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Gramática APRESENTAÇÃO Um importante equívoco a ser desfeito sobre o conceito de gramática é que ela seria apenas o conjunto de normas de uma língua que dita o que é certo e o que é errado. Não há apenas um tipo de gramática: há gramáticas prescritivas e normativas. Além disso, cada sujeito tem uma gramática internalizada. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai conhecer um pouco mais sobre a gramática e como as diferentes concepções de língua se relacionam aos diferentes tipo de gramática. Além disso, você vai ver como, na prática, os fenômenos de linguagem são interpretados de maneiras distintas, de acordo com essas diferentes concepções. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Relacionar as diferentes concepções de língua às diferentes concepções de gramática.• Reconhecer as características das gramáticas prescritiva, descritiva e internalizada.• Interpretar fenômenos de linguagem de acordo com as diferentes linhas teóricas.• INFOGRÁFICO As concepções de gramática internalizada, normativa e descritiva não têm origem na atualidade. É possível estabelecer aproximações com as primeiras gramáticas. No Infográfico a seguir, veja algumas aproximações possíveis. CONTEÚDO DO LIVRO A gramática pode ser tanto um conjunto de regras internalizadas sobre uma língua quanto um livro que, segundo Perini (2005, p. 52), tenta "representar esse conhecimento através de abstrações, tais como regras, classes, princípios, definições, etc". A gramática que, segundo o autor, "todos levamos impressa em nosso cérebro", é a gramática internalizada. Por outro lado, a tentativa de sistematizar esse conhecimento, por meio de regras denominadas de norma culta, corresponde aos objetivos de uma gramática do tipo normativa. A gramática descritiva, por sua vez, é aquela que busca explicar os fenômenos da linguagem, com base na descrição do uso dos falantes, pela observação dessas ocorrências e pelas impossibilidades levantadas. No capítulo Gramática, da obra Introdução à Linguística, aprofunde seus conhecimentos sobre cada uma dessas gramáticas, bem como compreenda quais concepções de língua acompanham e sustentam essas gramáticas. Boa leitura. INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA Debbie Mello Noble Gramática Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Relacionar as diferentes concepções de língua às diferentes concep- ções de gramática. Reconhecer as características das gramáticas prescritiva, descritiva e internalizada. Interpretar fenômenos de linguagem de acordo com as diferentes linhas teóricas. Introdução O termo “gramática” pode ter diferentes significados dependendo da área da linguística que se propõe a estudá-la. Pode ser considerada um conjunto de regularidades que compõem uma língua, as regras da lín- gua, o que é certo ou errado, de uma maneira mais prescritiva. Pode ser também o estudo da língua em uso pelos falantes, de uma maneira mais descritiva. Sem contar a gramática internalizada, que é o sistema de regras da língua que o falante domina, inato a ele. Além disso, para as duas primeiras concepções — prescritiva e descritiva —, há a obra (nor- malmente um livro) que as registra e também é chamada de gramática. O conceito de gramática é, portanto, amplo. Neste capítulo, você vai conferir os diferentes conceitos de língua e de gramática que determinam suas abordagens, passando também pelo conceito de gramaticalização. Também vai estudar as características das gramáticas prescritiva, descritiva e internalizada, além de conhecer os fenômenos da linguagem segundo diferentes abordagens teóricas. Gramática: conceito e história A primeira gramática da língua portuguesa foi publicada em 1536 por Fernão de Oliveira, em Lisboa. A Grammatica da lingoagem portuguesa não seguia o modelo das gramáticas que até aquele momento eram produzidas, apesar de ter um caráter normativo, que buscava “[…] propor uma norma para o português do século XVI” (PINTO, 2004, documento on-line). Tinha também um caráter linguístico e cultural, aludindo ao modo de falar dos portugueses daquele período. A obra era composta de 50 capítulos, contendo normas gramaticais, fonéticas, lexicológicas e, sobretudo, estudos etimológicos e sobre a sintaxe. Tinha o objetivo de ser um primeiro registro da língua portuguesa, a fim de perpetuá-la. Naquela época, Portugal estava buscando por uma “autonomia nacional”. A gramática, então, seria uma forma de afirmar a identidade do povo português, da nação portuguesa (PINTO, 2004). Acesse o link a seguir e conheça a Grammatica da lingoagem portuguesa. https://qrgo.page.link/3nN8N Hoje, o conceito de gramática é muito amplo e debatido por teóricos, que possuem distintas concepções sobre ela. É impossível falar de gramática sem pensar em língua e sem trazer à tona a necessária relação entre elas. As diferentes formas como a língua é concebida apontam para diferentes concepções de gramática. Uma das acepções de gramática é aquela que designa um livro, que possui como assunto “[…] uma apresentação de elementos constitutivos de uma língua” (FARACO; VIEIRA, 2016, p. 293). No entanto, os próprios autores alertam para a abrangência do termo e da definição, refletindo sobre a ne- cessidade de se manter aberta a pergunta o que é gramática? Isso ocorre porque a língua é um objeto de estudo muito amplo e complexo, que suscita diferentes reflexões e enfoques. Uma gramática é um livro que, como tal, tem autoria e, consequentemente, contém as percepções e os estudos de um determinado autor, sendo produzido conforme as necessidades do momento histórico em que se insere. Não há, portanto, apenas uma possibilidade de ver a língua, quer dizer, não há um único conjunto de regras que a define. Gramática2 Para estudar a língua, é necessário estudar o seu funcionamento. Segundo Nasi (2007), a forma como as diferentes correntes teóricas dos estudos da lin- guagem estudam os processos de fala e de escrita demonstra suas concepções de língua e de gramática. Gramatização A gramatização das línguas foi abordada por Sylvain Auroux no livro A revolução tecnológica da gramatização, e é um processo importante para o estudo da gramática. A gramatização no mundo ocidental, que se dá a partir do Renascimento na Europa, é equivalente a uma revolução tecnológica, como o surgimento da escrita. Esse processo “[…] conduz a descrever e a instru- mentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (AUROUX, 1992, p. 65). Assim como o dicionário é, ainda hoje, um instrumento de consulta sobre o certo e o errado na língua, a gramática também funciona como um instrumento linguístico, uma vez que “[…] se torna simultaneamente uma técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de descrevê-las” (AUROUX, 1992, p. 36). Da gramaticalização, partem as noções de língua fluida e língua ima- ginária, propostas por Orlandi e Souza (1988). Refletindo sobre a oposição entre a língua “do mundo” — aquela falada no dia a dia, língua da interação dos sujeitos — as autoras propuseram a ideia de língua fluida, ou seja, a língua que não cabe em um conjunto de normas e, portanto, não é passível de normatização. Por outro lado, a língua imaginária seria aquela sistematizada pelos estudiosos da linguagem, que, a partir de certos artefatos, torna-se uma língua da norma, um instrumento de coerção e de poder por parte daqueles que possuem o domínio de seus saberes. Essas propostas são relevantes para que você reflita, enquanto professor de língua em formação, sobre a necessidade de estudar o funcionamento da língua e sobre o papel das gramáticas, evitando abordá-las como um amontoado de regras passíveis de serem apreendidas. 3Gramática Gramáticas prescritiva, descritiva e internalizada Como pode ser observado, as concepções delíngua e gramática andam juntas. Por isso, é essencial que você compreenda as diferenças entre as formas como a língua é compreendida em cada teoria para entender os tipos de gramática que delas derivam. A seguir, você vai conferir a distinção entre as gramáticas prescritiva (ou normativa), descritiva e internalizada, ao mesmo tempo em que vai conhecer os entendimentos sobre a língua que as sustentam. Gramática prescritiva (normativa) A gramática prescritiva, ou normativa, é aquela a que você provavelmente foi exposto ao longo de sua escolarização. Isso porque, em geral, é essa a aborda- gem usada para refl etir sobre a linguística na disciplina de língua portuguesa. No entanto, essa gramática pressupõe uma visão de língua homogênea, ou seja, um modelo de língua que todo falante de uma língua deve seguir para estar de acordo com suas regras. A gramática que acompanha essa visão de língua é a prescritiva, ou normativa, aquela que dita normas e regras de um certo modelo de língua como se ele fosse o único possível. Conforme Franchi (2006, p. 16), alguns professores consideram que a gra- mática seria “[…] o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores. Dizer que alguém sabe gramática significa dizer que esse alguém conhece essas normas e as domina”. É nesse ponto que reside o maior problema da abordagem prescritiva da gramática na escola. Ao considerá-la o padrão de excelência, a escola leva seus alunos a perseguirem esse modelo ao longo da vida escolar. Porém, se esse é o único ponto de vista gramatical ao qual se tem acesso, passa-se a acreditar que todo o resto que produzimos como falantes em nosso dia a dia está errado. Nesse caso, o aluno passa a vida acreditando que fala errado, que a língua é difícil, e duvida de sua competência internalizada. Prioriza-se, nessa abordagem, a norma- -padrão e, portanto, deixa-se de lado as variações da língua, que são muitas e dependem de inúmeros fatores — sociais, econômicos, geográficos, entre outros. Isso não quer dizer que a gramática normativa não tenha valor escolar, mas o ensino de língua baseado somente na norma-padrão não pode desconsiderar as variações e uma profunda reflexão linguística que passa, inclusive, pelas regras da gramática normativa. Entra em jogo, nesse ponto, outra questão: muitos professores afirmam compreender a variação linguística, mas consideram Gramática4 que ela deve ficar apenas no âmbito da fala, sendo a escrita normatizada pela gramática da norma-padrão. No entanto, os exemplos presentes em Franchi (2006) mostram que a escrita escolar também não pode ser somente pautada nos padrões de certo e errado da gramática normativa. Franchi (2006) apresenta dois textos de alunos de 3º ano do ensino fundamental e faz algumas análises das percepções de professores sobre eles. Veja um trecho de cada um dos textos a seguir. Texto 1 Era uma vez um passarinho que vivia em uma árvore na frente da casa de João. E o João temtava pegalo todos os dias mas não comsiguia. Até que um dia ele temtou muito, mas muito, que ele acabou catando o passarinho. Texto 2 Lá na fazenda do meu avô tem cavalos, galinha, pato, vaca, boi e porcos. Quando eu vou lá, eu ando de cavalo e tomo leite de vaca. Os animais gostam muito de carinho e amor. Eu gosto muito dos animais. No primeiro exemplo, os professores consultados consideraram o texto “um de- sastre”, ressaltando os erros como a troca de letras (m por n nas palavras destacadas) e o desconhecimento das regras da língua. O Texto 2, por seu turno, não tem erros gramaticais consideráveis e foi considerado um texto “limpinho, em bom português” (FRANCHI, 2006). Nesse exemplo, a concepção de gramática dos professores citados por Franchi (2006) está associada à gramática normativa, que segue uma concepção de língua dos escritores e de uma linguagem que seria mais culta e bela do que a falada no dia a dia. O “bom português”, no entanto, como mostra Franchi (2006), nem sempre garante um texto criativo. No Texto 1, apesar dos desvios gramaticais, é possível notar uma maior criatividade e, no Texto 2, uma maior contenção. Além disso, Franchi (2006, p. 26) ressalta que o texto 1 não deixa de mostrar um “[…] razoável grau de amadurecimento linguístico e textual”, considerando a capacidade do aluno escritor do Texto 1 de construir uma série de operações complexas com a língua, como em “Era uma vez um passarinho que vivia em uma árvore na frente da casa de João”, enquanto o Texto 2 tem estruturas bastante simples como “Eu gosto muito dos animais”. 5Gramática Para Franchi (2006), portanto, esses exemplos evidenciam que o aluno do Texto 1 demonstra um “controle” da língua muito superior, de certa forma, ao demonstrado pelo aluno do Texto 2. Gramática descritiva A proposta da gramática descritiva tem como base o princípio da observação dos fenômenos linguísticos. Ao contrário da gramática prescritiva, ela não tem o intuito de prescrever regras, de ditar como a língua deve ser, mas sim de observar e descrever como a língua tem sido utilizada pelos falantes. Para Ferraz e Olivan (2011), a gramática descritiva é um conjunto de regras que descrevem os fatos da língua. Analisando e descrevendo a língua real que os falantes utilizam, é possível observar quais fenômenos linguísticos ocorrem, como a língua se estrutura, o que é aceitável ou não em termos de língua. Essas regras ajudam a observar o que é gramatical e o que é agramatical. Gramatical é aquilo que atende “[…] às regras da língua segundo determinada variedade linguística” (FERRAZ; OLIVAN, 2011, p. 2236). Em outras palavras, gramaticais são aquelas estruturas e frases comuns à comunidade de falantes. Veja o exemplo a seguir. Todos os motoristas entraram em greve. Os motoristas todos entraram em greve. Os motoristas entraram todos em greve. *Os todos motoristas entraram em greve. *Os motoristas entraram em todos greve. O sinal * significa que a frase é agramatical. Observe o posicionamento linear dos elementos que constituem as sentenças. É possível notar que nem toda posição é possível do ponto de vista da gramática internalizada do falante. Não se trata, portanto, de prescrever o que é certo ou errado, mas de observar que certas construções sintáticas não fazem sentido para os falantes; é agramatical (PERINI, 2005). É necessário eleger certos fatos da língua para observar, já que seria im- possível dar conta da totalidade de fatos da língua. Estudam-se, então, os fatos Gramática6 sintáticos, aqueles de particular interesse à teoria, uma vez que a sintaxe é a parte da gramática de organização da língua. Na descrição de um fato sintá- tico, como a posição linear que os elementos de uma frase ocupam, como no exemplo dado, é possível observar que a língua permite certos posicionamentos e não outros. Com o exemplo, nota-se que a gramática descritiva considera o falante, sua intuição, sua língua internalizada, isto é, as possibilidades e impossibilidades da língua por meio de fatos que são bastante intuitivos. O autor explica que: “[…] os falantes têm muitas vezes intuições bem definidas […] em outros casos as intuições não são claras, e é preciso lançar mão de outros recursos, como tentar observar o comportamento sintático de uma sequência em outras frases” (PERINI, 2005, p. 45). Toda gramática descritiva, portanto, pressupõe hipóteses e observação e, consequentemente, constitui-se como resultado de uma pesquisa, argumen- tando e justificando o caminho tomado. Por isso, do ponto de vista descritivo, não é possível estudar gramática sem, ao mesmo tempo, fazer gramática, no sentido de refletir, investigar e pensar nos fenômenos da língua. Além disso, o trabalho de descrever uma língua inclui a descrição dos seus aspectos formais somados aos significados que eles veiculam. Primeiro, é realizada a descrição do aspecto formal e do semântico separadamente,posteriormente realizando-se um confronto entre ambos (PERINI, 2005). No Brasil, a norma considerada oficial está associada à língua escrita, não à língua que é falada no país. No entanto, a estrutura da língua que escrevemos é muito diferente da estrutura da língua que falamos e, por isso, é muito mais difícil refletir sobre a língua. Há, portanto, uma disjunção que não é observada pela gramática normativa e que se reflete na forma como o brasileiro escreve. Tentamos reproduzir, na escrita, as regras e os padrões de um modelo estabelecido por uma língua diferente daquela que falamos no dia a dia. Considerando isso, haveria duas línguas no Brasil, cada qual com seu domínio próprio. Este fato tem origem não somente na colonização, mas também na tentativa da coroa portuguesa de unificar as línguas e tornar o português a única língua oficial e obrigatória nas escolas. Isso era feito por meio de decretos, ou seja, por uma via não natural. Com essa unificação forçada, não se aplica a gramática internalizada e a linguagem inata do falante brasileiro, mas sim a tentativa de escrever nos padrões de uma língua forjada como materna (PERINI, 2001). 7Gramática O gerativismo e a gramática internalizada A gramática internalizada é entendida como aquela que todos os falantes possuem de maneira inata. Essa seria uma predisposição genética que permite não somente a aquisição da linguagem, mas também o desenvolvimento de uma lógica interna de organização da língua. De acordo com essa perspectiva, a linguagem humana, expressa por meio de uma língua natural, é entendida como um fenômeno cognitivo. A língua é tomada como produto da mente humana, e é este entendimento que sustenta a teoria sobre a gramática internalizada. Cognição é o termo científico utilizado para fazer referência ao conjunto das inteligên- cias humanas. Segundo Kenedy (2013), o termo diz respeito aos fenômenos mentais que têm relação com a aquisição, o armazenamento, a ativação e o uso do conhecimento. Segundo Kenedy (2013), a linguagem é um conhecimento implícito, incons- ciente no conjunto da cognição humana. Um indivíduo é capaz de produzir uma infinidade de sentenças na sua língua materna sem se dar conta de que está realizando isso, ou seja, ocorre de maneira inconsciente. Por isso, a linguagem é entendida como um conhecimento tácito que os indivíduos possuem. Essa concepção está ancorada no gerativismo, que tem como expoente prin- cipal o cientista Noam Chomsky. Surge nos anos de 1950, quando o Chomsky, então professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, formula suas ideias sobre a “natureza mental da linguagem humana”. A teoria propunha a descrição dos procedimentos mentais que “[…] geram as estruturas da linguagem, como as palavras, as frases e os discursos”, sendo as frases organizadas por meio de regras inconscientes na mente dos indivíduos (KENEDY, 2013, p. 17). Além disso, a teoria gerativista entende que as línguas naturais não só são produto da mente humana, mas também possuem uma exterioridade; elas só se tornam úteis como línguas naturais se puderem ser compartilhadas pelos indivíduos. Para que uma língua exista, seu léxico precisa ser compartilhado pelos falantes. Assim, pode-se dizer que há duas dimensões da língua, as quais foram denominadas por Chomsky de língua-I (interna, individual e intensional), ou Gramática8 seja, a língua enquanto faculdade cognitiva, e língua-E (externa e extensional), a língua como código linguístico. Os gerativistas se interessam por estudar a língua-E para descrever os traços do léxico das línguas (fonemas, morfemas, palavras) utilizados na formação das representações mentais. Sendo a língua-E entendida como um produto sócio-histórico, ela está sujeita “[…] às contingências da experiência cultural humana” (KENEDY, 2013, p. 33). Assim, os gerativistas entenderam que a mente humana é capaz de adquirir essas informações da língua-E para produzir e compreender expressões linguísticas no cotidiano da Língua-I. É a língua-I, portanto, o principal objeto de estudo da concepção gerativista, uma vez que esta faz parte do sistema cognitivo do indivíduo. O estudo da língua-I é o estudo da capacidade humana de colocar em prática os códigos da língua, como fonemas, morfemas, palavras, frases. Entendendo que a língua-I está presente em todos os indivíduos, Chomsky percebeu que, em vez de buscar uma descrição de cada língua separadamente, era possível investigar as características universais das línguas. Publicou, então, em 1965, Aspectos da teoria da sintaxe, em que explica os conceitos de competência e desempenho. Competência linguística é o que permite ao falante “[…] produzir o conjunto de sentenças de sua língua”. É por meio de sua capacidade inata de linguagem que o falante desenvolve essa competência. Por outro lado, o desempenho é o comportamento linguístico, são os fatores externos ou não linguísticos, de ordens variadas, como inserção social, crenças, interlocutores, e também o diferente “[…] funcionamento dos mecanismos psicológicos e fisiológicos envolvidos na produção dos enunciados” (PETTER, 2015, p. 11). Isso quer dizer que o a competência está internalizada no falante, enquanto o desempenho depende de outros fatores. Por exemplo, você sabe falar em português, tem a competência linguística. Porém, está apresentando um trabalho a uma turma cheia de alunos e começa a esquecer palavras e gaguejar; seu desempenho está afetado pelo nervosismo. A teoria desenvolvida por Chomsky para explicar e analisar os dados foi denominada de gramática gerativa, uma vez que, segundo ela, o falante pode, por meio de um limitado número de regras internas que possui, gerar um infinito número de sentenças. A gramática gerativa, portanto, tem por objetivo explicar e analisar as frases potencialmente realizáveis em uma língua, cuja 9Gramática intuição do falante é o “[…] critério da gramaticalidade ou agramaticalidade da frase” (PETTER, 2015, p. 11). Observe a frase a seguir. Problema este muito seu difícil é. Neste exemplo, como falante, você consegue perceber que algo não está bem na construção da sentença. Você não precisa ser um especialista em linguística para perceber isso. É esse estranhamento que Chomsky entende como a intuição do falante. Por menos escolarizado que o falante seja, ele é capaz de organizar os elementos linguísticos que compõem esta sentença, tornando-a novamente gramatical. Uma sequência de palavras é agramatical quando, segundo Petter (2015), não respeita as regras gramaticais internalizadas pelo falante. Um falante pode utilizar sua competência inata para organizar o exemplo acima como: Este seu problema é muito difícil. Todo falante de uma língua natural possui competência para refletir sobre a língua. Dessa forma, na escola, o professor de língua pode fazer valer essa competência para proporcionar uma verdadeira reflexão sobre o objeto de estudo da sua disciplina, utilizando-se de situações e exemplos do cotidiano dos alunos. No entanto, não é isso que ocorre geralmente nas aulas de língua. Interpretando fenômenos de linguagem A linguagem é um fenômeno que permeia nossa vida social em diversos aspectos e é de fundamental importância em nosso dia a dia. É necessário, então, entender a gramática como uma forma de refl etir sobre o funcionamento da linguagem (e não somente como um amontoado de regras em um livro). Dessa forma, estudar gramática na escola é importante, porque proporciona um espaço de reflexão e pesquisa, podendo inclusive promover a autonomia, a criticidade e a curiosidade científica dos alunos (PERINI, 2005). Uma vez que se passe a enxergar a gramática como meio de observar e interpretar os fenômenos da linguagem que ocorrem no cotidiano, o sentido e a significação do ensino de gramática tomam outro rumo e abrem caminho para diversas oportunidades. No exemplo a seguir, é possível realizar uma interpretação muito simples de um fato da linguagem.Gramática10 O poema Pronominais, de Oswald de Andrade (1972), demonstra a diferença entre a gramática descritiva e a prescritiva (normativa). Observe a seguir. Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro. O primeiro verso traz a colocação pronominal de acordo com a norma-padrão, que sustenta a interpretação dos fenômenos da linguagem pela gramática normativa (Dê-me). Já a língua do último verso representa a língua que sustenta a descrição da gramática descritiva, que observa os fenômenos da linguagem pelo uso dos falantes (Me dá). Isso quer dizer que, apesar de a gramática prescritiva orientar a não começar frases com pronomes oblíquos, a construção da última frase “Me dá um cigarro” é completamente possível, pois é compreendida pelos falantes da língua e utilizada cotidianamente. Essa possibilidade está relacionada à gramática internalizada dos falantes, uma vez que a língua materna, ou seja, aquela que o brasileiro possui inter- nalizada, permite essa construção. De acordo com Perini (2001, p. 13), todo falante “[…] possui um conhe- cimento implícito, altamente elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse conhecimento”. No Brasil, especialmente, em virtude da distinção muito evidente entre a língua brasileira falada e a norma culta do português, é possível perceber que esse conhecimento da língua é algo naturalmente adquirido, e não fruto da instrução escolar. A interpretação dos fenômenos linguísticos pode se dar em vários aspectos, que compõem as gramáticas de uma língua: a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a semântica. No entanto, esses aspectos não esgotam as possibilidades de interpretação, pois ainda se poderia observar a história das formas linguísticas, por exemplo. Esses aspectos “[…] constituem o estudo da estrutura interna 11Gramática de uma língua — aquilo que a distingue das outras línguas do mundo, e que não decorre diretamente de condições da vida social ou do conhecimento do mundo” (PERINI, 2005, p. 50). Refletindo sobre os fenômenos linguísticos Na escola, como você já viu anteriormente, não ocorre efetivamente uma interpretação dos fenômenos da linguagem. Na maioria das vezes, na aula de língua portuguesa, ensinam-se regras que não fazem sentido para o aluno. Utilizam-se exemplos de grandes escritores, que geralmente não são do século XXI. Portanto, o aluno tem acesso a uma gramática e a exemplos de língua que não condizem com a língua conhecida por ele. Muito diferente do que muitos estudiosos defendem ser o ideal: […] o que deveríamos esperar do aluno ingressante no ensino médio é a ca- pacidade de lidar com os aspectos da língua de modo reflexivo, sendo apto a selecionar os recursos linguísticos e a estrutura gramatical adequados às atividades de produção oral e escrita (FERRAZ; OLIVAN, 2011, p. 2238). Em relação a essa postura reflexiva de língua e às concepções de gramática que você viu até o momento, considere o fenômeno da regência verbal. A regência é a relação entre um elemento, considerado regente e outro que o complementa. De acordo com a gramática prescritiva, o verbo é o regente, e seus complementos variam de acordo com o que o verbo “pede”. De acordo com a gramática descri- tiva, a regência de um verbo é variável, dependendo do contexto. Além disso, varia segundo ao longo do tempo, “[…] porque os falantes passam a interpretar de forma diferente o significado dos verbos” (TENÓRIO; SILVA; SILVA, 2018, p. 233). Considera-se, portanto, a gramática internalizada do falante. O verbo “assistir”, por exemplo, tem na regência uma importante variação da significação. Que variações são essas e como as diferentes linhas teóricas sobre gramática a interpretam? No ponto de vista da gramática normativa, o verbo “assistir” é apresentado como transitivo indireto ou direto, observando-se a mudança de sentido conforme a mudança na transitividade. Observe a seguir: 1. verbo transitivo indireto: aponta para o sentido de presenciar, ver, observar; rege a preposição a e não admite a substituição do termo regido pelo pronome oblíquo lhe, mas sim o(s) e a(s); 2. verbo transitivo indireto: aponta para o sentido de caber (direito a alguém), pertencer; rege a preposição a e admite a substituição do termo regido pelo pronome oblíquo lhe(s); Gramática12 3. verbo transitivo direto: aponta para o sentido de socorrer, prestar assistência e não rege qualquer preposição (A REGÊNCIA…, [200-?], documento on-line). Assim, quando “assistir” for empregado para indicar os sentidos aponta- dos em (1) e (2), é obrigatória a presença da preposição regida. Nesse caso, a gramática trata da regência e da transitividade do verbo como uma prescrição, informando o que é admitido ou não como complemento do verbo. Além disso, prescreve como obrigatória a presença da preposição regida pelo verbo nos casos 1 e 2. A distinção e a prescrição da regência desse verbo é semantica- mente determinada, como por exemplo, em: Assistimos ao jogo (1) Não lhe assiste dizer se isto é certo ou errado (2). Pela gramática descritiva, por outro lado, é possível entender o verbo “assistir” também em suas ocorrências como transitivo direto, que rege um objeto direto, sem preposição. Um possível exemplo é a própria acepção de assistir em “Assistimos o jogo”. Isso porque observou-se, analisando os fenô- menos linguísticos, que o uso de grande parte dos verbos vem modificando a normatização. Notou-se também que há uma relação mais direta entre o falante e a pessoa ou objeto a que ele se refere. Por outro lado, o verbo “assistir” com o sentido de ajudar, auxiliar, socorrer, já é normatizado como um verbo transitivo direto e é assim utilizado pelos falantes. É possível também observar a forma como a gramática internalizada dos falantes organiza esses usos. Podemos refletir sobre a voz ativa e a voz passiva em relação ao verbo “assistir”. Observe que, pelas regras da gramática nor- mativa, um verbo só possui voz passiva quando é classificado como transitivo direto ou bitransitivo (direto e indireto). No entanto, é perfeitamente coerente e bastante utilizada pelos falantes a ocorrência passiva, como na frase a seguir: O filme de terror foi assistido pelas crianças. Se, pelo viés da gramática normativa, “assistir” com sentido de ver, olhar, deve ser transitivo indireto, tal ocorrência não poderia existir. No entanto, pela gramática internalizada do falante, é perfeitamente corriqueira a ocorrência da voz passiva nesse caso. Pode-se concluir que há uma discrepância entre aquilo que a gramática normativa prescreve e aquilo que o falante entende intuitivamente como adequado. 13Gramática Por fim, conhecer as regras gramaticais e saber como usá-las é também importante. Por meio desse estudo, é possível ensinar as diversas configurações da língua para preparar os alunos para as também diversas situações com que vão se deparar na vida. Como explica Ferraz e Olivan (2011, p. 2236): […] saber gramática depende da ativação e do amadurecimento progressivo de hipóteses sobre o que é a linguagem e quais seus princípios e regras. Nela, o que pode ocorrer é uma inadequação da variedade linguística em um dado momento de interação comunicativa, mas não o erro linguístico. Para que possam se adequar às variedades linguísticas, portanto, os alunos precisam conhecê-las, como todas as suas diversidades. No entanto, deve-se ter como premissa que o aluno já tem conhecimento sobre a língua mesmo antes de entrar na escola para ser alfabetizado. Considera-se, assim, sua gramática interna, sua capacidade de produzir linguagem a partir do que já conhece. Além disso, é fundamental incentivar o estudo da gramática por meio da reflexão dos fenômenos linguísticos, que, como vimos, pode ser feita em certo grau por pessoas que não são especialistas em linguística. Mais importante do que apontarerros e acertos, é promover a reflexão sobre a língua. ANDRADE, O. Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. v. 6-7. A REGÊNCIA e o verbo assistir. In: MINI GRAMÁTICA. Disponível em: http://www.nilc.icmc. usp.br/nilc/minigramatica/mini/aregenciaeoverboassistir.htm. Acesso em: 8 jan. 2020. AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Unicamp, 1992. FARACO, C. A.; VIEIRA, F. E. (org.). Gramáticas brasileiras: com a palavra, os leitores. São Paulo: Parábola, 2016. FERRAZ, M. M. T.; OLIVAN, K. N. Gramática e formação do professor em língua materna: refletindo sobre o ensino e ensinando para a reflexão. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 7., 2011, Curitiba, Anais… Curitiba, 2011. p. 2234-2248. Gramática14 Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. FRANCHI, C. Mas o que é mesmo “gramática”? In: POSSENTI, S. (org.). Mas o que é mesmo gramática. São Paulo: Parábola, 2006. KENEDY, E. Curso básico de linguística gerativa. São Paulo: Contexto, 2013. NASI, L. O conceito de língua: um contraponto entre a gramática normativa e a lin- güística. Urutágua, n. 13, ago./nov. 2007. Disponível em: http://www.urutagua.uem. br/013/13nasi.htm. Acesso em: 7 jan. 2020. ORLANDI, E. P.; SOUZA, T. C. C. A língua imaginária e a língua fluida: dois métodos de trabalho com a linguagem. In: ORLANDI, E. P. Política linguística na América Latina. Campinas: Pontes, 1988. PERINI, M. A. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 2005. PERINI, M. A. Sofrendo a gramática. São Paulo: Ática, 2001. PETTER, M. Linguagem, língua e linguística. In: FIORIN, J.L. Introdução à linguística: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2015. PINTO, M. S. Grammatica da lingoagem portuguesa de Fernão de Oliveira: o autor e sua obra. Portugal: Biblioteca Nacional, 2004. Disponível em: http://purl.pt/369/1/ficha- -obra-gramatica.html. Acesso em: 7 jan. 2020. TENÓRIO, F. J. A.; SILVA, R. S.; SILVA, A. O lugar da reflexão na aula de gramática: por onde começar? In: OSÓRIO, P.; LEURQUIN, E.; COELHO, M. da C. (org.). Lugar da gramática na aula de português. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2018. Leitura recomendada BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Grammatica da lingoagem portuguesa. Lisboa: BNP, 2020. Disponível em: http://purl.pt/120/1/index.html#/1/html. Acesso em: 8 jan. 2020. 15Gramática DICA DO PROFESSOR A construção da língua portuguesa como língua oficial do Brasil passou por um longo processo de colonização e gramatização da língua. A gramatização, para Auroux (1992), é o processo em que se descreve e se instrumentaliza uma língua, por meio de instrumentos linguísticos, como a gramática e o dicionário. Nesta Dica do Professor, entenda como se deu esse processo da construção da língua nacional à gramatização do português brasileiro. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! NA PRÁTICA Maria Helena de Moura Neves (2002) afirma a necessidade de uma reflexão sobre o ensino de gramática que observe tanto o que se entende por gramática quanto o papel do real funcionamento da linguagem na análise linguística, realizada na atividade escolar. Diante dessa reflexão, em uma formação de professores de língua portuguesa, da rede estadual de ensino, há um debate acirrado sobre as diferentes concepções de língua e de gramática que professores e gestores têm e sob as quais se pauta a construção dos projetos político- pedagógicos das escolas. A professora Caroline está participando de um dos grupos de trabalho dessa formação e, como próxima tarefa a realizar para levar o debate ao grande grupo, precisou refletir, com seus colegas, sobre a seguinte questão: Que avaliação se pode fazer sobre o papel da gramática normativa no ensino de língua portuguesa nas escolas atualmente? Veja a seguir a análise realizada pelo grupo de Caroline: SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: A concepção de linguagem determina o que e como ensinar Assista o vídeo do professor Cláudio Bazzoni sobre como as diferentes concepções de linguagem pautam o ensino de língua portuguesa e como as práticas de leitura e de escrita devem ser ensinadas nas escolas. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! A gramática escolar no contexto do uso linguístico Leia o artigo de Maria Helena Moura Neves, no qual a autora avalia o trabalho com a gramática na escola, de acordo com a abordagem gramatical utilizada e com a inserção dessa abordagem na compreensão do funcionamento real da linguagem. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Gramática, escola e perspectivas do ensino de gramática na contemporaneidade Leia a entrevista com a professora Roberta Pires de Oliveira, pesquisadora e docente da UFSC, na Revista Entre Linhas. Essa entrevista é um convite à reflexão do ensino de gramática e apresenta as possibilidades de análise crítica dos fenômenos da linguagem na escola contemporânea. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Dentro da cabeça de Noam Chomsky Leia a reportagem de Luís Augusto Fischer sobre Noam Chomsky, o estudioso que revolucionou a linguística com modelos matemáticos, para explicar a comunicação humana. Conheça suas idéias, sua obra e por que há tantas pessoas interessadas no que ele tem a dizer. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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