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1964 AS ARMAS DA POLÍTICA E A ILUSÃO ARMADA Ailton Benedito Alberto Passos G. Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa Arlindo Fernandes de Oliveira Armênio Guedes Arthur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Caetano Pereira de Araujo Celso Frederico Cesar Benjamin Charles Pessanha Cícero Péricles de Carvalho Cleia Schiavo Délio Mendes Dimas Macedo Diogo Tourino de Sousa Edgar Leite Ferreira Neto Fabrício Maciel Fernando de la Cuadra Fernando Perlatto Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Francisco Inácio de Almeida Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta Oscar D’Alva e Souza Filho Othon Jambeiro Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pierre Lucena Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Rubem Barboza Filho Rudá Ricci Sergio Augusto de Moraes Sérgio Besserman Sinclair Mallet-Guy Guerra Socorro Ferraz Ulrich Hoffmann Washington Bonfim Willame Jansen William (Billy) Mello Zander Navarro SEPN 509 • Bloco D • Lojas 27/28 • Ed. Isis • 70750-504 • Brasília-DF Fones: (61) 3224-2269 / 3045-6916 • Fax: (61) 3226-9756 fundacao@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br Efetivos: Alberto Aggio Ciro Gondim Leichsenring Davi Emerich Dina Lida Kinoshita George Gurgel de Oliveira Giovani Menegoz Helena Werneck João Batista de Andrade João Carlos Vitor Garcia José Ribamar Ferreira (Ferreira Gullar) Juarez Amorim Luiz Carlos Azedo Luiz Werneck Viana Mércio Pereira Gomes Raimundo Jorge N. de Jesus Regis Cavalcante Renata Bueno Sérgio Camps Moraes Stepan Nercessian Tobias Santana Vladimir Carvalho Suplentes: Antonio Augusto M. de Faria Arlindo F. de Oliveira Cleia Schiavo Weyrauch Maria do Socorro Ferraz Aldo Pinheiro CONSELHO CURADOR Presidente de Honra: Armênio Guedes Presidente: Caetano Pereira de Araujo Vice-Presidente: Luís Sergio Henriques Secretária: Lucília Garcez CONSELHO EDITORIAL Caetano Pereira de Araujo (Organizador) Brasília-DF, 2014 1964 AS ARMAS DA POLÍTICA E A ILUSÃO ARMADA © by Fundação Astrojildo Pereira, 2014 Autorizada a reprodução parcial ou total desta obra desde que citada a Fundação Astrojildo Pereira e sem fins lucrativos. FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA (FAP) SEPN 509 – Bloco D – Lojas 27/28 – Ed. Isis 70750-504 – Brasília-DF Fones: (61) 3224-2269/3045-6916 Fax: (61) 3226-9756 www.fundacaoastrojildo.org.br fundacao@fundacaoastrojildo.org.br Tiragem: 2.000 exemplares Distribuição FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA Capa: Estúdio L&L. Ficha Catalográfica A658a Araujo, Caetano Pereira de. 1964: As armas da política e a ilusão armada / Caetano Pereira de Araujo – Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2014. 508p. 23cm ISBN: 978-85-89216-49-4 1. Teorias políticas. I. Organizador. II Título. CDU 320.5 SUMÁRIO Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 I A defesa intransigente da democracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Roberto Freire As esquerdas, a ditadura e o problema da frente democrática 35 Luiz Sérgio Henriques Crise de poder e espoliação da democracia . . . . . . . . . . . . . . . . 46 José Antonio Segatto Nos 50 anos do golpe de 1964 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 Marly de A. G. Vianna A resistência política aos anos de chumbo . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Armênio Guedes Liberais na luta contra a ditadura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Luiz Carlos Azedo Fazer as mudanças na democracia, um desafio . . . . . . . . . . . . . 76 Sergio Augusto de Moraes O conjuntural desaparece por trás do ‘estrutural’ . . . . . . . . . . . 81 Raimundo Santos II 1964 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Luiz Werneck Vianna A pedagogia do passado como construção do futuro . . . . . . . . 97 Marco Aurélio Nogueira Lições de 1964 e antes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 João de Paula Monteiro Ferreira O golpe de abril e o 15 de novembro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 Moacir Longo Ao apagar das luzes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Ferreira Gullar 1964: golpe ou revolução? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 Ivan Alves Filho Golpe de Estado, regime autoritário e transição democrática no Brasil e no Chile: Uma análise comparativa . . . . . . . . . . . . . 149 Alberto Aggio Da ditadura militar ao garantismo constitucional? . . . . . . . . . 168 Ruszel Lima Verde Cavalcante III Os erros cometidos em 64 e uma proposta de avanço . . . . . . . 173 Marco Antônio Tavares Coelho Breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil . . . . . . . 182 Maria Alice Rezende de Carvalho Meio século depois . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197 Celso Frederico As divisões internas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Severino Theodoro de Mello Democracia: o duro aprendizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218 Arildo Salles Dória 1964, 1974, 1984, 1994 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Júlio Martins A destruição do sindicalismo nos governos Dutra e militar . . . 230 José Carlos Arouca Derrota anunciada: Luta armada e o PCB . . . . . . . . . . . . . . . . . 237 Luís Mir IV O Golpe de 1964 e aspectos da política brasileira . . . . . . . . . . 291 Salomão Malina Lições básicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314 Anivaldo Miranda Subsídios para uma crítica à ditadura militar . . . . . . . . . . . . . . 319 Alcides Ribeiro Soares Memórias de um tempo de barbárie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329 João da Penha Repressão e violência de Estado contra as classes populares durante os governos militares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342 Rivail Carvalho Rolim e Fabiana Cardoso Malha Rodrigues Violência na ditadura contra mulheres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356 Cristiane Machado Franco Que país nos deixaram de herança? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 369 Patrícia Furlanetto Textos Históricos VI Congresso do PCB – dezembro de 1967 . . . . . . . . . . . . . . . . 377 Resolução Política do Comitê Estadual da Guanabara do PCB (20 de março de 1970) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 415 A luta certa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 440 Causas da derrocada de 1º de abrilde 1964 . . . . . . . . . . . . . . . . 445 Assis Tavares Por que os comunistas disseram não à luta armada . . . . . . . . . 475 João Batista Aveline Os comunistas, a abertura e a democracia . . . . . . . . . . . . . . . . 483 Giocondo Dias Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 489 Sobre o organizador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 505 9 APRESENTAÇÃO Há boas razões para rememorar o golpe militar de 1964 no seu quinquagésimo aniversário. É preciso lembrar os erros do passado, e o seu custo, para não repeti-los. Por isso a memória, na forma de museus, memoriais, arquivos, publicações, documentários, livros didáticos e eventos outros de toda sorte, é o material com que se constrói a educação política das nações modernas. Para consolidar a cultura democrática dos brasileiros e preveniro retorno do golpismo, ou seja, da procura por soluções contrárias ao Estado democrático de direito, é preciso um ajuste de contas com o passado que ultrapasse em muito as decisões, inevitáveis, sobre a investigação dos crimes cometidos, a punição ou não dos culpados e a reparação das víti- mas. É preciso compreender o ocorrido e divulgar essa compre- ensão, de maneira permanente, para as novas gerações. Passam até hoje por esse processo os países europeus que vivenciaram regimes fascistas e autoritários, assim como nossos vizinhos do Cone Sul, egressos do ciclo de ditaduras militares inaugurado com o golpe de 1964 no Brasil. Devemos comemorar, portanto, o conjunto de publicações recentes dedicadas ao golpe, conjunto que o presente volume integra. A compreensão do passado histórico é um processo dialó- gico permanente, que exige a manifestação de todos os atores envolvidos. No caso do golpe militar de 1964, um dos atores rele- vantes do período, a esquerda que optou desde o primeiro momento pela resistência democrática à ditadura, aglutinada em torno do 10 1964 – As armas da política e a ilusão armada Partido Comunista Brasileiro, tem sido parcimoniosa, nos últimos anos, na divulgação crítica de suas análises, diagnósticos e propos- tas da época. O volume agora publicado contribui inegavelmente para sanar essa lacuna. A maioria de seus autores viveu parte desse período na condição de militante do Partido Comunista Brasileiro – PCB e debate a gênese do golpe, as controvérsias em torno da estratégia da resistência ao regime e o processo de sua derrota e superação a partir da perspectiva desse partido. São muitas as questões relevantes que os autores deste volume apresentam. Destaco, em poucas palavras, algumas entre elas que me parecem de particular interesse. Em primeiro lugar, transparece em vários dos artigos a afini- dade do evento golpe militar de 1964 com a história brasileira do século XX. O golpe não foi um fato isolado, que respondeu a uma conjuntura de nova e maior complexidade, à qual o marco institu- cional da Constituição de 1946 não teria conseguido dar solução. Pelo contrário, foi a manifestação derradeira e mais bem sucedida de uma corrente golpista que atravessa todo o século XX. Os antecedentes imediatos do golpe são conhecidos de todos: a tentativa de impedir a posse de João Goulart, quando da renún- cia de Jânio Quadros; os levantes de oficiais da Aeronáutica durante o mandato de Juscelino Kubitschek, a tentativa anterior de impedir sua posse; e, antes ainda, a ameaça de deposição de Getúlio, que levou a seu suicídio. No entanto, é preciso reconhecer que as raízes do golpismo situam-se ainda mais longe no tempo. Para muitos autores de textos aqui reunidos remontam a 1930. Um desses autores, no entanto, defende, com argumentos convincen- tes, a tese de que a história republicana como um todo, iniciada por meio de um golpe militar, estaria marcada pelo signo do golpismo, pela ideia de modernizar o país por meio de atalhos por fora e acima da democracia. Março/abril de 1964 teria sido a reali- zação tardia do sonho dos militares positivistas de 1889. Em segundo lugar, chama a atenção, aos olhos de hoje, o caráter relativamente moderado da agenda de reivindicações do governo João Goulart. As então temidas reformas de base desloca- 11Apresentação ram-se do campo da polêmica de então para o quase consenso de hoje. A reforma agrária foi praticamente concluída pelos governos posteriores à redemocratização do país. Discute-se hoje a necessi- dade de formular uma política fundiária pós-reformista. Para nós, o fato de a reforma urbana, a limitação da remessa de lucros por parte das empresas de capital estrangeiro, para não falar da exten- são dos direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais, aparecerem como uma plataforma radical só é compreensível à luz de um contexto internacional de Guerra Fria e do processo de polarização que a política brasileira de então vivia. Em terceiro lugar, destaque-se a contribuição da esquerda para a escalada da insensatez que resultou no golpe militar. O golpismo de direita já estava estabelecido e organizado, mas só conseguiu a maioria na sociedade e inclusive entre os militares com a ajuda da vacilação, para dizer o mínimo, da esquerda em abraçar de maneira consequente os valores da democracia e da legalidade. De acordo com Marco Antônio Coelho, a posse de João Goulart, com a consequente derrota da tentativa de golpe, subiu à cabeça da esquerda. Esse episódio foi lido como evidência de uma correlação de forças tão favorável que tornaria praticamente impossível um golpe de direita. Os atores principais desse campo não perceberam, à época, que o fato de estarem do lado da legali- dade institucional foi o fator decisivo para sua vitória. A partir de então, começou, no discurso e nas propostas, o processo de afasta- mento da legalidade: reformas na lei ou na marra, articulação de candidaturas para a Presidência da República de lideranças inele- gíveis, a decisão de encaminhar as reformas por decreto, o confronto com a hierarquia militar. Em março de 1964, a bandeira da legalidade havia passado às mãos dos golpistas. Nesse processo, a alternativa política capaz de prevenir o golpe chegou a ser formulada: a constituição de uma ampla frente, da esquerda ao PSD, em torno de um programa mínimo de refor- mas, para dar estabilidade ao governo Goulart. No entanto, essa alternativa não se concretizou, uma vez que implicaria o fortaleci- mento da candidatura do PSD à Presidência na eleição de 1965, um 12 1964 – As armas da política e a ilusão armada preço muito alto na perspectiva de muitas das lideranças de esquerda do governo. Em quarto lugar, as alternativas de resistência ao governo militar. No campo da esquerda, houve dois diagnósticos antagôni- cos a respeito das causas da derrota e cada um deles resultou na definição de uma estratégia e de táticas de luta diferentes. Para um grupo, que incluía as dissidências do PCB, o PCdoB, e organizações outras, o governo João Goulart teria pecado por excesso de prudência e moderação. A conjuntura estaria madura para radicalizar a agenda, abandonar as ilusões do reformismo burguês e decidir a parada no terreno das armas. Em razão da indecisão do governo, no entanto, quando a hora decisiva chegou, apenas um dos exércitos saiu a campo. Falharam os militares nacionalistas, os grupos dos onze, os camponeses de Francisco Julião. Para esse grupo, o apoio conseguido pelas reformas de base junto à população era mais do que suficiente. A derrota, portanto, não havia sido política, mas militar. Consequentemente, a estraté- gia da resistência consistia em conseguir armas e soldados para travar a batalha que não houve em 1964. Para o grupo que permaneceu na direção do PCB, no entanto, a derrota sofrida havia sido política. O sucesso das marchas orga- nizadas pela direita nos dias anteriores ao golpe era prova da insu- ficiência do apoio popular para executar a agenda das reformas. A esquerda teria errado por precipitação, não por prudência. Na verdade, a agenda proposta estava à frente das reivindicações da maioria da população. A estratégia, portanto, não era trazer armas e soldados para uma frente inexistente de batalha, mas trazer a opinião pública para o lado da democracia, utilizando para tanto todos os espaços legais possíveis. É importante notar que não se tratava de negar o direito dos povos à resistência armada contra regimes despóticos, nem de um simples cálculo de correlação de forças militares, que já sinalizaria a derrota das tentativas de luta armada. O PCB foi contra esse caminho de luta porque considerava indispensável atacar a razão 13Apresentação política do sucesso do golpe: o fato de os militares contarem naquele momento com o apoio da maioria da população. Nesse rumo, o PCB ingressou no único espaço legal de oposi- ção, o MDB. Dentro dele defendeu as bandeiras da anistia, das eleições diretas eda convocação da Assembleia Nacional Consti- tuinte. No congresso do MDB, de 1972, em Recife, essas teses ganharam a maioria do partido, contra os conservadores, que consideravam essa agenda uma provocação ao regime, e os radi- cais, que defendiam a autodissolução do partido, num grande gesto de denúncia da farsa da democracia controlada no Brasil. A partir de então, o MDB ajustou sua ação às diretrizes dessa polí- tica, cujo acerto foi demonstrado pelos seus resultados: a antican- didatura de Ulysses Guimarães nas eleições presidenciais e a vitó- ria nas eleições de 1974, que deu início ao processo, longo e conturbado, de recuo da ditadura até a sua derrota, dez anos depois, no Colégio Eleitoral. Caetano Pereira de Araujo 15 I A DEFESA INTRANSIGENTE DA DEMOCRACIA Roberto Freire1 Apesar de o meu pontapé inicial na vida política se ter dado, em 1962, em plena turbulência no governo João Goulart e dois anos antes da quartelada militar que golpeou nossas instituições democráticas, o 1º de abril tornou-se para mim uma data de definição, pois jovem estudante da Faculdade de Direito do Recife, militando clandestinamente no Partido Comunista Brasileiro, fui um dos milhares de presentes no Campo das Prin- cesas, para defender o governador Miguel Arraes, ameaçado de ser retirado do poder estadual e ser preso, o que ocorria, naquele mesmo dia, com o presidente Jango, obrigado a deixar o Palácio do Planalto, em Brasília. A violência policial-militar usada naquele dia para nos inti- midar se consumou com a morte de um adolescente, à bala, e fez a multidão se dispersar. Foi desolador, alguns dias depois, saber que meu querido companheiro e amigo Gregório Bezerra, após tortu- rado nas masmorras inquisitoriais, fora arrastado barbaramente pelas ruas do Recife, amarrado a um jipe militar. Foi, sobretudo, duro para mim, ainda no vigor da juventude, assistir à quebra violenta das liberdades e dos direitos democráti- cos e a truculência da ditadura militar (prisões, espancamentos, torturas, cassações etc.) contra as principais lideranças do meu 1 Advogado, deputado federal, presidente nacional do PPS. 16 1964 – As armas da política e a ilusão armada estado e do país, assim como contra companheiros de luta e pessoas afetivamente muito ligadas a mim. Por conta disso, a partir de então, a democracia se tornou uma bandeira de luta, jamais fraque- jei em defendê-la, em quaisquer condições, por mais adversas que fossem. Em suma, daí em diante, introduzi minha vida no complexo e delicado jogo da política. Nesse rememorar de meio século do Golpe de 1964, não se pode esquecer de destacar que, na construção do nosso processo civilizatório, instalaram-se não apenas formas muito singulares e positivas de convivência humana (a tolerância sempre foi uma boa marca presente na nossa sociedade e somos um dos povos mais miscigenados do planeta, se não o primeiro deles), mas também assumimos atitudes e comportamentos que, apesar de combati- dos, ainda dificultam a existência de uma sociedade mais equita- tiva, fraterna e solidária. Apesar dos esforços e ações dos brasilei- ros, enfrentando essa tradição, deve-se reconhecer que os vários períodos e etapas da nossa trajetória como nação, e até mesmo neste que estamos atravessando, identificam a continuidade de mazelas que precisam ser extirpadas. Além de tudo, temos algumas características históricas em nosso processo político, que há muito exigem solução. Destacam- -se particularmente o autoritarismo, as decisões verticalizadas, o hegemonismo, uma única força ou grupo social que acredita ser capaz sozinho de liderar um processo e comandar as mudanças, e o golpismo, a busca de soluções para os problemas do Estado e os grandes conflitos sociais por meio das forças armadas e da violên- cia, sempre excluindo o povo. Os militares brasileiros cultivaram, juntamente com as elites conservadoras e as nossas camadas médias, uma certa vocação golpista que marcou a vida política nacional durante o século XX. A esquerda brasileira também se impregnou dela. As tendências golpistas na formação e na política do PCB manifestaram-se de forma dramática no movimento de 1935, quando a direção do partido, sob influência de Prestes e do Komin- tern, trocou a política de massas da Aliança Nacional Libertadora, 17A defesa intransigente da democracia reformista e democrática, pelo levante militar puro e simples, em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Foi uma resposta golpista de esquerda ao golpismo das elites e dos setores conservadores, já então encastelados no Estado Novo, de Vargas. As consequências são conhecidas. Essas velhas tendências golpistas estavam presentes às vésperas do Golpe de 1964. A radicalização política do Grupo dos 11, de Brizola; a reforma agrária “na lei ou na marra” das Ligas Camponesas, de Francisco Julião; e o movimento dos sargentos e marinheiros coincidiam com o recrudescimento da Guerra Fria, em que Estados Unidos e União Soviética se digladiavam pelo mundo afora, e na America Latina a revolução cubana era anali- sada e vista emocionalmente indo do amor ao ódio. Foi nesse ambiente que, dentro e fora do governo Jango, discutiam-se as reformas de base. Uma parte da direção do partido, liderada por Prestes, acre- ditava na possibilidade de sustentação política e militar dessas reformas, mesmo que os reformistas fossem minoria no Congresso. Falava-se até em “golpe preventivo”, o que seguramente contri- buiu para dividir as forças governistas e favoreceu as conspirações militares. Há dois aspectos relevantes a considerar: de um lado, a chamada esquerda liderada pelo PCB havia rechaçado a “política de conciliação” de San Thiago Dantas e a candidatura de Juscelino, lançada pelo PSD, embora em Pernambuco, na nossa boa provín- cia rebelde, nós comunistas defendíamos desde logo a chapa Juscelino/Miguel Arraes para as eleições de 1965; de outro, a classe média, descontente com a “bagunça” política e o radicalismo da esquerda, já derivava em direção aos setores conservadores que propunham um “basta” às greves e crises políticas, apoiando polí- ticos golpistas como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e militares liderados por Castelo Branco. Quando se materializou o golpe, em 1º de abril, a esquerda já estava politicamente derrotada; e o “dispositivo militar” de João Goulart, desarticulado. Os comandos militares leais ao presidente e mesmo aqueles ligados ao PCB tinham certo poder de fogo, mas 18 1964 – As armas da política e a ilusão armada não tinham apoio na sociedade. A decisão dos militares do partido na ativa, como o brigadeiro Francisco Teixeira – na época coman- dante da Base Aérea de Santa Cruz – e dirigentes partidários, prin- cipalmente daqueles que tinham formação militar, como Prestes, Giocondo Dias, Dinarco Reis, Almir Neves e Salomão Malina, dentre outros, foi não promover uma resistência armada e um possível banho de sangue, iniciando uma guerra civil sem chances de sucesso político imediato. A História há de reconhecer a sabe- doria e a grandeza dessa decisão. Como se sabe, com o XX Congresso do PCUS, em que foram revelados os crimes de Stalin, e a campanha presidencial de Juscelino, em 1955, inaugurou-se no Brasil uma aliança inédita entre comunistas, trabalhistas e pessedistas. O PCB iniciava sua ruptura com o golpismo, consagrada na Declaração de Março de 1958, quando o partido assumiu, de forma inequívoca, uma posição a favor da democracia, das alianças amplas e da busca de uma via pacífica para o socialismo. Talvez, corajosamente, pautando-se pelas formulações renovadoras iniciadas por aquela Declaração, é que admitimos a derrota das forças democráticas no Golpe de 1964 e apresentamos a proposta de formação de uma ampla aliança para isolar e derrotar o regime militar. Portanto, optamos abertamente por uma luta democrática e de massas, negando, assim, toda e qualquer tentativa putchista ou ação armada que viria depois a caracterizar alguns gruposde esquerda e populistas. Acusado de capitulação, conciliação e reformismo, o partido buscou a ocupação dos espaços legais nos sindicatos e centros estudantis, nas redações dos jornais e nas cátedras universitárias, no seio de intelectuais e artistas, na estrutura do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido de oposição “consentida” que serviu de abrigo àqueles que se opunham ao regime. Dando consequência a essa proposta política, participei, em 1965, da fundação do MDB de Pernambuco, ao lado de outras 19A defesa intransigente da democracia figuras que iriam marcar a vida nacional e a política do estado, como Marcos Freire, Fernando Lyra, Jarbas Vasconcelos, e companheiros do PCB, principalmente da juventude universitária. Logo em seguida, estivemos presentes no caldeirão tenso e rico do chamado movimento de 68, quando os jovens levaram para as ruas o seu espírito libertário e transformador. No interior das esquerdas, o debate acerca dos caminhos da revolução se acentuava: o Partidão não abandonou a sua linha, e surgiram no cenário vários grupos da esquerda armada, entre eles a Aliança Nacional Libertadora (de Carlos Marighela), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (de Mário Alves e Jacob Gorender) e o Movimento Revolucionário-8 de Outubro (com a chamada Dissidência da Guanabara). O PCdoB, cisão do PCB, já se preparava para a Guerrilha do Araguaia. Permitam-me um destaque. Com escasso registro e pouco estudado, considero o Encontro Nacional do MDB, realizado nas dependências da Assembleia Legislativa pernambucana, em maio de 1971, e do qual fui delegado, um marco na luta contra o regime militar e um referencial para a resistência democrática. Nesse histórico evento, apesar da reação de algumas das principais lideranças nacionais do MDB, foi lançada a Carta do Recife, documento corajoso e que contribuiu para que, nós comunistas e os democratas-liberais emedebistas, sustentássemos uma forte luta interna – que se deu após a fragorosa derrota eleitoral do ano anterior – contra a tendência de alguns setores mais à esquerda que pregavam a autodissolução do partido. A superação dessa tendência se deu rapidamente e, a partir de 1974, esse documento passou a ser agenda de intensos debates e já provocando uma inflexão da pauta política oposicionista, que veio, indubitavelmente, a conformar um novo MDB. Na Carta do Recife, foram definidas duas bandeiras funda- mentais: a defesa da Constituinte e da Anistia. Ressalte-se que essa proposta foi a mais criticada por certas lideranças e setores oposi- cionistas, que alegavam tratar-se de influência de militantes do PCB nas fileiras do MDB. De fato, no seu clandestino VI Congresso (em 20 1964 – As armas da política e a ilusão armada 1967), o PCB havia definido a necessidade da criação de uma ampla frente política cujo objetivo era lutar pelas liberdades democráticas, por Anistia, Constituinte e eleições diretas em todos os níveis. A partir daí, a luta contra a ditadura começava a ganhar contornos mais claros. Desenvolveu-se, num crescente, a ideia de lançar uma campanha nacional em torno das bandeiras aprovadas. O próprio MDB deu início à preparação e divulgação de publica- ções sobre o tema, e à realização de seminários e atos públicos pró- -Constituinte por todo o país. A ideia cresceu e ultrapassou o âmbito partidário, sendo discutida por vários outros setores da sociedade, sindicatos, associações e movimentos populares. A reação foi imediata, no governo, junto às forças conserva- doras e em parte da mídia. Um grande jornal do Sul, no dia seguinte ao anuncio das novas bandeiras do MDB, acusou-as como “coisa de comunista”. E o periódico tinha razão, pois a proposta de Cons- tituinte e de anistia, que depois empolgaram o Brasil, realmente eram “coisa de comunista”. A construção da frente democrática O esforço realizado pelos militantes do PCB para reorganizar a oposição e uni-la, juntamente com democratas como Ulisses Guimarães, Barbosa Lima Sobrinho, Franco Montoro, Tancredo Neves, Nelson Carneiro, Josaphat Marinho, Tales Ramalho e tantos outros, não foi em vão. Já em 1965, combateram o voto nulo então defendido pela Ação Popular-AP e outras forças de esquerda, e trabalharam decisivamente nas eleições que se realizaram para governos estaduais naquele ano. Ressalte-se que o governo foi derrotado em quase todos os estados. No entanto, a radicalização de alguns grupos de esquerda, em 1968, nessa fase, foi um momento muito difícil, até porque grande parte dos movimentos da chamada luta armada, das políti- cas de confronto, da não-participação nas lutas legais dentro do MDB, surgiu de rupturas e rachas do velho PCB. É que os setores mais radicais do partido, liderados principalmente por Carlos 21A defesa intransigente da democracia Marighela, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Jacob Goren- der e Apolônio de Carvalho, viam essa estratégia partidária como uma capitulação e romperam com o partido. Partindo da dissidência pecebista na antiga Guanabara, vieram os grandes alavancadores do processo de radicalização que ocorreu nos setores da esquerda. Claro que antes já tinha a AP, a Ação Popular, que foi o grande instrumento de crescimento do PCdoB, que era um partido pequeno e com essa dissidência de católicos assumidos como marxistas-leninistas, cresceu e também se radicalizou no seu processo. O PCB criticava a luta armada, pois, em 1935, pegara em armas, também equivocadamente. E dessa vez seria mais equivo- cada ainda. Era uma aventura, uma loucura, um grave equívoco. Por isso, a maioria apoiou a direção, a sua política de frente demo- crática, a estratégia de acumulação de forças e a luta de massas, política essa que criou, sem dúvida alguma, as bases para as gran- des manifestações oposicionistas de 1968, tendo na Marcha dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, sua maior expressão Fomos o único partido da América Latina, junto com o chileno, que não foi para o encontro da Organização Latino-Ameri- cana de Solidariedade (Olas), em Cuba, cujo objetivo maior era seduzir e conquistar lideranças de esquerda e seus partidos para se prepararem para a revolução armada em seus países. Parte da juventude brasileira aderiu progressivamente às concepções militaristas, à via da luta armada e às organizações clandestinas de esquerda que passaram a adotar as teses foquistas. Quando há uma revolução vitoriosa, se tende a imaginar que a forma, o método e o processo de luta dela podem se expandir e conduzir ao seu êxito em outros lugares. O sonho de Che Guevara e de outros líderes revolucionários cubanos era recriar 1, 2, 3 Viet- nãs no mundo, sobretudo na América Latina. Lamentavelmente, Che morreu na Bolívia imaginando que podia reeditar o que ocor- rera em Cuba. Grave equívoco, pois revolução não se copia. 22 1964 – As armas da política e a ilusão armada Ressalte-se ainda que sequestros a diplomatas, assaltos a bancos e focos de combate, urbanos e rurais, promovidos pelos guerrilheiros brasileiros acabaram também por contribuir para a estruturação de um aparato repressivo policial-militar cuja missão era exterminar lideranças políticas da oposição, tanto aquelas que atuavam na luta armada, como os dirigentes do PCB e outros democratas. É que a ditadura estava em um momento de cresci- mento da economia (o propagandístico “milagre brasileiro” e o enganador “Brasil, ame-o ou deixe-o”), o que lhe permitia manter total censura e a repressão física mais dura que tivemos. Grande parte da esquerda não entendeu nossa postura. Achava que era porque o PCB não queria participar de política de confronto, quando na verdade tínhamos clareza e sobretudo certeza de que o importante naquele período era arregimentar forças as mais amplas e diversas e articulá-las. Não foi outro o objetivo da construção da Frente Ampla, juntando adversários históricos na tentativa de isolar e assim derrotar a ditadura. Quando se esgotou o ciclo de radicalização, de confronto,de algumas escaramuças militares, de guerrilha urbana, muito peque- nas mas que exacerbaram os setores mais à direita do regime, mais fascistas, e que provocaram inclusive a repressão contra todos; depois que se encerrou esse período, inclusive o fim da tentativa de implantar um foco rural na Guerrilha do Araguaia, a única forma de continuar a funcionar esse mecanismo de repressão era em cima do Partido Comunista, que estava fortalecido dentro da frente democrática que era o MDB. Houve um momento em que o PCB percebeu que o processo em marcha para isolar e derrotar a ditadura era irreversível. O governo Geisel começou a ter problemas gravíssimos na sua condução econômica. A primeira crise do petróleo abalou o modelo que aqui se vinha adotando – o de financiamento fácil internacio- nal das grandes obras, dos grandes investimentos, do Brasil potên- cia. Mostrou que tínhamos um certo pé de barro. E a crise que se instalou revelava a dificuldade do governo de manter a sua base de sustentação. Seu primeiro grande momento ocorreu, particular- 23A defesa intransigente da democracia mente, após a primeira grande safra de vitórias da oposição que foi, indiscutivelmente, nas eleições de 1974, quando o regime foi duramente derrotado nas urnas (de 21 vagas em disputa no Senado Federal, o MDB conquistara 16), e com lideranças expressivas que apareceram (Marcos Freire, Alencar Furtado, Franco Montoro, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães etc.). Naquele então, o governo ditatorial, talvez pressionado pelo seu setor mais à direita, reagiu da forma mais autocrática possível, até fechar o Congresso, que discutia uma reforma do Judiciário. Mas não era por isso, evidentemente, mas para tentar dar uma sobrevida ao regime. Implantou-se o chamado “pacote de abril”, grande retrocesso por meio do qual se criou o senador biônico, o voto vinculado, como uma forma de ganhar a maioria dos governadores. Documentos de serviços de inteligência e de repressão da ditadura e de organismos das Forças Armadas, trazidos a público, que foram objeto de matéria na imprensa brasileira e serviram como fonte da magistral obra de Elio Gaspari, dizem bem o que foi essa dramática realidade. Revelam, sobretudo, que a grande preocupação do regime militar, no início da década de 70, não eram as ações armadas nem a guerrilha, então já neutralizadas, mas o “trabalho de massa, segundo a tática sempre advogada e empregada pelo PCB”. Reconhecia-se que o Partidão era o princi- pal inimigo do regime mesmo sendo contra a luta armada até porque essa estava derrotada e o cuidado passava a ser com a luta institucional dos comunistas infiltrados no MDB. Era uma decla- ração de guerra do sistema de repressão contra nós, visando, pura e simplesmente, liquidar o PCB. Daí terem sido criados dois grupos ultrassecretos, formados por várias pessoas, quase todas militares e de patente de oficiais, autorizadas a matar e a sumir com os corpos dos comunistas. De fato, incentivado pelas mãos do general Sílvio Frota, o terror voltou a mostrar suas garras. Em 1974 e 1975, em todo o país, foram presos cerca de três mil militantes do PCB e assassina- dos 11 dirigentes do Comitê Central, integrantes da chamada lista 24 1964 – As armas da política e a ilusão armada dos “desaparecidos”. O Partidão sofreu um grande golpe, com reflexos diretos no seu difícil processo de reorganização. Basta dizer que, nessa época, as bases comunistas nas indústrias meta- lúrgicas somavam mais de 1.000 trabalhadores. Ao mesmo tempo, a ditadura, pelos seus setores mais realis- tas, começou simultaneamente um processo de distensão, que era uma forma dela se reacomodar, em função de uma nova realidade no país. A “distensão lenta, segura e gradual” do período Geisel era uma resposta aos avanços democráticos que a sociedade estava começando a experimentar. É importante que a sociedade brasileira conheça esses fatos, até para tê-los na memória. Isso, independente de gostarmos ou não, é patrimônio da formação da nacionalidade. E vamos ter que saber o que foi feito porque promoveram assassinatos que não mais se justificavam, dentro da própria lógica do regime discricio- nário. Só que nada disso adiantou. Outro passo em falso foi a proibição contra o balé Bolshoi, de Moscou, que se apresentou em todo o mundo, menos no Brasil, só porque era uma expressão cultural da comunista União Soviética. Nada mais idiota. Mas essas idiotices existiram e muito. Na proibi- ção do Bolshoi, a classe média estrilou, reclamou contra a censura, pois ela já passara a sofrer também a crise econômica, que revelava os primeiros sinais de esgotamento do modelo que tinha susten- tado o “milagre” e toda sorte de arbitrariedades do regime. Envolvimento no plano nacional Eleito para a Câmara Federal, pela primeira vez, em 1978 (MDB-PE), assumi meu mandato em janeiro do ano seguinte. Nesse período, dediquei-me intensamente à luta pela Anistia, ao apoio às greves do ABC paulista e à legalização do PCB e de outros partidos clandestinos. Integrei a Comissão Mista, criada no Congresso Nacional para examinar e dar parecer sobre o projeto de Anistia encaminhado pelo governo militar. E, nessa missão, viajei pelo Brasil, junto com outros parlamentares, visitando presí- 25A defesa intransigente da democracia dios, contatando presos políticos e seus familiares assim como instituições e personalidades ligadas à luta pelos direitos humanos e pela Anistia. À frente da comissão, a figura emblemática do sena- dor Teotônio Vilela. Fruto desse trabalho, coordenei a edição de um livro reunindo documentos sobre a batalha da Anistia. No processo da luta pela Anistia, são imorredouras as imagens das visitas que fizemos aos presos políticos, em 1979, nos presídios em que foram jogados pelo Estado policial-militar. A capacidade de luta deles era fantástica, realizando greves de fome para lançar denúncias e manifestos. Recordo uma visita ao presí- dio na ilha de Itamaracá, quando se travou um debate sobre a amplitude da Anistia. Muitos deles defendiam que se deveria votar contra o projeto se ele não fosse amplo e irrestrito. Mas o que podíamos fazer naquele momento? Manter Arraes, Brizola, Prestes, Gregório, Julião e milhares de brasileiros no exílio? Se não fosse a Anistia, mesmo parcial, não teriam voltado para nos ajudar e se somar a centenas de cassados em seus manda- tos ou na sua atividade política na luta democrática. Eu sempre advoguei que deveríamos votar a favor, por mais restrita que fosse a Anistia, conseguida graças à luta e pressão da sociedade. É que esse primeiro passo beneficiaria milhares de pessoas e criaria condições para outros passos maiores e mais rápidos. E foi o que ocorreu. A Anistia, aprovada pelo Congresso e sancionada a 28 de agosto de 1979, não teve a amplitude pela qual lutamos. Porém, de imediato, milhares voltaram ao país ou à atividade política; em seguida, os presos restantes foram soltos por redução de pena. Após a conquista da Anistia, e com o retorno à cena política aberta de milhares de lideranças políticas e sociais, o processo que se vinha desenvolvendo no país para isolar e derrotar a ditadura ganhou nova dinâmica, proporcionando maior liberdade de imprensa, o surgimento de novos partidos, maior espaço para a ação de trabalhadores e estudantes e para a mobilização de gran- des contingentes populares, de que foram exemplo as campanhas pelas eleições diretas em todos os níveis e pela Constituinte. 26 1964 – As armas da política e a ilusão armada De igual maneira, o regime militar foi derrotado nas eleições de 1982, quando a oposição elegeu a maioria dos governadores (entre os quais se destacavam Brizola, no Rio; Franco Montoro, em São Paulo; Tancredo Neves, em Minas, e outros democratas na maioria dos estados do Sul). E a partir dali surgiram grandes mani- festações, imensa mobilização de pessoas, por todo o país. Como se analisava, naquele então, a política de abertura lenta, segura egradual do ditador Geisel – tentativa de refrear algo cuja tendência se revelava vir sem muito controle – era um prenúncio da vitória. Exemplo disso foi a bandeira da anistia. Quando o ditador João Batista Figueiredo assumiu, não se falava nem se admitia promovê- -la. E muito rapidamente, mesmo não sendo ampla, geral e irres- trita, foi obrigado a sancioná-la. Dentro da mesma linha de denúncia da ilegitimidade de um governo imposto pela força, explodiu, em 1984, a campanha das Diretas-Já. A população saiu às ruas, em multidões, para reivin- dicar eleições diretas para presidente, ocupando principalmente as grandes cidades do país. Quem muito cresceu nos palanques desse movimento, algo de fundamental importância, foi o processo democrático em geral, já que se cristalizou nos brasilei- ros a necessidade das liberdades. Ali se tornou irrefreável toda e qualquer solução fora da retomada do processo democrático. Tanto é verdade que mesmo aqueles que eram refratários a uma alternativa, por exemplo, via Colégio Eleitoral, não tiveram mais como sustentar suas posições. Ou seja, a ditadura não tinha mais como se reproduzir, mesmo com o Colégio Eleitoral, apesar de, em principio, ela ter maioria ampla nele e a oposição não ser mais que um mero coadjuvante. Mesmo com as gigantescas manifestações populares em favor das Diretas Já – sem dúvida o ponto alto da luta de massas contra o regime – o ditador e seus asseclas ainda achavam que iriam controlar a sucessão presidencial. Só que foi irrefreável aquela mobilização das ruas. Mesmo com alguns setores minoritá- rios da esquerda se ausentando do processo, fizemos uma grande aliança com alguns setores que nunca foram oposição, mas que, na 27A defesa intransigente da democracia undécima hora, pularam do barco e vieram se associar à vitoriosa Aliança Democrática. É bom lembrar que o regime autoritário obtivera uma vitória de Pirro, quando, em 25 de abril de 1984, a Emenda das Diretas-Já foi rejeitada pelo Congresso Nacional. Era imobilismo ficar discu- tindo as Diretas depois da derrota da emenda Dante de Oliveira, pois essa luta objetivava derrotar o regime. Se não foi vitoriosa, não tinha porque ficar reclamando, ela tinha que continuar. Nem todo o PMDB pensava assim. Tanto que Ulysses cedeu à pressão do grupo “Só Diretas”, que era forte e refratário à ideia do Colégio, e logo depois, admitiu utilizá-lo na batalha antiditatorial. A partir da derrota das Diretas-Já, cresceria substancial- mente o movimento pela Constituinte-Já, paralelamente ao qual começou a ganhar força a ideia de realização de um pacto político entre a oposição e setores do PDS, partido governista, que estavam insatisfeitos com o lançamento da candidatura de Paulo Maluf à Presidência da República, pela legenda. Tal acordo selaria um compromisso com a retomada da legalidade no país a partir do lançamento de um candidato de consenso na disputa presidencial, em novembro de 1984, mesmo que esta se desse no Colégio Eleitoral, estrutura viciada e que fora criada pelo regime para dar a impressão de que era uma instituição democrática. Ao se constituir a Aliança Democrática, foram lançados, respectivamente, para presidente e vice-presi- dente, os nomes de Tancredo Neves (PMDB) e José Sarney (dissi- dente do PDS), com a proposta de perseguir uma “transição democrática”. No ato de criação dessa ampla frente política, foi reafirmada a necessidade de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte no país, livre e soberana. Apoiar a candidatura do Tancredo Neves no Colégio Eleito- ral foi uma atitude acertadíssima. Foi possível unir antigos adver- sários nessa articulação, pois o MDB, depois PMDB, era uma frente democrática que não excluía quem quisesse nela se integrar. Exemplo maior disso e grande conquista nossa fora a participação 28 1964 – As armas da política e a ilusão armada do senador Teotônio Vilela (AL) na luta pela Anistia, em 1978-79. Ele se transformou no grande nome da Anistia e ninguém se lembra que, em 1964, ele estava de arma na mão, em Alagoas, em favor do golpe, e que durante muito tempo foi senador da Arena e líder do regime. A vinda dele (para a oposição) mostrou uma visão política de que na frente democrática cabiam todos os que quises- sem lutar contra a ditadura. O PT, na época, estava numa posição profundamente equi- vocada e numa intransigência tal, ao admitir disputa apenas em eleição direta, que chegou ao ponto de punir três de seus parla- mentares – Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes, por terem votado na Aliança Democrática. O curioso é que, à distância, a gente até minimiza o erro, porque não provocou nenhum retro- cesso e nem impediu o avanço. Os que assim agiram podiam fazer o que fizeram, já que não colocaram em risco a superação da dita- dura. O que é estranho e curioso é que a grande maioria das lide- ranças dos partidos de esquerda que se envolveram nas experiên- cias guerrilheiras, alguns até um pouco na aventura, até hoje não fizeram nenhuma autocrítica do seu comportamento político. A transição e a construção democrática Com a inesperada morte do presidente Tancredo Neves, em 1985, assumiu o vice José Sarney, que comandou o governo de tran- sição. Mesmo sendo um homem que veio do regime, quero reconhe- cer, independente de qualquer coisa, que ele ajudou a remover os entulhos autoritários da ditadura, legalizou os partidos comunistas, convocou a Constituinte, em suma, cumpriu com os compromissos da transição, apesar de ter tido os seus erros e equívocos. A ditadura morreu aos poucos, mas foi enterrada de vez somente com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e dando início ao que é hoje o mais longo período de vivência demo- crática em nosso país. A elaboração da nova Carta Magna não foi algo tranquilo, pelo contrário foi uma dura batalha, mas que chegou a bom termo. 29A defesa intransigente da democracia A transição à democracia foi pactuada e longa, mas possibi- litou que se ultrapassasse a tutela que os militares exerceram sobre a República, desde a sua proclamação. Hoje, não se escutam os clarins da revolução nas ruas, como os defensores da luta armada imaginavam ao sonhar com a derrubada da ditadura, mas feliz- mente o povo decide os destinos do Brasil nas urnas. Milhares de brasileiros deram sua contribuição à derrota de um governo de chumbo que infelicitou o nosso povo por tanto tempo. Alguns pagaram com a própria vida essa virada de página que conspurcou nossa história. Retomamos o caminho democrá- tico, e é por ele, unicamente por ele, que poderemos avançar em direção a uma sociedade mais livre e justa. São comuns avaliações que atribuem a Golbery do Couto e Silva, estrategista de Geisel, uma bem sucedida estratégia para a transição à democracia, como se os militares fossem vitoriosos e a oposição democrática derrotada. Evidente que o regime militar buscou sua institucionalização como “democracia relativa” e somente não atingiu seus objetivos porque foi sucessivamente derrotado nas eleições e o mundo mudou. Cinquenta anos após o Golpe, ainda se discute o comporta- mento da esquerda naquele ano fatídico para o povo brasileiro. Ao longo dos anos, fui aprendendo a avaliar aquela conjuntura muito mais pelas suas consequências do que pelas suas causas. Temos consciência do papel relevante das lideranças e agru- pamentos que migraram do regime para apoiar o movimento pela redemocratização em 1985. A resistência, porém, tem nomes, rostos, sangue derramado, sofrimento, símbolos e uma folha pública de serviços prestados à causa da luta contra o autoritarismo. Em 1989, a campanha presidencial apresentou cinco candi- datos representativos da direita e uns cinco candidatos represen- tativos da esquerda. Fui candidato naquela época, pelo PCB, e aquele volume de presidenciáveis, representando um amplo arco de forças políticas, espantava alguns setores, depois de trinta anos sem eleição. Para mim, foi um momento muito educativo, do ponto30 1964 – As armas da política e a ilusão armada de vista cívico e democrático da sociedade brasileira. Terminada a apuração do primeiro turno, ao ser anunciado que Lula iria para a disputa com Collor, fomos emprestar-lhe nosso apoio, de imediato. Novo grande erro foi cometido por parte do PT: não aceitar o apoio de Ulysses Guimarães (que teve 5 milhões de votos no primeiro turno), cuja luta de resistência ao regime ditatorial o colocava inquestionavelmente no campo democrático de esquerda, apesar de bem representar o centro democrático. No primeiro grande teste da construção democrática, o movimento da campanha e o seu desenlace vitorioso em torno do impeachment do presidente Fernando Collor revelaram que as instituições eram sólidas. E, mais que isso, possibilitaram se cons- truir, graças o engenho e arte de Itamar Franco, o primeiro governo de centro-esquerda da história brasileira, do qual fui líder na Câmara Federal. Não apenas porque foram forças democráticas e de esquerda que, num processo de luta, patrocinaram o impedi- mento do político alagoano, mas pela composição com que se estruturou e pelas grandes mudanças que propiciou, como o Plano Real, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), medidas de reforma agrária, dentre outras. Relembre-se que, na composição desse singular governo, estavam dirigentes do PSB, PCB, PSDB, PMDB e PCdoB, só não teve do PT (embora alguns petistas como Luiza Erundina tenham participado do governo, apesar de amea- çados de expulsão). Vieram,em seguida, os dois governos de Fernando Henrique Cardoso, os dois de Luiz Inácio Lula da Silva e o atual, de Dilma Rousseff. A história nos deu razão. Eu não tenho dúvida de que a linha política vitoriosa que derrotou a ditadura foi a adotada pela frente democrática, representada pelo MDB, depois PMDB, que teve o PCB como um de seus partícipes. Nossa presença no MDB não era de uma força qualquer, havia uma formulação política de um partido que era clandestino mas pensava, fazia congresso, tinha documentos, apontava caminhos e seus dirigentes e militantes se incorporavam às ações e movimentos. 31A defesa intransigente da democracia É bom lembrar que os comunistas sempre foram a primeira vítima quando aqui se atentou contra a democracia e a liberdade. Tivemos todos os entreveros possíveis e praticamos toda a sorte de procedimentos, ações e métodos de luta na defesa de uma socie- dade mais justa. E nós somos, e queremos ser, a continuidade disso. Mas somos também ruptura, daquilo que significava toda uma visão de partido único ou de hegemonismo, da transição socialista via estatização, de questões superadas pelo mundo, dentro do processo de mudanças que estamos vivendo, com essa revolução científica e tecnológica, que continua afirmando valores e dando continuidade à história da esquerda. Por sua vez, os que vieram a formar e dirigir o PT se coloca- ram sempre em posições contrárias às demais forças democráti- cas. Na batalha da Anistia, só aceitava esta se fosse ampla, geral e irrestrita. Na derrota das Diretas-Já, não quis ir ao Colégio Eleito- ral. Na Constituinte, ela não poderia ser produto de um Congresso Constituinte, mas teria que ser necessariamente elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte. Por fim, não quis assinar a Constituição Cidadã, porque “era vagabunda”. Relembre-se que o PT foi criado em 1980, após a reforma partidária do general Golbery, embora o PCB continuasse na ilega- lidade (este só foi reconhecido legal, em 1985). Há contradição nisso? Não, porque com relação ao PT não tinha nenhum problema. O PT não foi criado como uma oposição consentida, mas era uma oposição que interessava ao regime. Os comunistas, não. Porque tínhamos uma política perigosa contra o regime – trabalho legal, unitário e de massa. O próprio regime assim dizia. Era fundamen- tal dividir o MDB e isolar e fortemente reprimir os comunistas do PCB que lá atuavam. Nossa visão democrática, para além das reformas do Estado, passa, também, pela defesa do parlamentarismo como o melhor sistema de governo a apontar para o futuro. Ele nasceria como fruto de muita discussão, definido por referendo, e podendo ser instituído um pouco depois. O presidencialismo se esgotou, virou elemento de crise institucional. 32 1964 – As armas da política e a ilusão armada A realidade – ontem, hoje e amanhã Lembrar e debater a implantação do Golpe de 1964 é impor- tante para o Brasil e para a democracia. Não apenas para lembrar aos mais jovens do significado de um regime ditatorial, do proto- fascismo, da falta de liberdades, o que se faz necessário. Mas, sobretudo, para continuar discutindo, reafirmando caminhos democráticos, pois o golpismo, presente como já disse em nossa cultura, vive a pairar sobre a política, sobre a sociedade, sobre nossos homens públicos e nossas instituições. Estamos convencidos de que não há outro caminho para solucionar os graves problemas nacionais, fora da democracia. Qualquer atalho dará em desastre. E quando falamos em democra- cia estamos definindo grandes processos de articulação que possam romper com o sebastianismo político, com o salvacionismo que, de alguma forma, esteve presente no amplo movimento que levou Lula ao poder. Se as alianças políticas dos idos de 1970 e 1980 foram fundamentais para derrotar o regime, elas são impostergá- veis para mudar o Brasil. Não alianças de qualquer tipo, com forças conservadoras ou oligárquicas, ressuscitando figuras que começa- vam a cair no ostracismo, feitas apenas em nome da manutenção do poder, de uma certa governabilidade canhestra. Falamos de alianças estruturais, da montagem de um novo bloco político, forte, capaz de levar o Brasil romper com a inércia, criar um novo pensamento econômico, uma nova sinergia política. Nossa postura hoje é de uma política ampla dentro desse aspecto que sempre tivemos como objetivo, a de unir as forças democráticas. Aquilo que foi importante para derrotar a ditadura, é importante hoje para fazer as políticas de transformação da sociedade brasileira. Para que não vire mera retórica, para que não se tenha um governo que não mude, gargalo que nos sufoca, há muito tempo, sobretudo nos últimos 25 anos, período mais longo de vivência democrática no país e no qual não se implantaram as chamadas reformas de base (a reforma democrática do Estado, a reforma tributária, a reforma educacional e tantas outras). 33A defesa intransigente da democracia Tudo indica estarmos vivendo um momento crucial na vida política do país, o da ressaca do modelo lulopetista. É que, conta- mos com um governo hegemonizado, há 12 anos, por um partido de esquerda, fato não corriqueiro em nossa história, mas que paga pesado tributo por não ter feito até agora nenhuma reforma estru- turante nem ter apresentado projeto estratégico para o país. É que, nesse período, revelou-se uma grande despreocupa- ção dos seus principais líderes com os princípios e questões demo- cráticos e republicanos, alicerce dos tempos novos que vivemos, e que exigem se propor e se tentar construir um novo ciclo para o nosso Brasil. Os governantes lulopetistas não precisavam se render ao fisiologismo, ao clientelismo, que sempre foi a marca determi- nante do Estado patrimonialista que temos, nem muito menos à malversação dos recursos públicos e à própria corrupção. Já existe um nível de consciência no Brasil de que precisa- mos buscar um caminho novo. Não podemos ter uma economia que patina, uma inflação que cresce, um país que ainda vive (desde a chegada dos portugueses, no século XVI) de exportar matérias- -primas (as chamadas commodities) ao invés de produtos indus- trializados, agregadores de valor, e uma sociedade perversamente desigual, com péssimos serviços de educação, saúde, mobilidade urbana e segurança pública. Essa consciência, acho que está em todos os brasileiros, e o que falta agora é se ter a capacidade de se exigir fim à enganação, à retórica e ao assistencialismo.Precisa- mos resolver isso, ter um movimento social, um movimento polí- tico que dê consequência à política transformadora. Pelo menos, devemos querer ser um dos atores desse processo de mudança e de câmbio da sociedade brasileira. Nesses 25 anos de reconstrução, estamos superando obstá- culos. Talvez nunca tenhamos vivido um período de tanta convi- vência democrática quanto agora. E não faço coro aos que veem, por exemplo, nas manifestações, nas intensas mobilizações inicia- das em junho de 2013 e até nos excessos, de ambos os lados, seja da repressão ou dos movimentos sociais, algo que coloque em risco a democracia. Acho que isso tem ajudado até a consolidá-la. 34 1964 – As armas da política e a ilusão armada Até porque democracia é isso, não são os excessos, evidentemente, mas um processo de educação, do próprio movimento social, e também de controle que se tem que ter da máquina policial e do sistema de repressão e de coação, que pode ser democrático e pode transbordar e ter aspectos abusivos. Vamos coibir os excessos, vamos nos educar para essa prática democrática, mas não vamos ter medo de uma manifestação. E, particularmente, das manifesta- ções dos excluídos, dos oprimidos, até porque esses nunca tiveram tanta oportunidade como agora que o regime democrático está ofertando. Porque sempre foram reprimidos. É claro que não se pode admitir, por exemplo, a invasão de prédios públicos, a quebra de agencias de bancos e de outras empresas comerciais, a queima de ônibus e de outros tipos de veículos. E muito menos agredir ou matar pessoas. Isso não é prática de nenhum movimento social que queira aprofundar a democracia. E os governos federal e estaduais precisam ter a capa- cidade de saber como resguardar a ordem pública, sem ir para a repressão com abuso e, inclusive, com mortes, como tem aconte- cido também, o que é inadmissível. Esperamos que a ditadura, definitivamente, tenha sido varrida da nossa história como experiência. A democracia, como já se disse, talvez tenha muitas imperfeições, mas nada melhor foi inventado para ocupar o seu lugar. E olha que venho de uma tradi- ção, a marxista, que, em épocas distantes, chegou a acreditar em uma ditadura, de classe, a do proletariado. 35 AS ESQUERDAS, A DITADURA E O PROBLEMA DA FRENTE DEMOCRÁTICA Luiz Sérgio Henriques1 Posso, sem armas, revoltar-me?2 Bastante razoável é a ideia de buscar nos anos 1960 e 1970 as origens da política contemporânea brasileira e de muitos atores e dilemas ainda atuais. O movimento de 1964, num caminho que não estava inexoravelmente dado desde o começo, paulatinamente se mostraria como algo muito diferente de um clássico pronunciamiento militar latino-americano, que se realiza, não sem crueldade, a partir da deposição de um presidente consti- tucional, mas de tendências “populistas”, seguida da entronização de algum “ridículo tirano” e do furor contra os suspeitos de sempre. Ao contrário, como muitos analistas já assinalaram, aquele movi- mento seria o ato inicial de uma intensa “modernização conserva- dora” de nossa sociedade, comprimindo para tanto a vida política dentro de limites cada vez mais estreitos, especialmente entre 1968 e 1974, ano em que teve início a “abertura lenta, segura e gradual” do regime dos generais – e que terminou sendo mera tentativa de controlar, sob a forma de recuo organizado, um processo social democratizante fundado, paradoxalmente, nos próprios resulta- dos da modernização “pelo alto”. De fato, com o ciclo militar nada ficaria como antes. Mesmo conservadora, a experiência brasileira não teve nada de desindus- trializante ou voltada unicamente para o passado, ao contrário de outras experiências vizinhas, em particular a ditadura argentina instaurada em 1976, e produziu como resultado uma economia e 1 Ensaísta, tradutor, editor do site Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org) e vice-presi- dente da Fundação Astrojildo Pereira. 2 A flor e a náusea, Carlos Drummond de Andrade. 36 1964 – As armas da política e a ilusão armada uma sociedade cada vez mais complexas e diferenciadas, em choque crescente com o autoritarismo mais ou menos aberto que presidira seu surgimento. Por isso, a partir de 1964, não só muda- ria o padrão de relações entre Estado, sociedade e economia, em benefício da generalização das relações capitalistas numa escala até então inédita. Mudariam também, na mesma medida, todas as forças políticas, inclusive as de esquerda, que, no combate ao regime, não poderiam ter ficado sempre iguais a si mesmas, para não falar das alterações nas correntes de ideias internacionais a que se referiam. De algum modo, somos ainda todos testemunhas de um percurso que começa com o protagonismo de uma força da esquerda histórica – o Partido Comunista Brasileiro –, lançada a partir de 1964 em movimento progressivo de declínio e fragmenta- ção, e termina, já em nossos dias, com o protagonismo de um partido representativo da “segunda esquerda”, que recolhe e expressa as novidades acontecidas na modernização e pratica- mente anuncia o amadurecimento da nossa democracia política, ao vencer as eleições presidenciais de 2002 – quaisquer que tenham sido, ou ainda sejam, seus limites e contradições eviden- ciadas no exercício posterior do governo ao longo de três mandatos presidenciais sucessivos.3 No entanto, esta imagem de uma “passagem de bastão” entre as duas forças não deve ocultar os inúmeros acidentes e reviravol- tas de percurso. Para ter certa perspectiva histórica, é preciso dizer alguma coisa a respeito do PCB tal como chegou aos anos críticos do governo Goulart. Principal partido da esquerda marxista até 1964 e mesmo algum tempo depois, o PCB atravessava, desde 3 Deve-se registrar que, entre intelectuais cuja referência política foi o PCB, existem análises já imprescindíveis sobre a ascensão do petismo ao poder central, a comple- mentação de nossa democracia e a consequente necessidade de redefinição das re- lações entre esquerda, política e história brasileira. Nesta perspectiva, que combina a novidade da chegada ao poder no quadro pós-Guerra Fria e uma visão de ideias e fatos como processos de longa duração, sai fortemente circunscrito o mito “refunda- cional” vigente em certas áreas petistas. Cf., por exemplo, a entrevista de Luiz Wer- neck Vianna, “A história absolvida”, dada no calor da hora, em 12/2002, em <http:// www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2>. Acesso em: 16/03/2014. 37As esquerdas, a ditadura e o problema da frente democrática 1956, um conturbado processo de renovação, aberto, no conjunto dos partidos comunistas de todo o mundo, com a denúncia dos crimes de Stalin no XX Congresso do PCUS, em fevereiro de 1956. É raro ou, na prática, impossível o caso de uma corrente de opinião significativa que não tenha referências internacionais; e, para os partidos comunistas, em particular, nascidos no quadro de um desafio global à ordem capitalista, o vaivém analítico entre as reali- dades nacionais das quais nasceram e os problemas gerais do movimento assumidamente internacional em que se inseriam – tal vaivém, repetimos, é um pressuposto para a compreensão mini- mamente coerente do sujeito político. Assim é que no PCB, como nos demais PCs, aquele processo de renovação não foi propriamente radical nem eliminou todo o “sectarismo burocrático”, que, segundo conhecida afirmação de Lukács, constituía uma característica típica do stalinismo. Por certo, a situação de ilegalidade formal, ainda que substantiva- mente mitigada durante o governo de Juscelino Kubitschek e, particularmente, o de Goulart, não era a mais adequada para um efetivo aggiornamento político e intelectual. Mesmo levando em consideração estes e outros limites, o período em questão da traje- tória pecebista sem dúvida se caracteriza por um distanciamento gradativo da marca de um partido “ideológico”, no sentido nega- tivo da palavra, clandestino e militarizado, fortemente centrado sobre si mesmo e alheio àagenda real da sociedade brasileira. Com a Declaração de Março de 1958, o PCB estabeleceu alguns parâmetros que norteariam sua visão no decorrer das tempestades que se seguiriam. Assim, por exemplo, naquilo que então se consi- derava generalizadamente como a revolução brasileira em curso, para o PCB o horizonte imediato não deveria ser o da revolução proletária e do socialismo, mas sim o da revolução “nacional e demo- crática”. Por ser nacional, poderia contar com a burguesia nativa, pretendidamente interessada numa forma mais autônoma de capi- talismo, baseada em forte presença estatal; e, por ser democrática, apelaria à reforma agrária radical, golpeando o latifúndio impro- dutivo, aliado interno do imperialismo e principal beneficiário da 38 1964 – As armas da política e a ilusão armada estagnação econômica, e assim incorporaria as massas rurais à sociedade moderna e constituiria um mercado consumidor à altura do desenvolvimento em curso das forças produtivas capi- talistas. Uma visão “etapista” da revolução, repetiriam os críticos muitas vezes, apontando, não sem razão, a velha origem terceiro- -internacionalista destes conceitos e ressaltando, nas análises mais penetrantes, a impossibilidade de um desenvolvimento capitalista autônomo no quadro de industrialização dependente e de inter- nacionalização da economia já em ritmo acelerado pelo menos desde os anos JK. Mais além da polêmica, no entanto, o fato é que com a Decla- ração de Março os comunistas do PCB conseguiram pelo menos esboçar uma política de “reformas de estrutura”, potencialmente capaz de mobilizar a sociedade em torno de objetivos parciais e factíveis e não apenas em torno do objetivo final do socialismo. Este elemento de gradualismo, que de algum modo implicava valo- rizar as instituições propriamente democráticas, também signifi- cou aproximar-se, de modo realista, da corrente principal da vida política dominada pelo petebismo e suas “reformas de base” – e seria uma das marcas da atuação do PCB antes e, mais particular- mente, depois de 31 de março de 1964. Como também o seriam a definição de uma política ampla de alianças e a possibilidade de encaminhar a mudança social num contexto de legalidade demo- crática e constitucional, precisamente por causa do caráter pluri- classista das alianças pretendidas. Era o “caminho pacífico da revolução brasileira”, para retomar uma audaciosa formulação do documento de 1958, tantas vezes contestada no pós-64. Que não se tratava de mudanças superficiais resta compro- vado pela nova vitalidade adquirida pelo PCB nos anos imediata- mente anteriores ao movimento militar e que só teve precedente no curto período de legalidade entre 1945 e 1947. Uma renovação, de resto, atestada – “a contrario” – pela cisão dita “marxista-leni- nista” dos antigos setores mais stalinistas e aferrados à lógica da inevitável estagnação do capitalismo entre nós. Tais setores, a partir de 1962, se reagruparam no PCdoB e buscaram reconstruir 39As esquerdas, a ditadura e o problema da frente democrática a ortodoxia, reafirmando a versão “pura e dura” da revolução de libertação nacional, típica dos países coloniais, e apontando a China maoísta como o modelo de nova sociedade a atingir – e, como era congênito à cultura bolchevique das origens, por meio da violência revolucionária (Posteriormente, num movimento próprio desta mesma velha cultura comunista, o PCdoB deslocaria para a Albânia o paraíso encarnado do socialismo). As mudanças não eram superficiais, mas não chegaram a transformar radicalmente o modo de ser dos comunistas no espaço de tempo relativamente curto entre 1956 ou 1958 e 1964. Além disso, uma mudança desta ordem só seria possível em situação de plena legalidade do Partido Comunista, que obrigaria à competição democrática com seus requisitos inestimáveis de debate e crítica permanente. Não houve tempo nem condições para tanto – e, aliás, a subestimação da condição de ilegalidade é um equívoco, há muito indesculpável, de diversos historiadores que se debruçaram sobre a trajetória do PCB.4 Por isso, a percepção de que, na conjuntura de 1964, era crucial defender a Constituição de 1946 muitas vezes faltou ao PCB – mesmo sendo ele a mais moderada entre as forças de esquerda, considerando aqui não só o PCdoB, mas também seto- res que se reuniam em torno de Goulart, Brizola ou Julião e suas Ligas Camponesas, ou, ainda, as novas forças do catolicismo social e político aglutinadas pela Ação Popular.5 4 Este verdadeiro “ovo de Colombo” foi também a observação recorrente de Gildo Mar-Este verdadeiro “ovo de Colombo” foi também a observação recorrente de Gildo Mar- çal Brandão, autor de brilhante ensaio sobre o conflito entre as inclinações militaris- tas e civilistas do PCB em praticamente toda a sua trajetória. Veja-se, em particular, o seu livro A esquerda positiva. As duas almas do Partido Comunista – 1920/1964, São Paulo: Hucitec, 1997. 5 Dois dos mais destacados estrategistas políticos do Partidão, Armênio Guedes e Mar- co Antonio Coelho, registraram retrospectivamente as contradições entre as almas divergentes do próprio PCB em relação ao governo Goulart. Segundo o primeiro, “no embate entre Jango e seu mais feroz opositor, o governador da Guanabara Carlos Lacerda, da UDN, Prestes achava que o PCB podia ficar no meio da briga e sair ga- nhando o poder que sobraria depois da mortal briga entre os dois lados”: cf. Sandro Vaia, Armênio Guedes – sereno guerreiro da liberdade, São Paulo: Barcarolla, 2013, p. 80. Por sua vez, em 2004, em conciso e precioso texto escrito para o quadragésimo aniversário do golpe militar, o segundo dirigente lembra, com a precisão de um prota- gonista, que, “dois meses antes do golpe, a direção do PCB declarou que este partido situava-se como ‘oposição ao governo de Goulart’, argumentando que este desenvol- via uma política de conciliação com setores políticos não comprometidos com as re- 40 1964 – As armas da política e a ilusão armada Nada casual, portanto, que, instaurado o regime militar, no debate que se abre sobre as causas da derrota, as formas de ação diante do poder arbitrário e as perspectivas de futuro, não se gene- ralizasse em toda a esquerda aquela “frente democrática” que, mesmo com altos e baixos, se firmava como o núcleo da estratégia dos comunistas do PCB. Mais grave ainda: numa sucessão muito rápida de “rachas”, dissidências e cisões, que é muito difícil recons- tituir e merece exame à parte, setores inteiros do Partido Comu- nista, derrotados no debate interno, partiram para o enfrenta- mento armado com o regime. Quadros históricos como Carlos Marighella, Mário Alves ou Jacob Gorender romperam com o “reboquismo” da política pece- bista, que afirmava a centralidade da luta propriamente política contra o regime, e fundaram ou deram substância teórica a grupos mais ou menos articulados, que tentavam remediar, retrospectiva- mente, o que consideravam ter sido o “erro essencial” do PCB e das demais forças nacionalistas e reformistas no pré-64 – vale dizer, não o abandono da bandeira da legalidade democrática nas mãos da direita, mas a perda de uma excepcional ocasião revolucionária por causa de um “desvio oportunista de direita”.6 Nenhuma (auto)crítica quanto às palavras de ordem da esquerda contra Goulart – a face política da “burguesia nacio- nal”, no jargão dos comunistas –, no momento mesmo em que uma poderosa coalizão de direita, com sólido apoio nas classes médias urbanas e sustentação internacional no contexto da formas”: cf. Marco Antônio Coelho, “Os erros que cometemos e o que aprendemos com eles”, em <http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=7>. Acesso em 16/03/2014. 6 Jacob Gorender talvez tenha sido, como político e historiador, quem mais nitidam-Jacob Gorender talvez tenha sido, como político e historiador, quem mais nitidam- ente vocalizou este diagnóstico: “A luta armada pós-64 (...) teve a significação de vio- lência retardada. Não travada emmarço-abril de 1964 contra o golpe militar direitista, a luta armada começou a ser tentada pela esquerda em 1965 e desfechada em defini- tivo a partir de 1968, quando o adversário dominava o poder do Estado, dispunha de pleno apoio nas fileiras das Forças Armadas e destroçara os principais movimen- tos de massa organizados. (...) A esquerda brasileira de inspiração marxista só não pegou em armas quando as condições históricas determinavam que o fizesse” (grifos no original). Cf. J. Gorender, Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, 3. ed., São Paulo: Ática, 1987, p. 249-50. 41As esquerdas, a ditadura e o problema da frente democrática Guerra Fria, se preparava para golpear o regime democrático e intervir radicalmente na vida nacional. Nenhuma crítica ao próprio Goulart, que, contrariamente ao princípio constitucio- nal, por certo já buscava a manobra da reeleição, na previsão das eleições de 1965. Nenhuma referência aos diferentes movimentos sociais, para os quais as reformas de base deviam ser buscadas provocadoramente “na lei ou na marra”. Nada disso entrava nos cálculos de novos e velhos atores da esquerda não pecebista e muitas vezes antipecebista – ao contrá- rio, de acordo com sua visão, a luta pelo socialismo só agora podia se desenvolver sem as ilusões reformistas de antes. O socialismo estava na ordem do dia, e da maneira certa. Sem a mediação inde- sejada da “política democrática”, era uma questão de vontade, de homens e armas. Por certo, seria desejável contar, paralelamente, com a luta de massas, mas entendidas, estas últimas, fora de qual- quer enquadramento institucional, necessariamente “burguês”. E, na ausência da luta de massas, podia-se provocá-las mediante o “foco revolucionário” – de preferência, em áreas rurais afastadas. Neste ambiente de militarização da política, não havia apenas as diferentes dissidências do PCB, as quais denotavam, pela sua origem, a permanência do velho paradigma bolchevique da revolução como assalto frontal ao Estado. Deve-se observar que, no plano global, alguns novos casos de sucesso se impuseram com força aparentemente irresistível, como o da revolução chinesa e o da revolução cubana. Entre nós, a “guerra popular prolongada” do maoísmo foi o horizonte estratégico que possibilitou uma teori- camente improvável aliança entre o catolicismo radicalizado de setores da Ação Popular e os stalinistas do PCdoB, aliança cujo desfecho foi a longamente preparada guerrilha do Araguaia. O “foco” guevarista, que devia conduzir à criação de um, dois ou mil Vietnãs no coração da América Latina, incendiou a imaginação de vários grupos, que se jogaram de corpo e alma, como Guevara, no assalto aos céus. Uma época difícil, como se vê, que também não pode ser contada em sua inteireza sem referência à infâmia da tortura, das 42 1964 – As armas da política e a ilusão armada brutalidades e do terror de Estado, que se desencadeou metodica- mente sobre os diferentes grupos armados e os opositores de modo geral. Uma época que, ainda hoje, merece ser estudada com aten- ção: o léxico e a sintaxe da clandestinidade, mesmo quando se trata de homens e mulheres valorosos e devotados à justiça social, parecem permeados de intolerância, de defesas extremadas da “linha justa”, de denúncias radicais de desvios e traições, e não poderiam prefigurar uma boa sociedade socialista, ainda que a reputássemos possível. Mais atento à política em sentido estrito, que, mesmo comprimida, continuava a seguir seu curso, o PCB advogava a participação no partido de oposição “consentida” e nos sindicatos existentes; combatia o voto nulo e o desprezo pelo jogo eleitoral, uma perspectiva particularmente preocupante em 1970, com a pregação do voto nulo e da dissolução do MDB; assim como, algum tempo antes, havia participado de articulações importantes, como a da Frente Ampla, que reuniu de forma inesperada Juscelino, Goulart e Lacerda, lideranças civis que se contrapuseram violenta- mente antes de 1964 e que ora se viam deslocadas do jogo do poder por uma intervenção militar que parecia ter, crescentemente, ambições de afastar os políticos, “subversivos” ou “corruptos”, a fim de remodelar aceleradamente todo o país. É verdade, o regime militar se crispou ferozmente em dezem- bro de 1968, com o Ato Institucional no 5; e cassações, torturas e mortes se sucederam, como consequência inevitável de todo regime discricionário. Mas ao mesmo tempo, e paradoxalmente, havia eleições regulares. Não se interrompeu o alistamento obriga- tório e assim se constituiu paulatinamente um corpo eleitoral em permanente e quase explosiva expansão. No MDB, liberais e demo- cratas se aliaram aos comunistas do PCB e, mais tarde, a várias outras forças de esquerda, uma vez destroçadas as tentativas de luta armada. O voto urbano foi quase sempre, como nas memorá- veis eleições de 1974, um voto plebiscitário contra a ditadura. E eleições, como sabemos, são sempre o resultado do desloca- mento de camadas e orientações profundas na vida social, não 43As esquerdas, a ditadura e o problema da frente democrática mera contagem aritmética de votos. Tudo isso sem falar de amplos setores da hierarquia católica, já definitivamente afastados do regime, com o significativo destaque de D. Paulo Evaristo Arns, que deram insubstituível testemunho material e moral na defesa dos direitos humanos, seja no caso dos presos políticos, seja no de homens e mulheres “comuns”, vítimas dos esquadrões da morte. Delineou-se assim, com concretude, a substância da política de frente democrática, voltada para “derrotar a ditadura” e instau- rar um regime de amplas liberdades, não para “derrubar o capita- lismo” e sua expressão ditatorial supostamente necessária. Uma política que, aos poucos, tornou-se hegemônica no conjunto das esquerdas, uma vez verificada a derrota inapelável da estratégia da luta armada, e que também cobrou seu preço em vidas preciosas, como, entre muitas outras, as dos membros do comitê central do PCB assassinados em 1974 e as de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, que se transformaram em marcos da reação da nova socie- dade civil rebelada contra a camisa de força do autoritarismo. No entanto, esta generalização da estratégia de luta pelas liberdades não significaria a reafirmação do protagonismo do PCB na esquerda brasileira nem impediria seu declínio. O PCB, como é evidente, integrava o grande ciclo do comunismo histórico inaugu- rado em 1917 e que, em algum momento, com a consolidação do stalinismo e a ruptura com a ideia democrática por parte de todos os partidos comunistas no poder, iria significar uma pesada hipo- teca sobre os PCs que, ao contrário, lutavam em condições muitas vezes difíceis de clandestinidade. Uma hipoteca que estes últimos nem sempre souberam resgatar, elaborando com ousadia as impli- cações teóricas necessariamente inerentes a uma estratégia do tipo da frente democrática. A cultura comunista brasileira, se, por um lado, foi até mesmo capaz de recolher a instigante sugestão berlingueriana da democracia como valor universal – ponto altíssimo da trajetória comunista no Ocidente desenvolvido –, por outro lado demons- trou limites insuperáveis, como no dissídio final entre Prestes e o partido com o qual se confundira por várias décadas. Um dissídio 44 1964 – As armas da política e a ilusão armada que, como se veria cerca de uma década mais tarde, refletia o declínio e a crise terminal do comunismo do século XX, que reti- rava o chão e o fôlego do ator da esquerda marxista que melhor se conduzira, estrategicamente, no combate ao regime militar. A hipótese de renovação democrática da esquerda se veria seria- mente comprometida pelo enfraquecimento histórico dos comu- nistas do PCB, bem como pela consequente diáspora intelectual produzida neste campo. Temas como a relação com as instituições formais da democracia, o diálogo com as versões antigas e moder- nas do liberalismo
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