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HISTÓRIA DAS RELIGIÕES Valter Borges dos Santos Crenças indígenas no Brasil Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar as bases teológicas das principais crenças indígenas no Brasil. Reconhecer a influência do sincretismo religioso cristão nas crenças indígenas no Brasil. Definir as crenças indígenas presentes no Brasil contemporâneo. Introdução Os primeiros habitantes dessa terra chamada Brasil foram os indígenas, que aqui estavam quando os europeus aportaram com suas navegações e seu ímpeto colonizador. Esses mesmos europeus, confundindo os nativos com os habitantes das Índias, denominaram-nos “índios”, povo que tinha, e segue tendo, vasta e variada religiosidade. Esses povos, em pleno século XXI, continuam sofrendo pelas mesmas razões dos tempos coloniais: expropriação de terras, corpos e mentes. É urgente, entre muitos outros esforços que precisam ser feitos, entender e preservar as populações, culturas e religiosidades indígenas com base em compreensão, respeito e tolerância. Neste capítulo, portanto, você vai conhecer as bases teológicas das principais crenças indígenas no Brasil e a influência que o sincretismo religioso cristão produziu nessas crenças de forma violenta, equivocada e etnocentrista. Além disso, você vai ver as crenças indígenas presentes atualmente no país e a necessidade de valorizá-las, deixando para trás todo e qualquer preconceito que as possa estigmatizar. 1 Teologia das crenças indígenas pré-colonial Marginalizadas, as religiões das sociedades indígenas não são encontradas entre as maiores religiões do mundo (LARAIA, 2005), como o são o cristia- nismo, o judaísmo, o islamismo, o budismo, o xintoísmo, o confucionismo e o hinduísmo, para ilustrar apenas com alguns exemplos. Estigmatizadas como religiões de culturas selvagens dado o pensamento etnocêntrico dos europeus na época da colonização, a ótica de enxergar as religiões de sociedades indí- genas prevaleceu por séculos, chegando à contemporaneidade. No Brasil, essa intolerância com as religiões indígenas retrata a violência histórica contra as populações ameríndias principalmente por conta das distintas compreensões de mundo — indígena e europeia — quanto ao uso da terra, carregadas do sentido de sacralidade na cosmologia indígena, não compreendida pelo branco europeu imperialista católico e colonizador. Conforme Rodrigues (1994), existiam dois grandes troncos linguísticos no Brasil — Tupi e Macro-Jê — e, ainda, outras 19 famílias linguísticas: Aikará, Arawá, Arúak, Guaikuru, Iranxe, Jabuti, Kanoê, Karib, Katukina, Koazá, Máku, Makú, Mura, Nanambikwára, Pano, Trumái, Tikúna, Tukano, Txapakúra e Yanomami. No litoral brasileiro, conforme Vainfas (2014), estavam os grupos nativos do tronco Tupi, como os caetés, potiguares, tabajaras, tamoios, tupinambás, tupiniquins, entre outros. No interior do país, estavam os tapuias, denominação dada pelos Tupi aos não Tupi (que não falavam a mesma língua), similar a “bárbaro”, na língua tupi. Os nativos tapuias viviam em número reduzido no litoral e falavam as línguas do tronco Macro-Jê. Tupi-tapuias foi o binômio que os europeus encontraram para denominar os nativos ameríndios, como já mencionado, sendo um reducionismo de toda diversidade de tribos e línguas ameríndias. Os Tupi, segundo Darcy Ribeiro (1995), eram povos guerreiros que se instalaram na costa litorânea do Brasil, local antes ocupado por inúmeros outros povos indígenas. Eles eram dominadores de imensa área territorial, “[...] tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, ante suas nascentes” (RIBEIRO, 1995, p. 29). Não se poderiam configurar como uma nação dada as múltiplas tribos que falavam um mesmo tronco linguístico, mas que se desdobravam em dialetos que se partiam e faziam nascer novas tribos, dessa forma, afastando uns dos outros. Sua organização, portanto, era caracterizada pela descentralização e pela emancipação, a ponto de guerrearem entre si, conforme indica Ribeiro (1995). Embora caçadores e coletores, davam os primeiros passos para a revo- lução agrícola, cultivando o milho, a batata-doce, o feijão, o amendoim, o abacaxi, o mamão, o guaraná, entre outros — destaca-se, nesse contexto, o desenvolvimento do cultivo adequado da mandioca, tornando-a comestível. Além disso, buscavam na pesca e na caça o complemento de sua alimentação, Crenças indígenas no Brasil2 dando regularidade e, assim, sobrevivência às tribos ameríndias. Todos eram imbuídos à produção alimentar, com exceção excepcionalíssima dos líderes religiosos e chefes guerreiros (RIBEIRO, 1995). Os Tupi moravam em aldeias formadas por malocas que abrigavam de- zenas de famílias, comportando cerca de 100 a 200 moradores (VAINFAS, 2014). “As aldeias Tupi eram compostas de cabanas coletivas em torno de um pátio central, cercadas de uma paliçada de madeira” (CYMBALISTA, 2011, documento on-line). As famílias eram compostas por chefe, esposas e filhos, parentes e cativos de guerra. Dormiam em redes tecidas pelas mulheres, que cuidavam da casa e preparavam o cauim, enquanto os homens abriam clareiras para plantio, caçavam e pescavam. Para compreender a cosmologia, as crenças, os símbolos e os ritos religiosos ameríndios, é preciso entender que não há separação entre o cotidiano dessa população e sua religiosidade. Aliás, a própria concretude da vida ameríndia está diretamente relacionada às suas crenças, que não eram escritas, mas transmitidas oralmente. Parte essencial dessas crenças está ligada à sacrali- dade da terra e, por isso, sua luta até hoje para continuar em suas terras de origem. Assim como Laraia (2005), pretendemos abordar aqui, a partir dos Tupi-Guarani, uma expressão religiosa que permita ao leitor compreender as principais crenças existentes entre os ameríndios brasileiros. Por não compreender a cultura Tupi, os europeus atribuíam narrativas reducionistas acerca dos ameríndios, em que “[...] o sistema colonial inventou discursivamente um índio genérico, selvagem, antropófago que anda nu e que não produz conhecimento” (NEVES, 2009, documento on-line). Diziam que os ameríndios não tinham fé, lei e rei (religião, legislação e Estado, res- pectivamente), o que é muito significativo no imaginário europeu acerca dos ameríndios, que não percebia essas características sofisticadas de organização social indígena. Os ameríndios tinham fé (nos ancestrais míticos e nas forças da natureza), lei (com regras de parentesco transmitidas oralmente) e Estado — não na forma europeia centralizada, mas descentralizada (grandes guerreiros eram chefes poderosos, liderando, inclusive, malocas e aldeias). Na cosmologia Tupi, há ênfase na guerra, na antropofagia, na figura do xamã (pajé) e na esperançosa busca da “terra sem males”, pautados no profetismo. Segundo Brandão (1990, p. 54), os Guarani eram, antes da colonização, profetas errantes, vindos do Sul, “[...] em busca sem fim da Terra Sem Mal”. Nômades, ocuparam grande parte da América, espalhados em uma área aproximada de 350 mil km2, em uma quantidade significativa de aproximadamente 1,5 milhão de ameríndios Guarani, que tiveram, depois das conquistas lusitanas, que lutar pela 3Crenças indígenas no Brasil preservação de seu modo de vida de modo uniforme por um imenso território que ia da Bacia da Prata ao Amazonas, em distâncias de mais de quatro mil quilômetros. “Os Tupi-Guarani apresentam a situação inversa: tribos, situadas a milhares de quilômetros uma das outras, vivem do mesmo modo, praticam os mesmos rituais, falam a mesma língua” (CLASTRES, 1978a, p. 58). O temo nandé rekó designa religião, segundo Brandão (1990), ou seja, o modo de vida que os diversos subgrupos Guarani lutavam para preservar, o que, por sua vez, está relacionado à sua identidade. O seu modo de ser, assumido e proclamado, está ligadoa um contínuo sistema ancestral de crenças que interliga o processo histórico com o cotidiano da vida dos ameríndios Guarani. Brandão (1990) alerta que, por conta do nomadismo, por mais que se espalhem e formem novos dialetos e adquiram características específicas, esse fio condutor denominado nandé rekó permeia toda a prática Guarani em forma de religião. Para os Guarani, há um lugar intermediário (Yváraquy) entre a superfície da Terra (Yvy-Yvíkatú) e o céu (Yvá, Yvága, Yvánga) — não especificamente um céu cristão. Yváraquy é o local onde moram vários deuses e espíritos que ali habitam, alocados em vários substratos superpostos. “Entre os dois lugares extremos, no Yváraquy, estão os deuses e os espíritos que amiúde se comunicam com os vivos e que podem ser benéficos ou perigosos” (BRANDÃO, 1990, p. 59). Na cosmologia de alguns subgrupos Kayowá, Mbyá e Ñandeva “[...] existe um deus supremo, um criador indiscutível do mundo terreno, sua ordem e a totalidade dos seus habitantes” (BRANDÃO, 1990, p. 60). Esse ser é deno- minado Ñame Ramõi Papá, que, embora supremo, não é o criador. Segundo a tradição, o embrião da Terra teve origem em um orvalho primitivo; assim, os deuses e os humanos surgiram de uma mesma gênese impessoal de todas as coisas — criadora —, e não criados por algum deus em especial. De acordo com Brandão (1990), há uma relação parental afetiva distante entre um casal de deuses supremos e os seres humanos, em que Ñané Ramói Papá é “nosso avô”, “nosso ancestral”, e ÑandéDjary, sua esposa, é traduzida como “nossa avó”. Além disso, há uma plêiade de deuses menores subalternos, instalados nas outras regiões celestiais, que servem a Ñamé Ramõi Papá: eles são os de Crenças indígenas no Brasil4 pequeno porte. Ñamé Ramõi tem, ainda, seus próprios deuses, que são “[...] filhos, e entre eles merece destaque a pessoa de Pai Kwara, o deus lunar” (BRANDÃO, 1990, p. 60). Pai Kwara estabelece relacionamentos com os seres humanos e dirige suas vidas terrenas, desde a região superior do centro do céu (Yvá, Yvága, Yvánga). Os Guarani e seus subgrupos são devotos de Pai Kwara, “[...] e a maior ventura que o devoto pode almejar é ver o semblante de Pai Kwara. O empenho com que se pratica o culto, dizem os índios, visa, em última instância, a obter essa graça" (SCHADEN, 1982, documento on-line). Na cosmologia Guarani, para além dessa característica humanizada da divindade, existem os deuses intermediários, mais ligados à natureza. Suas visitas oriundas do Yváraguy são perceptíveis quando ocorrem mudanças climáticas significativas. Eles são responsáveis pelas tempestades, por trovões, granizo e outros fenômenos da natureza. Mais longe do que o lugar dos deuses intermediários, existe uma espécie de região do alto habitada pelo povo dos Kayowá celestes, espíritos... estreita- mente ligados com os seres vivos da Terra. Esses Tavyterã eram sem morada definida e desconhecem o seu próprio destino (BRANDÃO, 1990, p. 61). A espiritualidade objetiva dos Guarani era introspectiva, pessoal e sub- jetiva, representada na expressão aqwjdjé — tornar-se próximo, purificar-se como o divino —, e se desenvolve até chegar ao paraíso, sem, contudo, ter a experiência da morte. A busca pela perfeição é sugerida pelo sagrado na crença Guarani, cuja religião não se portaria com característica utilitarista, mas na intimidade da relação com o sagrado, independente das necessidades humanas (BRANDÃO, 1990), embora exista um componente instintivo de sobrevivência interpretadas religiosamente. Pai Kwara e os deuses são pessoas corpóreas, vivas e atuantes e, conforme a crença dos Guarani, os corpos dos deuses são incorruptíveis, e toda sua obra, perfeita. Nesse sentido, os Guarani entendiam que poderiam ser eles mesmos como os deuses, em perfeição, não em poder. A ideia de território construída pelos Tupi remete às “[...] formas de relacio- namento entre os vivos e os mortos... ser uma chave de explicação eficaz para adentrar as territorialidades dos índios” (CYMBALISTA, 2011, documento on-line). Para Cymbalista (2011), vale ressaltar que os Tupi careciam de mais territó- rio, uma vez que o crescimento demográfico produzia guerras por mais espaço geográfico. Esse processo fazia com que se mudassem continuamente e, por conta disso, não davam grande significado aos locais de sepultamento, por exemplo. Os doentes, muitas vezes, deixados para morrer — distantes — não 5Crenças indígenas no Brasil eram sepultados, e, portanto, não havia culto fúnebre institucionalizado. Por conta disso, a morte em combate era celebrada, já que não havia necessidade de lidar com a corpo do morto. No entanto, havia rituais fúnebres entre os Tupinambás, que sepultavam seus mortos embrulhados em rede e os conduziam em um cortejo fúnebre até a sepultura, enquanto os parentes cavavam a cova. Ao sepultar, faziam-no com redes e com comida, pois acreditavam que as almas dos mortos têm fome e, depois de ir aos montes, voltavam para comer. Esse ritual demonstra uma simbologia importante na compreensão dos Tu- pinambás sobre a mobilidade. Conforme Cymbalista (2011, documento on-line) “[...] a rede não é apenas lugar de descanso. Ao mudar de território, os Tupi levavam as redes consigo. Não é o atributo do descanso cristão, mas o binômio repouso- -mobilidade que é levado ao túmulo”. Sobre a alimentação, assevera Cymbalista (2011, documento on-line) que “[...] a presença de alimento, apontada por Barleu e Gandavo, é também identificada pelo jesuíta Manuel da Nóbrega, que aponta os movimentos das ‘almas’ após a morte”. Somente os chefes eram honrados com oferendas; “[...] nesses casos (presentes na narrativa também a rede e os alimentos, além de outros apetrechos), o corpo não podia ter contato com a terra, e o túmulo incluía pertences que serviam a uma viagem pós-morte”, afirma Cymbalista (2011, documento on-line). Na cosmologia Tupinambá, os mortos não permaneciam no local da se- pultura, e havia o temor de que não se movessem; portanto, era comum que os entes perguntassem nas sepulturas se seus mortos já se haviam ido — o local do sepultamento, portanto, não era levado em conta. Dessa forma, na cosmologia Tupi, havia a crença na imortalidade das almas e de dois destinos/estados para elas: um, reservada aos valentes, era a terra dos antepassados, “[...] situada em região distante; e as dos covardes, que vagavam pela terra atormentada de Jeropari ou Anha, dimensão invisível da mesma terra que os vivos habitavam, pois estes eram também atormentados por Anha” (CYMBALISTA, 2011, documento on-line). Conforme Cymbalista (2011), a Terra, na cosmologia-escatologia Tupi, era tanto física e temporal quanto escatológica, e o tempo e o espaço são únicos: presente e futuro. Nessa compreensão, a direção da “terra sem mal” era mu- tável, orientada conforme os pajés, que recebiam mensagens dos espíritos e dos mortos dada sua capacidade de se comunicar com eles. A busca pela “terra sem mal” é a esperança que direciona as ações dos Guarani e o objetivo coletivo dessas populações, e até hoje permanece viva entre os Guarani. Segundo Metraux (1979), eles eram fortemente influenciados Crenças indígenas no Brasil6 pelas profecias dos xamãs — ou karaí — para a busca de uma época áurea futura, mas próxima. Suas ações os conduziam para a busca de uma terra além do oceano, onde ninguém morria, a “terra sem mal”. Esse não era apenas um lugar, mas, também, um tempo no qual cataclismas destruiriam a “terra má” do presente e a salvação seria alcançada apenas por aqueles que, nômades, marchassem em busca da “terra sem mal”. É fácil verificar o messianismo dos profetas guaranis, em que o movimento e o lugar da salvação é uma jornada em direção ao sagrado: a terra da salvação (BRANDÃO, 1990). Para alguns estudiosos, houve uma sacralização de dificuldades, expecta- tivas e esperanças, em função das necessidades reais que estavam presentes no cotidiano dessas comunidades e que adquiriram caráterde religiosidade na cosmologia guarani — principalmente no que tange à esperança da “terra sem mal”, “terra sem males” ou, ainda, “terra escondida”, uma vez que os primeiros significados estavam relacionados a uma busca ecológica de terri- tórios apropriados para a caça e a prática da agricultura. Para Hélène Clastres (1978b), havia um sentido de recusa da sociedade, em que os males advindos da coletividade (dominação por conta do trabalho e da lei) seriam substituídos pelo seu contrário: “[...] não é por acaso que as únicas atividades sociais des- tinadas a se manterem na terra sem mal são as festas de bebidas: essas festas são também, na sociedade, a expressão da contraordem, ao mesmo tempo, sem dúvida, que são o meio de controlá-la” (CLASTRES, 1978b, p. 68). Seria uma busca tribal, conforme Brandão (1990), de um lugar dos deuses, onde os Guarani poderiam ser eles mesmos, na busca desse horizonte utópico. Temos, portanto, um primeiro pensar religioso Tupi-Guarani que negava a sociedade como a possibilidade da “terra sem mal” imbricado com um simbo- lismo religioso que sai da materialidade e desloca para a imaterialidade uma possibilidade de vida para além da sociedade e da cultura, ou seja, um estado de natureza próprio dos deuses (BRANDÃO, 1990). Embora fosse uma terra/ estado de felicidade, os Tupi acreditavam que, na “terra sem mal”, havia uma realidade que não significava paz. A antropofagia A antropofagia era um ato ritual e, segundo Cymbalista (2011, documento on-line), não era uma ação desconhecida dos portugueses, porém, “[...] o tratamento do corpo como sepultura ideal era uma aberração. O ato an- tropofágico não escandalizava apenas em si, mas também como antítese a única morte aceitável, a da sepultura consagrada, que ajudava a compor a territorialidade cristã”. 7Crenças indígenas no Brasil Não tendo fins alimentares, a antropofagia era comum entre os tapuias Tarairius e tinha o sentido de piedade para com os mortos, pois eles entendiam que era indigno apodrecer sob o peso da terra. Vingança era a principal motivação dos Tupi-Guarani para o ritual da antropofagia, inclusive, sendo um elemento que estruturava toda a sociedade das aldeias. Assim, adentramos em mais uma característica imbricada com a antropofagia: a guerra. A guerra dos Tupis: “[...] não tinha objetivos de conquista, mas o de vingar os antepassados mortos pelos inimigos... [que] ...era elemento estruturador para a reprodução de sua cultura, fundada na própria ideia da vingança, elo entre presente, passado e futuro para os Tupi” (CYMBALISTA, 2011, documento on-line). A ideia de vingança acompanhava os Tupi desde seu nascimento até sua morte — não vingar os antepassados passava a atormentar os que estavam prestes a falecer. A vingança antropofágica dava coesão à aldeia; naturalizada e sacralizada, a antropofagia só tem sentido quando há compartilhamento com todos os membros da aldeia. Havia, portanto, entrelaçamento entre a guerra e a antropofagia. Segundo Cymbalista (2011), o ritual iniciava quando, em reunião, os principais líderes da aldeia decidiam guerrear contra outra aldeia inimiga com mediação dos pajés, que ouviam os antepassados para, então, posicionar-se diante de tal decisão. Após deliberação para a guerra, saíam, certos da vitória, em expedição contra as frentes inimigas. Convictos do êxito, travavam guerras em campos abertos ou nas aldeias inimigas com o objetivo de capturar e levar um prisioneiro, inteiro ou em partes, para a aldeia. Na impossibilidade de conduzi-lo, comiam o prisioneiro ali mesmo, no campo de batalha. Intrigante era o valor que se dava à honra, pois, mesmo que tivessem chances fugir da captura certa, não o faziam, pois morrer em batalha era honroso para o guerreiro (CYMBALISTA, 2011). Por essa honra, os prisioneiros se sentiam lisonjeados de serem comidos pelos inimigos, pois preferiam isso à morte natural, que significava morrer fedorento e comido por bichos. Assim, negavam ser resgatados pelos seus pares tribais. Quando o prisioneiro chegava à aldeia inimiga, era tratado com honras, embora fosse amarrado pelo pescoço. Recebia uma mulher, que cuidava dele durante o tempo que ficasse na aldeia, e, se tivesse filho com essa mulher, este também seria comido, conforme deliberação dos líderes da aldeia. As mulheres festejavam sua chegada e raspavam as sobrancelhas dos prisioneiros, enfeitando-os com penas. O Tupi matador não comia a carne, ficava em jejum, separado, iniciando um ritual específico, em que recebia um novo nome, que lhe dava prestígio. Recebia partes retiradas da cabeça do morto e era adornado por essas partes Crenças indígenas no Brasil8 (CYMBALISTA, 2011). Para não ser atormentado pelo morto, ficava em resguardo, e, nesse ato, deixava o cabelo crescer, e nisso também protegia a aldeia. Nessa lógica de renomeação-recolhimento, havia um significado de morte também para o guerreiro. Cymbalista (2011) destaca que o ato final do ritual é importantíssimo: faziam cisões nos corpos, e os guerreiros chegavam a gemer e gritar de dores. Em seguida, cortavam-nos com um dente de animal e, depois, com “[...] carvão moído e sumo de erva-moura com que eles esfregam as riscas ao travez, fazendo-as arreganhar e inchar, que é ainda maior tormento, e enquanto lhe saram as feridas que duram alguns dias” (CARDIM, 1980, p. 100). Após esse ritual de iniciação do guerreiro que matou pela primeira vez, ele estava apto para vingar mais vezes seus antepassados e, após isso, recebia mais incisões, que lhes eram honrosas. Vemos, portanto, que o imbricamento território-guerra-antropofagia era importante na religiosidade Tupi-Guarani. Se a posse dos territórios era im- portante para os cristãos por conta do sepultamento, no sentido de transmitir a memória coletiva, para os Tupi, “[...] a ideia de território construía-se sobretudo dissociando localidades específicas e a transmissão da memória coletiva” (CYMBALISTA, 2011, documento on-line). O território não era visto como agregação diante dos mortos e sua apropriação para sepultamento; ao con- trário, era motivo de repulsa. Tinha-se horror ao peso da sepultura, pois não ser comido pelo inimigo significava morrer na história, uma vez que o corpo do guerreiro matador era memória do morto. Os xamãs/pajés Os ameríndios têm, em sua estrutura religiosa, a fi gura do xamã, que, para Mircea Eliade (2002, p. 15), é o termo que defi ne o “[...]os termos xamã, medicine-man, feiticeiro e mago para designar certos indivíduos dotados de prestígio mágico- -religioso encontrados em todas as sociedades ‘primitivas’”. Esses especialistas religiosos, por meio do transe, faziam contato com as almas dos antepassados e com outros tipos de espíritos. Entre os Tupi, o xamã é denominado de pai’é (na língua tupi-guarani), que foi aportuguesado para “pajé”. Sua origem é contada de diversas formas dependendo da tribo, mas a hereditariedade é recorrente entre elas: “[...] somente podem ser xamãs os descendentes de um outro” (LARAIA, 2005, documento on-line). Após um processo inicial de descoberta — com variações tribais — ou seja, a identifi cação do potencial de um ameríndio em ter as capacidades e habilidades de se tornar um pajé, o indivíduo passa por um processo de aprendizado, segundo Laraia (2005). 9Crenças indígenas no Brasil Os pajés, na maior parte de seu tempo, dedicam-se a curar seus pares. Para tanto, têm que, em sua prática, elaborar rituais para controlar os espíritos que provocam nos ameríndios doenças e morte. Conforme Wagley (1961 apud LARAIA, 2005), as ações dos pajés nos momentos de cura são realizadas, preferencialmente, à noite, quando todos podem estar reunidos. O ritual de cura é acompanhado de cantos com ritmos feito pelo próprio pajé, com pés e com chacoalho (maracá). Nesse ritmo, ele dança e dá a volta em torno do doente. Após esse momento, o pajé deixa o maracá em mãos de seu ajudante, passa a tragar um cigarro de folhas de fumo e solta a fumaça nocorpo do doente e em suas mãos. O movimento do seu corpo, após repetidas tragadas, finalmente demonstra que ele recebeu um espírito. A partir daí, seu comportamento se torna característico, pois está em transe, sendo comum que exprese movimentos específicos de animais cujo espírito recebeu — em alguns casos, vem tão forte que o pajé desmaia. A cura acontece enquanto o pajé está em transe: “É comum que o xamã chupe uma parte do corpo do paciente e, em seguida, mostre um pequeno objeto, que teria retirado de dentro do mesmo. No caso tenetehara, relatado acima, o pajé escondia esse objeto dentro da mão para fazê-lo desaparecer depois” (LARAIA, 2005, documento on-line). Os pajés demonstravam seu prestígio nos rituais coletivos, em que rea- lizavam cerimônias que duravam horas e envolviam todos na aldeia. Desde o nascer até o pôr do sol, eles ficavam na aldeia, em torno dessa cerimônia teatral, em que o pajé entrava em uma tocaia (cabana) colocada no centro da aldeia, com uma porta. Essa tocaia representava a caverna “buraco de pedra” onde vivem os karuara. Nesse ritual, realizado nas luas cheias, os homens eram pintados e dançavam no início e no fim do dia. Não podiam adentrar na floresta e nem sair para caçar ou pescar, muito menos tomar banho. O pajé atraía os seres espirituais (karuara) e, também, “[...] as almas dos antepassados das pessoas presentes no ritual” (LARAIA, 2005, documento on-line). Eram, portanto, essas as bases teológicas das crenças indígenas antes de os portugueses aportarem nesse território tão vasto, onde viviam as populações Tupi e Tapuia, que, pautadas na sacralização de suas ações de sobrevivência, guiaram sua religiosidade — o fio condutor de suas vivências. A seguir, você verá como essas crenças ameríndias foram se modificando por conta do sincretismo sofrido em função da imposição europeia e que não foi somente cristão, mas também uma forma de resistência de uma civilização que, embora sacralizasse seu cotidiano, interpretava corretamente sua luta para a sobrevi- vência diante do inimigo vindo do além-mar. Crenças indígenas no Brasil10 2 A influência do sincretismo religioso cristão O cristianismo hegemônico do século XVI, distante da religiosidade popular, sendo uma religião de Estado, ao pretender ampliar seus domínios religio- sos, deixou a alteridade e o altruísmo de seu nascedouro no século I. Em sua inauguração, a cristandade, desde Constantino, tornou-se majoritária e excluiu todas as outras expressões religiosas que não fossem o cristianismo, relegando-as à marginalidade. Na disputa religiosa que ocorreu com a irrupção do protestantismo na Europa, o cristianismo católico que chegou ao “novo velho” mundo ameríndio era uma religião imperialista, exclusivista, domi- nante e proselitista. Em associação com o Estado português, a Igreja Católica encontrou um terreno fértil para propagar o Reino de Deus. Em contato com uma sociedade de matriz religiosa diferente da sua, os colonizadores não lograram reconhecê-la com uma sociedade com cultura, costumes e leis próprias, inclusive religiosas. Os europeus submeteram os ameríndios a um processo de desumanização, desqualificaram-nos e os tra- taram “[...] como selvagens, destituídos de razão, uma tábua rasa” (RIBEIRO, 2020, documento on-line). Submetidos à nova religiosidade branca europeia, os ameríndios foram batizados em nome de Jesus e “[...] tornaram-se dóceis à exploração do sistema colonizador, que lhe impôs a religião europeia e negaram-lhes o direito à própria cultura” (RIBEIRO, 2020, documento on-line). O cristianismo que emerge da sociedade medieval tem, em seu bojo, a construção de uma sociedade perfeita cujo modelo é imposto por ela mesma como o único modo de vida universalmente aceitável — por isso, todas as outras expressões religiosas são consideradas imperfeitas. Pautados na ide- ologia da verdade obrigatória, os jesuítas passam a anunciar o cristianismo, constrangendo as pessoas a aderirem a essa prática. As violências pelas quais os povos ameríndios passaram foram realizadas com o uso das mesmas armas e estratégias de guerra pelas quais os espanhóis reconquistaram suas terras dos muçulmanos. Portanto, houve uma invasão europeia em territórios ameríndios que foram dominados pela força ou pela “diplomacia” — violência não física — religiosa jesuíta, que surrupiava suas terras, culturas, mentes e almas. Os ameríndios, assim, foram manipulados pelos interesses da coroa portuguesa e da cruz católica. Sem diálogo, o encontro religioso foi traumático para os ameríndios, catapul- tando um genocídio que exterminou mais de 70 milhões deles em todo o novo velho continente. No Brasil, mais de cinco milhões foram assassinados pela máquina repressora colonial, pela imposição da cultura ibérica sobre a ameríndia, cuja religião nativa estava sofrendo uma tentativa de ser substituída pela religião ibérica. 11Crenças indígenas no Brasil Como consequência, a forte influência do catolicismo exerceu uma profunda transformação na religiosidade ameríndia, fazendo-a cada vez mais cristã (RI- BEIRO, 2020). Embora dominante, houve um certo grau de sincretismo, em que elementos religiosos ameríndios foram preservados e a religiosidade católica reinterpretada, e vice-versa. O processo de aculturação advindo daí subjugou os nativos, que, enfraquecidos, passaram a colaborar com os invasores. Dessa forma, sofreram a destituição de sua cultura e valores religiosos e assimilaram elementos religiosos da cultura dominante. Esse impacto representou uma violenta desconstrução cultural, e os nativos tiveram de reinventar sua expres- são religiosa. Essa nova religião deveria considerar o impacto da dominação, sem, contudo, eliminar suas raízes religiosas tradicionais (RIBEIRO, 2020). O sincretismo foi a forma de subterfúgio para a manutenção, sob nova rou- pagem, da religiosidade ameríndia. Dessa forma, “[...] silenciosamente, fizeram uma amálgama dos elementos da fé cristã com os de suas próprias crenças, reinterpretando-os e renomeando seus deuses. Com isso, estabeleceram uma relação pacífica com os missionários e colonizadores ibéricos, sem, contudo, adotar concretamente sua religião” (RIBEIRO, 2020, documento on-line). Assim, a força do catolicismo no novo velho mundo se deu pelas bases populares — o catolicismo popular —, e não pela religião hegemônica oficial. Isso ocorreu devido às múltiplas reinterpretações do sagrado em terras brasi- leiras, com herança da religiosidade ameríndia, conforme Ribeiro (2020). Esse processo de reconstrução religiosa — de assimilação seletiva dos elementos católicos pelos ameríndios — permitiu reequacionar os sentidos religiosos ameríndios a despeito da imposição cristã, assimilando o que era importante para a preservação de sua religiosidade e desprezando elementos que não faziam sentido aos nativos, em uma reconstrução menos invasiva de sua cosmologia. Agnolin (2006) sugere que a tradução dos dogmas doutrinais católicos para os ameríndios que os cristãos empreenderam teve a dura tarefa de traduzir uma religião oficial a uma cultura que dela não foi participante. Tratou-se de um processo de negociação de interpretações e reinterpretações constantes, em uma tentativa da construção do sentido do outro diferente de si e, em reciprocidade, que foi desigual. As convergências e divergências dos elementos religiosos marcaram a se- letividade pelas quais os ameríndios reconstruíram sua religiosidade à luz dos novos marcos relacionais de dominação colonial europeia, cujo lugar de fala era o de “vencidos”, e não o de “vencedores”. Esse processo traumático se transfor- mou em hibridismo cultural, ou mestiço, da religiosidade católico-ameríndia. Porém, o instituto do trabalho escravo retalhou esse espaço híbrido, de forma a permitir uma reconstrução desigual e traumática. Considerados os “negros da Crenças indígenas no Brasil12 terra” — uma referência nativa aos negros de Angola —, milhões dos nativos foram escravizadose mortos em um dos maiores genocídios da história. Essa redução das culturas ameríndias trouxe excessos — que foram com- batidos — e ausências — toleradas pelos cristãos: “Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de ‘costumes abomináveis’ ou ‘maus costumes’ (cauinagem, guerra, antropofagia, sexualidade desordenada, pinturas, danças, etc.) que conotava um estágio... inferior de humanidade” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). O combate dos redutores jesuítas aos Karaíbas — instituição central da cultura Tupi — era corriqueiro. Padre Vieira denunciava, em suas cartas, a dificuldade em converter os ameríndios, que tinham costumes reprováveis (aos olhos do padre), inapropriados, como a poligamia, as guerras, a vingança dos inimigos, tomar novos nomes, título de honra, sua independência e insu- bordinação. Como forma de cristianizar os ameríndios, submetiam-nos a um processo de “[...] domínio político como policiamento endereçado a modificar os (excessos dos) costumes indígenas” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Embora reconhecessem a alma dos ameríndios, paralelamente, desprezavam a memória, a vontade e a religião ameríndia. O encontro cultural europeu-ameríndio se deu pela presença de uma de- monologia reducionista da cultura religiosa ameríndia. Assim, criou-se uma rede linguística interpretativa dos símbolos, costumes e tradição ameríndia. Esse processo se deu por meio da tradução linguística, em paralelo com a tradução conceitual, em um processo de reinterpretação da religião Tupi- -Guarani (AGNOLIN, 2006). Com a intenção de construir uma cultura colonial, o alvo era ressignificar os elementos religiosos indígenas. Demonizar preceitos indígenas significava gerenciar/dominar a língua nativa para depois reinterpretá-la à forma ocidenta- lizada dos religiosos europeus. Nesse processo, a língua e a demonologia foram instrumentalizadas para imergir no mundo da cultura ameríndia. Retraduzir a cultura ameríndia e reinterpretá-la com o mal tinha o objetivo de construir uma nova cultura: a colonial — caracterizada pelo reducionismo da religiosidade cultural ameríndia. Segundo Agnolin (2006, documento on-line), antes de catequizar, era preciso reduzir a cultura e, para isso, dominar a língua, “[...] estruturando uma rede interpretativa que lhe permitisse, de algum modo, ler e interpretar as práticas culturais indígenas”. Dessa forma, era preciso construir “[...] uma rede redutora que encontrava ao redor do ‘demoníaco’ a estrutura eficaz e cômoda para poder, mesmo que fosse para condenar, abrir- -se ao conhecimento dessas práticas” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). 13Crenças indígenas no Brasil A sutil iniciação desse processo se deu na elaboração do conceito de “bom selvagem”. Essa descrição dos ameríndios pelos europeus foi uma tentativa de suavizar, por meio da linguagem, o comportamento ameríndio com a dissociação de sua religiosidade. Caracterizar o ameríndio positivamente na sua simplicidade e docilidade constrói, nele, a inocência, a ingenuidade e a simplicidade que deu possibilidade de “fecundar sua alma virgem” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Assim, ao separar o indivíduo de sua cultura, demonizando-a, o religioso cristão estrategicamente deixa aberta a possibilidade de imprimir, na mente/ alma ameríndia, o cristianismo, em um processo de excessos e ausências. Porém, a possibilidade de inscrever religiosamente na tábula rasa dos ame- ríndios estava ameaçada, pois não se encontravam “[...] valores (religiosos) comuns que deviam fundamentar a comparação. Essa ausência constituía- -se como a impossibilidade de realizar uma autêntica conversão/tradução por parte dos missionários” (AGNOLIN, 2006, documento on-line) — esse vazio comparativo de interpretações religiosas comuns se encontrava até na associação da ação demoníaca aos preceitos ameríndios. A solução foi afastá- -los de sua cosmologia e fundar uma nova cosmologia paralela nas reduções jesuítas. Agnolin (2006, documento on-line) aponta que a solução encontrada era “[...] encontrar uma gramática das culturas outras que permitisse lê-las: tratava-se de instaurar, finalmente, uma possibilidade de comunicação que unicamente podia permitir uma (de alguma forma) conversão”. Assim, “[...] verifica-se uma peculiar determinação linguística da própria conversão” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Destaca-se, nesse contexto, a mediação comunicativa da religiosidade ocidental frente à abertura do mundo simbólico ameríndio na possibilidade de tradução da sua própria linguagem, agora feita pelos religiosos europeus. Assim, por exemplo, expressões como igrejas, monastérios e padres ficam sem significado algum aos nativos, de modo que era preciso evitar certos conceitos e procurar sentidos comuns em outros. Evangelizar seria, portanto, comunicar-se de forma intercultural, de maneira a refundar a religiosidade ameríndia em uma troca para ambas religiosidades. Nesse processo, a personificação de seres espirituais era fundamental para ir limpando o panteão de deuses nativos, em que o pecado seria a personificação do demônio. Dessa forma, o novo mundo deixa de ser a imagem do paraíso e se torna imagem infernal; por isso, o aldeamento jesuítico passava a ser o local civilizatório e evangelizador, sendo uma criação necessária para os propósitos religiosos colonizadores. “Tratava-se, portanto, de realizar, antes, uma forma de policiamento a fim de poder, só sucessivamente, realizar uma verdadeira Crenças indígenas no Brasil14 conversão. A catequese oferecia-se, justa e peculiarmente, como o elo do processo entre as duas instâncias” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Portanto, para reduzir os excessos dos costumes da religiosidade ameríndia, era importante civilizar antes de converter, e isso ocorria nas pequenas “cida- des de Deus”. Assim, era preciso afastar os ameríndios de sua vida itinerante costumeira, “[...] mas, também e sobretudo, exercer, através da educação dos corpos e das almas, o ‘bom governo’ e ‘conduzi-los’, ‘reduzi-los’ de fato, para a humanidade civil” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Associar a figura do demônio ao pecado e fundamentar sua ação nas crenças indígenas, de forma a torná-las inaceitáveis e, portanto, falsas, era a próxima tarefa. A linguagem agora se torna idolatria por ausência de correla- ção, na cultura ameríndia, de ídolos, templos e sacerdotes. O fundamento da ação diabólica, portanto, estava na linguagem manifestadas nas cerimônias ameríndias, em que os pajés e caraíbas eram considerados feiticeiros para os missionários ou, mesmo, emissários do demônio. Dessa forma, suas cerimônias eram tidas como demoníacas, más. O monopólio da santidade se deu no confronto entre missionários e caraíbas e, nesse confronto, os religiosos europeus identificaram na língua ameríndia um sinal de bestialidade. Sob a ótica dos missionários, na ausência das letras F, L e R na língua ameríndia foi interpretada sua selvageria — seriam indivíduos incivi- lizados e irreligiosos, impedindo, na própria linguagem, a “fé”, a “lei” e o “rei”. Assim, há uma identificação — feita pelos religiosos europeus — en- tre vernáculo e ação demoníaca. “E se, na literatura jesuítica, a língua será ‘doutrinada’ nos catecismos, ela é ‘caracterizada’, por exemplo, nos ‘autos’” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). O padre Anchieta, por exemplo, con- siderava que o vocabulário ameríndio era reduto reducionista dos seus maus costumes, reservando à língua tupi a voz do demônio. Porém, seu domínio pelos europeus poderia configurar-se doutrinado e doutrinador, ou seja, apropriar-se dos repertórios ameríndios estrategicamente para ressignificá-los ao modo católico, instrumentalizando-os a favor dos religiosos europeus. Em decorrência de uma descontextualização cultural do culto dos mortos, as ações consideradas maus hábitos são, por exemplo: a embriaguez pelo cauim, tintura e dança, inspiração do fumo, guerra e antropofagia e adultério (a poligamia).Assim, demonizava-se os rituais tupi, e elementos como a comida, a bebida, as práticas sexuais e o fumo aparecem como representativos desses maus hábitos. Nesse sentido, vale ressaltar, em autos (gênero literário), esses hábitos falam (são expressos) na língua tupi. A conversão dos ameríndios, considerados os gentios, na linguagem europeia católica, se daria pela sujeição, pois “[...] soltos no espaço de uma animalidade onde não agiriam como sujeitos 15Crenças indígenas no Brasil (políticos), os índios americanos tornavam-se ‘triste e vil gentio’ enquanto subjugados por um Demônio que lhes ensinara os abomináveis costumes” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Ao reduzir a língua nativa e dominar sua gramática, os europeus a doutri- navam conforme sua lógica religiosa. Portanto, urgia a apropriação de reper- tórios ameríndio para ressignificar sua cosmologia, em que se “[...] impunha a tradução do nome de Deus como Tupã ou a do demônio com vários nomes de ‘espíritos da floresta’ e, no teatro de Anchieta, até mesmo com nomes de personagens históricos que teriam combatido contra os portugueses” (AG- NOLIN, 2006, documento on-line). Dessa forma, a transformação das crenças ameríndias veio em forma de imposição de uma aculturação católico-tupi que fez perder a dinâmica própria ameríndia, distanciando-a da unidade que dava manutenção ao estado tribal de sua religiosidade. Assim, ao mal, reino de Anhanga, era-lhe atribuído a pecha de ser contra Deus. Na outra ponta, estava o bem, no qual Tupã é visto com virtudes salvíficas, criadoras (totalmente contrárias à lógica do mito original ameríndio). Esse foi o processo de formação de uma mitologia paralela, imposta, que a realidade colonizadora poderia proporcionar. Dessa forma, criou-se um imaginário novo, em que estavam estritamente ligadas essas duas dimensões da realidade: mito original e mito paralelo. Isso se constituiu como um hibridismo cultural: “[...] foi, portanto, no plano informal e pragmático dos gestos e nos interstícios e mediações de cada universo de crenças que se foi operando a possível fusão católico-tupinambá” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Assim, ameríndios e jesuítas, construíam, juntos, os fios da santidade colonial pautados em uma “demonologia”. Para efeitos desse empreendimento, era necessária a constituição de um ritual paralelo e transversal que perpassasse as duas religiosidades. Considerando que a cosmologia ameríndia tem, no seu ritual, o instrumento de intervenção na realidade cotidiana capaz de produzir mudanças, foi, portanto, “[...] nesse quadro ritual (indígena) que se organizou a absorção de elementos cristãos... [plasmando-se]... em relação às estruturas rituais dentro das quais inseriam-se para adquirir algum sentido... [em um] deslocamento [de] uma chave de leitura mitológica para uma ritual” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Assim, preserva-se o mito e mudam-se os rituais como instrumentos de intervenção e transformação para uma nova organização mitológica. Daí, portanto, a identificação de Tupã — ameríndio — com a primeira pessoa da trindade cristã (Deus Pai), em um estratégico rascunho paralelo entre as religiosidades ameríndias e cristãs. Desse modo, também aconteceu com a associação do demônio (católico) com Anhanga (tupi). Igualmente, o termo Crenças indígenas no Brasil16 pecado foi reinterpretado como Anhanga (mal) antes de se impor como an- gaipaba. Portanto, Anhanga deveria ser evitado, pois fazia os ameríndios de vítimas a partir do pecado da manipulação ritualística feita por ele. Desse modo, o encontro entre ameríndios e europeus se dá na ritualidade paralela e transversal das religiosidades coloniais, em que a importância dos sacramentos se impõe. Tida como uma relação e manipulação do sagrado, os sacramentos eram ritualmente determinados pelo mistério. Para evitar as heresias, houve uma decodificação doutrinária dos rituais sacramentais católicos, cuja “[...] admi- nistração caracterizava-se, enquanto tal, tanto na tradução (linguística e sacra- mental) dos catecismos, quanto na normatização (dos gestos, dos momentos e dos significados) dos sacramentos” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Entretanto, a rigidez sacramental impedia um diálogo com os rituais ameríndios e, dessa forma, uma negociação entre perspectivas culturais diferentes foi necessária. Sem um paralelo do sentido sacramental na linguagem ameríndia, houve uma sobreposição de significados na construção da religiosidade para- lela, em que o sacramento está relacionado às características medicinais. Assim, “[...] nas introduções catequéticas jesuítas em tupi, a primeira característica através da qual foram definidos os sacramentos é a de ‘remédio’, ‘medicina’ (possanga, mosanga)” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). Embora o Padre Vincencio traduzisse sacramento por sinal visível da graça invisível (kariri). Assim, a definição de sacramento-remédio da alma (angá) permitiu associar o pecado com doença — no tupi, mara’ar, adoecer. O momento ritual, assim, era uma “[...] peculiar dimensão do encontro cultural, antes de uma administração dos sacramentos por parte dos missionários, verifica-se uma recíproca administração nos rituais sacramentais dos diferentes paradigmas culturais (indígenas e missionários)” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). O espaço de encontro entre as religiosidades ameríndias e cristãs na sua vertente portuguesa do catolicismo se dava no momento dos rituais sacramentais, em que o sacramento, era: “[...] o espaço privilegiado de um hibridismo cultural que se encontrava na necessidade de reescrever essa relação (ritual) com o sagrado, segundo uma nova estrutura, muitas vezes compartilhada — consciente ou inconsciente- mente — por missionários e indígenas” (AGNOLIN, 2006, documento on-line). “A que lugares e sentidos geográficos e simbólicos conduzia e conduz a reli- gião dos Guarani?” questiona Brandão (1990, p. 65). Para ele, o direcionamento do lugar e a direção da terra buscada eram guiados por meio das mensagens magnificamente expressadas pelos profetas — Karai. Os seus discursos, mescla- dos por cantos e danças, eram decodificados pelos próprios profetas e decifrados por eles mesmos, indicando um lugar geográfico para a “terra sem mal”, lugar 17Crenças indígenas no Brasil que estava ao leste e direcionava para o Atlântico do Brasil, independentemente do que dizia o profeta de sua época. Portanto, uma das características mais sofisticadas da cultura guarani é sua resistência firme contra as modificações de seus sistemas simbólicos e de seus códigos, que produzem a organização do modo de vida tribal dos antepassados. Yvy Maraney era o lugar relacionado à sua concretude terrena, um espaço geográfico, um terreno, tocável, talvez conhecido pelos ancestrais; possivelmente, a floresta em geral ou algum local de mata não tocada pelos homens e nem dominada pelo homem branco. Porém, esse espaço de retorno que possibilitava a vida sem males deixou de ser uma busca geográfica devido à impossibilidade do nomadismo por conta do reducionismo provocado pelas missões, que subordinaram a vida dos nativos ao trabalho agrícola, fixando-os nessas reduções jesuítas. Para os nativos, a atividade agrícola era desqualificadora, pois se viam caçadores, e o local para desenvolver suas ações seria a floresta atlântica, onde, em uma viagem “[...] solidária e ascética, tribal e nômade [poderiam] atingir ao mesmo tempo o Kandire, a perfeição de si mesmo através do domínio do rito da palavra e da dança e através do controle ascético do corpo e do espírito, e Yvy Maraney, o lugar paraíso isento do mal” (BRANDÃO, 1990:66). Assim, a dupla interpretação da cosmologia guarani pode ser sintetizada como: a coletiva busca geográfica da “terra sem mal”, física, terrena, na na- tureza “[...] lugar aquém da cultura, terra dos ancestrais, da reprodução sem fim do modo de ser do caçador guarani” (BRANDÃO, 1990, p. 70); a busca pela essência “[...]por um simbolismo religioso que desloca para a imaterialidade de um viver para além da cultura, logo, para um estado de natureza próprio dos deuses, o lugar da vida que o coração do homem e os desejos da tribo devem querer procurar sem tréguas” (BRANDÃO, 1990, p. 70). Nessas interpretações, não há a espera do salvador (redentor), caraterística do messianismo, mas há o profetismo dos pajés, que indicavam a busca, e não a espera. De qualquer forma, há, aqui, a representação dos anseios religiosos dos ameríndios: o retorno a um lugar e a um modo de vida que expurgue o que atrapalha os ameríndios de viver seu Ñandé rekó, como pessoas da floresta, distante da agricultura e do poder opressor, de um lado, e, por outro, a rejeição de toda espécie de sociedade, pois, ao atingir o status de imortais (Kandire), tornam-se próximos aos deuses, vivendo o agora. Conforme Brandão (1990, p. 70) “[...] precisam não habitar uma outra sociedade, mas viver já para além de qualquer uma”. Crenças indígenas no Brasil18 A cosmologia dos primeiros Guarani busca, na “terra sem mal”, a negação da sociedade. Já o pensamento atual guarani, pela impossibilidade de mobi- lidade aos moldes antigos, aceita a superação da sociedade, com a chegada de um lugar, no devir futuro, como um estado, de características próprias, do passado almejado pelos ameríndios. A busca, então, torna-se uma espera e se inicia com uma ascese, que busca corresponder à vivência atual, ao modo de vida das tribos antigas. Porém, no contraste que se estabelece, do ideal da “terra sem mal”, com a sociedade que se vive, no plano individual, essa dessemelhança também se configura no contraste entre o Guarani e o homem branco, no estabelecimento social dessas duas culturas, que convivem em conflito. Segundo Brandão (1990), nessa trama de identificações, viajar perde seu sentido mitológico, uma vez que os Guarani não conseguem desvencilhar-se de ser pessoas ambivalentes. Desse modo, “[...] também a tribo não tem mais como se livrar de converter-se subalternamente aos desígnios do mal. Isto é, pensar e agir como os brancos que, submetendo-os ao seu poder econômico e político, submetem as normas do Ñandé rekó aos seus próprios preceitos e interesses” (BRANDÃO, 1990, p. 71). É essa resistência surpreendente que caracteriza os Guarani, que, a despeito de todas as limitações impostas pelo homem branco, relutam e resistem em integrar-se aos conjuntos de valores de outras religiosidades (BRANDÃO, 1990). Os Guarani, assim, persistem na preservação de sua tradição para manter acesa a chama da palavra profética de uma sempre e permanente busca pela “terra sem mal”, seja ela física ou um estado de plenitude espiritual. A con- vivência subalterna com o opressor (homem branco) é impeditiva, pessoal e coletivamente, para a busca do Kandire. Dessa forma, um deslocamento de sentidos é inevitável na cosmologia guarani. Nesse contexto, vislumbra-se o necessário deslocamento do nomadismo pri- mitivo de busca geográfica para um “[...] plano etéreo de realização religiosa, fora ou além dos limites do mundo terreno pelo menos próximo e conhecido” (BRANDÃO, 1990, p. 74) e, de novo, mais um deslocamento da “[...] procura de uma terra fora do mundo e da sociedade ... [para] ... uma busca interior do retorno ascético ao modo de ser dos antigos, ainda que isto tenha que ser feito aqui mesmo, entre os brancos e sob o seu poder. Ou por isto mesmo” (BRANDÃO, 1990, p. 74). O profetismo prenuncia, agora, o não alcance de um lugar geográfico perfeito, seguro e em que se pudesse escapar do mal e da morte e anuncia que o paraíso é aqui e, por isso, sem a presença opressora, do homem branco, nas suas crenças e nos seus modos de vida. Para a implantação desse paraíso, haveria uma destruição, por meio do mal e da morte, de toda a terra, ou seja, de todas as sociedades, (BRANDÃO, 1990). 19Crenças indígenas no Brasil 3 Hibridismo religioso: crenças ameríndias- cristãs Depois dos impactos sofridos pela colonização, os ameríndios, com o hibridismo cultural e religioso, aprenderam a conviver com a nova realidade estabelecida pela chegada do homem branco opressor. Esse convívio se deu por meio do apar- theid indígena promovido pelos europeus, que alocaram os índios entre aqueles civilizados, da missão, e, aqueles selvagens, da fl oresta. Essa classifi cação se vê também na contemporaneidade, na lógica integrados-livres, que são disputados, por católicos e evangélicos, no direito de convertê-los. Submetidos a uma vida sedentária, por meio dos princípios cristãos, ao trabalho agrícola e artesanal e reeducados para os cânticos ofi ciais eclesiásticos, eles preservam, até hoje, sua “[...] cultura religiosa tribal em sentido duplo” (BRANDÃO, 1990, p. 74-75). Esses sentidos são pautados pela persistência na estratégia de resistência à imposição de novos sistemas simbólicos e pela subsistência da homogeneidade religiosa, com suas atualizações, inclusive. As conversões dos indígenas aos vários segmentos do cristianismo atual “[...] tem apenas facilitado a possibili- dade de preservação do sistema de crenças e cultos essenciais da ‘religião dos antigos’, [cujo] fundamento, vimos, do ñandé rekó que traça o próprio perfil de uma identidade guarani” (BRANDÃO, 1990, p. 75). É em contato com os brancos que, estrategicamente, conseguem descanso, ao se deixarem identificar como cristãos, dividindo-se entre católicos e evangélicos. Os indígenas, então, reconhecem-se no sentido ser-ter de uma dupla religiosidade, em que são da religião guarani e têm uma adesão à religião cristã. Depois das missões jesuítas, os ameríndios, ao se aproximarem das ci- dades e do modo de vida dos brancos, passaram — de forma relativamente passiva — a permitir-se aculturar religiosamente, mesclando e incorporando crenças, cultos e identidades à religiosidade ameríndia. Dessa forma, foram incorporados pelos indígenas vários: “[...] elementos míticos e mesmo éticos de um cristianismo inicialmente catequético e, depois, francamente popularizado, como o dos camponeses da Argentina, Brasil, Bolívia e, principalmente, do Paraguai, com quem os Guarani estreitaram relações de troca de serviços e sentidos religiosos” (BRANDÃO, 1990, p. 76). No entanto, uma parte deles voltou às florestas e procurou preservar sua cultura e religião dos aspectos da cultura branca europeia. Disso, resulta a diversidade das crenças indígenas, ora sincretizadas com os cristãos, ora com poucos resquícios do cristianismo e ora com raros fragmentos da religiosidade europeia. Nesse emaranhado de interpretações cosmológicas, houve a incor- Crenças indígenas no Brasil20 poração “[...] do batismo, a adoção do caixão cristão para a viagem final do corpo dos mortos e a representação de heróis da tribo através de esculturas de madeira [...]” (BRANDÃO, 1990, p. 76). Nesse contexto, há, também, a emergência, na estrutura dos significados cristãos, do surgimento de heróis indígenas. Porém, mesmo diante de tantos distanciamentos e aproximações com o cristianismo, o que se vê é a persistência de “[...] uma estrutura simbólica e uma vida religiosa coletiva sem dúvida alguma Guarani” (BRANDÃO, 1990, p. 77). A forma como alguns grupos guarani lidam com a questão religiosa se dá no deslocamento duplo ser-ter. Nessa lógica, a religião, na dimensão pública, manifesta-se à luz da adesão à vertente cristã que os acolheu religiosamente. Entretanto, na dimensão familiar-pessoal, nunca abandonam sua tradição, seus deuses e seus mitos tribais — exceção que se dá quando são instados a aderir ao cristianismo evangélicos pentecostal, em que a adesão significa transformação da identidade religiosa, conforme Brandão (1990). A estratégia guarani permite a incorporação, à sua simbologia religiosa, de partes de crenças do catolicismo do campo. Porém, são sincretizadas de forma rearranjada, tornando-se “[...] elementos de crenças e cultos de medicina popular, de magia caseira, de explicações parciaisde relações entre brancos e índios... no seu todo, o Guarani vive o seu sistema original de crenças como religião e faz ser magia o que acrescenta a ela do cristianismo, sob a forma do catolicismo popular” (BRANDÃO, 1990, p. 78). Evidentemente, em alguns casos, há um processo de desintegração religiosa guarani quando não conseguem preservar, em seus grupos e aldeias, o mínimo da essência dos princípios das experiências da vida coletiva entre si, com seus símbolos e significados guarani. Quando isso ocorre, são submetidos a uma vida regida pelos critérios dos homens brancos. Os casamentos mistos, a nova constituição familiar — que passa da forma de clãs tribais para a família nuclear — e a submissão ao tempo dos rituais ao trabalho produtivo movido pelos interesses econômicos modificam a estrutura do ñandé rekó (BRANDÃO, 1990, p. 79). De acordo com Brandão (1990), são três as etapas desiguais e que impelem respostas diferentes dadas pelos grupos indígenas. A primeira é aquela em que, apesar dos contatos seculares e de subordinação ao modo de vida do homem branco, conseguem preservar e manter intacta a religião dos ancestrais — seja aderindo a novas religiosidades, no sistema ser-ter, ou incorporando elementos do cristianismo popular em forma de magia medicinal. Nesses casos, identifica-se que a religião guarani não se sincretiza, mas incorpora, seja com o catolicismo, com o espiritismo ou com as religiões de matrizes africanas. 21Crenças indígenas no Brasil Ela toma fragmentos e relega às esferas marginais, mantendo intacto o núcleo duro da essência da religiosidade ancestral guarani. “Não seria propriamente um exagero dizer que, como vimos antes, a religião do conquistador torna-se, na cultura do índio, a sua magia” (BRANDÃO, 1990, p. 80). Em uma segunda vertente, existe, efetivamente, uma miscigenação dos conteúdos religiosos da religião dos ancestrais, com os vários segmentos do cristianismo e outras religiões com as quais mantiveram contato. Nesse sentido, a religião guarani incorpora, e se deixa incorporar por elementos centrais de suas crenças, modificando-se à medida da capacidade de integração do cris- tianismo e à sua própria estrutura religiosa (BRANDÃO, 1990). Finalmente, há o contrário das situações anteriores, em que o cristianismo desconstrói a religiosidade Guarani e, impondo-se como verdade cultural, “[...] realiza entre os índios a dissolução de personagens, símbolos e códigos da religião Guarani à sua lógica religiosa. Esse momento de perda Guarani da religião tribal equivale... a uma correspondente reorganização da vida coletiva da tribo segundo os padrões do modo de ser indígena” (BRANDÃO, 1990, p. 81). Em suma, Brandão (1990) demonstra que o sincretismo não se deu em uma relação de igual intercâmbio de trocas simbólicas, que se amalgamaram, mas, sim, de situações do cotidiano, de estratégias, alianças e conflitos de expro- priação e apropriação, tanto de elementos quanto de simbologias religiosas, que criam “[...] novas articulações de e entre sistemas integrados de símbolos e significados religiosos. Processos de subordinação e domínio... recriações lógicas e possibilidades de recriação de rearranjos dentro de uma mesma religião, ou na fronteira entre ela e uma outra” (BRANDÃO, 1990, p. 81). Nesse jogo de resistências e subordinação, as aproximações e os distan- ciamentos da religiosidade guarani e da religiosidade cristã se reinventam de variadas formas: ora preservando sua identidade e marginalizando acréscimos, ora reordenando o próprio logos que permite, à religiosidade guarani, pensar a si e se ver no seu próprio sistema religioso. Nesse caso, “[...] se a ideia de sincretismo é ainda válida, podemos falar aqui de uma subordinação do cristianismo a uma lógica sincretizante indígena” (BRANDÃO, 1990, p. 82). Somente em uma terceira situação poder-se-ia considerar o que, tradicio- nalmente, denominamos como sincretismo, o que ocorre na situação em que “[...] uma cultura já cristianizada — isto é, cujo sistema religioso de crença e vida já é o cristão — deixa-se impregnar de elementos nativos e se realiza com a mescla deles, quando não gera, de uma possível e discutível combinação de duas ou mais religiões, uma outra, diversa de todas” (BRANDÃO, 1990, p. 82). Crenças indígenas no Brasil22 AGNOLIN, A. Jesuítas e Tupi: o encontro sacramental e ritual dos séculos XVI-XVII. Revista de História, n. 154, 2006. Disponível em: http://historia.fflch.usp.br/sites/historia.fflch.usp.br/files/ JesuitaseTupi_0.pdf. Acesso em: 28 ago. 2020. BRANDÃO, C. R. Os Guarani: índios do Sul-religião, resistência e adaptação. Estudos Avançados, v. 4, n. 10, 1990. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8581. Acesso em: 28 ago. 2020. CARDIM, F. Tratados da terra e gente do Brasil. 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