da huma- nidade, e veremos que as visões de infância são construídas social e historicamente. O objetivo dessa aula é analisar as concepções de infância na história da nossa civilização e tratar da infância na atualidade e na escola. CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA Iniciaremos nossa reflexão, na concepção de infância na civilização ocidental, voltada às ideias e às construções teóricas de Phillipe Ariès, historiador francês pioneiro nesta área de estudo. Na Idade Média, não se falava sobre sentimento de infância, pois naque-la época não se dava a devida atenção a essa fase como ocorre atualmente. Tão logo crescia e não necessitava tanto de sua mãe, a criança já estava pronta para ser inserida na sociedade e para trabalhar. Suas roupas eram réplicas de roupas adultas, eram des- confortáveis e impossibilitavam movimentos mais soltos e atrapalhavam correr, brincar, enfim, ser criança. As moradias não tinham espaços internos demarcados, não havia especialização de interiores, os cômodos se comunicavam uns com os outros, não se fala em privacidade nesse contexto, partilhavam-se todos os momentos do dia a dia e neste espaço as pessoas nunca ficavam a sós. A infância terminava aos sete anos e a vida adulta iniciava imediatamente (ARIÈS, 1981). Segundo Postman (2011), a criança que vemos hoje não existia na Idade Média, pois eram homens em miniatura, além de serem expostas a todo tipo de convivência, in- cluindo o trabalho. E por isso as pinturas coerentemente retratavam as crianças como adultos em miniatura, pois logo que as crianças deixavam de usar cuei- ros, vestiam-se exatamente como outros homens e mulheres de sua classe social (POSTMAN, 2011, p. 32). Adultos em miniatura. Fonte: Pixabay. 23 Para Ariès (1981), o sentimento de infância pode ser separado em dois momentos. Um que aparece entre os séculos XVI e XVII, denominado de paparicação, quando a criança era tratada como objeto de diversão, servindo de distração para os adultos. Paralelamen- te, ocorre por parte da igreja o reconhecimento de sua inocência e fragilidade, devendo os adultos cuidar e proteger as crianças; sentimento este chamado de moralização. A partir do século XVIII, instala-se uma nova infância, pois a criança começa a fre- quentar a escola. Precisamos entender que esse fato inicialmente só ocorreu para as crianças burguesas. Mais adiante, dividem-se da seguinte forma: o liceu ou colégio era destinado aos burgueses, e a escola era destinada ao povo, acontecendo em um período mais curto de tempo. Notadamente, a escolaridade colabora para que a infância ganhe contornos mais definidos, mesmo que inicialmente atenda as classes mais abastadas (ARIÈS, 1981). O sentimento de cuidado foi se estendendo para as famílias, influenciadas por quem havia se tornado sensível ao fenômeno da infância e via nas crianças frágeis criaturas de Deus. Partindo desses reformadores, começam a surgir as particularidades da infância. Iniciam-se também nesse momento os primeiros estudos sobre a psicologia infantil, que buscavam compreender a mente da criança para adaptá-la aos métodos utilizados na educação (ARIÈS, 1981). ISTO ESTÁ NA REDE Artigo: A infância e sua singularidade. Texto produzido por Sônia Kramer, em que a autora traz reflexões sobre a infância e sua singularidade e reflete so- bre a infância, escola e os desafios colocados hoje para a educação. Analisa a cultura infantil e o significado de atuar com as crianças, compreendendo- -as como sujeitos. p.13-23. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/ensfundnovan.pdf Segundo Ariès (1981), o final do século XVIII trouxe leveza para as crianças: o modo de vestir se diferencia das vestimentas dos adultos, deixando-as mais à vontade, com liber- dade de movimento para que possam pular, correr e fazer estripulias. Postman (2011) nos fala que no século XVIII o Estado e a família pas- saram a assumir em parceria a responsabilidade pela educação das crianças e relaciona esse fato a outras conquistas para o mundo infan- til. Para o autor, “[...] o clima intelectual do século XVIII – o Iluminismo [...] ajudou a nutrir e a divulgar a ideia de infância” (2011, p. 71). Para Ariès (1981), o sentimento de infância é uma expressão particular de um sentimento mais geral: o sentimento de família. Nos séculos XVIII e XIX, a família começa a tornar-se referência para a criança. A família passa a investir na educação dos filhos, e a criança cresce em importância no âmbito familiar. Podemos pontuar aqui que o sentimento de infância está de fato constituído. 24 ANOTE ISSO A ideia de infância não existiu sempre da mesma maneira. Ao contrário, a noção de infância surgiu com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudavam a inserção do papel social da criança na sua co- munidade. Aprendemos com esses estudos: 10 - a condição e natureza histó- rica e social das crianças; 20 - a necessidade de pesquisas que aprofundem o conhecimento sobre as crianças em seus diferentes contextos; 30- a im- portância de atuar considerando-se essa diversidade (KRAMER, 2006, p.14). Constatamos que as imensas mudanças históricas e sociais culminaram na nossa atual representação de infância. Os séculos passados foram o cenário das grandes mudanças apresentadas logo depois de ser fundado o já mencionado primeiro laboratório de Psi- cologia Experimental em Leipzig, no século XIX. As teorias do desenvolvimento infantil irão florescer após a Psicologia se constituir como ciência, no século XX. INFÂNCIAS HOJE E O PAPEL DA ESCOLA No século XX, cresce o esforço pelo conhecimento da infância. A ideia de infância surgiu no contexto histórico, cultural e social da modernidade, nascendo nas classes médias. Afirmamos que crianças são sujeitos históricos e sociais. Sendo assim, o conceito de infância muda em função do social, do cultural e do econômico. Gostaria de chamar a atenção para o subtítulo desta aula, em que foi utilizado o termo “infâncias” e não “in- fância”, visto que são conceitos em construção, influenciáveis por momentos históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos. Ariès (1981) nos convida a ver as crianças sem estereótipos, sem ideias pré-concebidas, com o cuidado de se atentar às ideologias e às visões rígidas de desenvolvimento e aprendizagem, cuidando para que esses fatores não venham a prejudicar a infância de forma nenhuma. No Brasil, devido às desigualdades sociais e à má distribuição de renda, fatores res- ponsáveis pela existência de diferentes infâncias, as diversas realidades econômicas e sociais fizeram com que esse significado também não fosse o mesmo em um mesmo espaço de tempo, em uma mesma cidade, em um mesmo país. Crianças são sujeitos históricos e sociais marcados pelas contradições das sociedades em que vivem. Não podemos mais definir a criança pelo que não é, mas pelo que ainda se tornará, ou seja, como um adulto, no dia em que não for mais criança. Reconhecer o que é específico da infância: o poder imaginativo, a fantasia, a criação e a brincadeira. Crianças são cidadãs, portadoras de direitos, produtoras de culturas. Dentro dessa visão de criança, fica mais palpável e possível reconhecer nela seu mundo, seu modo de ver as coisas e registrar que se existe uma história humana, é porque o homem tem infância. Partindo dessa ideia de infância, aprendemos que o homem pode mudar o rumo estabelecido das coisas e que podemos criar e recriar, mudar de direção e reconstruir nossa histórica (KRAMER, 2006). Refletir sobre a infância e sobre sua pluralidade dentro da escola é pensar na melhor forma de viver essa fase com todos os direitos e deveres assegurados. Sendo assim, que- remos trazer reflexões sobre o papel da escola. De acordo com Nascimento (2006), o principal papel da escola é garantir o desenvol- vimento integral da criança. O que vem a ser isso? Significa garantir o desenvolvimento do sujeito na dimensão afetiva, cognitiva, social e na dimensão psicológica. Esse com- prometimento com o desenvolvimento integral é dever de todos da comunidade esco- lar, e não somente do professor, responsáveis por possibilitar relações saudáveis com o meio, com outras crianças e com os adultos com quem a criança convive, construindo 25 seus conhecimentos por meios de trocas com os pares e com os professores. Ademais, a criança deve ter acesso ao conhecimento historicamente construído pela humanidade, frequentar outros espaços sociais e não somente a escola, experimentar espaços para falar e escutar e receber carinho, atenção erespeito aos seus direitos. Para acompanhar o desenvolvimento infantil e a infância, é importante considerar o cotidiano das escolas e os espaços sociais onde as crianças estão inseridas. Conforme Nas- cimento (2006), percebemos que além das escolas e das legislações, existem outros órgãos voltando suas atenções para as crianças, tais como a mídia, que volta o olhar para ela e a compreende como um grande público consumidor. Isso nos preocupa, pois hoje as crian- ças estão expostas a comerciais que buscam incentivar o consumo e até vender felicidade. Caro(a) aluno(a), gostaria de trazer à luz o Referencial Curricular Nacional para a Edu- cação Infantil, do ano de 1998: [...] As crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio. Nas interações que estabelecem desde cedo com as pessoas que lhe são próximas e com o meio que as circunda, as crianças revelam seu esforço para compreender no mundo em que vivem as relações con- traditórias que presenciam e, por meio das brincadeiras, explicitam as condições de vida a que estão submetidas e seus anseios e desejos (BRASIL, 1998, p. 21). Agora, vamos conferir a revisão desse mesmo referencial feita em 2009: [...] é sujeito histórico e de direitos que se desenvolve nas interações, re- lações e práticas cotidianas a ela disponibilizadas e por ela estabeleci- das com adulto e crianças de diferentes idades nos grupos e contextos culturais nos quais se insere. Nessas condições ela faz amizades, brin- ca com água ou terra, faz-de-conta, deseja, aprende, conversa, experi- menta, questiona, constrói sentidos sobre o mundo e suas identidades pessoal e coletiva, produzindo cultura (BRASIL, 2009, p. 7). Podemos dizer que os documentos oficiais estão de acordo com as leituras propostas e as reflexões teóricas apresentadas. Pensar a infância na escola é um grande desafio, como nos fala Kramer (2006). Durante muitos anos, a infância esteve fora da escola e sua articulação sempre apresentou muitas falhas. É preciso que as crianças sejam atendidas em suas necessidades e que seus direitos sejam respeitados e garantidos. Para isso, a in- clusão da criança no ensino fundamental requer diálogos sérios e bem fundamentados. ISTO ACONTECE NA PRÁTICA Espero ter demonstrado as mudanças que ocorreram nas formas de com- preender a criança ao longo da história. Na prática, você deverá compreen- der a criança na perspectiva histórica e social, nas relações do seu tempo, de sua cultura e do meio social onde ela vive. Fonte: Elaborado pela autora. Finalizando esta aula e voltando ao ponto de partida, espero ter conseguido demonstrar as mudanças ocorridas no lugar em que a criança ocupa na sociedade e a importância dessas mudanças para que possamos compreender todos os emaranhados que com- põem o psiquismo infantil. Tudo o que foi trabalhado aqui servirá para compreender a criança na perspectiva histórica, social e cultural, relacionando-a com o seu tempo, sua cultura e sua origem para que a ação pedagógica tenha de fato o efeito que se espera. AULA 05 A CRIANÇA NA PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO 27 Caro(a) aluno(a), como vimos anteriormente, a concepção de criança e o lugar que ela ocupa na sociedade é um ponto de partida importante para entendê-la dentro de uma perspectiva histórica, social, cultural e familiar. Acompanhamos as mudanças, as quais me atrevo a chamar de evoluções. Evoluções, sim, por que não?! Olhando para trás, proponho uma reflexão sobre tais mudanças que acabaram levando a criança a ser criança. Lembra? Eram adultos em miniatura! Todo esse caminho que percorremos até aqui nos levará agora a conceitos, subespecificações de fases e nomenclaturas diversas sobre criança, faixa etá- ria, idade escolar, desenvolvimento humano e outras tantas concepções de infância e afins. O objetivo desta aula é identificar concepções de criança, construídas a partir da psicologia educacional em relação ao ensinar e ao aprender nas perspectivas do cons- trutivismo genético e na perspectiva do construtivismo sócio histórico. A psicologia se interessa pela criança. No entanto, como vimos anteriormente, há diferentes escolas de psicologia, portanto, cada qual terá seu recorte e modo de ver essa criança. Como o foco aqui é a psicologia da educação, partiremos de referenciais que situam a criança quanto ao seu desenvolvimento junto ao processo de ensino e aprendizagem, e proponho olhar para a criança colocada nesse lugar. Para o tema em questão, é necessário fazer o recor- te dentro de duas teorias de base construtivista. São elas: o Construtivismo Genético de Jean Piaget e a Psicologia Cognitiva Histórico-Cultural de Vygotsky. Nesta aula, vamos compreender o lugar que é atribuído à criança nessas duas perspectivas que com suas pesquisas e construções teóricas muito contribuem para as demais áreas, como vere- mos no momento oportuno. CONCEPÇÕES DE CRIANÇA: O LUGAR DA CRIANÇA NO CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO O construtivismo piagetiano nos diz que nada, a rigor, está pronto, acabado, e aponta especificamente que o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado. Ele ocorre pela interação do indivíduo com o meio físico, com o mundo das relações sociais, e se constitui pela força de sua ação e não por qualquer dotação prévia na bagagem hereditária ou no meio, de tal forma que podemos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência, e muito menos pensamento (BECKER, 1992). Piaget insere a criança nas instâncias das ideias acima, acreditando que o desenvol- vimento se dá por estádios, que vamos falar em outro momento. No entanto, quero falar agora do conceito de egocentrismo infantil. Para esse autor, a criança é essencialmente egocêntrica na sua forma de agir e pensar, e conforme se desenvolve, passa de um esta- do de autocentração para descentração. O pensamento egocêntrico, como o próprio nome sugere, está “centrado” no “eu”. Temos um exemplo que nos ajudará nessa compreensão: se pedirmos a uma criança que está sentada de um lado da mesa, sobre a qual estão diversos objetos, que ela de- senhe ou descreva esses objetos como sendo outra pessoa sentada do lado oposto, ela veria os mesmos objetos? Parece simples, não é mesmo? Mas para a criança egocêntri- ca, do estágio pré-operatório, é muito dificultoso realizar essa tarefa porque exige muita habilidade sair do seu ponto de vista. É necessário que o sujeito descentre, se coloque do ponto de vista de outrem (LA TAILLE, 2016). Os seres humanos são egocêntricos a partir do momento que não conseguem per- ceber algo na perspectiva do outro. Para Piaget, esse traço é essencialmente infantil. Entretanto, espera-se que esse estádio evolua para outras perspectivas menos egocên- tricas. Piaget utiliza essa ideia de estádios em evolução porque não ocorrem de maneira fixa em todas as pessoas, e tudo dependerá da solicitação do meio, ou seja, a forma com que a criança é levada e possibilitada a agir sobre o meio, e como ela é encorajada a construir seus conceitos e seu conhecimento. 28 A construção do conhecimento. Fonte: Pixabay. A criança somente conseguirá superar o egocentrismo e objetivar seu pensamento, tor- nando-o lógico, a partir do momento que avançar no seu desenvolvimento e se tornar ativo do processo. Observe esse exemplo de Kamii (2012): uma mãe pede para que o filho João Pedro, de cinco anos, coloque um guardanapo no prato de cada pessoa na hora do almoço. Havia quatro pessoas à mesa. A criança sabia contar até 30. Contudo, foi até o armário da cozinha, pegou o primeiro guardanapo e colocou no prato, voltou para pegar o segundo, fez isso por quatro vezes. Passados três meses, a criança pensou em contar os pratos. Contou quatro guardanapos, retirou-os do armário e distribuiu-os sobre os pratos. E assim ocorreu por seis dias. No sétimo dia, chegou mais uma pessoa. João Pedro pegou seus quatro guardanapos, como fazia todos os dias, e viu que um prato ficou sem. Emvez de pegar um guardanapo a mais, recolheu todos e colocou de volta no armário. Então começou tudo outra vez e fez cinco viagens para completar a tarefa. No dia seguinte, o hospede foi embora e João continuou suas quatro viagens por mais cinco dias, até redescobrir a contagem. Depois de usar esse método por mais dez dias, chegou outro hóspede. O menino distribuiu seus quatro guardanapos como usual- mente, mas dessa vez, pegou simplesmente mais um no armário, quando observou que havia um prato sem. No outro dia, apenas contou o número de pratos antes de pegar os guardanapos. A chegada de um novo hóspede nunca mais o perturbou. Dessa forma, é absolutamente possível ver o quanto a solicitação do meio foi importante para que João agisse sobre os objetos e construísse seu conhecimento, sua autonomia intelec- tual e sua confiança. Comumente, veríamos a seguinte solicitação: “João, pegue quatro guar- danapos no armário, por favor.” Diante da instrução dada, estaríamos privando a criança de evoluir no mínimo intelectualmente, para não listar aqui tudo de que lhe estaríamos privando. ANOTE ISSO Dizer que a criança deve construir seu próprio conhecimento não implica que o professor fique sentado, omita-se e deixe a criança inteiramente só. Como a mãe de João Pedro, o professor pode criar um ambiente no qual a criança tenha um papel importante e a possibilidade de decidir por si mesma, como desempenhar a responsabilidade que aceitou livremente (KAMII, 2012, p. 48). 29 Para Ferreiro e Teberosky (1999), um sujeito intelectualmente ativo faz muitas coisas. É um sujeito que compara, exclui, ordena, categoriza, comprova, formula hipóteses, reorga- niza e interioriza pensamentos em ação. O sujeito que conhecemos por meio das ideias de Piaget procura ativamente compreender o mundo que o cerca e trata de resolver as interrogações que o mundo propõe. Não é uma criança que espera algo pronto, alguém que transmita conhecimento. É um sujeito que aprende sobre os objetos principalmente por meio de suas ações, que atua sobre suas próprias categorias de pensamento. Dessa forma, podemos dizer que a criança concebida por Piaget é um sujeito que cons- trói seu próprio conhecimento e evolui de um estado de menor para um estado de maior conhecimento. O autor salienta: ninguém pode fazer isso por ela. É, portanto, um sujeito ativo e estruturante. Diante disso, qual o papel do professor? Colocar a criança no lugar de sujeito ativo e criar um ambiente e condições propícias à aprendizagem (KAMII, 2012). ISTO ESTÁ NA REDE O que é construtivismo? Este artigo trata do construtivismo de maneira clara e didática, trazendo reflexões importantes para sua formação. Texto do professor Fernando Becker, grande estudioso na área de epistemologia genética, conhecimento, educação, aprendizagem, ensino-aprendizagem e epistemologia do professor. Fonte: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/301477/mod_resource/content/0/Texto_07.pdf A CRIANÇA NO CONSTRUTIVISMO HISTÓRICO-CULTURAL DE VYGOTSKY Falar em Vygotsky é tratar da dimensão social do desenvolvimento humano, e sua ideia principal é de que o ser humano se constitui a partir da interação com o outro social. A cultura torna-se parte da natureza humana em seu processo histórico que, ao longo do desenvolvimento da espécie, molda o funcionamento psicológico do homem. Para Vygotsky, a criança só pode se constituir conforme seu tempo e sua cultura, e ela é vista como sujeito que interage social e historicamente. Para compreendê-la, precisamos si- tuar a época e conhecer os ambientes que a influenciam, bem como as atividades que lhe são solicitadas em tais ambientes. Estamos nos referindo a uma criança que recons- trói interna e ativamente sua cultura, internalizando suas vivências (OLIVEIRA, 2016). Desde o nascimento, a criança é influenciada pelos costumes e objetos à sua volta, como acontece na cultura ocidental: dorme no berço, usa roupas, sapatos e talheres para comer. Os adultos estão em constante interação com o bebê, assegurando sua sobrevivência, atribuindo significado às suas condutas. Inicialmente, sua atividade men- tal e psicológica é elementar, advinda de sua herança biológica. Aos poucos, as intera- ções com grupos sociais e objetos de sua cultura passam a modificar e governar seus comportamentos e agir sobre seu desenvolvimento e seu pensamento. Com a ajuda de adultos mediadores, a criança aos poucos vai assimilando e se apropriando das habilida- des essencialmente humanas que foram construídas ao longo da história (REGO, 2011). 30 Dessa forma, podemos concluir que: [...] o desenvolvimento humano se dá a partir das constantes intera- ções com o meio social em que vive, já que as formas psicológicas mais sofisticadas emergem da vida social. Assim, o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro (outras pessoas do grupo cultural), que indica, delimita, atribui significados à realidade (REGO, 2011, p. 60-61). Vygotsky também deu bastante atenção à função da fala, pois a linguagem humana é um sistema fundamental na mediação entre sujeito e objeto de conhecimento. A lin- guagem favorece processos de abstração, generalização, formação de conceitos, plane- jamento e autorregulação, e tudo isso ocorre conforme as apropriações que a criança faz ao longo de seu desenvolvimento e as interioriza. Dessa maneira, podemos dizer que a criança situada nessa corrente construtivista sócio-histórica é uma criança que se apro- pria de forma ativa de sua cultura conforme a época e o contexto social (OLIVEIRA, 2016). Em sintonia com as ideias de Vygotsky, o aprendizado pressupõe processos culturais e sociais. Dessa forma, as crianças penetram na vida intelectual daqueles com quem convivem, e a partir daí garante a possibilidade de se desenvolver dentro das caracterís- ticas psicológicas especificamente humanas e culturalmente organizadas (REGO, 2011). Isso nos remete a histórias como a dos “meninos lobos”, que viviam entre lobos e se comportavam como tal. Ou ainda ao filme “O enigma de Kaspar Hauser”, que fala de um rapaz que viveu desde criança afastado da cultura humana e não se socializou, portanto, não se torna humano. Assim é a criança, vive exposta a influências sociais, culturais e aos recortes da realidade que são apresentados a ela, constituindo-se de acordo com seu tempo e seu ambiente. ISTO ACONTECE NA PRÁTICA Dentro da prática em sala de aula, frente à conduta do professor diante da forma de trabalho com seus educandos, quero inserir questões. Ao planejar suas aulas, você deverá considerar qual criança? Como vimos nos exemplos de Kamii, podemos entregar conceitos prontos. Mas também podemos construir conceitos junto aos escolares a partir de uma conduta problema- tizadora, dada a importância do conflito cognitivo, exemplificado por Kamii. Podemos propor atividades coletivas, pois vimos o quão importante é a in- teração social em Vygotsky. Tudo isso, de certa forma, nos convida a um encontro com os pressupostos da educação problematizadora e libertado- ra preconizada pelo saudoso educador Paulo Freire. “Ninguém se emanci- pa sozinho. Entretanto, emancipar-se inclui, necessariamente, saber andar sozinho, com pernas próprias. Somos seres sociais: um depende do outro inevitavelmente” (DEMO, 2008, p.121). AULA 06 DESENVOLVIMENTO HUMANO E OS FATORES INTERVENIENTES DESTE PROCESSO 32 Caro(a) estudante, nesta aula, vamos conversar sobre o desenvolvimento humano e, em específico, estudar os fatores que intervêm nesse processo e suas relações com o fe- nômeno educativo. Irei apresentar alguns pontos de vista e veremos que as práticas educativas desempenham papel fundamental no desenvolvimento humano com o ob- jetivo de analisar como a psicologia tem abordado essa questão. Trazendo essas ideias para nosso cotidiano, convido-o a observar sua vida diária. Quais mudanças físicas e/ou psíquicas você pode perceber? Quais fatores influenciaram tais mudanças? A educação que você recebeu, noseio familiar, na escola, teve efeito sobre você? Nossas experiências permitem nos relacionarmos de certo modo, permite ensinar, aprender de certa manei- ra, e é disso que falaremos agora, além de fazer reflexões acerca dos diferentes fatores que envolvem as relações entre desenvolvimento e práticas educativas. O PONTO DE VISTA INATISTA-MATURACIONISTA Na perspectiva inatista-maturacionista, o desenvolvimento psicológico ocorre da mes- ma maneira que o desenvolvimento biológico. A inteligência e os padrões de comporta- mentos seriam herdados dos pais, portanto, estariam determinados. Acredito que você já ouviu algo assim: “Gabriel é inteligente, como o pai.”, “Filho de peixe, peixinho é.” Essa vertente compreende o desenvolvimento como hereditário e decorrente de maturação, que significa determinar o ser humano e suas capacidades de dentro para fora. Dessa forma, fatores inatos são determinantes e indicam aptidões individuais e os graus em que podem se desenvolver. A educação e o meio social são secundários e fazem com que tais aptidões se manifestem ou não (FONTANA; CRUZ, 1997). Dentro dessas perspectivas, foram desenvolvidos os primeiros testes psicológicos que objetivaram medir a inteligência ou o quociente intelectual (QI). O percursor foi Alfred Binet (1873-1962), mas nessa mesma linha temos também Arnold Gesell (1880- 1961), que elaborou uma escala de desenvolvimento que vai da primeira infância até a adolescência, estabelecendo padrões fixos para cada idade. Dessa forma, construíram- -se padrões de normalidade. Essa forma de pensar situa a inteligência a conceitos de atenção, julgamento, adap- tação do comportamento humano a circunstâncias, e tudo isso não poderia ser apren- dido nem adquirido, pois são biologicamente determinados. Desse modo, nasceríamos com dons ou não. À escola cabia promover condições para um bom desenvolvimento das capacidades infantis, desde que a criança estivesse “pronta”, ou seja, com certa maturidade biológica para acompanhar os alunos ditos “normais”. Infelizmente, podemos perceber que muitas crianças foram discriminadas e excluídas (FONTANA; CRUZ, 1997). Dessa maneira, o desenvolvimento é um processo relativamente independente das práticas educativas, do ambiente e das relações sociais, e como consequência, o de- senvolvimento biológico está de certa forma programado. As dificuldades são heranças genéticas negativas e nada podemos fazer quanto a isso. O PONTO DE VISTA COMPORTAMENTALISTA Ao contrário do inatismo, a visão comportamentalista dá ênfase ao ambiente externo e o considera determinante do comportamento humano. Watson e Skinner dizem que as disposições intelectuais inatas são totalmente falsas. Para eles, o aprendizado é resultado das influências externas. Para Watson, “um comportamento é sempre uma resposta do organismo (humano ou animal) a algum estímulo presente no meio ambiente” (FON- TANA; CRUZ, 1997, p. 25). O que ocorre dentro do corpo é um estímulo que não pode ser observado, portanto, não interessa. 33 Segundo esses pesquisadores, só aprendemos quando ganhamos uma recompensa. Por exemplo, uma criança que é elogiada por seu comportamento tem a tendência de repeti-lo. Do mesmo jeito, se uma criança faz birra, chora, grita, por algo que quer e em seguida recebe o que deseja, aprenderá que ao utilizar esse recurso, todas as vezes que quiser algo vai consegui-lo. Skinner chama essa recompensa de reforço, e esse tipo de aprendizagem de condicionamento operante (SALVADOR, 1999). Para Skinner, ensinar é preparar o ambiente e suas contingências de modo eficiente para garantir reforçadores (elogios, notas, prêmios). O aluno passivo diante da supremacia do professor Fonte: Pixabay. Qual a consequência de tudo isso para a educação? Essa teoria entende que o professor é o detentor do conhecimento e deve repassá-lo passo a passo para que o aluno venha a assimilá-lo, em ordem crescente de dificuldade. Coloca o aluno em lugar passivo diante do que irá ocorrer durante o processo de ensino-aprendizagem, e isso certamente será um grande obstáculo para seu desenvolvimento que, nesse ponto de vista, é coinciden- te com o processo de aprendizagem (FONTANA; CRUZ, 1997). ISTO ESTÁ NA REDE Comportamento reflexo e comportamento operante são categorias estuda- das pelo behaviorismo. Watson ocupou-se em estudar o comportamento reflexo, já Skinner dedicou-se ao estudo do comportamento operante. O estudo do comportamento propõe estudar os estímulos que provocam de- terminado comportamento. Acompanhe os vídeos que abordam de forma clara e didática essas temáticas comportamentalistas. Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=s4NM1kK5zUc> <https://www.youtube.com/watch?v=UkrlNh90BFg> 34 TEORIAS PSICOGENÉTICAS As teorias psicogenéticas concebem visões bem diferentes de desenvolvimento e aprendizagem humanos. Como vimos na primeira unidade, elas estudam o desenvolvi- mento a partir da gênese e contam com vários pesquisadores e estudiosos, entretanto, os mais conhecidos e utilizados na pedagogia são Jean Piaget (1896-1980) e Vygotsky (1896-1934). A psicologia cognitiva interessada primeiramente aos processos mentais superiores em vez do comportamento observável, e procura entender as funções da percepção, a formação de conceitos, memória linguagem, pensamento, solução de pro- blema e tomada de decisão. Suas pesquisas ocorrem com seres humanos e não com animais, fazendo inferências plausíveis e importantes sobre os processos mentais (LE- FRANÇOIS, 2018). Jean Piaget Desde criança, Jean Piaget se interessava por questões científicas e seus primeiros estu- dos se deram no campo da biologia. Quando adulto, estudou filosofia e epistemologia; com a psicologia do desenvolvimento conseguiu unir filosofia e biologia e tornou-se um pesquisador incansável do desenvolvimento. Procurou buscar respostas sobre como o ser humano elabora seus pensamentos. Iniciou seus experimentos investigativos com seus próprios filhos e aos poucos foi percebendo que o ser humano aprende por meio de trocas que ele estabelece com o meio em um processo interminável de assimilações e acomodações (SALVADOR, 1999). A psicologia genética de Piaget apoia-se em três grandes princípios: Princípios da psicologia cognitiva Fonte: Elaborado pela autora. Baseado em Salvador (1999). Os três eixos apresentados nos dizem que a inteligência é construída e estruturada confor- me nossas vivências com os objetos de conhecimento por meio de processos individuais estruturantes que permitem sair de um estado de menor conhecimento para um de maior aprendizagem. Assim, o ser humano aprende por meio de trocas, em um contínuo fluxo de assimilações e acomodações sucessivas que tendem a um equilíbrio, uma adaptação. 35 Lev Semenovich Vygotsky Vygotsky (1896-1934) nasceu em Orsha, na Bielorrússia, e morreu aos 37 anos de ida- de vítima de tuberculose. Vygotsky estudou Direito e Filosofia. Sua entrada na psicolo- gia ocorreu em 1924, e mesmo doente continuou lecionando e escrevendo. Estudou os mecanismos psicológicos superiores: controle do comportamento, atenção, lembrança, memorização ativa, pensamento abstrato, raciocínio dedutivo e outros. A preocupação do autor era elaborar uma teoria que explicasse o comportamento infantil no geral, jus- tificando que a necessidade do estudo da criança reside em ela estar no centro da pré- -história do desenvolvimento cultural devido ao surgimento do uso de instrumentos e da fala humana (REGO, 2011). ANOTE ISSO O ponto de partida da problemática vigotskyana é contrário ao que Piaget defendia sobre a relação e a continuidade entre as propriedades da vida orgâ- nica e as propriedades da cognição humana. Para Vygotsky, a transformação do ser humano, de ser biológico em ser cultural, ocorre por meio da interação estabelecida com seu meio de cultura, em que funções mentais elementares se transformam em funções mentais superiores (SALVADOR, 1999). Vygotsky apresenta três ideias fundamentais: O ponto de vista de Vygotsky:ideias fundamentais Fonte: Elaborado pela autora. Baseado em Salvador (1999). 36 ISTO ACONTECE NA PRÁTICA Na escola, o professor acompanha a criança, orienta sua atenção, analisa si- tuações e a leva a classificar, comparar e estabelecer relações. Nessas situa- ções, compartilhando com o adulto e/ou com seus pares, a criança significa e ressignifica estruturas e modos de agir e pensar, e dessa forma constrói seu conhecimento. Sendo assim, qual o papel do professor? Fornecer ins- trumentos e mediar todo esse processo, pois é a partir das aprendizagens ocorridas no meio sociocultural que o desenvolvimento é impulsionado e, portanto, são indissociáveis. Vygotsky entende o desenvolvimento como um processo unitário e global, no qual con- fluem e se inter-relacionam os processos associativos às duas linhas de desenvolvimen- to e no qual os fatores biológicos e socioculturais se encontram articulados em uma autêntica interação mútua. Nas aulas seguintes, falaremos de forma mais minuciosa sobre os pressupostos de Piaget e Vygotsky. AULA 07 OS FATORES DO DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM NA TEORIA PSICOGENÉTICA DE PIAGET 38 Esta aula traz de forma mais detalhada as ideias de desenvolvimento de Piaget, os está- dios, a gênese do conhecimento e ainda os conceitos mais elaborados desse autor para o campo da pedagogia. O objetivo principal é trazer conceitos e reflexões acerca dos aspectos relacionados ao desenvolvimento e aprendizagem. EPISTEMOLOGIA GENÉTICA DE JEAN PIAGET A Epistemologia genética busca investigar de forma científica a gênese, ou seja, as ori- gens dos processos de formação do pensamento e do conhecimento humanos. Para Piaget, “[...] conhecer é organizar, estruturar e conhecer a realidade a partir daquilo que se vivencia nas experiências com os objetos de conhecimento” (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 45). Portanto, o ato de conhecer é estruturado a partir das vivências com objetos de conhecimento, pressupondo a organização da experiência num sistema de relações. Até aqui, nenhuma novidade. Pois bem, e como isso ocorre? Para Piaget, ocorre por meio da ação do sujeito. Essa ação proporciona a adaptação ao meio por intermédio de dois processos, chamados de assimilação e acomodação. Eixos do conhecimento e adaptação Fonte: Criado pela autora. Baseado em Fontana e Cruz (1997). ISTO ESTÁ NA REDE O construtivismo de Jean Piaget é uma das teorias de aprendizagem mais contundentes e colaborativas ao trabalho pedagógico, ao ensino e à apren- dizagem da criança. https://www.youtube.com/watch?v=z-FfrQLVyN8 39 Ao ler estas páginas, você está assimilando os objetos de conhecimento com os que você já possui. Conforme vai relacionando as ideias e conceitos a partir do que já está construído, tudo começa a fazer sentido, ao mesmo tempo em que você ressignifica as ideias já existentes com o que você leu (ou assimilou). Esse processo de modificação das estruturas do pensamento é chamado de acomodação. Assim, [...] a inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um or- ganismo adaptado ao meio é aquele que mantém equilíbrio em suas trocas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente mantendo um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificuldades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação torna-se possível graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos, constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos. Assim, a inteligência é assimilação por permitir ao indivíduo in- corporar os dados da experiência. É também acomodação, pois novos dados incorporados acabam por produzir modificações no funciona- mento cognitivo da pessoa (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 46). A assimilação e a acomodação são conceituadas por Piaget como invariantes funcionais; nome dado por um motivo bem óbvio: são ferramentas que funcionam durante toda a vida. Ao nascer, a criança é dotada de reflexos automáticos que se dão por estímulos, e é por meio dos reflexos que a criança assimila objetos tais como a mamadeira, o seio ma- terno e brinquedinhos. A assimilação faz com que os reflexos sejam mais elaborados e se transformem no que Piaget chamou de esquema de ação, como pegar, puxar, sugar e empurrar. Pensemos na ação de pegar. Ao fazê-la, a criança realiza um movimento específico, que é diferente de puxar, empurrar ou balançar. O que diferencia uma ação de outra é o que a torna passível de generalização. O esquema de uma ação define-se como o conjunto estruturado das características generalizáveis dessa ação; ou seja, as características que permitem repetir a mesma ação ou aplicá-la a novos objetos (SAL- VADOR, 1999). ANOTE ISSO Para Piaget, os esquemas vão se ampliando e se diferenciando, e acabam por se transformar em algo muito mais complexo que dá origem ao pensa- mento. Para que tudo isso ocorra, a maturação é condição imprescindível, porque permite o surgimento de novas condutas durante o desenvolvimen- to. A experiência também é condição indispensável, bem como a transmis- são social, que contribui para modificar os esquemas, permitindo que o ser humano avance em seu desenvolvimento. O processo de equilibração é fa- tor determinante, intrínseco e constitutivo da vida mental, todas as vezes que surgem conflitos, contradições ou dificuldades, a capacidade de autor- regulação, equilibração entra em ação no sentido de superar, levando a um estado superior em relação ao inicial (FONTANA; CRUZ, 1997). 40 ESTÁGIOS SUCESSIVOS DE DESENVOLVIMENTO DA INTELIGÊNCIA Segundo Piaget, o desenvolvimento cognitivo caracteriza-se por uma série de equili- brações que nos permite desenvolver de forma cada vez mais elaborada. Esse processo ocorre por estádios, que são sucessivos e cada vez mais complexos e estruturais, que serão apresentadas a seguir: Período sensório-motor: vai do nascimento até os dois anos, caracterizado pela ação da criança no mundo. Inicialmente age sobre o próprio corpo, como chupar o dedo, e depois gradativamente vai se voltando para os objetos. É importante que a criança explore os objetos à sua volta, agrupando-os e combinando-os. A consciência sobre o mundo externo se expande lentamente para os objetos. O centro não é mais o corpo da criança, por intermédio de suas ações a criança manipula os elementos do meio. Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados, e as ações começam a ganhar intencio- nalidade. O indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no plano das ações exteriores e a permanência dos objetos vai sendo construída (FONTANA; CRUZ, 1997). Título: A capacidade de atuar sobre objetos Fonte: Pixabay. Conforme Salvador (1999), Piaget chamou a capacidade de atuar sobre os objetos de função simbólica, que ocorre no final desse estádio e se relaciona a agir sobre objetos fisicamente e por meio de esquemas de ação representativos e interiorizados, formando as primeiras imagens mentais dos objetos. “Nesse percurso, o eu e o mundo tornam-se progressivamente distintos. [...] O brinquedo, que ao ser retirado da criança deixava de existir para ela, passa a ser procurado e continuam existindo mesmo quando não estão em seu campo de visão” (FONTANA; CRUZ, 1997, p. 49). Período pré-operatório: está situado aproximadamente entre dois e sete anos de idade. Com o desenvolvimento da função simbólica, o eu e o mundo reorganizam- -se e formam o plano representativo. A criança reproduz, imita, faz gestos. O plano representativo traz a capacidade de imaginar ações sem praticá-las. Depois de um período de elaboração, a criança coordena esquemas de ação, portanto, tem a capa- cidade de utilizar uma série de ações interiorizadas, essenciais do ponto de vista do 41 pensamento racional, tais como a classificação, a seriação e a conservação, ao passo que avança na compreensão dos fenômenos do mundo externo e da causalidade (SALVADOR, 1999). Período de operações concretas: surge por volta dos sete anos de idade e vai até os onze anos, aproximadamente. Nesse estádio,
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