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c o n t o s m í n i m o s HELOISA SEIXAS m a i s q u e tinta negra Rio de Janeiro 2a edição, 2021 Copyright© 2010 by Heloisa Seixas Copyright© 2021 desta edição by Criativamente Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. Coordenação editorial: Michelle Strzoda Capa e projeto gráfiCo: Aline Haluch | Studio Creamcrackers ilustrações em linoleogravura: André Beltrão produção editorial: LÓTUS Estúdio e Produção adaptação de diagramação: Arte das Letras Arthur Silveira Editora Ltda Avenida Presidente Kennedy, 23, Frente Brasilandia, São Gonçalo | RJ | Cep: 24.440-491 Catalogação na publicação Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166 S462 Seixas, Heloísa Contos mais que mínimos / Heloísa Seixas – 2.ed. – Rio de Janeiro: Criativamente, 2021. 104 p.; 13,5 X 20,5 cm ISBN 978-65-994024-0-1 (Livro do estudante) ISBN 978-65-994024-2-5 (Manual do professor) 1. Conto. 2. Literatura brasileira. I. Seixas, Heloísa. II. Título. CDD 869.93 Índice para catálogo sistemático I. Conto: Literatura brasileira Contos mínimos é o título do espaço assinado por mim no jor- nal Folha de S.Paulo, antes da revista Domingo do Jornal do Brasil, somando quase dez anos de coluna literária. Duas vezes por semana, eu me via diante do desafio de escre- ver contos – ou talvez crônicas – num espaço tão pequeno que na tela do meu computador equivalia a apenas seis linhas e meia. Os temas recorrentes destes Contos mais que mínimos – amor, solidão, literatura, fantasmas, o universo – são meus eternos assombros. H.S. sumário A penitência das flores 13 No fundo da bolsa 14 Mais do que qualquer outro 16 Pedaços de bruma 17 Caixa de Pandora 18 Letra por letra 19 Um dia, há muito tempo 20 Geografia adorada 22 O segredo na cômoda 23 O banho noturno 24 Um tango de Piazzolla 25 A morte dos amantes 26 a mor te dos aman tes Uma bofetada na noite 31 Múltiplo sorriso 33 Tormenta na praia 34 Ao cair da tarde 36 Com os olhos no chão 37 O abraço mortal 38 Nas teias do sonho 39 Tempo de volúpia 40 Estrelas da manhã 41 A solidão no mar 42 Réstia de vida 43 A marca da solidão 45 a marca da solidão Síndrome do claustro 49 Para os náufragos 50 Tormenta invisível 51 Condenação eterna 52 Almas impregnadas 53 O mal das montanhas 54 Um mundo de loucos 55 A de poesia 56 Fogueira na noite 57 A insustentável leveza 58 A leveza, ainda 59 O escritor e o homem 60 o escritor e o homem impressões e fantasmas A casa das bonecas 65 Ele existe, acreditem 66 Por falar em demônios 67 Prisão de bronze 68 Nos becos de Barcelona 69 No metrô vazio 70 Batalha noturna 72 Beleza corrompida 73 Estranhos tremores 74 Ela veio do mar 75 Nunca vou saber 76 Impressões e fantasmas 77 duas po ntas de um só f io O nascimento das estrelas 80 Diante da janela, uma pedra 81 O mar e suas víboras 82 O colar de cristal 83 Uma noite de liberdade 84 Manhã de pescaria 85 A beleza das ruínas 86 Um brilho novo 87 Sangrando espuma 88 Uma pequena amostra 90 Contagem regressiva 91 Duas pontas de um só fio 92 a mor te dos aman tes h el oi sa s ei x as 12 a m orte d os am an tes 13 a penitência das flores Entrou e caminhou por entre as mesas, com a leveza de um bailarino. Trajava um smoking bem talhado, que lhe caía com elegância. Não fosse pela cesta que trazia nas mãos, nin- guém diria que era um vendedor de flores. Enquanto estendia suas rosas às mulheres da mesa, começou a falar. E havia em sua fala uma cadência, uma música – como se recitasse. Mas seus versos eram caóticos, sua fala, um desvario. E alguém sussurrou: “É louco”. Assim que se afastou, uma das mulhe- res, que conhecia sua lenda, explicou: – Vendendo flores, ele se penitencia. É uma condenação que impôs a si mesmo. E qual teria sido seu crime, perguntaram. A resposta dei- xou na mesa um silêncio: – Ele matou a mulher que amava. h el oi sa s ei x as 14 no fundo da bolsa A mão abre o fecho de metal da bolsa com um estalo. O interior se mostra, negro e macio, em meio a uma profusão de objetos – uma carteira de couro, uma escova de cabe- lo, óculos escuros despontando de um estojo, uma folha de papel amassado. Trêmula, a mão feminina envolve o papel. Amassa-o ainda mais, por um instante fazendo-o desaparecer dentro do punho fechado, os nós dos dedos brancos de ódio. E, depois, mergulhando, retira um objeto escondido no fun- do da bolsa – um revólver, com seu brilho de prata. Hoje é o dia da caça. a m orte d os am an tes 15 h el oi sa s ei x as 16 mais do que qualquer outro – Se fôssemos cegos a metade de todos os dias, passaría- mos a outra metade embevecidos pela luz. Os olhos negros da mulher brilharam quando ela disse a frase. Suas mãos, ossudas e muito brancas, estavam trêmulas. Ela falava de um homem. Continuou: – No tempo que me é reservado, ele é completamente meu. Mais do que qualquer um poderia ser. Ninguém per- tence tanto a alguém quanto esse homem a mim. A amiga ouviu a confidência em silêncio. Conhecia a ou- tra havia muitos anos e sabia por que ela falava assim. Era amante de um homem casado. a m orte d os am an tes 17 pedaços de bruma Ela abre os olhos. Grandes olhos castanhos, penetrantes e belos. Depois, num gesto lânguido, estica os braços. Seu cor- po de menina estremece, fazendo saltar em pedaços a bruma da noite que, enquanto dormia, em torno dela se cristalizara. Esfrega o rosto com as mãos. Há naqueles dedos qualquer coisa de diverso, um gesto inusitado, uma harmonia nova. A menina senta-se na cama e, ao fazê-lo, dá com sua imagem refletida no móvel de vidro, junto à cama. E é quando lhe sobrevém a certeza daquilo que, antes, só pressentia. Ela acordou mulher. h el oi sa s ei x as 18 caixa de Pandora Guardou o segredo como se fosse um diamante, no fundo de uma caixa de veludo negro. E, um após o outro, amonto- ando-se, sedimentando-se, os anos se passaram. Ela própria já começava a esquecer aquilo que mantinha encerrado no compartimento mais escuro de seu coração. Até que um dia, abrindo o jornal, deu com a foto dele. Estava morto. Num turbilhão, a paixão que sentira pela vida inteira des- prendeu-se do fundo de veludo negro e explodiu, em todas as direções, enchendo o mundo, a atmosfera, a humanidade inteira, com seu veneno. Agora, letal. a m orte d os am an tes 19 letra por letra As mãos femininas, de dedos finos, tocaram as teclas cor de marfim. Vacilantes, pousaram sobre aqueles quadrados ali dispostos, cada um contendo seu símbolo, as letras que, juntas, compõem palavras, frases, livros, tratados – cartas. Vacilantes, ainda, as mãos se puseram em posição, o dedo mínimo esquerdo sobre o A: logo ele, um dedo frágil, logo ele responsável pela primeira letra, a mais presente. Que fa- zer? E assim, em posição, as mãos começaram seu trabalho. Lentamente correram pelas teclas, dedilhando, letra por le- tra, a carta de adeus. h el oi sa s ei x as 20 um dia, há muito tempo Seus dedos são longos como os de uma pianista. As unhas, pintadas com um esmalte transparente, suavemente nacarado. Na pele dos dedos há pequenas rugas, mas o dor- so da mão ainda é liso como o de uma menina. No dedo anular, traz um anel de três voltas. Talvez seja uma aliança. Ou talvez ela assim o quisesse. De repente, a mão se desvira, fazendo surgir a palma estriada pela linha da vida. E, mais abaixo, onde começa o pulso, a marca esbranquiçada de uma costura, a ponta de uma cicatriz. Um dia, há muito tempo, ela quis morrer. a m orte d os am an tes 21 h el oi sa s ei x as 22 geografia adorada A superfície, recoberta de vegetação rasteira, tem declives quase imperceptíveis, mas todo o terreno convergepara o poço, escavado rente ao chão. A partir dele, surge um cami- nho de arbustos, desaparecendo por trás de uma montanha. Ali, contra a luz do horizonte, vê-se que a vegetação é mais densa, como se alimentada pelos veios d’água subterrâneos. É aquele ponto que atrai a atenção da mulher. É sobre ele que se curva, pousando devagar os lábios naquele solo – feito de pele e pelos. A região misteriosa junto ao umbigo é a parte mais adorada do corpo de seu amante. a m orte d os am an tes 23 o segredo na cômoda Na solidão do quarto, ele olhou a mulher. Ela estava de cabeça baixa, os longos cílios, umedecidos pelas lágrimas, en- cobrindo os olhos que procuravam, assim, adiar ainda por um instante o momento fatal. Mas ele se aproximou e, com delicadeza, tocou-lhe o queixo, obrigando-a a erguer o rosto. Ela o encarou, afinal. Sabia que havia chegado a hora. Uma lágrima estremeceu, luziu e despencou, deslizando por sua face. Seus lábios tremeram – mas nada foi dito. E em silêncio, lado a lado, caminharam juntos até a cômoda, onde, num pequeno frasco, o veneno os aguardava. h el oi sa s ei x as 24 o banho noturno Caminha pelo corredor tateando as paredes. Sem janelas, o corredor é mais escuro do que o resto do apartamento. Mas logo ela se vê diante da porta do banheiro, onde é grande a luminosidade que vem da rua. Através do vidro canelado, a noite se filtra, leitosa, e ela pode distinguir todos os contornos com exatidão. Até mes- mo sua imagem, na prata do espelho. Na penumbra, abre o chuveiro e recebe no corpo o jato gelado, buscando no banho noturno o fim daquela febre que a consome. A febre de uma lembrança – de um tempo em que corpos ardentes faziam a água ferver. a m orte d os am an tes 25 um tango de Piazzolla Vai andando pela rua, apressada. Não olha em volta – está concentrada. Seu rosto é uma máscara, embora seja impossível dizer o que está sentindo. Mas, seja o que for, tem urgência. A mulher continua, com os olhos fixos à frente, driblando as pessoas que andam em marcha mais lenta. De repente, estaca. Como se fulminada por um raio. Abre bem os olhos e, imóvel, escuta. Da loja de discos, sai o som dramático de um tango de Piazzolla. O bandoneón chora raivoso, quase cruel. A mulher engole em seco. O tan- go é a música perfeita para quem vai matar ou morrer. h el oi sa s ei x as 26 a morte dos amantes Era noite de lua cheia e as palmeiras projetavam sombras através da janela aberta. A mesma janela que deixava entrar a presença do mar, ali tão perto, seu barulho incessante, sua brisa suave. No quarto, a cama, tosca, era quase um catre. E, sobre ela, com os corpos ainda salgados pelo dia de sol, eles se amavam. Era um amor sôfrego, quase uma luta – que só o luar teste- munhava. Depois, desfaleceram. E quando, ao nascer do dia, as moscas tomaram o quarto com seu zumbido inquietante, a mulher pensou, por um instante, que estavam mortos. Pois aquele amor, de tão grande, corrompia a carne, deixando-a doce e frouxa, como matéria decomposta. a m orte d os am an tes 27 29 a m arca d a solid ão a marca da solidão 31 a m arca d a solid ão uma bofetada na noite O nome do bar era quase um presságio: Bofetada. Mas a noite era de festa, a televisão do bar estava ligada, havia um jogo de futebol. Todos riam, torciam, falavam alto. Ao fundo, sentada numa pequena mesa, estava a mulher – só. Diante dela, um copo de caipirinha. As mãos imóveis sobre a mesa, os ouvidos tapados pelo fone de um walkman, numa atitude de isolamento acintoso, a mulher tinha o olhar per- dido e marejado, com uma expressão de enorme sofrimento. Como sua mesa ficava bem embaixo da TV, os olhos dos torcedores, alegres, de vez em quando baixavam e davam com o olhar daquela mulher sozinha. Tanta tristeza era uma agressão. Ela era a bofetada. h el oi sa s ei x as 32 33 a m arca d a solid ão múltiplo sorriso Pendurou a última bola na árvore de Natal e deu al- guns passos atrás. Estava bonita. Era um pinheiro arti- ficial, mas parecia de verdade. Só bolas vermelhas. Nunca deixava de armar sua árvore, embora as amigas disses- sem que era bobagem fazer isso quando se mora sozinha. Olhou com mais vagar. Na luz do fim de tarde, notou que sua imagem se espelhava nas bolas. Em todas elas, lá es- tava seu rosto, um pouco distorcido, é verdade – mas sorrindo. “Estão vendo?”, diria às amigas, se estivessem por perto. “Eu não estou só.” h el oi sa s ei x as 34 tormenta na praia Batia um vento sudoeste na praia de Ipanema. Vento de temporal, que verga os coqueiros, levanta nuvens de areia, revolve o mar, cuja massa é pontilhada por milhares de pe- quenas feridas – feridas de espuma. As pessoas fugiam, tentando se esconder do vento. Mas ela, não. Toda de branco, envolta em panos esvoaçantes, atra- vessou a rua e parou, frente a frente com a tormenta. E ali ficou. Ela, como o mar, também trazia feridas. No olhar, no sorriso desvairado, tinha estampada a marca de quem fez uma viagem sem volta. 35 a m arca d a solid ão h el oi sa s ei x as 36 ao cair da tarde A tarde morria. O sol brilhava oblíquo sobre as águas, explo- dindo em chispas. No cais deserto, o deque de ripas de madei- ra adentrava a água, como um suicida. A madeira estava quente quando a mulher começou a caminhar. Pisava com cautela, des- viando de lascas e pregos. A cada passo seus pés pousavam no chão com reverência, com um cuidado quase doentio. Mas não levou muito tempo para chegar ao fim do caminho. E, ali chegando, mergulhou. Seu corpo, descrevendo uma curva, rompeu a super- fície com um gesto vigoroso. Que talvez fosse o último. 37 a m arca d a solid ão com os olhos no chão Caminhava de cabeça baixa. Andava sempre assim, com a vista pregada no chão. As amigas a criticavam por isso, mas só ela sabia as vantagens daquele andar. Reparava em coisas que ninguém mais notava. Naquele instante mesmo, parada junto ao meio-fio, acabara de encontrar um de seus tesouros. No chão, a luz incidia sobre uma tampa de bueiro onde jazia um resto de água de chuva. Com isso, água e ferro se tinham fun- dido numa só matéria brilhante, que parecia emanar poder. E, no centro do tampão, como se fosse uma legenda, estava escrito: força e luz. h el oi sa s ei x as 38 o abraço mortal E agora? De onde brotará a seiva capaz de fecundar este coração marcado, esta alma vazia? Nada há em volta. Nada, senão o açoite do vento e do sol na pele, o torpor que para- lisa o corpo, tornando a mente oca e estéril. Para que, então, seguir em frente, passo após passo, e atravessar as imensas areias da ampulheta que se derramaram, criando o deserto? Para quê? Sabe que não conseguirá – que já não adianta tentar. O melhor é ficar aqui, não resistir mais. O melhor é entregar- -se ao solo quente e receber, silente, o abraço mortal das areias eternas. 39 a m arca d a solid ão nas teias do sonho Só o que queria era continuar pintando, espalhando sobre as telas aqueles véus que brotavam de seu inconsciente, ma- terializados com ajuda de espátulas, panos, palmas das mãos. Eram figuras diáfanas, retalhos de sonhos, impressões que pa- reciam soprar uma brisa sobre o rosto de quem as olhava. Mas talvez ela tivesse de parar. Pois agora, a cada vez que se via só, trabalhando, sentia-se invadir por uma sensação espantosa: suas teias de sonho desprendiam-se da tela e começavam a envolvê-la, lentamente. Um dia iriam matá-la, como se ela fosse um inseto. h el oi sa s ei x as 4 0 tempo de volúpia Era uma moça tímida. Quase não falava. Andava com os olhos baixos, como se buscasse algo por entre as pedras do calçamento. Foi assim que entrou no prédio, naquele dia. Subiu os dois lances de escada, enfiou a chave na porta e tran- cou-se no quarto – sempre quieta. Mas, lá dentro, olhou-se no espelho. E, ao fazê-lo, transformou-se. Soltandoos cabe- los, jogou para trás a cabeça numa gargalhada silenciosa, que foi aos poucos tomando todo seu corpo, com a força de um amante desesperado. Na mão, trazia a rosa vermelha que apa- nhara na encruzilhada. Era Carnaval. 4 1 a m arca d a solid ão estrelas da manhã Em contato com suas costas, o lençol era um emplastro quente, amarrotado e maldito. Como ele próprio, vítima des- se mal terrível que são as noites insones. Já tentara de tudo, todas as posições, já pensara em carneiros, números, chamas de velas, orações. Nada. Levantou-se. Tinha por norma não olhar o relógio para não aumentar sua angústia, mas pressen- tia, pela nesga de céu que vira na cama, que o dia não tardava. De fato. Lá estava ela, no céu: a estrela da manhã. Lúcifer. Deu um suspiro. Há qualquer coisa de Lúcifer em quem sofre de insônia, pensou. Os anjos caídos somos nós. h el oi sa s ei x as 4 2 a solidão no mar Quieto, o menino espiava o pescador acocorado sobre a pedra, as mãos calosas mexendo em linhas e chumbadas. Era um velho, com muita prática de pescaria, e o menino admi- rava sua destreza, encantado. Mas, de repente, num gesto de impaciência, o velho pescador atirou à água o pedaço de fio de náilon que o atrapalhava, enrolado a um dos anzóis. E o menino ficou olhando aquele fio suspenso na água, pequena enguia solitária. Sentiu pena. Tinha lido no jornal que um fio de náilon leva 600 mil anos para se dissolver no mar. Era tempo demais. Demasiada solidão. 4 3 a m arca d a solid ão réstia de vida Folheando o jornal, lá estava. A foto da criança africana, faminta, como tantas que vemos. Tantas que nós, embrute- cidos, já as olhamos sem estremecer. Mas nessa criança havia algo mais. Os olhos. Aqueles olhos – úmidos, negros, imen- sos – tinham a força de uma lagoa ou de um oceano inteiro. Brilhavam espetaculares e transmitiam uma sensação não de horror ou tristeza – o que era espantoso –, mas de luta feroz, quase de poder. Porque eram réstia de vida. Como se a alma daquela criança, aprisionada ao corpo decrépito, ali tivesse buscado sua última trincheira. h el oi sa s ei x as 4 4 4 5 a m arca d a solid ão a marca da solidão Deitado de bruços, sobre as pedras quentes do chão de paralelepípedos, o menino espia. Tem os braços dobrados e a testa pousada sobre eles, seu rosto formando uma tenda de penumbra na tarde quente. Observa as ranhuras entre uma pedra e outra. Há, den- tro de cada uma delas, um diminuto caminho de terra, com pedrinhas e tufos minúsculos de musgos, formando pequenas plantas, ínfimos bonsais só visíveis aos olhos de quem é capaz de parar de viver para, apenas, ver. Quando se tem a marca da solidão na alma, o mundo cabe numa fresta. o escritor e o homem 49 o escritor e o h om em síndrome do claustro A história saiu nos jornais. O jornalista francês Jean-Do- minique Bauby, com 43 anos, teve um derrame que o deixou totalmente paralisado. Só a mente ficou intacta. Com a alma aprisionada num corpo imóvel, tinha o que a medicina chama de síndrome do claustro. Um detalhe: ele conseguia piscar o olho esquerdo. Com a ajuda de uma terapeuta, que lia para ele as letras do alfabeto, uma a uma, escreveu um livro, piscando o olho na letra esco- lhida, formando palavras e frases. Na semana em que o livro saiu, ele morreu. O ser humano pode ser maior do que qualquer ficção. h el oi sa s ei x as 50 para os náufragos Quando vivia em sua fazenda na África, a escritora Isak Dinesen aguardava ansiosa a chegada dos livros que enco- mendava da Inglaterra. Depois, abertos os caixotes, começava a lê-los bem devagar – sabendo que seriam seus únicos livros durante meses. “Torcia para que os escritores tivessem dado tudo de si ao escrevê-los”, contou. Acho que, por causa disso, ela própria escrevia assim: sem pressa, detendo-se nos deta- lhes, que encharcava de sonhos, devaneios, fantasias. Isak Dinesen entregava-se completamente em cada linha – como se esperasse ser lida por um náufrago, perdido numa ilha deserta. 51 o escritor e o h om em tormenta invisível O escritor americano Paul Auster conta que tomou um susto com a derrubada do Muro de Berlim. É que, no exato dia em que se deu a queda, ele punha o ponto final em seu romance A música do acaso, que fala de muros, de libertação. “Toda vez que penso nisso, começo a tremer”, disse. Com razão. Escrevendo, às vezes desencadeamos uma es- pécie de tormenta invisível, que acaba refletida na vida palpá- vel. A ficção, alimentada pelos eflúvios de quem a cria (ou de quem a lê), pode ganhar força – e materializar-se. Escrever é uma manifestação do sobrenatural. Os escrito- res não deveriam jamais ser incréus. h el oi sa s ei x as 52 condenação eterna Diz a lenda que o albatroz é um pássaro capaz de ficar me- ses, talvez anos, voando sem parar. Sobrevoa mares, navios, dá rasantes – mas não pousa jamais. Será que dorme enquanto flana no espaço, as asas abertas singrando o vento? Será que pousa, afinal, quando chega a hora de morrer? Talvez o albatroz se pareça um pouco com os escritores. Estes, também, velam eternamente, escrevendo até quando sonham. Talvez seja isso, uma espécie de maldição. Uma con- denação eterna. 53 o escritor e o h om em almas impregnadas Esquecia tudo. Podia adorar um livro ou um filme, mas pouco depois a história desaparecia de sua mente, como se afundasse em areia movediça. Até que uma amiga lhe deu uma explicação para o fenômeno: disse que isso só acontece com as pessoas que “leem com a alma”, usando um canal que não o da razão. A esses, disse, é dado o esquecimento. Mas só por um tempo. Os sentimentos, os fantasmas, os terrores e pra- zeres que vagam pelas histórias se impregnam na alma dessas pessoas e um dia – quando elas menos esperam – se despren- dem. Para o bem ou para o mal. h el oi sa s ei x as 54 o mal das montanhas Leio um livro sobre a escalada do Everest. O açoite do vento, os corpos castigados pelo esforço sobre-humano, o ar rarefeito, calor e frio. Semanas de tortura e terror, em que os alpinistas se veem frente a frente com a morte. E, ao fim da escalada, o pico lá em cima, no topo do mundo, com seus quase 9 mil metros, quando alcançado, mostra-se insignifi- cante. Apenas um platô onde – por cansaço, terror e falta de ar – não se pode permanecer por mais do que poucos minu- tos. Então, por quê? Escrever é um pouco assim. Como o mal das montanhas. 55 o escritor e o h om em um mundo de loucos Estranho, o mundo da literatura. Um mundo em que autores e leitores pisam um território impalpável, alinhavado com os fios do sonho, em cujos céus chispam loucos sinais. Estes, quando captados, materializam- -se em riso ou dor, interferem no real, desvelam segredos, escondem outros, transformam as pessoas – deixam marcas. Estranho mundo. Um mundo onde os homens às vezes se chamam Evelyn. Ou Céline. E onde as mulheres podem chamar-se Isak. Ou George. Um mundo de loucos, esse da literatura. h el oi sa s ei x as 56 A de poesia Estava de pé, na esquina, esperando. De mau humor. Detesta- va esperar. Baixou a vista, com um suspiro de irritação, e foi quan- do seu olhar pousou nas pedras portuguesas que pisava. Estava de pé sobre um A. Curiosa, deu dois passos atrás e viu que a letra fazia parte de uma palavra: absoluta. Só então se lembrou de que estava na esquina onde vivera o poeta Drummond, cujos versos estão ali inscritos no chão. Afastando-se, leu a frase inteira. Seu dia então, num segundo, ficou cheio de luz: vontade de cantar, mas tão absoluta, que me calo, repleto. 57 o escritor e o h om em fogueira na noite Um ano antes da morte do poeta mexicano Octavio Paz, sua biblioteca incendiou-se. O poeta acordou de madrugada em meio à fumaça para descobrir que o fogo consumia aquilo que lhe era mais caro, o maior de seus bens materiais: seuslivros, muitos deles raros. Fico pensando o que não terá sentido. E também se não terá sido então, naquele incêndio, que ele próprio começou a morrer. Ele, que como todo poeta também era chama. Ele, que como uma premonição escreveu um dia: “Estou presente em todas as partes e para ver melhor, para melhor arder, me apago”. h el oi sa s ei x as 58 a insustentável leveza Com o dedo indicador, o escritor aperta a última tecla – o ponto final. Dias, semanas, meses de prazer e dor, a embria- guez da fartura alternando-se com momentos de esterilida- de em que mirava as palavras por escrever como se fossem as areias de um deserto. Nunca vou chegar lá, pensava. Mas chegou. Seu livro está pronto. E agora? Agora, não está feliz. Sente-se frágil, vazio, leve demais. Pensou que, prendendo- -os no papel, se veria livre de seus fantasmas. Mas, suprema ironia, agora que deles se livrou, está oco e só. Quer seus espectros de volta. 59 o escritor e o h om em a leveza, ainda O escritor diante do ponto final é um homem sem mãos. O ponto final é seu algoz: o escritor o perseguiu, mas ao alcançá-lo depara-se com o vazio, a leveza insuportável do dever cumprido. Pior. Passa a viver a comoção de ter a alma exposta, revirada por outras mãos, muitas vezes frias, que irão maculá-la sem piedade. Nelson Rodrigues dizia que os livros talvez devessem ser escritos e depois destruídos. Escrever é um ato de solidão absoluta e assim deveria permanecer. A lei- tura corrompe, desvirtua. Talvez o livro já comece a morrer nas mãos do primeiro leitor. h el oi sa s ei x as 60 o escritor e o homem Carlos Heitor Cony disse um dia, numa entrevista: “O escritor é sempre contra o homem”. A princípio, estranhei. Mas Cony dizia que passara vin- te anos sem escrever porque durante todo esse tempo estava vivendo. Acabei concordando. Escrever e viver de certa forma se contrapõem. Escoamos para o papel a água que é excessiva, que nos encharca. Ou, talvez, a água que não ousamos provar. E assim, escravos, carregando seus potes para despejá-los na fonte da fantasia, vamos correndo o risco de secar. impressões e fantasmas 65 im p ressões e fan tasm as a casa das bonecas Tive uma sensação imediata de desconforto ao entrar na loja. Por toda parte, sobre balcões e prateleiras, havia dezenas de bonecas, seus pequenos corpos inertes amontoados. O dono da loja não estava à vista e eu, que desde pequena sempre tivera medo de bonecas, me senti oprimida. Eram bo- necas de vários tipos, todas muito antigas, com seus rostos de biscuit, cabelos opacos e seus olhos de cristal – fixos, mortos. De repente, senti como se alguém me observasse pelas costas. Virei-me, devagar. E o terror me gelou os ossos. Vi, com toda nitidez, um daqueles olhos de cristal piscar para mim. h el oi sa s ei x as 66 ele existe, acreditem Dizem que é um demônio. Há quem não creia em de- mônios. Mas o fato é que às vezes eles aparecem. E não falo de um demônio qualquer, mas daquele que vive dentro dos computadores. Um amigo meu me disse até o nome dele, o nome de um ser das trevas que vive dentro das máquinas, que as faz quebrarem no momento mais inoportuno – apenas para nos enlouquecer. É verdade, eu sei o nome dele. Mas não ouso pronunciá-lo aqui, pois temo que, irado, ele possa surgir em toda sua força. Não se deve jamais nomear os demônios – para que eles não apareçam. Mas acreditem: ele existe. 67 im p ressões e fan tasm as por falar em demônios Meus dedos trêmulos pressionam a tecla. Volto a fita para ouvir mais uma vez a mensagem gravada. Meu metabolismo enlouqueceu. A garganta foi fechada por uma garra invisível, o coração se debate, o sangue corre sem destino nas veias, acelerado. Lá está, outra vez, a voz. Há poucos dias eu falava em demônio, ser misterioso que vive dentro das máquinas para nos atormentar. Não ousei nomeá-lo, temendo que de novo se materializasse para me alucinar. Não adiantou. Às vezes, mesmo quando não dizemos seu nome, ele aparece. h el oi sa s ei x as 68 prisão de bronze Chego mais perto. Diante de mim está o rosto, imóvel. Um rosto de velha, com seus sulcos bem marcados, as pál- pebras flácidas, os lábios caídos. Tenho vontade de tocá-lo, correr meus dedos por aquela pele fria, mas não o faço. O bronze polido de que é feito, um bronze de muitas décadas, acabaria gasto se nos fosse permitido tocá-lo. Não, não se deve tocar estátuas. Recuo um pouco, sem desviar os olhos. Até que, num arrepio, me vem um pensamento terrível: o de que talvez ali, dentro daquela face esculpida em bronze, haja uma alma aprisionada. 69 im p ressões e fan tasm as nos becos de Barcelona Você caminha a passos rápidos. Embora não queira ad- mitir, tem uma sensação estranha, que jamais sentiu. Não é medo. É um rumor vindo das profundezas da alma, impossí- vel de definir. Olha em torno. As ruelas do bairro gótico de Barcelona, durante o dia cheias de gente colorida e falante, agora estão desertas – e mais escuras do que nunca. As facha- das, frente a frente nos becos incrivelmente estreitos, parecem tocar-se em algum ponto lá no alto, onde o breu engole tudo. De repente, com toda nitidez, um som de passos, bem atrás de você. Você para, virando-se, devagar. E o rumor que lhe su- bia da alma percorre com um jato o corpo inteiro, eriçando- -lhe cada fio de cabelo: o beco está vazio. h el oi sa s ei x as 70 no metrô vazio Entrou no metrô e sentou-se junto à janela. Detestava metrô. O silêncio constrangido, as pessoas frente a frente, sem saber o que fazer com as mãos. Era como nos elevadores, só que pior – pois demorava mais tempo. Por isso ia na janela. Fixou os olhos na escuridão lá fora. Estava inquieta. Talvez por causa do metrô vazio. Ou talvez por culpa da jovem de preto que se sentara ali adiante, num banco de frente para o seu. Podia sentir o olhar dela. Resistiu por um tempo, mas acabou encarando-a. E sentiu que o horror a percorria: no fundo amarelo, as pupilas da moça eram um traço. Tinha olhos de gato. 71 im p ressões e fan tasm as h el oi sa s ei x as 72 batalha noturna Ela tem medo de dormir. Vira-se na cama, sob as cober- tas. Tem sono, mas não adormece. Não se deixa vencer, está sempre à espreita. Não será assim tão fácil, pensa. Não será uma luta qualquer. Eles terão de vir buscá-la num momento de distração, mas isso ainda vai demorar muito a acontecer. Eles verão. Ela não é boba. Não vai esmorecer. Seus olhos estão pesados. Mas não, ela não vai deixar. Vai continuar lu- tando. Sabe que ao menor sinal de fraqueza, ao mínimo piscar de olhos, eles chegarão para levá-la. Não, ela ainda vai lutar muito. Muito, muito. Eles verão. Verão. 73 im p ressões e fan tasm as beleza corrompida Quando ela entrou na sala, fez-se um silêncio apertado e os gestos ficaram por um instante suspensos no ar – partidos. Era bela. E jovem, pouco mais que uma criança, com um olhar fugidio que guardava ainda os sustos da infância. Mas, por paradoxal que fosse, havia em sua beleza um elemento estranho, uma aura de passado, de decomposição. Qualquer coisa em seu semblante revelava segredos impensáveis, como se o rosto emergisse de um tempo dissoluto. Sua beleza cor- rompida era como os vinhos feitos de uvas contaminadas, cujo sabor doce paga o preço da podridão. h el oi sa s ei x as 74 estranhos tremores É madrugada. A rua está deserta. O rapaz anda apressado pela calçada, saltando por cima das poças d’água. Treme, mas sabe que não é de frio, pois, passada a chuva, subiu do chão um vapor quente que encheu o ar de uma umidade pesada. Além do mais, a noite está quieta, sem uma mínima brisa. Por que treme, então? De repente, ao virar uma esquina – onde uma enorme figueira debruça seus galhos seculares –, tem a resposta: no ar estagnado da noite, quando tudo em torno está imóvel, as folhasda figueira se agitam, como se movidas por um terrível vento de temporal. 75 im p ressões e fan tasm as ela veio do mar Aconteceu de repente. A manhã era de sol e de céu azul, sem sequer uma brisa que prenunciasse mudança de tempo. Mas aconteceu. No princípio era apenas uma névoa no ho- rizonte. Logo já se estendera por toda a linha divisória entre céu e mar, crescendo, adensando-se. E, à medida que se aden- sava, parecia aproximar-se da praia. De tão espessa e imensa, de tão rápida em seu caminhar – quando não havia vento –, a bruma estranha chamou a atenção de quem passava. Todos ficaram à espera. E, num instante, a névoa cobriu tudo com seu manto. O mundo desapareceu. h el oi sa s ei x as 76 nunca vou saber Ergui o fone do gancho. Deu sinal. Disquei o primeiro algarismo. Quando ia teclar o segundo, percebi vozes aba- fadas – uma linha cruzada. Normal. Continuei discando. Agora estava chamando. Mas entre uma chamada e outra voltei a ouvir as vozes, já um pouco mais claras. Ou me- lhor, a voz. De mulher. Parecia aflita. De repente, o grito. Ouvi nitidamente quando aquela voz pediu socorro. Um pedido desesperado. E, nesse exato instante, alguém aten- deu do outro lado, desfazendo a linha cruzada. O grito ficou perdido, partido – sem resposta. Mas não pude mais esquecê-lo. 77 im p ressões e fan tasm as impressões e fantasmas Fecha as cortinas e deita-se na cama, passando a mão pelo acolchoado estranho. Pensa em quantas pes- soas não terão se deitado ali, sobre aquele forro de cama de hotel. Observa as pequenas manchas, quase imper- ceptíveis, sobre o acetinado cor de vinho. Na colcha, e também no tapete, delicadas impressões foram dei- xadas por seus antecessores, pessoas que ali estiveram, apaixonadas ou solitárias. Mas ela não se sente só. Ao contrário. Todos os fantasmas daquele quarto parecem envolvê-la. E é assim, por eles acompanhada, que se entrega, feliz, a um prazer só seu. duas po ntas de um só f io 80 h el oi sa s ei x as o nascimento das estrelas As fotos, na revista, chamavam atenção por seu colorido. Mostravam uma superfície esponjosa como carne humana, brilhante de líquido ou gordura, com várias nuances de ver- melho e alaranjado. Aproximei os olhos, pensando que fosse mais uma série de fotografias de fetos no útero da mãe, que a imprensa publica de vez em quando. E só então li a legenda: as fotos, de imagens captadas pelo telescópio Hubble, mostra- vam o momento do choque entre duas galáxias em Antennae, nos confins do universo, explicando que é desse tipo de co- lisão que as estrelas surgem. O choque produz uma explosão de colorido sangrento. As estrelas, como o homem, nascem banhadas em sangue. 81 d u as p on tas d e u m só fio diante da janela, uma pedra Diante de sua janela havia uma pedra. Não pedra de poesia, e sim um pequeno morro de rocha maciça. Mas es- tava condenada – seria dinamitada para a construção de um shopping. Antes coberta de vegetação, fora raspada por tra- tores e pás. Para marcar os pontos onde seriam colocados os explosivos, toda ela fora cravada de estacas, como o coração de um vampiro. Um dia, da janela, viu um cachorro vira-lata, sentado no meio da rocha deserta. De repente, quando o animal andou, ela notou, por seu andar esdrúxulo, que só tinha três pernas. E, como num quebra-cabeças, o cão mutilado e a pedra nua se encaixaram: juntos, compunham um cenário de guerra – de terra devastada pela fúria dos homens. 82 h el oi sa s ei x as o mar e suas víboras Olho o mar. Erguidas pelo vento, as vagas sobem em sé- rie, como um bando de serpentes prontas para o bote. As ondas, assim batidas pela ventania, têm a crista achatada como cabeças de víboras, de onde espirra a fumaça da espuma. Há nessas ondas e nessa luz uma beleza infinita, mas há também um rugido de poder, talvez até de raiva. As ondas se quebram agressivas, numa exibição de força, que às vezes parece furiosa e mesquinha. Fico pensando se os deuses não teriam sido contaminados pelos homens. 83 d u as p on tas d e u m só fio o colar de cristal O filósofo francês André Glucksmann conta dos horrores que viu na Argélia. Visitou aldeias destruídas pelo terror islâ- mico, o chão vermelho de sangue. Nas casas incendiadas, pi- sou em pedaços calcinados de carne humana. Mas entre todos os terrores, o pior talvez seja seu relato sobre a casa de uma velha assassinada. No chão, caído, havia um colar de cristal. Estava fechado. Mas só quando viu o sangue coagulado nas pedras do colar, ele compreendeu. No instante da matança, o colar deslizara para o chão com o fecho intacto: a cabeça da mulher fora decepada. 84 h el oi sa s ei x as uma noite de liberdade Minha avó tinha um canário belga. Vivia numa gaiola de arame dourado, as garrinhas envolvendo a madeira do polei- ro, os olhos assustados. Um dia, no sítio, ao abrir a portinhola para trocar-lhe a água, minha avó se distraiu e o passarinho escapou. Foi um desgosto. Até o anoitecer, ela ficou do lado de fora, procurando o canário – mas em vão. No dia seguin- te, bem cedo, minha avó abriu a gaiola e limpou tudo. Pôs comida nova, trocou a água e esperou. Para nossa surpresa, o passarinho voltou. Entrou com gosto em sua prisão dourada. A liberdade é, às vezes, irmã do terror. 85 d u as p on tas d e u m só fio manhã de pescaria Na manhã de mar revolto, a vara de pesca fincada na areia parece curvar-se ante o troar feroz das ondas. Ao lado, sentado numa velha cadeira de praia, está um homem. Traz a cabeça pendida sobre o queixo, como se cochilasse. Dá a impressão de estar ali desde sempre, imóvel e silente desde o início dos tempos. E é assim, imerso em seu mundo silencioso, que ele me faz pensar nas bolhas de solidão que todos somos. Nós, vi- vendo encarcerados em nossos corpos, invólucros que não pudemos escolher e dos quais só sairemos ao dar o último mergulho – rumo ao desconhecido. 86 h el oi sa s ei x as a beleza das ruínas A velha está sentada à mesa. As mãos trêmulas cruzadas à frente, na altura do rosto, como se rezasse. Dessas mãos escorrem veias grossas que parecem carregar em sua seiva a história de muitas décadas. São mãos como troncos, como garras de pássaro, de pele áspera e desenhada por sulcos, veios, nós. Traz manchas de vários matizes, mapas de segredos e descobrimentos. Há beleza nessas mãos, nesses braços desfei- tos. É a mesma beleza que vemos nas construções antigas, nas ruínas. Só que nessas é a pedra – e não a pele – que nos conta histórias. 87 d u as p on tas d e u m só fio um brilho novo Parece que os cientistas descobriram uma nova estrela. Fica na constelação de Centauro, a 17 mil anos-luz da Terra, e tem um nome tolo, feito de algarismos e letras, algo assim como BPM 37093. A frieza dessa denominação, porém, es- conde algo raro: a estrela é toda feita de cristal de carbono contaminado de oxigênio. Isso significa simplesmente que essa estrela – toda ela – é um gigantesco diamante. Um dia- mante do tamanho da Terra. Desde então tenho olhado o céu de forma diferente e já me flagrei, noite alta, perscrutando a escuridão. A Natureza é às vezes pura poesia. 88 h el oi sa s ei x as sangrando espuma Parou de chover e a baía de Angra está deserta. A super- fície do mar é lâmina mesclada de verde e cinza onde a luz do sol, refletida, cria um céu cheio de estrelas. Ao fundo, ilhas e montanhas com suas escarpas cobertas, ainda, pela vegetação atlântica, formam um degradê que se esbate em direção ao infinito. Ouço o barulho de um motor. Surge no horizonte uma pequena lancha. Corta a superfície es- pelhada, que sangra espuma. A princípio aquilo me agride. Mas depois reconheço que há beleza nessa intervenção do homem. São os nossos rastros. 89 d u as p on tas d e u m só fio 90 h el oi sa s ei x as uma pequena amostraGanhei de presente um geodo de ágata. A pedra, áspera, foi polida em uma das faces, através da qual podemos apre- ciar seus veios e sua constituição. Só que quando a superfície foi polida, ficou visível, encravada no coração da pedra, uma gota de água fóssil – uma gota d’água de milhões de anos. Olho sempre para ela, essa gota impalpável. Pego a pedra nas mãos e balanço-a, vendo agitar-se a água aprisionada. E sinto uma inquietação. Como disse um amigo poeta, presa ali dentro quando ainda não havia o homem sobre a Terra, a gota é uma peque- na amostra da eternidade. 91 d u as p on tas d e u m só fio contagem regressiva Quantos segundos você levará para ler o que está escrito aqui? Vinte, trinta, quarenta segundos? Um minuto, talvez, se estiver distraído e em algum ponto tiver de recomeçar? Dez segundos, se começar a ler e, desinteressado, desviar os olhos deste espaço onde alguns tolos insistem em deixar seus rastros? Quanto tempo? A vida é assim, feita de pequenos conjuntos de segun- dos, frações de tempo sobrepostas, mínimas como o espaço de tempo que se leva para ler isto aqui. E de repente, lá está: trinta, quarenta, sessenta – e os segundos se transformaram em anos. 92 h el oi sa s ei x as duas pontas de um só fio O sinal abre e os pedestres começam a atravessar. Da di- reita, segurando na mão da mãe, vem uma menininha de pouco mais de um ano, com seus passos incertos. Da direção oposta, surge um velho. São inseguros, também, seus passos. Caminha olhando para o chão, com todo o cuidado. Cada um com seu caminhar difícil, velho e menina se cruzam na faixa de pedestres. Há naquele encontro qualquer coisa de absoluto, como se os dois fossem as pontas do imenso e intrincado fio que compõe a humanidade inteira. Um fio áspero e suave, a um só tempo feito de seda e sisal. 93 d u as p on tas d e u m só fio o livro Contos mais que mínimos migrou, do jornal Fo- lha de S. Paulo, para as páginas de um livro. Na colu- na literária chamava-se “Contos Mínimos”, devido ao espaço tão pequeno que cada narrativa tinha para se es- pichar, talvez se espremer, de modo a ocupar o espaço mínimo existente no jornal, mas com força máxima na pá- gina. A obra é repleta de minicontos – todos narrados pela autora – e cabem exatamente naquele pequeno tamanho, não mais, não menos... No título do livro foi acrescido um MAIS, seguido de um QUE, também a mais. Ganhou roupa nova, novo forma- to..., por meio de uma edição bem cuidada, com um projeto gráfico criativo, inovador e ilustrações com xilogravuras, nos envolvendo em um tom meio que de mistério – nos reme- tendo a Nelson Rodrigues. A autora fala de amor, solidão, sexualidade, fantasmas, universos etc. – o que, segundo ela, são seus eternos assombros.9 4 h el oi sa s ei x as Um livro que trata dos temas contemporâneos transver- sais no espaço urbano tão essenciais num mundo tão polari- zado e repletos de significados. A obra possibilita ao jovem leitor discutir temáticas da vida como ela é, nas suas linhas e entrelinhas..., na sua pujança de existir em cada letra e palavra tecida pela autora de forma cirúrgica. O Twitter possui espaço de até 140 caracteres para escre- ver, já a obra Contos mais que mínimos prova que tama- nho não é documento. O conto é curto, mas a força é grande. Pelo olhar de.... Sessenta microtextos ilustrados. Em histórias de temas como amor, solidão, literatura, fantasmas e o universo, Heloisa Seixas revela uma enorme capacidade de dizer muito em pouquíssimo espaço. Cheios de surpresas, reflexões, fantasias, tragédias, lirismo, os contos re- presentam recortes afiados do espaço urbano contem- porâneo, com suas idiossincrasias e contradições. Vale ressaltar que na obra cada 60 minicontos, possui 12 a 16 linhas. O tamanho (em altura e largura) é bem pe- queno, e as frases estão posicionadas no meio da folha, sendo assim, se essas 12 linhas, fossem escritas como normalmente são, ficariam em umas 4 linhas. 95 p aratex to a máxima de Heloisa Heloisa Seixas nasceu no Rio de Janeiro; jornalista e au- tora de mais de vinte livros, entre romances e volumes de contos e crônicas, tendo sido quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti e uma vez finalista do Prêmio São Paulo. É também autora do livro O lugar escuro, sobre a doen- ça de Alzheimer. Seu livro mais recente é A noite dos olhos (2019), pela Companhia das Letras. Seu primeiro livro de contos – Pente de vênus: histórias do amor assombrado – foi publicado em 1995; o primeiro romance – A porta – saiu em 1996, pela Record, seguido de Diário de Perséfone, em 1998, pela mesma editora. Em 2001, publica Através do vidro, dentro da coleção Amores extremos. No mesmo ano, publica os livros de contos 13 maneiras de amar e Contos mínimos, uma coletânea de contos pu- blicados na revista Domingo, do Jornal do Brasil. Em 2003: Sete vidas: sete contos mínimos de gatos; Pé- rolas absolutas e Boa companhia. Há quem diga, sem trocadilho, que seus Contos mínimos são, no mínimo, 9 6 h el oi sa s ei x as máximos. É autora também de Uma ilha chamada livro: contos mínimos sobre ler, escrever e contar. (Record, 2012). Para saber um pouco mais sobre o trabalho da autora, acesse: <heloisaseixas.com.br/contos-minimos/>. Acesso em: 12 fev. 2021. Heloisa abre as páginas do desafio.... em um conto mais que mínimo, minúsculo; em um espaço pequeno, prisio- neiro e circunstancial letras, ideias e sensações, despeja, no mínimo, um oceano de paixões secretas, mortes, suicídios, tormenta, leveza, impressões fantasmas, contagem regressi- va, tudo a um só fio.... como nós... confinados, espremidos, vazios, lutando para deixar nossas marcas sobre a terra. Vive- mos o nosso conto mínimo? A obra é dividida em blocos e cada bloco foca na temáti- ca que cada miniconto traz; são eles: “A morte dos amantes”, ”A marca da solidão”, ”O escritor e o homem”, “impressões e fantasmas” e “Duas pontas de um só fio”. São narrados de forma fragmentada, trazendo em sua essência uma abertura na qual o leitor pode deduzir a ordem dos fatos ou até mesmo criar histórias a partir de seu conhecimento de mundo. Ou- tra característica marcante é a última sentença sempre trazer uma conclusão. 97 p aratex to No miniconto “A penitência das flores”, conta a história de um homem, cuja penitência após matar a mulher amada é vender flores. Uma narrativa detalhista que nos faz acreditar no homem bom e, em seguida, nos tira do lugar comum e nos choca! Ele é um assassino! As aparências enganam... o humano é complexo... Essas flores estampadas quase que diariamente nos jornais impressos, televisivos e nas redes sociais é o mote para o tra- balho com Ciências Sociais Aplicada, pois fala de feminicídio, misoginia... crime de ódio baseado no gênero – uma das ma- zelas estruturais do machismo brasileiro. As flores do nosso jardim chamado pátria pagam peni- tência com a vida. Após, ficam sem água, sofrem mal tratos, abandono, murcham e morrem na cara da sociedade, mesmo com medidas preventivas e com direito à Delegacia da Mu- lheres! E quantas flores são silenciadas? O miniconto “A marca da solidão”, pelo título, trata de um tema atual, pois, na atualidade, vive-se mais de forma onli- ne do que a cores e ao vivo. Vive-se a ilusão da selfie – eu para o mundo. Tema que pode ser trabalhado em Ciências da Na- tureza, associado a temas como: depressão, ansiedade, suicídio, setembro amarelo, que acomete principalmente a população 98 h el oi sa s ei x as jovem no mundo. Uma outra questão que pode ser discutida: o isolamento social, seus efeitos e causas em um confinamento obrigatório devida à pandemia (Covid-19) em 2020 e 2021 – o mesmo com a temática do miniconto “Múltiplo sorriso”. Em “O escritor e o homem”, a ludicidade envolve o pro- cesso de criação – escritor-obra-leitor –, por meio de sensações e sentimentosno ato de leitura e escrita. Favorece o trabalho com as Linguagens e suas tecnologias e Língua Portuguesa, por meio do “campo artístico literário”, que possibilita a com- paração com outras diferentes formas de contos, outros gêne- ros literários e, também, com minicontos de outros autores, com a obra em questão, ou até mesmo, com um miniconto presente na própria obra, como, por exemplo, “A leveza, ain- da”, que trabalha a mesma temática do “O Escritor e o ho- mem”, mas em contexto diferente, ou seja, a condição de um escritor ao finalizar sua obra e ver sua vida exposta pela visão de diversos leitores. A comparação pode ser realizada com os minicontos presentes nas redes, em gêneros e formas diversas de produções vinculadas à apreciação de obras artísticas e pro- duções culturais (resenhas, vlogs e podcasts literários, culturais etc.) ou a formas de apropriação do texto literário, de pro- duções cinematográficas e teatrais e de outras manifestações 99 p aratex to artísticas (“remidiações”, paródias, estilizações, videominutos, fanfics etc.), conforme o que prevê o campo artístico-literário. E cabe um questionamento: Será que toda obra “começa a morrer nas mãos do pri- meiro leitor”? Ou ganha vida e novas inspirações? Exemplos de minicontos que podem ser comparados com os minicontos da obra Contos mais que mínimos, com a mesma temática ou não: O EspElhO – Você não devia ter tocado no espelho. Quem o toca fica preso nele. – Mas do que você está falando? Como sabe que toquei no espelho? (Marcos Rodrigo dos Reis Silva) prOpósitOs Quando os homens derrubaram a estátua do ditador, logo houve quem a derretesse para vender. (Marcos Rodrigo dos Reis Silva) EnEs Para Dona Ivone Lara10 0 h el oi sa s ei x as Ivones, Islanes: todas assinam i. Meninas, moças: ambas têm emes – mulheres maravilhosas; todas sufixam enes – ga- lantes e perenes. Sonho meu: vem matar esta saudade, pois a madrugada fria só me traz melancolia! (Wolhfagon Costa de Araujo) tEmpOs sOmbriOs Saiu pra folia fantasiado de guerrilheiro cubano. Só foi solto na quarta-feira de cinzas. (Gilberto Stone) A sOltEirOnA Ela nunca se casou, mas sempre procurava alguém para amar. Inclusive, os hóspedes que frequentavam sua pousada. Quando chegou aquele cavalheiro, belo e elegante, para tra- balhar no banco local, tornou-o o hóspede mais importante. Atendia-o em seus mínimos desejos. Inclusive mandou matar o galo que o incomodava pela manhã. Até o dia em que ele trouxe esposa e filhos para ela cuidar. (Sueli Couto Rosa) AmOr Ele era de Áries. Ela, de Peixes. Nunca se encontraram e foram felizes para sempre. (Cesar Diogo) 10 1 p aratex to A ArtistA Ela queria dançar e pintar, mas sua mãe acreditava que, porque ela nascera sem os braços, nunca poderia fazer nada disto. Em sua casa não tinha música e nem tintas. Então ela esperou a chuva forte, cantou a dança da chuva e, amassando o barro com os pés, desenhou o seu próprio retrato no chão. (Sueli Couto Rosa) GEOmEtriA A curva e o traço encontraram-se num canto do papel. Ele reto, aproximou-se. Ela escorregadia, saiu pela tan- gente. (Luiz Cláudio da Silva Santos) mAtA AtlânticA Plantaram um mico na Amazônia. (Stella Maria Fer- rasso Rezende) brAncA DE nEvE mODErnA A moça tinha a pele branca como a neve e o cabelo escu- ro como breu. Abandonou os sete irmãos, fugiu da madras- ta, fez uma torta com a maçã e foi vender na feira. Ficou tão famosa com a sua receita de torta que nunca mais quis saber do príncipe. (Karen Minato Eif ler)1 0 2 h el oi sa s ei x as “Impressões e fantasmas”, por um olhar metaficcional, fala sobre a vida, seus tormentos e o que nos tira da zona de conforto. Um bom momento para trabalhar em sala de aula o protagonismo juvenil, os projetos de vida dos alunos, suas expectativas e anseios diante do mundo “líquido”, global e da internet das coisas, apoiados em Linguagens e suas tec- nologias e nas Ciências Sociais Aplicadas. “O mar e suas víboras” possibilita o trabalho com as Ciências Sociais Aplicadas – mitologia grega, caixa de pan- dora –, ao comparar o comportamento das ondas do mar às víboras – beleza e a fúria, na crítica irônica inerente a como os deuses influenciariam os homens. “Duas pontas de um só fio” envolve todos os itinerários e seus campos, pois trata de diferentes temas: nascimento das estrelas versus nascimento dos seres humanos, pedra versus ser humano, beleza versus fúria, ser humano versus deuses, intacto versus decepada, liberdade versus não liberdade (prisão), ser humano versus mundo, infância versus velhice etc. Em “Duas pontas de um só fio”, a temática pode ser tra- balha com Ciências da Natureza – da infância à velhice – iní- cio e fim – obstáculos etc. 10 3 p aratex to Na obra, os minicontos apresentam diversas temáticas e, ao final, trazem na última linha uma sentença como, por exemplo: “ele matou a mulher que amava”, “um fio áspero e suave, a um só tempo feito de seda e sisal” – algo genuíno e particular no talho da escrita da autora. O impacto é o seu talhão! Para Friedman (apud GOTLIB, 2006, p. 64): “A questão não é ‘ser ou não ser breve’. A questão é: ‘provocar ou não maior impacto no leitor’”. É o que a Heloisa e a sua obra provocam! Spalding (2007): “Ser mini, desta forma, não é um fim em si mesmo, e sim uma estratégia estética do autor para fazer ficção”. Na obra, há muitos aspectos minificcionais presentes – em destaque, sempre, a minificção. Os minicontos da obra de Heloisa podem ser comparados com o vídeo de um miniconto narrado pela escritora Ma- rina Colasanti, disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=mnVUGoLdZyM>. Acesso em: 12 fev. 2021. 10 4 h el oi sa s ei x as O desafio de um conto minúsculo. Letras, ideias, sensações contidas no espaço exíguo — circunscritas, prisioneiras. Um pequeno espaço, para nele despejar um oceano inteiro de paixões secretas. Mas não de enxurrada, avalanche, enchente. E sim gota a gota. Na verdade, vivemos assim, todos nós. Espremidos num tempo que se esvai tão depressa, tentando a todo custo deixar nossos rastros sobre a terra. Vivemos um conto mínimo. 2021-07-28T16:42:11-0300 LCPE - Laboratório de Celulose Papel e Embalagem
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