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Biomecânica do Treinamento Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Fabio Milioni Revisão Textual: Caique Oliveira dos Santos Introdução à Biomecânica Introdução à Biomecânica • Oferecer uma compreensão, de maneira sucinta, do contexto histórico de uma disciplina com mais de 2.000 anos de produção científica e dos principais nomes ligados ao seu pro- gresso (Archimedes, Galileo e Newton, especialmente); • Aresentar a definição de biomecânica, os conceitos de biomecânica interna e externa, os campos de pesquisa dessa ciência e, finalmente, as ferramentas de análise do movimento humano (cinemetria, dinamometria, antropometria e eletromiografia). OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Perspectiva Histórica e Grandes Pensadores; • Definição de Biomecânica; • Objetos de Estudo e Campos de Pesquisa em Biomecânica; • Ferramentas Biomecânicas de Análise do Movimento. UNIDADE Introdução à Biomecânica Perspectiva Histórica e Grandes Pensadores Entre diversas versões para a origem do termo biomecânica, uma das mais aceitas trata da união de duas palavras gregas: bios, que significa vida, e mekhane, com o sentido de aparelho, arranjo, ação das forças. Segundo Hall (2016), a biomecânica é a ciência que in- vestiga a aplicação dos princípios mecânicos no estudo do movimento de organismos vivos. A biomecânica está associada com diversas aplicações acadêmicas e práticas, e os constantes avanços em seus conceitos e suas teorias são ponto de suporte para áreas como treinamento esportivo, engenharia biomédica, fisioterapia, terapia ocupacional, ergonomia, medicina desportiva, entre outras. Entretanto, o interesse pelo estudo da mecânica do movimento, em especial do mo- vimento humano, não se iniciou há pouco. O estado atual dessa ciência tem a participa- ção importante de renomados pensadores ao longo da história, alguns de mais de dois milênios atrás, que contribuíram não somente com o progresso da biomecânica em si mas também das diversas áreas associadas, como a anatomia, a fisiologia humana, a física, a matemática e a engenharia. Dessa forma, é de suma importância dar o devido crédito aos que contribuíram de alguma forma para o avanço dessa ciência. Para tanto, abordaremos, brevemente, alguns nomes que se destacaram ao longo da história por seus achados e suas teorias. É importante ressaltar que, apesar de alguns desses conceitos terem sido desenvolvidos há alguns séculos, muitos de- les são integralmente vigentes até os dias atuais e norteiam os futuros passos da biomecânica. Talvez o maior destaque dessa lista, em virtude de suas contribuições diretas para a área, seja o físico inglês Isaac Newton, responsável pela introdução da mecânica newto- niana e suas três leis fundamentais que explicam as relações entre as forças que deter- minam o estado de movimento de um corpo. Boa parte dos conceitos que estudaremos ao longo da disciplina baseia-se nas três leis propostas por Newton, contudo aplicadas ao sistema locomotor humano. Figura 1 – Pêndulo de Newton Fonte: Getty Images Você Sabia? Você sabia que o termo biomecânica foi assumido pela comunidade científica interna- cional somente na década de 1970? 8 9 Grandes pensadores da biomecânica • Aristóteles (384-322 a.C.): a partir da observação da movimentação de animais, o grande filósofo grego Aristóteles descreveu, ainda que de maneira rudimentar, a relação da aplicação de forças entre o solo e um corpo em deslocamento durante o caminhar: “[...] o animal que se move faz sua mudança de posição pressionando contra o que está embaixo dele [...]”. Além disso, Aristóteles contribuiu para o de- senvolvimento de matérias como a Lógica, a Física e a Biologia; • Archimedes (287-212 a.C.): foi um matemático, engenheiro e astrônomo grego que, embora poucos detalhes de sua vida sejam conhecidos, contribuiu significativa- mente para caracterização de conceitos como a Lei do Empuxo, princípios hidros- táticos e o funcionamento de alavancas. Foi grande influenciador de outros pen- sadores importantes, como Galileo e Newton, e a ele é creditada a frase “Dá-me um ponto de apoio que levantarei o mundo”, referindo-se à capacidade mecânica de uma das máquinas mais simples e eficazes já inventadas, a alavanca. O mesmo princípio de funcionamento das alavancas é observado na interação entre múscu- los, ossos e articulações responsável pela geração de movimento; Figura 2 – Ilustração de Archimedes utilizando uma alavanca para suspender o mundo Fonte: Getty Images • Leonardo da Vinci (1452-1519): foi um expoente da humanidade! Suas contribui- ções são tantas, e em diversas áreas, que se torna difícil elencar. Nascido na Itália, destacou-se como arquiteto, matemático, engenheiro, entre outros ofícios. Sua grande capacidade artística e curiosidade pela composição e pelo funcionamento do corpo humano contribuíram para elevar a qualidade dos manuscritos de ana- tomia humana aliando arte e ciência. Na época, os desenhos eram feitos à mão, usando pena e tinta, a partir da observação de cadáveres obtidos de forma clandes- tina. Além disso, descreveu, em detalhes, a mecânica do corpo humano em posi- ção ortostática (ereta) e durante a marcha (caminhar), contribuindo para o enten- dimento da relação entre estruturas anatômicas e movimento; 9 UNIDADE Introdução à Biomecânica O Homem Vitruviano (Uomo Vitruviano), umas das obras mais famosas de Leonardo da Vinci, descreve uma figura humana disposta simultaneamente em duas posições diferentes de bra- ços e pernas. Sua proporcionalidade anatômica é assumida até os dias de hoje como “cânone das proporções”, numa alusão a uma obra de medidas perfeitas. Apesar de não ser exposto ao público atualmente, o Homem Vitruviano está guardado na Gallerie dell’Accademia (Galeria da Academia), em Veneza, na Itália. Visite o site do museu: https://bit.ly/3s04A26 • Galileo Galilei (1564-1643): nascido em Pisa, na Itália, foi um importante físico, matemático e astrônomo. É famoso pela proposição do Heliocentrismo, teoria em que o Sol é o centro do Universo, e não a Terra, como se acreditava até aquele momento. Ainda, Galileo desenvolveu os primeiros estudos sobre o movimento uniformemente acelerado, demonstrou que a aceleração de um cor- po em queda livre não é proporcional a seu peso, criou a balança hidrostática a partir da aplicação de conceitos propostos por Archimedes e foi o precursor da Lei da Inércia e, consequentemente, do que viria mais tarde a ser chamada de “mecânica newtoniana”; Se soltarmos uma bola de boliche e uma pena da mesma altura, qual dos objetos toca o solo primeiro? E, se isso for feito em um ambiente de vácuo perfeito, ou seja, sem nenhuma resistência do ar, esse resultado muda? Assista ao vídeo a seguir e descubra! Disponível em: https://youtu.be/E43-CfukEgs • Giovanni Alfonso Borelli (1608-1679): contemporâneo de Galileo, Borelli, conhecido como o “pai da biomecânica”, também nasceu em Pisa, na Itália. En- tre as principais contribuições do fisiologista, físico e matemático está o livro De motu animalium (Do movimento dos animais), publicado em 1680 (ou 1681, não se sabe ao certo), em que descreve, matematicamente, a locomoção huma- na a partir da relação de alavancas formadas entre a contração dos músculos, os ossos e as articulações. Além disso, foi o primeiro a descrever o centro de gravidade humano como um ponto-chave para a manutenção do equilíbrio em diferentes situações; • Isaac Newton (1642-1727): foi um teólogo, físico e matemático inglês cuja obra é assumida como uma das mais importantes na história da ciência. Influenciado pelos progressos de Galileo no campo da física, Newton destaca-se por ter descrito a Lei da Gravitação Universal e ter proposto as três leis que fundamentaram a me- cânica clássica ou mecânica newtoniana. Dessa forma, ele conseguiu demonstrar, matematicamente, que o estado de movimento de um objeto obedece às mesmas leis tanto na Terra como no espaço. Basicamente, Newton propôs que 1) um corpo tende a permanecerem seu estado de movimento, a menos que uma força externa o altere (Lei da Inércia); 2) o estado de movimento é proporcional à força aplicada ao corpo, na direção em que ela age, mas inversamente proporcional à sua massa (Lei da Aceleração); e, 3) para cada ação, existe uma reação na mesma direção e de mesma intensidade, mas em sentido oposto (Lei da Ação e Reação). 10 11 Trocando Ideias ... Imagine-se jogando uma partida de futebol em um dia chuvoso. Você já parou para pensar que, ao contrário do que diz o senso comum, quando uma bola quica em um gramado molhado, ela não ganha velocidade? Isso mesmo! A água simplesmente dimi- nui o atrito entre a grama e a bola, fazendo com que uma quantidade menor de energia seja dissipada durante o quique e mantendo a velocidade mais próxima da inicial. Caso a bola, de fato, ganhasse velocidade ao quicar num gramado molhado, os problemas energéticos da humanidade estariam resolvidos. Bastava substituir o asfalto das rodo- vias por grama molhada e pronto... teríamos uma viagem de carro infinita com apenas uma aceleração para iniciar o movimento! Figura 3 – Ilustração de Newton quanto ao suposto episódio em que a maçã cai sobre sua cabeça durante a formulação da Lei da Gravitação Universal Fonte: Getty Images Definição de Biomecânica Como tratado anteriormente, a biomecânica é um termo derivado das palavras “bio”, que significa vida, e “mecânica”, ramo da física que descreve os efeitos das forças sobre um corpo (MCGINNIS, 2015). Segundo Amadio et al. (1999), a biomecânica é a ciência responsável pela análise física de sistemas biológicos, tem claramente definido o objeto de estudo central e utiliza-se de métodos e ferramentas próprias para investigação e divulgação de seus resultados científicos. As ferramentas utilizadas pela biomecânica na investigação do objeto central do estu- do são a cinemetria, a dinamometria, a antropometria e a eletromiografia, as quais serão detalhadas no quarto capítulo desta unidade. Já o objeto central a que o parágrafo anterior se refere é o movimento humano. Assim como visto no capítulo anterior, em que abordamos as descobertas de Newton, uma vez que o estado de movimento do cor- po humano obedece às mesmas regras universais, a física é empregada para analisar as forças aplicadas ao corpo humano, esteja ele parado ou em movimento. 11 UNIDADE Introdução à Biomecânica A essa altura, você deve estar se perguntando: se o corpo humano obedece às regras universais do movimento (basicamente as leis de Newton), qual a necessidade de uma disciplina específica para análise do movimento humano, e não somente a aplicação dos conceitos da mecânica, sub-ramo da física? Essa resposta está justamente na natureza do corpo humano como um sistema biológico complexo, no qual os movimentos são resultantes de um intrincado processo de equilíbrio, estático e/ou dinâmico, capaz de provocar deslocamentos angulares a partir da aplicação de forças internas (geradas por ele mesmo) e forças externas. Ou seja, ao contrário de um objeto rígido e inanimado que se desloca a partir de forças a ele aplicadas, o nosso corpo é capaz de produzir internamente a força necessária para deslocá-lo, especialmente por meio da contração dos músculos. Tal deslocamento ocorre desde que essa força interna seja suficiente para vencer as forças externas que o mantêm no estado de movimento estático (parado), como o atrito do solo e a resistência do ar. Dessa forma, para uma maior compreensão dessa complexa interação de forças ne- cessárias para realização do movimento humano, a biomecânica passa a ser subdividida em duas áreas distintas: biomecânica interna e biomecânica externa. Biomecânica interna A biomecânica interna analisa as forças produzidas e transmitidas pelas próprias es- truturas biológicas, por exemplo, a força produzida pela contração muscular e transmitida por meio de tendões, ligamentos e cartilagens articulares. Essas forças geram pressão e tensão em ossos e tecidos moles, e o resultado da aplicação dessas forças é transmitido e pode gerar movimento, desde que vença as forças externas que mantêm o corpo parado. As forças relativas à biomecânica interna dificilmente são medidas diretamente, visto que são necessários experimentos extremamente invasivos para instalação de dispositi- vos de registro de força (como dinamômetro e células de carga) nas próprias estruturas biológicas. Desse modo, na maior parte dos estudos, as forças relacionadas à biomecâni- ca interna são estimadas por modelos físico-matemáticos, e não diretamente mensuradas. Ainda assim, as forças referentes à biomecânica interna, além de gerarem o movimen- to humano, são fundamentais para o desenvolvimento fisiológico das estruturas biológi- cas. As cargas exercidas pelo aparelho locomotor, desde que em magnitude adequada, geram importante estresse/estímulo mecânico necessário para o desenvolvimento estru- tural, em especial de ossos e músculos. Caso as forças produzidas excedam a magnitude necessária para a geração desse estímulo, obviamente irão induzir danos na estrutura biológica e condições lesivas, principalmente se a aplicação dessas forças desproporcio- nais for persistente ao longo do tempo. Finalmente, o conhecimento da biomecânica interna também auxilia a compreensão de condições patológicas e de reabilitação. Imagine o quão importante é entender as for- ças aplicadas durante a marcha (caminhar) visando à implantação de uma prótese de per- na em um indivíduo amputado ou à reabilitação dos movimentos de um lesado medular. Análise da marcha de um indivíduo amputado, disponível em: https://bit.ly/3rZCggk 12 13 Você Sabia? Paavo V. Komi (1939-2018) foi um importante biomecânico finlandês e o pioneiro na mensuração direta de forças internas (biomecânica interna) em seres humanos. Para isso, Komi implantou, cirurgicamente, um strain gauge (equipamento para medida de força) em seu próprio tendão de Aquiles para o registro das forças durante movimento de caminhada. Biomecânica externa A biomecânica externa, por sua vez, estuda as forças físicas que agem sobre o corpo, as grandezas observáveis externamente que influenciam a estrutura de um movimento. As análises da biomecânica externa são referentes às forças que o ambiente impõe sobre o corpo humano no momento relativo a mudanças de posição desse corpo e geração de movimento. Ao contrário da biomecânica interna, as variáveis relativas à biomecânica externa podem ser diretamente mensuradas a partir de equipamentos cada vez mais sofistica- dos, precisos e de fácil acesso. Essas forças externas são capazes de alterar a trajetória, a velocidade e a aceleração de um movimento. De maneira geral, as forças externas aplicadas ao corpo humano durante o movimento se manifestam como o atrito de um material sobre o corpo (por exemplo, o próprio solo), a resistência do ar ou de fluidos (deslocamento em meio aéreo, terrestre e aquático) e a aceleração da gravidade (força gravitacional), responsável por atrair os corpos para o centro da Terra. É importante ressaltar que o entendimento da biomecânica externa a partir de medi- das diretas das forças aplicadas em um corpo durante o movimento irá ser o ponto de sustentação para a formulação de modelos físico-matemáticos precisos que irão estimar o comportamento das forças internas (biomecânica interna) durante o referido movimento. Trocando Ideias ... Por que é mais difícil se deslocar em meio líquido do que em terra seca? Essa resposta está relacionada com a interação das biomecânicas interna e externa. Explicando de ma- neira breve, para caminharmos para frente, basicamente temos que aplicar força contra o solo em ângulo adequado para que o solo reaja e “empurre” o corpo para frente. A for- ça que aplicamos contra o solo é um produto da biomecânica interna, especialmente da contração muscular, e a reação do solo trata-se da biomecânica externa. Entretanto, só conseguiremos nos deslocar caso a força aplicada seja suficientepara vencer a resistên- cia gerada pelo ar que nos cerca. Por sorte, o ar apresenta moléculas bastante dispersas no ambiente e, dessa forma, a força de resistência contra o movimento é baixa. Por outro lado, quando nos deslocamos em meio líquido, as moléculas de um fluido (como a água, por exemplo) estão significativamente mais agregadas, gerando uma força de resistên- cia contrária ao movimento muito maior em comparação com o ar. Achou interessante? Não se esqueça da força da gravidade, que nos mantém atraídos contra a superfície da Terra; caso contrário, após o primeiro passo, poderíamos ser lançados para o espaço! 13 UNIDADE Introdução à Biomecânica Objetos de Estudo e Campos de Pesquisa em Biomecânica Os capítulos anteriores desta unidade caracterizaram a biomecânica como uma ciên- cia ampla, que se utiliza de diversas disciplinas correlatas para produzir conhecimento e descrever/explicar a aplicação de forças que geram o movimento humano. Neste ca- pítulo, iremos discutir, brevemente, as áreas de interesse e aplicação da biomecânica e contextualizar sua importância. A biomecânica tem por objetivo geral de estudo compreender como o movimento humano é gerado, bem como a influência das forças do ambiente no movimento. Para tanto, também é necessário determinar as sobrecargas que atingem o aparelho locomo- tor e como a execução do movimento pode influenciar as estruturas biológicas. Dessa forma, a biomecânica se enquadra em alguns campos de pesquisa, entre eles os mais importantes são o esporte de alto rendimento e a atividade física adaptada, a prevenção e a reabilitação orientadas à saúde, além das atividades do cotidiano e do trabalho (ergo- nomia) (AMADIO; SERRÃO, 2007). Por meio da biomecânica do esporte e da precisa instrumentação de suas ferramentas, é possível analisar as causas e os efeitos do movimento esportivo, diagnosticar técnicas in- corretas/imprecisas e, obviamente, corrigi-las, ocasionando uma relação direta de melhora do rendimento competitivo (AMADIO; SERRÃO, 2007). Ainda, a biomecânica permite ajustar rotinas de treinos, adequando as sobrecargas aplicadas ao aparelho locomotor e oti- mizando a relação estímulo-resposta dentro de uma proposta de treinamento planificada. Assim, a figura do biomecânico se torna cada vez mais frequente na composição de equipes multidisciplinares de preparação para o esporte de alto rendimento, sendo cada vez mais determinante para o sucesso esportivo. Num exemplo simples da aplicação da biomecânica no esporte, imagine o benefício ao desempenho de um nadador que conse- gue ajustar a parte submersa de sua braçada a partir da análise de filmagens subaquáticas. O link a seguir é uma reportagem sobre as análises biomecânicas realizadas no Núcleo de Alto Rendimento Esportivo de São Paulo (NAR-SP) em atletas olímpicos de diferentes mo- dalidades. Disponível em: https://youtu.be/D7Q-VDrUs80 As modalidades paralímpicas também são um exemplo no qual a biomecânica tem influência positiva. Além dos motivos citados anteriormente (correção de técnicas e mo- vimentos esportivos; determinação e manipulação das variáveis de treinamento), a bio- mecânica auxilia na confecção de equipamentos esportivos mais eficazes para a prática de cada modalidade, bem como de próteses esportivas mais eficazes e sob medida para cada atleta (quando é o caso). A análise biomecânica igualmente permite entender os fatores físicos que podem influenciar/determinar uma lesão e as melhores estratégias para evitá-la, como o forta- lecimento de determinado grupamento muscular para equilibrar as forças que incidem em uma articulação ou até mesmo evitando situações que possam colocar a integridade física em risco (um terreno acidentado durante um treino ou uma tarefa manual realizada 14 15 de maneira não adequada). Ainda nesse sentido, também contribui para propostas de protocolo de reabilitação, auxiliando meios mais eficazes de reeducação muscular. Finalmente, a biomecânica está, inclusive, envolvida na vida cotidiana e no ambiente de trabalho. Variáveis biomecânicas possibilitam a classificação dos ambientes de tra- balho e as melhores práticas visando à saúde tanto na vida pessoal quanto na profissio- nal. Análises precisas, em especial de serviços manuais que envolvem levantamento de cargas e/ou esforços repetitivos, permitem entender os limites saudáveis para execução da tarefa, bem como estabelecer uma legislação adequada para cada função laborativa. Ferramentas Biomecânicas de Análise do Movimento Como abordado durante o capítulo 2 desta unidade, a biomecânica se beneficia da uti- lização de diversas ferramentas de medição para o progresso do entendimento da relação de forças internas e externas aplicadas a um complexo sistema biológico responsável por gerar movimento. O atual desenvolvimento da biomecânica é expresso pelos novos procedi- mentos e técnicas de investigação, nas quais podemos reconhecer a ten- dência crescente de se combinar várias disciplinas científicas na análise do movimento. Nos últimos anos o progresso das técnicas de medição, armazenamento e processamento de dados contribuiu enormemente para a análise do movimento. (AMADIO et al., 1999, p. 42) Ou seja, para compreensão desse complexo e interativo fenômeno que é o movimento humano, a biomecânica, como uma ciência multidisciplinar, se utiliza da associação de duas ou mais ferramentas, muitas das vezes de maneira simultânea e sincronizada, para investigar de forma cada vez mais precisa e específica e interpretar o movimento humano. O estudo biomecânico do movimento é capaz de gerar parâmetros de comparação tanto qualitativos, quando há preocupação com a descrição do fenômeno, mas sem a necessidade de metrificação ou atribuição de valores; quanto quantitativos, quando, além de descrever o fenômeno, há determinação de uma grandeza e atribuição de valor possível de ser comparado dentro de uma escala. Ainda, é importante ressaltar que as ferramentas utilizadas para o estudo biomecâ- nico vêm exponencialmente se beneficiando do avanço da tecnologia. A cada dia, os erros metodológicos e de medidas diminuem, contribuindo significativamente para o progresso das diversas disciplinas que compõem a biomecânica. Por exemplo, há menos de um século, as análises cinemáticas eram realizadas, na melhor das hipóteses, a partir de fotografia seriada em preto e branco, que, além de ser uma tecnologia cara para a época, limitava as possibilidades de extração de dados (o que acontecia com o movimento entre uma foto e a seguinte?). Por outro lado, hoje, é altamente acessível a utilização de câmeras de alta definição de imagem, com frequência de aquisição de centenas de quadros por segundo, que permitem a reconstrução do mo- vimento em três dimensões e que, obviamente, favorecem a possibilidade de extração de dados importantes relativos ao movimento analisado. 15 UNIDADE Introdução à Biomecânica A seguir, iremos discutir e aprofundar o conhecimento das ferramentas biomecânicas para análise do movimento e como elas contribuem para a proposta de um modelo físico-matemático para estudo do movimento humano: a cinemetria, a dinamometria, a antropometria e a eletromiografia (Figura 4). ModeloModelo Forças de gravitação Energia mecânica Inércia Momentos líquidos e forças internas Cinemetria Posição e orientação dos segmentos corporais Forças externas e distribuição de pressão Parâmetros para o modelo corporal Atividade muscular Dinamotria Antropometria EMG Figura 4 – Ferramentas de análise biomecânica do movimento segundo Baumann, 1980 Fonte: Adaptada de AMADIO et al., 1999, p. 42 Cinemetria A cinemetria é um método de medidas biomecânicas capaz de obter variáveis cine- máticas para descrição de posições e/ou do movimento no espaço, ou seja, capaz de mensurar velocidade, aceleração, posição e orientação de um corpo. Essa ferramenta é baseada na utilização de lentes de captura de imagem – inicial- mente, fotografias e, nos dias atuais, modernascâmeras de vídeo capazes de registrar imagens em elevada frequência de captura e em alta definição. A partir da utilização de softwares específicos, as imagens captadas são processadas automaticamente e as variáveis cinemáticas citadas anteriormente são calculadas até mesmo em tempo real, gerando a possibilidade de reconstrução do movimento em três dimensões. Figura 5 – Modelo de alta tecnologia de reconstrução cinemática do movimento em três dimensões Fonte: Getty Images 16 17 Previamente à coleta de dados cinemáticos, é importante que o ambiente seja calibrado de maneira que medidas dos três eixos de referência (x, y e z) sejam registradas e possibilitem que os posicionamentos de pontos de interesse das imagens capturadas sejam calculados em função do tempo. Logo, é possível mensurar, com grande precisão, para cada quadro de imagem capturado durante as filmagens, os ângulos articulares, a velocidade de deslocamen- to, a aceleração de cada membro e a posição e o deslocamento de um corpo de interesse. Dinamometria A dinamometria trata das medidas de todo tipo de força e distribuição de pressão. É importante, neste momento, recordar que as forças mensuráveis aqui são as forças externas (biomecânica externa), entre o ambiente e o corpo em análise. São comumente objeto de interesse da dinamometria força de preensão manual, cen- tros de pressão, torques, impulsos, entre outras, mas, especialmente, as forças de reação do solo transmitidas tanto em condição parada quanto durante o movimento, uma vez que são as responsáveis por induzir o deslocamento do corpo no espaço. O s equipamentos básicos para medidas de força em biomecânica são as células de carga, os strain gauges e as plataformas de força (Figura 6). Enquanto os dois primeiros equipamentos citados medem a força linearmente aplicada a um corpo, as plataformas de força possibilitam a medida de uma das mais importantes manifestações da biomecâ- nica externa, a força de reação do solo e o ponto de aplicação dessa força. A partir das medidas de força fornecidas por esses equipamentos, é possível a criação de modelos físico-matemáticos para a estimativa das forças da biomecânica interna (força da contra- ção muscular, tensão nos tendões e ligamentos e pressão nos ossos e nas cartilagens). Figura 6 – Foto do estudo Fonte: SUDA; CANTUÁRIA; SACCO, 2008, p. 343 Investigou o funcionamento do tornozelo de jogadores de vôlei com instabili- dade funcional dessa articulação durante a aterrissagem de um salto a partir dos dados de plataforma de força (dinamometria). 17 UNIDADE Introdução à Biomecânica Antropometria A palavra antropometria deriva do grego anthropos, homem, e metron, medida. É a ferramenta da biomecânica responsável por determinar as dimensões, caracterís- ticas e propriedades do corpo humano, como dimensões das formas geométricas de segmentos, distribuição de massa, braços de alavanca e posições articulares. Dessa forma, é possível definir um modelo antropométrico, ou seja, um modelo do corpo hu- mano, auxiliando a análise da estrutura do sistema biológico. A partir do estudo antropométrico do corpo humano, podemos calcular variáveis relativas à propriedade do biomaterial, como resistência, deformação e limite de ruptura; e relativas à anatomia humana propriamente, como centro de rotação articular, origem e inserção muscular, comprimento e área de secção transversa do músculo, braços de alavanca, entre outras. É importante ressaltar que, além da medida direta do indivíduo a ser estudado, por- tanto a medida in vivo, boa parte dos dados antropométricos é proveniente de estudos cadavéricos e compõe tabelas com dados normativos de dada população, como densida- de de tecidos (músculos, cartilagens, tendões, ligamentos e ossos), distribuição de massa corporal, propriedades inerciais e centro de gravidade. Eletromiografia A contração muscular é produto de uma complexa série de eventos fisiológicos ca- pazes de, a partir da condução de potenciais elétricos, induzir o encurtamento dos sar- cômeros e, consequentemente, a contração muscular. Brevemente, durante a realização de um movimento voluntário, um estímulo eletroquímico é produzido pelo córtex motor primário e conduzido por vias eferentes até as fibras musculares de interesse; nesse momento, o sinal elétrico (potencial de ação) estimula a liberação de neurotransmissores entre o neurônio motor e a fibra muscular, desencadeando a interação entre os filamen- tos de miosina e actina a partir da ação dos íons de cálcio e de gasto energético. Portanto, a eletromiografia é uma técnica experimental relativa ao desenvolvimento, à aquisição e à análise do sinal mioelétrico formado pela variação fisiológica das membra- nas das fibras musculares (KONRAD, 2005), ou seja, é a ferramenta capaz de registrar a somatória dos potenciais de ação (sinal elétrico) responsáveis pela contração muscular. É imprescindível salientar que, ao contrário da cinemetria e da dinamometria, que mensuram fenômenos mecânicos, a eletromiografia indica o estímulo neural enviado do sistema nervoso central para o sistema muscular. A partir da eletromiografia, é possível registrar a magnitude do estímulo neural responsável por gerar aquele respectivo nível de contração muscular, e os dados resultantes favorecem o entendimento da interação entre o sistema nervoso e a função muscular propriamente. Além disso, a partir da in- vestigação eletromiográfica, é possível determinar o padrão temporal entre os diversos grupos musculares ativos durante um movimento, propiciando compreender a sequên- cia de ativação destes. Eletrodos colocados na pele detectam a diferença de potencial entre dois pontos e transmitem essa informação, que será amplificada e convertida de sinal analógico para 18 19 digital por sofisticados equipamentos para, então, ser, graficamente, representada em softwares específicos. Esses dados são utilizados para o monitoramento neuromuscular e, portanto, aplicados em diversas áreas nas quais a biomecânica se faz útil, como o treinamento físico esportivo, a reabilitação e a análise clínica (Figura 7). Figura 7 Fonte: Adaptada de MILIONI, 2014, p. 84 Exemplo constante da dissertação de mestrado de Milioni (2014) demons- trando a associação da dinamometria e da eletromiografia (EMG) para a análise da função muscular durante a extensão de joelho. 19 UNIDADE Introdução à Biomecânica Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Leitura In vivo registration of Achilles tendon forces in man. I. Methodological development https://bit.ly/3d0Qgm4 Introdução à análise do movimento humano: descrição e aplicação dos métodos de medição https://bit.ly/3d0cdBr Contextualização da biomecânica para a investigação do movimento: fundamentos, métodos e aplicações para análise da técnica esportiva https://bit.ly/2Q3Kabm A biomecânica em Educação Física e esporte https://bit.ly/329XOg5 20 21 Referências AMADIO, A. C. et al. Introdução à análise do movimento humano: descrição e aplicação dos métodos de medição. Revista Brasileira de Fisioterapia, v. 3, n. 2, p. 41-54, 1999. AMADIO, A. C.; SERRÃO, J. C. Contextualização da biomecânica para a investigação do movimento: fundamentos, métodos e aplicações para análise da técnica esportiva. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 21, p. 61-85, 2007. HALL, S. Biomecânica básica. 7. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. (e-book) KOMI, P. V. et al. In vivo registration of Achilles tendon forces in man. I. Methodological development. International Journal of Sports Medicine, Stuttgart, v. 8, p. 3-8, 1987. KONRAD, P. The ABC of EMG: a practical introduction to kinesiological electromyography. Scottsdale: Noraxon INC., 2005. MCGINNIS, P. M. Biomecânica do esporte e exercício. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015. (e-book) MILIONI, F. Associações entre índices fisiológicos e fadiga neuromuscular com padrões de deslocamento e desempenhodo chute de finalização no futsal. Dis- sertação (Mestrado em Ciências da Motricidade) – Instituto de Biociências, UNESP, Rio Claro, 2014. SUDA, E. Y.; CANTUÁRIA, A. L.; SACCO, I. C. N. Mudanças no padrão temporal da EMG de músculos do tornozelo e pé pré e pós-aterrissagem em jogadores de voleibol com instabilidade funcional. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, v. 14, n. 4, p. 341-347, 2008. 21
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