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Contos mais que mínimos

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c o n t o s
m í n i m o s
HELOISA SEIXAS
m a i s q u e
tinta
negra
Rio de Janeiro 
2a edição, 2021
Copyright© 2010 by Heloisa Seixas
Copyright© 2021 desta edição by Criativamente
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua 
Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19 de 
fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a 
expressa anuência da editora.
Coordenação editorial: Michelle Strzoda
Capa e projeto gráfiCo: Aline Haluch | Studio Creamcrackers
ilustrações em linoleogravura: André Beltrão
produção editorial: LÓTUS Estúdio e Produção
adaptação de diagramação: Arte das Letras
Arthur Silveira Editora Ltda 
Avenida Presidente Kennedy, 23, Frente 
Brasilandia, São Gonçalo | RJ | Cep: 24.440-491
Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
S462
Seixas, Heloísa
Contos mais que mínimos / Heloísa Seixas – 2.ed. – 
Rio de Janeiro: Criativamente, 2021.
104 p.; 13,5 X 20,5 cm 
ISBN 978-65-994024-0-1 (Livro do estudante)
ISBN 978-65-994024-2-5 (Manual do professor)
1. Conto. 2. Literatura brasileira. I. Seixas, Heloísa. II. Título.
CDD 869.93
Índice para catálogo sistemático
I. Conto: Literatura brasileira
Contos mínimos é o título do espaço assinado por mim no jor-
nal Folha de S.Paulo, antes da revista Domingo do Jornal do Brasil, 
somando quase dez anos de coluna literária. 
Duas vezes por semana, eu me via diante do desafio de escre-
ver contos – ou talvez crônicas – num espaço tão pequeno que na 
tela do meu computador equivalia a apenas seis linhas e meia. Os 
temas recorrentes destes Contos mais que mínimos – 
amor, solidão, literatura, fantasmas, o universo – são meus eternos 
assombros.
H.S.
sumário 
A penitência das flores 13
No fundo da bolsa 14
Mais do que qualquer outro 16 
Pedaços de bruma 17 
Caixa de Pandora 18
Letra por letra 19
Um dia, há muito tempo 20
Geografia adorada 22
O segredo na cômoda 23
O banho noturno 24
Um tango de Piazzolla 25
A morte dos amantes 26
a mor
te dos
 aman
tes
Uma bofetada na noite 31
Múltiplo sorriso 33
Tormenta na praia 34
Ao cair da tarde 36
Com os olhos no chão 37
O abraço mortal 38
Nas teias do sonho 39
Tempo de volúpia 40
Estrelas da manhã 41
A solidão no mar 42
Réstia de vida 43
A marca da solidão 45
a marca da solidão
Síndrome do claustro 49
Para os náufragos 50
Tormenta invisível 51
Condenação eterna 52
Almas impregnadas 53
O mal das montanhas 54
Um mundo de loucos 55
A de poesia 56
Fogueira na noite 57
A insustentável leveza 58
A leveza, ainda 59
O escritor e o homem 60
o escritor e o homem
impressões e fantasmas 
A casa das bonecas 65
Ele existe, acreditem 66
Por falar em demônios 67
Prisão de bronze 68
Nos becos de Barcelona 69
No metrô vazio 70
Batalha noturna 72
Beleza corrompida 73
Estranhos tremores 74
Ela veio do mar 75
Nunca vou saber 76
Impressões e fantasmas 77
duas po
ntas de 
um só f
io
O nascimento das estrelas 80
Diante da janela, uma pedra 81
O mar e suas víboras 82
O colar de cristal 83
Uma noite de liberdade 84
Manhã de pescaria 85
A beleza das ruínas 86
Um brilho novo 87
Sangrando espuma 88
Uma pequena amostra 90
Contagem regressiva 91
Duas pontas de um só fio 92
a mor
te dos
 aman
tes
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el
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a penitência das flores
Entrou e caminhou por entre as mesas, com a leveza de 
um bailarino. Trajava um smoking bem talhado, que lhe caía 
com elegância. Não fosse pela cesta que trazia nas mãos, nin-
guém diria que era um vendedor de flores. Enquanto estendia 
suas rosas às mulheres da mesa, começou a falar. E havia em 
sua fala uma cadência, uma música – como se recitasse. Mas 
seus versos eram caóticos, sua fala, um desvario. E alguém 
sussurrou: “É louco”. Assim que se afastou, uma das mulhe-
res, que conhecia sua lenda, explicou:
– Vendendo flores, ele se penitencia. É uma condenação 
que impôs a si mesmo.
E qual teria sido seu crime, perguntaram. A resposta dei-
xou na mesa um silêncio:
– Ele matou a mulher que amava.
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14
no fundo da bolsa
A mão abre o fecho de metal da bolsa com um estalo. O 
interior se mostra, negro e macio, em meio a uma profusão 
de objetos – uma carteira de couro, uma escova de cabe-
lo, óculos escuros despontando de um estojo, uma folha de 
papel amassado. Trêmula, a mão feminina envolve o papel. 
Amassa-o ainda mais, por um instante fazendo-o desaparecer 
dentro do punho fechado, os nós dos dedos brancos de ódio. 
E, depois, mergulhando, retira um objeto escondido no fun-
do da bolsa – um revólver, com seu brilho de prata.
Hoje é o dia da caça.
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mais do que qualquer outro
– Se fôssemos cegos a metade de todos os dias, passaría-
mos a outra metade embevecidos pela luz.
Os olhos negros da mulher brilharam quando ela disse a 
frase. Suas mãos, ossudas e muito brancas, estavam trêmulas. 
Ela falava de um homem. Continuou:
– No tempo que me é reservado, ele é completamente 
meu. Mais do que qualquer um poderia ser. Ninguém per-
tence tanto a alguém quanto esse homem a mim.
A amiga ouviu a confidência em silêncio. Conhecia a ou-
tra havia muitos anos e sabia por que ela falava assim. 
Era amante de um homem casado. 
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pedaços de bruma
Ela abre os olhos. Grandes olhos castanhos, penetrantes e 
belos. Depois, num gesto lânguido, estica os braços. Seu cor-
po de menina estremece, fazendo saltar em pedaços a bruma 
da noite que, enquanto dormia, em torno dela se cristalizara. 
Esfrega o rosto com as mãos. Há naqueles dedos qualquer 
coisa de diverso, um gesto inusitado, uma harmonia nova. A 
menina senta-se na cama e, ao fazê-lo, dá com sua imagem 
refletida no móvel de vidro, junto à cama. E é quando lhe 
sobrevém a certeza daquilo que, antes, só pressentia.
Ela acordou mulher.
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caixa de Pandora
Guardou o segredo como se fosse um diamante, no fundo 
de uma caixa de veludo negro. E, um após o outro, amonto-
ando-se, sedimentando-se, os anos se passaram. Ela própria 
já começava a esquecer aquilo que mantinha encerrado no 
compartimento mais escuro de seu coração. Até que um dia, 
abrindo o jornal, deu com a foto dele. Estava morto.
Num turbilhão, a paixão que sentira pela vida inteira des-
prendeu-se do fundo de veludo negro e explodiu, em todas 
as direções, enchendo o mundo, a atmosfera, a humanidade 
inteira, com seu veneno. Agora, letal. 
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letra por letra
As mãos femininas, de dedos finos, tocaram as teclas cor 
de marfim. Vacilantes, pousaram sobre aqueles quadrados 
ali dispostos, cada um contendo seu símbolo, as letras que, 
juntas, compõem palavras, frases, livros, tratados – cartas. 
Vacilantes, ainda, as mãos se puseram em posição, o dedo 
mínimo esquerdo sobre o A: logo ele, um dedo frágil, logo 
ele responsável pela primeira letra, a mais presente. Que fa-
zer? E assim, em posição, as mãos começaram seu trabalho. 
Lentamente correram pelas teclas, dedilhando, letra por le-
tra, a carta de adeus.
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um dia, há muito tempo
Seus dedos são longos como os de uma pianista. As 
unhas, pintadas com um esmalte transparente, suavemente 
nacarado. Na pele dos dedos há pequenas rugas, mas o dor-
so da mão ainda é liso como o de uma menina. No dedo 
anular, traz um anel de três voltas. Talvez seja uma aliança. 
Ou talvez ela assim o quisesse. De repente, a mão se desvira, 
fazendo surgir a palma estriada pela linha da vida. E, mais 
abaixo, onde começa o pulso, a marca esbranquiçada de uma 
costura, a ponta de uma cicatriz. Um dia, há muito tempo, 
ela quis morrer.
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geografia adorada
A superfície, recoberta de vegetação rasteira, tem declives 
quase imperceptíveis, mas todo o terreno convergepara o 
poço, escavado rente ao chão. A partir dele, surge um cami-
nho de arbustos, desaparecendo por trás de uma montanha. 
Ali, contra a luz do horizonte, vê-se que a vegetação é mais 
densa, como se alimentada pelos veios d’água subterrâneos. É 
aquele ponto que atrai a atenção da mulher. É sobre ele que se 
curva, pousando devagar os lábios naquele solo – feito de pele 
e pelos. A região misteriosa junto ao umbigo é a parte mais 
adorada do corpo de seu amante.
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o segredo na cômoda 
 
Na solidão do quarto, ele olhou a mulher. Ela estava de 
cabeça baixa, os longos cílios, umedecidos pelas lágrimas, en-
cobrindo os olhos que procuravam, assim, adiar ainda por 
um instante o momento fatal. Mas ele se aproximou e, com 
delicadeza, tocou-lhe o queixo, obrigando-a a erguer o rosto. 
Ela o encarou, afinal. Sabia que havia chegado a hora. Uma 
lágrima estremeceu, luziu e despencou, deslizando por sua 
face. Seus lábios tremeram – mas nada foi dito. E em silêncio, 
lado a lado, caminharam juntos até a cômoda, onde, num 
pequeno frasco, o veneno os aguardava.
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24
o banho noturno
Caminha pelo corredor tateando as paredes. Sem janelas, 
o corredor é mais escuro do que o resto do apartamento. Mas 
logo ela se vê diante da porta do banheiro, onde é grande a 
luminosidade que vem da rua. 
Através do vidro canelado, a noite se filtra, leitosa, e ela 
pode distinguir todos os contornos com exatidão. Até mes-
mo sua imagem, na prata do espelho. Na penumbra, abre o 
chuveiro e recebe no corpo o jato gelado, buscando no banho 
noturno o fim daquela febre que a consome. A febre de uma 
lembrança – de um tempo em que corpos ardentes faziam a 
água ferver.
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25
um tango de Piazzolla
Vai andando pela rua, apressada. Não olha em volta – está 
concentrada. Seu rosto é uma máscara, embora seja impossível 
dizer o que está sentindo. Mas, seja o que for, tem urgência. 
A mulher continua, com os olhos fixos à frente, driblando as 
pessoas que andam em marcha mais lenta. De repente, estaca. 
Como se fulminada por um raio.
Abre bem os olhos e, imóvel, escuta. Da loja de discos, 
sai o som dramático de um tango de Piazzolla. O bandoneón 
chora raivoso, quase cruel. A mulher engole em seco. O tan-
go é a música perfeita para quem vai matar ou morrer.
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a morte dos amantes
Era noite de lua cheia e as palmeiras projetavam sombras 
através da janela aberta. A mesma janela que deixava entrar 
a presença do mar, ali tão perto, seu barulho incessante, sua 
brisa suave. 
No quarto, a cama, tosca, era quase um catre. E, sobre ela, 
com os corpos ainda salgados pelo dia de sol, eles se amavam. 
Era um amor sôfrego, quase uma luta – que só o luar teste-
munhava. Depois, desfaleceram. E quando, ao nascer do dia, 
as moscas tomaram o quarto com seu zumbido inquietante, 
a mulher pensou, por um instante, que estavam mortos. Pois 
aquele amor, de tão grande, corrompia a carne, deixando-a 
doce e frouxa, como matéria decomposta.
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a marca da solidão
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uma bofetada na noite
O nome do bar era quase um presságio: Bofetada.
Mas a noite era de festa, a televisão do bar estava ligada, 
havia um jogo de futebol. Todos riam, torciam, falavam alto. 
Ao fundo, sentada numa pequena mesa, estava a mulher – só. 
Diante dela, um copo de caipirinha. As mãos imóveis sobre 
a mesa, os ouvidos tapados pelo fone de um walkman, numa 
atitude de isolamento acintoso, a mulher tinha o olhar per-
dido e marejado, com uma expressão de enorme sofrimento.
Como sua mesa ficava bem embaixo da TV, os olhos dos 
torcedores, alegres, de vez em quando baixavam e davam 
com o olhar daquela mulher sozinha. Tanta tristeza era uma 
agressão. Ela era a bofetada.
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múltiplo sorriso
Pendurou a última bola na árvore de Natal e deu al-
guns passos atrás. Estava bonita. Era um pinheiro arti-
ficial, mas parecia de verdade. Só bolas vermelhas. Nunca 
deixava de armar sua árvore, embora as amigas disses-
sem que era bobagem fazer isso quando se mora sozinha. 
Olhou com mais vagar. Na luz do fim de tarde, notou que 
sua imagem se espelhava nas bolas. Em todas elas, lá es-
tava seu rosto, um pouco distorcido, é verdade – mas 
sorrindo. “Estão vendo?”, diria às amigas, se estivessem por 
perto. “Eu não estou só.”
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tormenta na praia
Batia um vento sudoeste na praia de Ipanema. Vento de 
temporal, que verga os coqueiros, levanta nuvens de areia, 
revolve o mar, cuja massa é pontilhada por milhares de pe-
quenas feridas – feridas de espuma.
As pessoas fugiam, tentando se esconder do vento. Mas 
ela, não. Toda de branco, envolta em panos esvoaçantes, atra-
vessou a rua e parou, frente a frente com a tormenta. E ali 
ficou. Ela, como o mar, também trazia feridas. No olhar, no 
sorriso desvairado, tinha estampada a marca de quem fez uma 
viagem sem volta.
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ao cair da tarde
A tarde morria. O sol brilhava oblíquo sobre as águas, explo-
dindo em chispas. No cais deserto, o deque de ripas de madei-
ra adentrava a água, como um suicida. A madeira estava quente 
quando a mulher começou a caminhar. Pisava com cautela, des-
viando de lascas e pregos. A cada passo seus pés pousavam no chão 
com reverência, com um cuidado quase doentio. Mas não levou 
muito tempo para chegar ao fim do caminho. E, ali chegando, 
mergulhou. Seu corpo, descrevendo uma curva, rompeu a super-
fície com um gesto vigoroso. Que talvez fosse o último. 
37
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arca d
a solid
ão
com os olhos no chão 
Caminhava de cabeça baixa. Andava sempre assim, com a 
vista pregada no chão. As amigas a criticavam por isso, mas só 
ela sabia as vantagens daquele andar. Reparava em coisas que 
ninguém mais notava. Naquele instante mesmo, parada junto 
ao meio-fio, acabara de encontrar um de seus tesouros. No 
chão, a luz incidia sobre uma tampa de bueiro onde jazia um 
resto de água de chuva. Com isso, água e ferro se tinham fun-
dido numa só matéria brilhante, que parecia emanar poder. 
E, no centro do tampão, como se fosse uma legenda, estava 
escrito: força e luz.
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38
o abraço mortal
E agora? De onde brotará a seiva capaz de fecundar este 
coração marcado, esta alma vazia? Nada há em volta. Nada, 
senão o açoite do vento e do sol na pele, o torpor que para-
lisa o corpo, tornando a mente oca e estéril. Para que, então, 
seguir em frente, passo após passo, e atravessar as imensas 
areias da ampulheta que se derramaram, criando o deserto? 
Para quê?
Sabe que não conseguirá – que já não adianta tentar. O 
melhor é ficar aqui, não resistir mais. O melhor é entregar-
-se ao solo quente e receber, silente, o abraço mortal das 
areias eternas.
39
a m
arca d
a solid
ão
nas teias do sonho
Só o que queria era continuar pintando, espalhando sobre 
as telas aqueles véus que brotavam de seu inconsciente, ma-
terializados com ajuda de espátulas, panos, palmas das mãos. 
Eram figuras diáfanas, retalhos de sonhos, impressões que pa-
reciam soprar uma brisa sobre o rosto de quem as olhava. Mas 
talvez ela tivesse de parar. Pois agora, a cada vez que se via só, 
trabalhando, sentia-se invadir por uma sensação espantosa: 
suas teias de sonho desprendiam-se da tela e começavam a 
envolvê-la, lentamente. Um dia iriam matá-la, como se ela 
fosse um inseto.
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0
tempo de volúpia
Era uma moça tímida. Quase não falava. Andava com 
os olhos baixos, como se buscasse algo por entre as pedras 
do calçamento. Foi assim que entrou no prédio, naquele dia. 
Subiu os dois lances de escada, enfiou a chave na porta e tran-
cou-se no quarto – sempre quieta. Mas, lá dentro, olhou-se 
no espelho. E, ao fazê-lo, transformou-se. Soltandoos cabe-
los, jogou para trás a cabeça numa gargalhada silenciosa, que 
foi aos poucos tomando todo seu corpo, com a força de um 
amante desesperado. Na mão, trazia a rosa vermelha que apa-
nhara na encruzilhada.
Era Carnaval.
4
1
a m
arca d
a solid
ão
estrelas da manhã
Em contato com suas costas, o lençol era um emplastro 
quente, amarrotado e maldito. Como ele próprio, vítima des-
se mal terrível que são as noites insones. Já tentara de tudo, 
todas as posições, já pensara em carneiros, números, chamas 
de velas, orações. Nada. Levantou-se. Tinha por norma não 
olhar o relógio para não aumentar sua angústia, mas pressen-
tia, pela nesga de céu que vira na cama, que o dia não tardava. 
De fato. Lá estava ela, no céu: a estrela da manhã. Lúcifer. 
Deu um suspiro. Há qualquer coisa de Lúcifer em quem sofre 
de insônia, pensou. Os anjos caídos somos nós. 
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el
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4
2
a solidão no mar
Quieto, o menino espiava o pescador acocorado sobre a 
pedra, as mãos calosas mexendo em linhas e chumbadas. Era 
um velho, com muita prática de pescaria, e o menino admi-
rava sua destreza, encantado. Mas, de repente, num gesto de 
impaciência, o velho pescador atirou à água o pedaço de fio 
de náilon que o atrapalhava, enrolado a um dos anzóis. E o 
menino ficou olhando aquele fio suspenso na água, pequena 
enguia solitária. Sentiu pena. Tinha lido no jornal que um 
fio de náilon leva 600 mil anos para se dissolver no mar. Era 
tempo demais. Demasiada solidão. 
4
3
a m
arca d
a solid
ão
réstia de vida
Folheando o jornal, lá estava. A foto da criança africana, 
faminta, como tantas que vemos. Tantas que nós, embrute-
cidos, já as olhamos sem estremecer. Mas nessa criança havia 
algo mais. Os olhos. Aqueles olhos – úmidos, negros, imen-
sos – tinham a força de uma lagoa ou de um oceano inteiro. 
Brilhavam espetaculares e transmitiam uma sensação não de 
horror ou tristeza – o que era espantoso –, mas de luta feroz, 
quase de poder. Porque eram réstia de vida. Como se a alma 
daquela criança, aprisionada ao corpo decrépito, ali tivesse 
buscado sua última trincheira.
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el
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5
a m
arca d
a solid
ão
a marca da solidão
Deitado de bruços, sobre as pedras quentes do chão de 
paralelepípedos, o menino espia. Tem os braços dobrados e 
a testa pousada sobre eles, seu rosto formando uma tenda de 
penumbra na tarde quente. 
Observa as ranhuras entre uma pedra e outra. Há, den-
tro de cada uma delas, um diminuto caminho de terra, com 
pedrinhas e tufos minúsculos de musgos, formando pequenas 
plantas, ínfimos bonsais só visíveis aos olhos de quem é capaz 
de parar de viver para, apenas, ver.
Quando se tem a marca da solidão na alma, o mundo cabe 
numa fresta.
o escritor e o homem
49
o escritor e o h
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em
síndrome do claustro
A história saiu nos jornais. O jornalista francês Jean-Do-
minique Bauby, com 43 anos, teve um derrame que o deixou 
totalmente paralisado. Só a mente ficou intacta. Com a alma 
aprisionada num corpo imóvel, tinha o que a medicina chama 
de síndrome do claustro.
Um detalhe: ele conseguia piscar o olho esquerdo. Com a 
ajuda de uma terapeuta, que lia para ele as letras do alfabeto, 
uma a uma, escreveu um livro, piscando o olho na letra esco-
lhida, formando palavras e frases. Na semana em que o livro 
saiu, ele morreu.
O ser humano pode ser maior do que qualquer ficção. 
h
el
oi
sa
 s
ei
x
as
50
para os náufragos 
Quando vivia em sua fazenda na África, a escritora Isak 
Dinesen aguardava ansiosa a chegada dos livros que enco-
mendava da Inglaterra. Depois, abertos os caixotes, começava 
a lê-los bem devagar – sabendo que seriam seus únicos livros 
durante meses. “Torcia para que os escritores tivessem dado 
tudo de si ao escrevê-los”, contou. Acho que, por causa disso, 
ela própria escrevia assim: sem pressa, detendo-se nos deta-
lhes, que encharcava de sonhos, devaneios, fantasias.
Isak Dinesen entregava-se completamente em cada linha 
– como se esperasse ser lida por um náufrago, perdido numa 
ilha deserta.
51
o escritor e o h
om
em
tormenta invisível
O escritor americano Paul Auster conta que tomou um 
susto com a derrubada do Muro de Berlim. É que, no exato 
dia em que se deu a queda, ele punha o ponto final em seu 
romance A música do acaso, que fala de muros, de libertação. 
“Toda vez que penso nisso, começo a tremer”, disse.
Com razão. Escrevendo, às vezes desencadeamos uma es-
pécie de tormenta invisível, que acaba refletida na vida palpá-
vel. A ficção, alimentada pelos eflúvios de quem a cria (ou de 
quem a lê), pode ganhar força – e materializar-se.
Escrever é uma manifestação do sobrenatural. Os escrito-
res não deveriam jamais ser incréus. 
h
el
oi
sa
 s
ei
x
as
52
condenação eterna
Diz a lenda que o albatroz é um pássaro capaz de ficar me-
ses, talvez anos, voando sem parar. Sobrevoa mares, navios, 
dá rasantes – mas não pousa jamais. Será que dorme enquanto 
flana no espaço, as asas abertas singrando o vento? Será que 
pousa, afinal, quando chega a hora de morrer? 
Talvez o albatroz se pareça um pouco com os escritores. 
Estes, também, velam eternamente, escrevendo até quando 
sonham. Talvez seja isso, uma espécie de maldição. Uma con-
denação eterna.
53
o escritor e o h
om
em
almas 
impregnadas
Esquecia tudo. Podia adorar um livro ou um filme, mas 
pouco depois a história desaparecia de sua mente, como se 
afundasse em areia movediça. Até que uma amiga lhe deu uma 
explicação para o fenômeno: disse que isso só acontece com as 
pessoas que “leem com a alma”, usando um canal que não o 
da razão. A esses, disse, é dado o esquecimento. Mas só por 
um tempo. Os sentimentos, os fantasmas, os terrores e pra-
zeres que vagam pelas histórias se impregnam na alma dessas 
pessoas e um dia – quando elas menos esperam – se despren-
dem. Para o bem ou para o mal.
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el
oi
sa
 s
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x
as
54
o mal das montanhas 
Leio um livro sobre a escalada do Everest. O açoite do 
vento, os corpos castigados pelo esforço sobre-humano, o ar 
rarefeito, calor e frio. Semanas de tortura e terror, em que os 
alpinistas se veem frente a frente com a morte. E, ao fim da 
escalada, o pico lá em cima, no topo do mundo, com seus 
quase 9 mil metros, quando alcançado, mostra-se insignifi-
cante. Apenas um platô onde – por cansaço, terror e falta de 
ar – não se pode permanecer por mais do que poucos minu-
tos. Então, por quê?
Escrever é um pouco assim. Como o mal das montanhas.
55
o escritor e o h
om
em
um mundo de loucos
Estranho, o mundo da literatura.
Um mundo em que autores e leitores pisam um território 
impalpável, alinhavado com os fios do sonho, em cujos céus 
chispam loucos sinais. Estes, quando captados, materializam-
-se em riso ou dor, interferem no real, desvelam segredos, 
escondem outros, transformam as pessoas – deixam marcas.
Estranho mundo. Um mundo onde os homens às vezes 
se chamam Evelyn. Ou Céline. E onde as mulheres podem 
chamar-se Isak. Ou George. Um mundo de loucos, esse da 
literatura. 
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56
A de poesia
Estava de pé, na esquina, esperando. De mau humor. Detesta-
va esperar. Baixou a vista, com um suspiro de irritação, e foi quan-
do seu olhar pousou nas pedras portuguesas que pisava. Estava de 
pé sobre um A. Curiosa, deu dois passos atrás e viu que a letra 
fazia parte de uma palavra: absoluta. Só então se lembrou de que 
estava na esquina onde vivera o poeta Drummond, cujos versos 
estão ali inscritos no chão. Afastando-se, leu a frase inteira. Seu 
dia então, num segundo, ficou cheio de luz: vontade de cantar, 
mas tão absoluta, que me calo, repleto. 
57
o escritor e o h
om
em
fogueira 
 na noite
Um ano antes da morte do poeta mexicano Octavio Paz, 
sua biblioteca incendiou-se. O poeta acordou de madrugada 
em meio à fumaça para descobrir que o fogo consumia aquilo 
que lhe era mais caro, o maior de seus bens materiais: seuslivros, muitos deles raros. 
Fico pensando o que não terá sentido. E também se não 
terá sido então, naquele incêndio, que ele próprio começou 
a morrer. Ele, que como todo poeta também era chama. Ele, 
que como uma premonição escreveu um dia: “Estou presente 
em todas as partes e para ver melhor, para melhor arder, me 
apago”.
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58
a 
insustentável leveza
Com o dedo indicador, o escritor aperta a última tecla – o 
ponto final. Dias, semanas, meses de prazer e dor, a embria-
guez da fartura alternando-se com momentos de esterilida-
de em que mirava as palavras por escrever como se fossem 
as areias de um deserto. Nunca vou chegar lá, pensava. Mas 
chegou. Seu livro está pronto. E agora? Agora, não está feliz. 
Sente-se frágil, vazio, leve demais. Pensou que, prendendo-
-os no papel, se veria livre de seus fantasmas. Mas, suprema 
ironia, agora que deles se livrou, está oco e só. Quer seus 
espectros de volta.
59
o escritor e o h
om
em
a leveza, ainda
O escritor diante do ponto final é um homem sem mãos. 
O ponto final é seu algoz: o escritor o perseguiu, mas ao 
alcançá-lo depara-se com o vazio, a leveza insuportável do 
dever cumprido. Pior. Passa a viver a comoção de ter a alma 
exposta, revirada por outras mãos, muitas vezes frias, que irão 
maculá-la sem piedade. Nelson Rodrigues dizia que os livros 
talvez devessem ser escritos e depois destruídos. Escrever é 
um ato de solidão absoluta e assim deveria permanecer. A lei-
tura corrompe, desvirtua. Talvez o livro já comece a morrer 
nas mãos do primeiro leitor.
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60
o escritor e o homem
Carlos Heitor Cony disse um dia, numa entrevista: “O 
escritor é sempre contra o homem”.
A princípio, estranhei. Mas Cony dizia que passara vin-
te anos sem escrever porque durante todo esse tempo estava 
vivendo. Acabei concordando. Escrever e viver de certa forma 
se contrapõem. Escoamos para o papel a água que é excessiva, 
que nos encharca. Ou, talvez, a água que não ousamos provar.
E assim, escravos, carregando seus potes para despejá-los 
na fonte da fantasia, vamos correndo o risco de secar.
impressões e fantasmas 
65
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ressões e fan
tasm
as
a casa das bonecas
Tive uma sensação imediata de desconforto ao entrar na 
loja. Por toda parte, sobre balcões e prateleiras, havia dezenas 
de bonecas, seus pequenos corpos inertes amontoados. 
O dono da loja não estava à vista e eu, que desde pequena 
sempre tivera medo de bonecas, me senti oprimida. Eram bo-
necas de vários tipos, todas muito antigas, com seus rostos de 
biscuit, cabelos opacos e seus olhos de cristal – fixos, mortos.
De repente, senti como se alguém me observasse pelas 
costas. Virei-me, devagar. E o terror me gelou os ossos. Vi, 
com toda nitidez, um daqueles olhos de cristal piscar para 
mim.
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66
ele existe, acreditem
Dizem que é um demônio. Há quem não creia em de-
mônios. Mas o fato é que às vezes eles aparecem. E não falo 
de um demônio qualquer, mas daquele que vive dentro dos 
computadores. Um amigo meu me disse até o nome dele, o 
nome de um ser das trevas que vive dentro das máquinas, que 
as faz quebrarem no momento mais inoportuno – apenas para 
nos enlouquecer. É verdade, eu sei o nome dele. Mas não 
ouso pronunciá-lo aqui, pois temo que, irado, ele possa surgir 
em toda sua força.
Não se deve jamais nomear os demônios – para que eles 
não apareçam. Mas acreditem: ele existe.
67
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ressões e fan
tasm
as
por falar em demônios
Meus dedos trêmulos pressionam a tecla. Volto a fita para 
ouvir mais uma vez a mensagem gravada. Meu metabolismo 
enlouqueceu. A garganta foi fechada por uma garra invisível, 
o coração se debate, o sangue corre sem destino nas veias, 
acelerado. Lá está, outra vez, a voz. Há poucos dias eu falava 
em demônio, ser misterioso que vive dentro das máquinas 
para nos atormentar. Não ousei nomeá-lo, temendo que de 
novo se materializasse para me alucinar. Não adiantou.
Às vezes, mesmo quando não dizemos seu nome, ele 
aparece.
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prisão de bronze
Chego mais perto. Diante de mim está o rosto, imóvel. 
Um rosto de velha, com seus sulcos bem marcados, as pál-
pebras flácidas, os lábios caídos. Tenho vontade de tocá-lo, 
correr meus dedos por aquela pele fria, mas não o faço. O 
bronze polido de que é feito, um bronze de muitas décadas, 
acabaria gasto se nos fosse permitido tocá-lo. Não, não se 
deve tocar estátuas. Recuo um pouco, sem desviar os olhos. 
Até que, num arrepio, me vem um pensamento terrível: o de 
que talvez ali, dentro daquela face esculpida em bronze, haja 
uma alma aprisionada. 
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ressões e fan
tasm
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nos becos de Barcelona
Você caminha a passos rápidos. Embora não queira ad-
mitir, tem uma sensação estranha, que jamais sentiu. Não é 
medo. É um rumor vindo das profundezas da alma, impossí-
vel de definir. Olha em torno. As ruelas do bairro gótico de 
Barcelona, durante o dia cheias de gente colorida e falante, 
agora estão desertas – e mais escuras do que nunca. As facha-
das, frente a frente nos becos incrivelmente estreitos, parecem 
tocar-se em algum ponto lá no alto, onde o breu engole tudo. 
De repente, com toda nitidez, um som de passos, bem atrás de 
você. Você para, virando-se, devagar. E o rumor que lhe su-
bia da alma percorre com um jato o corpo inteiro, eriçando-
-lhe cada fio de cabelo: o beco está vazio. 
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no metrô vazio
Entrou no metrô e sentou-se junto à janela. Detestava 
metrô. O silêncio constrangido, as pessoas frente a frente, sem 
saber o que fazer com as mãos. Era como nos elevadores, só 
que pior – pois demorava mais tempo. Por isso ia na janela. 
Fixou os olhos na escuridão lá fora. Estava inquieta. Talvez 
por causa do metrô vazio. Ou talvez por culpa da jovem de 
preto que se sentara ali adiante, num banco de frente para o 
seu. Podia sentir o olhar dela. Resistiu por um tempo, mas 
acabou encarando-a. E sentiu que o horror a percorria: no 
fundo amarelo, as pupilas da moça eram um traço. Tinha 
olhos de gato.
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batalha noturna
Ela tem medo de dormir. Vira-se na cama, sob as cober-
tas. Tem sono, mas não adormece. Não se deixa vencer, está 
sempre à espreita. Não será assim tão fácil, pensa. Não será 
uma luta qualquer. Eles terão de vir buscá-la num momento 
de distração, mas isso ainda vai demorar muito a acontecer. 
Eles verão. Ela não é boba. Não vai esmorecer. Seus olhos 
estão pesados. Mas não, ela não vai deixar. Vai continuar lu-
tando. Sabe que ao menor sinal de fraqueza, ao mínimo piscar 
de olhos, eles chegarão para levá-la. Não, ela ainda vai lutar 
muito. Muito, muito. Eles verão. Verão. 
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beleza 
corrompida
Quando ela entrou na sala, fez-se um silêncio apertado e 
os gestos ficaram por um instante suspensos no ar – partidos. 
Era bela. E jovem, pouco mais que uma criança, com um 
olhar fugidio que guardava ainda os sustos da infância. Mas, 
por paradoxal que fosse, havia em sua beleza um elemento 
estranho, uma aura de passado, de decomposição. Qualquer 
coisa em seu semblante revelava segredos impensáveis, como 
se o rosto emergisse de um tempo dissoluto. Sua beleza cor-
rompida era como os vinhos feitos de uvas contaminadas, 
cujo sabor doce paga o preço da podridão. 
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estranhos tremores
É madrugada. A rua está deserta. O rapaz anda apressado 
pela calçada, saltando por cima das poças d’água. Treme, mas 
sabe que não é de frio, pois, passada a chuva, subiu do chão 
um vapor quente que encheu o ar de uma umidade pesada. 
Além do mais, a noite está quieta, sem uma mínima brisa. Por 
que treme, então? De repente, ao virar uma esquina – onde 
uma enorme figueira debruça seus galhos seculares –, tem a 
resposta: no ar estagnado da noite, quando tudo em torno está 
imóvel, as folhasda figueira se agitam, como se movidas por 
um terrível vento de temporal.
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ressões e fan
tasm
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ela veio do mar
Aconteceu de repente. A manhã era de sol e de céu azul, 
sem sequer uma brisa que prenunciasse mudança de tempo. 
Mas aconteceu. No princípio era apenas uma névoa no ho-
rizonte. Logo já se estendera por toda a linha divisória entre 
céu e mar, crescendo, adensando-se. E, à medida que se aden-
sava, parecia aproximar-se da praia. De tão espessa e imensa, 
de tão rápida em seu caminhar – quando não havia vento –, 
a bruma estranha chamou a atenção de quem passava. Todos 
ficaram à espera. E, num instante, a névoa cobriu tudo com 
seu manto. O mundo desapareceu.
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nunca vou saber
Ergui o fone do gancho. Deu sinal. Disquei o primeiro 
algarismo. Quando ia teclar o segundo, percebi vozes aba-
fadas – uma linha cruzada. Normal. Continuei discando. 
Agora estava chamando. Mas entre uma chamada e outra 
voltei a ouvir as vozes, já um pouco mais claras. Ou me-
lhor, a voz. De mulher. Parecia aflita. De repente, o grito. 
Ouvi nitidamente quando aquela voz pediu socorro. Um 
pedido desesperado. E, nesse exato instante, alguém aten-
deu do outro lado, desfazendo a linha cruzada. O grito 
ficou perdido, partido – sem resposta. Mas não pude mais 
esquecê-lo. 
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ressões e fan
tasm
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impressões e
 fantasmas
Fecha as cortinas e deita-se na cama, passando a 
mão pelo acolchoado estranho. Pensa em quantas pes-
soas não terão se deitado ali, sobre aquele forro de cama 
de hotel. Observa as pequenas manchas, quase imper-
ceptíveis, sobre o acetinado cor de vinho. Na colcha, 
e também no tapete, delicadas impressões foram dei-
xadas por seus antecessores, pessoas que ali estiveram, 
apaixonadas ou solitárias. Mas ela não se sente só. Ao 
contrário. Todos os fantasmas daquele quarto parecem 
envolvê-la. E é assim, por eles acompanhada, que se 
entrega, feliz, a um prazer só seu.
duas po
ntas de 
um só f
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as
o nascimento 
das estrelas
As fotos, na revista, chamavam atenção por seu colorido. 
Mostravam uma superfície esponjosa como carne humana, 
brilhante de líquido ou gordura, com várias nuances de ver-
melho e alaranjado. Aproximei os olhos, pensando que fosse 
mais uma série de fotografias de fetos no útero da mãe, que a 
imprensa publica de vez em quando. E só então li a legenda: 
as fotos, de imagens captadas pelo telescópio Hubble, mostra-
vam o momento do choque entre duas galáxias em Antennae, 
nos confins do universo, explicando que é desse tipo de co-
lisão que as estrelas surgem. O choque produz uma explosão 
de colorido sangrento.
As estrelas, como o homem, nascem banhadas em sangue.
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 só fio
diante da janela, uma 
pedra
Diante de sua janela havia uma pedra. Não pedra de 
poesia, e sim um pequeno morro de rocha maciça. Mas es-
tava condenada – seria dinamitada para a construção de um 
shopping. Antes coberta de vegetação, fora raspada por tra-
tores e pás. Para marcar os pontos onde seriam colocados os 
explosivos, toda ela fora cravada de estacas, como o coração 
de um vampiro.
Um dia, da janela, viu um cachorro vira-lata, sentado no 
meio da rocha deserta. De repente, quando o animal andou, 
ela notou, por seu andar esdrúxulo, que só tinha três pernas. 
E, como num quebra-cabeças, o cão mutilado e a pedra nua 
se encaixaram: juntos, compunham um cenário de guerra – 
de terra devastada pela fúria dos homens.
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o mar e suas víboras
Olho o mar. Erguidas pelo vento, as vagas sobem em sé-
rie, como um bando de serpentes prontas para o bote. As 
ondas, assim batidas pela ventania, têm a crista achatada como 
cabeças de víboras, de onde espirra a fumaça da espuma. Há 
nessas ondas e nessa luz uma beleza infinita, mas há também 
um rugido de poder, talvez até de raiva. As ondas se quebram 
agressivas, numa exibição de força, que às vezes parece furiosa 
e mesquinha.
Fico pensando se os deuses não teriam sido contaminados 
pelos homens.
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 só fio
o colar de cristal
O filósofo francês André Glucksmann conta dos horrores 
que viu na Argélia. Visitou aldeias destruídas pelo terror islâ-
mico, o chão vermelho de sangue. Nas casas incendiadas, pi-
sou em pedaços calcinados de carne humana. Mas entre todos 
os terrores, o pior talvez seja seu relato sobre a casa de uma 
velha assassinada. No chão, caído, havia um colar de cristal. 
Estava fechado. Mas só quando viu o sangue coagulado nas 
pedras do colar, ele compreendeu. No instante da matança, o 
colar deslizara para o chão com o fecho intacto: a cabeça da 
mulher fora decepada. 
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uma noite de liberdade
Minha avó tinha um canário belga. Vivia numa gaiola de 
arame dourado, as garrinhas envolvendo a madeira do polei-
ro, os olhos assustados. Um dia, no sítio, ao abrir a portinhola 
para trocar-lhe a água, minha avó se distraiu e o passarinho 
escapou. Foi um desgosto. Até o anoitecer, ela ficou do lado 
de fora, procurando o canário – mas em vão. No dia seguin-
te, bem cedo, minha avó abriu a gaiola e limpou tudo. Pôs 
comida nova, trocou a água e esperou. Para nossa surpresa, o 
passarinho voltou. Entrou com gosto em sua prisão dourada. 
A liberdade é, às vezes, irmã do terror.
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 só fio
manhã de pescaria
Na manhã de mar revolto, a vara de pesca fincada na 
areia parece curvar-se ante o troar feroz das ondas. Ao lado, 
sentado numa velha cadeira de praia, está um homem. Traz 
a cabeça pendida sobre o queixo, como se cochilasse. Dá a 
impressão de estar ali desde sempre, imóvel e silente desde o 
início dos tempos.
E é assim, imerso em seu mundo silencioso, que ele me 
faz pensar nas bolhas de solidão que todos somos. Nós, vi-
vendo encarcerados em nossos corpos, invólucros que não 
pudemos escolher e dos quais só sairemos ao dar o último 
mergulho – rumo ao desconhecido.
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a beleza das ruínas
A velha está sentada à mesa. As mãos trêmulas cruzadas 
à frente, na altura do rosto, como se rezasse. Dessas mãos 
escorrem veias grossas que parecem carregar em sua seiva a 
história de muitas décadas. São mãos como troncos, como 
garras de pássaro, de pele áspera e desenhada por sulcos, veios, 
nós. Traz manchas de vários matizes, mapas de segredos e 
descobrimentos. Há beleza nessas mãos, nesses braços desfei-
tos. É a mesma beleza que vemos nas construções antigas, nas 
ruínas. Só que nessas é a pedra – e não a pele – que nos conta 
histórias.
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 só fio
um brilho novo
Parece que os cientistas descobriram uma nova estrela. 
Fica na constelação de Centauro, a 17 mil anos-luz da Terra, 
e tem um nome tolo, feito de algarismos e letras, algo assim 
como BPM 37093. A frieza dessa denominação, porém, es-
conde algo raro: a estrela é toda feita de cristal de carbono 
contaminado de oxigênio. Isso significa simplesmente que 
essa estrela – toda ela – é um gigantesco diamante. Um dia-
mante do tamanho da Terra. Desde então tenho olhado o céu 
de forma diferente e já me flagrei, noite alta, perscrutando a 
escuridão. A Natureza é às vezes pura poesia.
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sangrando 
espuma
Parou de chover e a baía de Angra está deserta. A super-
fície do mar é lâmina mesclada de verde e cinza onde a luz 
do sol, refletida, cria um céu cheio de estrelas. Ao fundo, 
ilhas e montanhas com suas escarpas cobertas, ainda, pela 
vegetação atlântica, formam um degradê que se esbate em 
direção ao infinito. Ouço o barulho de um motor. Surge 
no horizonte uma pequena lancha. Corta a superfície es-
pelhada, que sangra espuma. A princípio aquilo me agride. 
Mas depois reconheço que há beleza nessa intervenção do 
homem. São os nossos rastros. 
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uma pequena 
amostraGanhei de presente um geodo de ágata. A pedra, áspera, 
foi polida em uma das faces, através da qual podemos apre-
ciar seus veios e sua constituição. Só que quando a superfície 
foi polida, ficou visível, encravada no coração da pedra, uma 
gota de água fóssil – uma gota d’água de milhões de anos.
Olho sempre para ela, essa gota impalpável. Pego a pedra 
nas mãos e balanço-a, vendo agitar-se a água aprisionada. E 
sinto uma inquietação. 
Como disse um amigo poeta, presa ali dentro quando 
ainda não havia o homem sobre a Terra, a gota é uma peque-
na amostra da eternidade.
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 só fio
contagem 
regressiva
Quantos segundos você levará para ler o que está escrito 
aqui? Vinte, trinta, quarenta segundos? Um minuto, talvez, 
se estiver distraído e em algum ponto tiver de recomeçar? 
Dez segundos, se começar a ler e, desinteressado, desviar os 
olhos deste espaço onde alguns tolos insistem em deixar seus 
rastros? Quanto tempo?
A vida é assim, feita de pequenos conjuntos de segun-
dos, frações de tempo sobrepostas, mínimas como o espaço 
de tempo que se leva para ler isto aqui. E de repente, lá está: 
trinta, quarenta, sessenta – e os segundos se transformaram 
em anos. 
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as
duas pontas de um só 
fio
O sinal abre e os pedestres começam a atravessar. Da di-
reita, segurando na mão da mãe, vem uma menininha de 
pouco mais de um ano, com seus passos incertos. Da direção 
oposta, surge um velho. São inseguros, também, seus passos. 
Caminha olhando para o chão, com todo o cuidado.
Cada um com seu caminhar difícil, velho e menina se 
cruzam na faixa de pedestres. Há naquele encontro qualquer 
coisa de absoluto, como se os dois fossem as pontas do imenso 
e intrincado fio que compõe a humanidade inteira.
Um fio áspero e suave, a um só tempo feito de seda e sisal.
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 só fio
o livro
Contos mais que mínimos migrou, do jornal Fo-
lha de S. Paulo, para as páginas de um livro. Na colu-
na literária chamava-se “Contos Mínimos”, devido ao 
espaço tão pequeno que cada narrativa tinha para se es-
pichar, talvez se espremer, de modo a ocupar o espaço 
mínimo existente no jornal, mas com força máxima na pá-
gina. A obra é repleta de minicontos – todos narrados pela 
autora – e cabem exatamente naquele pequeno tamanho, não 
mais, não menos... 
No título do livro foi acrescido um MAIS, seguido de 
um QUE, também a mais. Ganhou roupa nova, novo forma-
to..., por meio de uma edição bem cuidada, com um projeto 
gráfico criativo, inovador e ilustrações com xilogravuras, nos 
envolvendo em um tom meio que de mistério – nos reme-
tendo a Nelson Rodrigues. A autora fala de amor, solidão, 
sexualidade, fantasmas, universos etc. – o que, segundo ela, 
são seus eternos assombros.9
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as
Um livro que trata dos temas contemporâneos transver-
sais no espaço urbano tão essenciais num mundo tão polari-
zado e repletos de significados. A obra possibilita ao jovem 
leitor discutir temáticas da vida como ela é, nas suas linhas e 
entrelinhas..., na sua pujança de existir em cada letra e palavra 
tecida pela autora de forma cirúrgica. 
O Twitter possui espaço de até 140 caracteres para escre-
ver, já a obra Contos mais que mínimos prova que tama-
nho não é documento. O conto é curto, mas a força é grande.
Pelo olhar de....
Sessenta microtextos ilustrados. Em histórias de temas 
como amor, solidão, literatura, fantasmas e o universo, 
Heloisa Seixas revela uma enorme capacidade de dizer 
muito em pouquíssimo espaço. Cheios de surpresas, 
reflexões, fantasias, tragédias, lirismo, os contos re-
presentam recortes afiados do espaço urbano contem-
porâneo, com suas idiossincrasias e contradições. Vale 
ressaltar que na obra cada 60 minicontos, possui 12 a 
16 linhas. O tamanho (em altura e largura) é bem pe-
queno, e as frases estão posicionadas no meio da folha, 
sendo assim, se essas 12 linhas, fossem escritas como 
normalmente são, ficariam em umas 4 linhas.
95
p
aratex
to
a máxima de Heloisa
Heloisa Seixas nasceu no Rio de Janeiro; jornalista e au-
tora de mais de vinte livros, entre romances e volumes de 
contos e crônicas, tendo sido quatro vezes finalista do Prêmio 
Jabuti e uma vez finalista do Prêmio São Paulo. 
É também autora do livro O lugar escuro, sobre a doen-
ça de Alzheimer. Seu livro mais recente é A noite dos olhos 
(2019), pela Companhia das Letras. 
Seu primeiro livro de contos – Pente de vênus: histórias do 
amor assombrado – foi publicado em 1995; o primeiro romance 
– A porta – saiu em 1996, pela Record, seguido de Diário 
de Perséfone, em 1998, pela mesma editora. Em 2001, publica 
Através do vidro, dentro da coleção Amores extremos. 
No mesmo ano, publica os livros de contos 13 maneiras 
de amar e Contos mínimos, uma coletânea de contos pu-
blicados na revista Domingo, do Jornal do Brasil. 
Em 2003: Sete vidas: sete contos mínimos de gatos; Pé-
rolas absolutas e Boa companhia. Há quem diga, sem 
trocadilho, que seus Contos mínimos são, no mínimo, 9
6
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as
máximos. É autora também de Uma ilha chamada livro: 
contos mínimos sobre ler, escrever e contar. (Record, 2012).
Para saber um pouco mais sobre o trabalho da autora, 
acesse: <heloisaseixas.com.br/contos-minimos/>. Acesso 
em: 12 fev. 2021.
Heloisa abre as páginas do desafio.... em um conto mais 
que mínimo, minúsculo; em um espaço pequeno, prisio-
neiro e circunstancial letras, ideias e sensações, despeja, no 
mínimo, um oceano de paixões secretas, mortes, suicídios, 
tormenta, leveza, impressões fantasmas, contagem regressi-
va, tudo a um só fio.... como nós... confinados, espremidos, 
vazios, lutando para deixar nossas marcas sobre a terra. Vive-
mos o nosso conto mínimo? 
A obra é dividida em blocos e cada bloco foca na temáti-
ca que cada miniconto traz; são eles: “A morte dos amantes”, 
”A marca da solidão”, ”O escritor e o homem”, “impressões 
e fantasmas” e “Duas pontas de um só fio”. São narrados de 
forma fragmentada, trazendo em sua essência uma abertura 
na qual o leitor pode deduzir a ordem dos fatos ou até mesmo 
criar histórias a partir de seu conhecimento de mundo. Ou-
tra característica marcante é a última sentença sempre trazer 
uma conclusão.
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No miniconto “A penitência das flores”, conta a história de 
um homem, cuja penitência após matar a mulher amada é vender 
flores. Uma narrativa detalhista que nos faz acreditar no homem 
bom e, em seguida, nos tira do lugar comum e nos choca! Ele é 
um assassino! As aparências enganam... o humano é complexo...
Essas flores estampadas quase que diariamente nos jornais 
impressos, televisivos e nas redes sociais é o mote para o tra-
balho com Ciências Sociais Aplicada, pois fala de feminicídio, 
misoginia... crime de ódio baseado no gênero – uma das ma-
zelas estruturais do machismo brasileiro. 
As flores do nosso jardim chamado pátria pagam peni-
tência com a vida. Após, ficam sem água, sofrem mal tratos, 
abandono, murcham e morrem na cara da sociedade, mesmo 
com medidas preventivas e com direito à Delegacia da Mu-
lheres! E quantas flores são silenciadas? 
O miniconto “A marca da solidão”, pelo título, trata de 
um tema atual, pois, na atualidade, vive-se mais de forma onli-
ne do que a cores e ao vivo. Vive-se a ilusão da selfie – eu para 
o mundo. Tema que pode ser trabalhado em Ciências da Na-
tureza, associado a temas como: depressão, ansiedade, suicídio, 
setembro amarelo, que acomete principalmente a população 
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jovem no mundo. Uma outra questão que pode ser discutida: 
o isolamento social, seus efeitos e causas em um confinamento 
obrigatório devida à pandemia (Covid-19) em 2020 e 2021 
– o mesmo com a temática do miniconto “Múltiplo sorriso”.
Em “O escritor e o homem”, a ludicidade envolve o pro-
cesso de criação – escritor-obra-leitor –, por meio de sensações 
e sentimentosno ato de leitura e escrita. Favorece o trabalho 
com as Linguagens e suas tecnologias e Língua Portuguesa, 
por meio do “campo artístico literário”, que possibilita a com-
paração com outras diferentes formas de contos, outros gêne-
ros literários e, também, com minicontos de outros autores, 
com a obra em questão, ou até mesmo, com um miniconto 
presente na própria obra, como, por exemplo, “A leveza, ain-
da”, que trabalha a mesma temática do “O Escritor e o ho-
mem”, mas em contexto diferente, ou seja, a condição de um 
escritor ao finalizar sua obra e ver sua vida exposta pela visão 
de diversos leitores. A comparação pode ser realizada com os 
minicontos presentes nas redes, em gêneros e formas diversas 
de produções vinculadas à apreciação de obras artísticas e pro-
duções culturais (resenhas, vlogs e podcasts literários, culturais 
etc.) ou a formas de apropriação do texto literário, de pro-
duções cinematográficas e teatrais e de outras manifestações 
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artísticas (“remidiações”, paródias, estilizações, videominutos, 
fanfics etc.), conforme o que prevê o campo artístico-literário. 
E cabe um questionamento: 
Será que toda obra “começa a morrer nas mãos do pri-
meiro leitor”? Ou ganha vida e novas inspirações? 
Exemplos de minicontos que podem ser comparados com 
os minicontos da obra Contos mais que mínimos, com a 
mesma temática ou não:
O EspElhO
– Você não devia ter tocado no espelho. Quem o toca fica 
preso nele. 
– Mas do que você está falando? Como sabe que toquei 
no espelho? (Marcos Rodrigo dos Reis Silva)
prOpósitOs
Quando os homens derrubaram a estátua do ditador, logo 
houve quem a derretesse para vender. (Marcos Rodrigo 
dos Reis Silva)
EnEs 
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Ivones, Islanes: todas assinam i. Meninas, moças: ambas 
têm emes – mulheres maravilhosas; todas sufixam enes – ga-
lantes e perenes.
Sonho meu: vem matar esta saudade, pois a madrugada 
fria só me traz melancolia! (Wolhfagon Costa de Araujo)
tEmpOs sOmbriOs
Saiu pra folia fantasiado de guerrilheiro cubano. Só foi 
solto na quarta-feira de cinzas. (Gilberto Stone)
A sOltEirOnA
Ela nunca se casou, mas sempre procurava alguém para 
amar. Inclusive, os hóspedes que frequentavam sua pousada. 
Quando chegou aquele cavalheiro, belo e elegante, para tra-
balhar no banco local, tornou-o o hóspede mais importante. 
Atendia-o em seus mínimos desejos. Inclusive mandou matar 
o galo que o incomodava pela manhã. Até o dia em que ele 
trouxe esposa e filhos para ela cuidar. (Sueli Couto Rosa)
AmOr
Ele era de Áries.
Ela, de Peixes.
Nunca se encontraram e foram felizes para sempre. (Cesar 
Diogo)
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A ArtistA
Ela queria dançar e pintar, mas sua mãe acreditava que, 
porque ela nascera sem os braços, nunca poderia fazer nada 
disto. Em sua casa não tinha música e nem tintas.
Então ela esperou a chuva forte, cantou a dança da chuva 
e, amassando o barro com os pés, desenhou o seu próprio 
retrato no chão. (Sueli Couto Rosa)
GEOmEtriA
A curva e o traço encontraram-se num canto do papel. 
Ele reto, aproximou-se. Ela escorregadia, saiu pela tan-
gente. (Luiz Cláudio da Silva Santos)
mAtA AtlânticA
Plantaram um mico na Amazônia. (Stella Maria Fer-
rasso Rezende)
brAncA DE nEvE mODErnA
A moça tinha a pele branca como a neve e o cabelo escu-
ro como breu. Abandonou os sete irmãos, fugiu da madras-
ta, fez uma torta com a maçã e foi vender na feira. Ficou tão 
famosa com a sua receita de torta que nunca mais quis saber 
do príncipe. (Karen Minato Eif ler)1
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“Impressões e fantasmas”, por um olhar metaficcional, 
fala sobre a vida, seus tormentos e o que nos tira da zona de 
conforto. Um bom momento para trabalhar em sala de aula o 
protagonismo juvenil, os projetos de vida dos alunos, 
suas expectativas e anseios diante do mundo “líquido”, global 
e da internet das coisas, apoiados em Linguagens e suas tec-
nologias e nas Ciências Sociais Aplicadas. 
“O mar e suas víboras” possibilita o trabalho com as 
Ciências Sociais Aplicadas – mitologia grega, caixa de pan-
dora –, ao comparar o comportamento das ondas do mar às 
víboras – beleza e a fúria, na crítica irônica inerente a como 
os deuses influenciariam os homens.
“Duas pontas de um só fio” envolve todos os itinerários 
e seus campos, pois trata de diferentes temas: nascimento das 
estrelas versus nascimento dos seres humanos, pedra versus ser 
humano, beleza versus fúria, ser humano versus deuses, intacto 
versus decepada, liberdade versus não liberdade (prisão), ser 
humano versus mundo, infância versus velhice etc. 
Em “Duas pontas de um só fio”, a temática pode ser tra-
balha com Ciências da Natureza – da infância à velhice – iní-
cio e fim – obstáculos etc. 
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Na obra, os minicontos apresentam diversas temáticas 
e, ao final, trazem na última linha uma sentença como, por 
exemplo: “ele matou a mulher que amava”, “um fio áspero 
e suave, a um só tempo feito de seda e sisal” – algo genuíno 
e particular no talho da escrita da autora. O impacto é o seu 
talhão!
Para Friedman (apud GOTLIB, 2006, p. 64): “A questão 
não é ‘ser ou não ser breve’. A questão é: ‘provocar ou não 
maior impacto no leitor’”.
É o que a Heloisa e a sua obra provocam! 
Spalding (2007): “Ser mini, desta forma, não é um fim em si 
mesmo, e sim uma estratégia estética do autor para fazer ficção”.
Na obra, há muitos aspectos minificcionais presentes – 
em destaque, sempre, a minificção. 
Os minicontos da obra de Heloisa podem ser comparados 
com o vídeo de um miniconto narrado pela escritora Ma-
rina Colasanti, disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=mnVUGoLdZyM>. Acesso em: 12 fev. 2021.
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O desafio de um conto minúsculo.
Letras, ideias, sensações contidas no espaço exíguo — 
circunscritas, prisioneiras.
Um pequeno espaço, para nele despejar um oceano inteiro 
de paixões secretas. Mas não de enxurrada, avalanche, 
enchente. E sim gota a gota.
Na verdade, vivemos assim, todos nós. Espremidos num 
tempo que se esvai tão depressa, tentando a todo custo 
deixar nossos rastros sobre a terra.
Vivemos um conto mínimo.
		2021-07-28T16:42:11-0300
	LCPE - Laboratório de Celulose Papel e Embalagem

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