Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIP – UNIVERSIDADE PAULISTA Instituto de Ciências Jurídicas Curso de Direito DIREITO À SAÚDE FRENTE A RESERVA DO POSSÍVEL JONATHAN DO NASCIMENTO CLEMENTINO ANUNCIAÇÃO SANTOS 2021 JONATHAN DO NASCIMENTO CLEMENTINO ANUNCIAÇÃO DIREITO À SAÚDE FRENTE A RESERVA DO POSSÍVEL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de Graduação em Direito apresentado à Universidade Paulista – UNIP. Orientador(a): Prof.ª Me. Ana Paula Martin Martins SANTOS 2021 JONATHAN DO NASCIMENTO CLEMENTINO ANUNCIAÇÃO DIREITO À SAÚDE FRENTE A RESERVA DO POSSÍVEL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do título de Graduação em Direito apresentado à Universidade Paulista – UNIP. Orientador(a): Prof.ª Me. Ana Paula Martin Martins Aprovado em:___/___/___ BANCA EXAMINADORA _______________________ Prof.ª Me. Ana Paula Martin Martins Universidade Paulista – UNIP ______________________ Prof. Universidade Paulista – UNIP SANTOS 2021 Agradecimentos Em primeiro lugar, agradeço a Deus pela força e pelo equilíbrio mantidos ao longo desse trabalho. Aos meus pais, à minha esposa Bruna Nascimento, pela compreensão, dedicação e amor transmitidos. A todos os colegas, amigos e familiares que fortaleceram os meus caminhos nessa trajetória e contribuíram para o resultado deste trabalho. A minha orientadora Ana Paula Martin Martins pela dedicação em suas orientações prestadas na elaboração deste trabalho, me incentivando e colaborando no desenvolvimento de minhas ideias. A todos vocês, minha eterna gratidão. RESUMO O presente estudo discorre acerca da relação dicotômica entre o direito à saúde e a reserva do possível, apontando para as principais questões que compõem o debate entre esses dois assuntos. Essa temática está conduzida dentro de duas perspectivas: a primeira de que o direito à saúde é expressamente garantido no texto constitucional vigente, caracterizado como direito fundamental social e obriga uma prestação positiva do Estado, refletindo assim, numa expressiva oneração aos cofres públicos. Nesse contexto, constitui -se a segunda perspectiva, da reserva do possível como limitação ao direito à saúde, na concepção de ser uma limitação fática e jurídica, que possibilita o ente estatal não cumprir ou cumprir parcialmente com o seu dever constitucional sob alegação de ser impraticável pela insuficiência de recursos ou por questões normativas, de não querer incorrer em uma irresponsabilidade fiscal. Comprometendo, dessa forma, a efetividade do direito à saúde. Nessa situação, do Estado não atender ou fazer um atendimento deficitário de determinadas demandas populacionais na área da saúde com base na problemática justificação da reserva do possível, muitos cidadãos têm-se encaminhado ao controle jurisdicional. Assim, as prestações, de forma recorrente, passam ser ordenadas por decisões judiciais, cuja legitimidade, embora questionada, é conferida pela força dirigente dos direitos fundamentais sociais — que obriga todos os poderes públicos, inclusive o Poder Judiciário, sempre que reclamado, de defender que tais direitos sejam concretizados. Contudo, essa busca crescente pela efetivação do direito fundamental à saúde por via judiciária, embora legítima, é evidente que causa alguns problemas, como por exemplo, o comprometimento do orçamento público em face das decisões judiciais favoráveis. Nesse cenário, a discussão ganha uma agravante, pois o judiciário, sob o pretexto de garantir a concretização do direito à saúde não considera a complexidade dos critérios normativos legais e a possibilidade da execução por meio dos recursos alocados no orçamento. Dessa maneira, devido à incompatibilidade entre a decisão do Poder Judiciário e o campo normativo das finanças públicas, a estabilidade financeira da política de saúde acabar por ser inviabilizada. Palavras-chaves: Direito à saúde. Reserva do possível. Judicialização da saúde. ABSTRACT The present study discusses the dichotomous relationship between the right to health and the reserve of the possible, pointing to the main issues that make up the debate between these two subjects. This theme is conducted from two perspectives: the first that the right to health is expressly guaranteed in the current constitutional text, characterized as a fundamental social right and requires a positive provision by the State, thus reflecting on a significant burden on public coffers. In this context, the second perspective is constituted, of reserving the possible as a limitation to the right to health, in the conception of being a factual and legal limitation, which makes it possible for the state entity not to fulfill or partially fulfill its constitutional duty under the allegation of being impractical due to insufficient resources or due to regulatory issues, of not wanting to incur fiscal irresponsibility. Thus compromising the effectiveness of the right to health. In this situation, if the State does not meet or make a deficient service of certain population demands in the area of health, based on the problematic justification of reserving the possible, many citizens have taken to judicial control. Thus, the benefits, on a recurring basis, are ordered by judicial decisions, whose legitimacy, although questioned, is conferred by the governing force of fundamental social rights - which obliges all public powers, including the Judiciary, whenever claimed, to defend such rights are realized. However, this growing search for the realization of the fundamental right to health through the judiciary, although legitimate, clearly causes some problems, such as, for example, the compromise of the public budget in the face of favorable judicial decisions. In this scenario, the discussion becomes more aggravating, since the judiciary, under the pretext of guaranteeing the realization of the right to health, does not consider the complexity of the legal normative criteria and the possibility of execution through the resources allocated in the budget. Thus, due to the incompatibility between the decision of the Judiciary and the normative field of public finances, the financial stability of the health policy ends up being rendered unfeasible. Keywords: Right to health. Reservation possible. Judicialization of health. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 DIREITO À SAÚDE NO BRASIL ........................................................................ 10 1.1 Evolução histórica do direito à saúde ........................................................... 12 1.2 Saúde: um direito fundamental social .......................................................... 18 1.2.1 Aspectos gerais dos direitos fundamentais ................................................. 18 1.2.2 Direitos sociais como conteúdo dos direitos fundamentais ...................... 26 1.2.3 Uma compreensão formal e material do direito fundamental social à saúde ...................................................................................................................................... 29 1.3 A efetivação do direito à saúde ..................................................................... 35 1.3.1 A responsabilidade estatal à saúde .............................................................. 35 1.3.2 O Sistema Único de Saúde como instrumento para prestação de serviços públicos de saúde ......................................................................................................38 2 RESERVA DO POSSÍVEL .................................................................................... 41 2.1 Surgimento da reserva do possível .............................................................. 42 2.2 A importação da reserva do possível no direito brasileiro ........................ 44 2.3 Reserva do possível como limitação do direito à saúde ........................... 52 3 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE ........................................................................... 57 3.1 A judicialização e a questão Orçamentária ................................................. 59 3.2 Direito à saúde entre a Administração Pública e o Poder Judiciário....... 66 3.3 Judicialização da saúde e seus efeitos ........................................................ 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 78 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 82 8 INTRODUÇÃO Segunda a matéria publicada no portal de notícias do G1 (2020), com base numa apuração feita pelo Instituto de Pesquisas Datafolha requerida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), obter uma consulta médica com um especialista é uma difícil tarefa para os pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS), pois o tempo de espera para realização do atendimento é de seis meses a dois anos. De acordo com a matéria, de 2.087 pessoas que foram entrevistadas, 45% disseram que esperavam mais de seis meses para conseguir uma consulta, um exame ou, até mesmo, uma cirurgia. Já para os 29% dos entrevistados, a condição era ainda mais desagradável, pois para estes, a espera ultrapassava de 12 meses. Ainda, com base nos dados da supracitada pesquisa do Datafolha, o jornal Estadão informa que 55% dos entrevistados consideram a saúde do Brasil como péssima ou ruim. Relata que as maiores avaliações negativas foram referentes a demora no atendimento: tempo de espera para fazer cirurgias – 61%, tempo de espera para realizar exames de imagem – 56%, tempo de espera para conseguir consulta – 55%. (Estadão, 2020). Dessa forma, diante de um enorme contingente de pessoas na fila para conseguir uma assistência médica, sabe-se dos prejuízos irreparáveis à saúde que podem ser ocasionados. Visto que, a ausência de um atendimento médico é um fator determinante para haver diminuição de ocorrência de cura, pois as probabilidades de um tratamento bem-sucedido são muito maiores quando é feita uma assistência preventiva e uma detecção da doença já no início. Nesse sentido, observa-se uma crise generalizada da saúde pública do país, caracterizada pelo longo tempo de espera para ter acesso aos serviços de saúde, multiplicação de doenças, falta de vagas nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s), falta de acesso à medicamentos, entre outros distúrbios. O contexto atual, demonstra que o direito à saúde, embora sendo um pressuposto essencial para condição de viver uma vida digna, por muitas vezes, não tem sido concretizado. Dessa forma, o sistema público de saúde tem como principal mazela a falta de efetividade, que é sentida pela população mais carente. 9 Nesse panorama, é oportunizado a discussão que diz respeito a suficiência do orçamento público para solucionar ou minimizar esses problemas que se apresentam durante um longo período. No entanto, vale a reflexão se existe essa suficiência ou não de recursos públicos para isso. Logo, o tema escolhido, reveste-se de grande relevância, pois tem a finalidade de promover uma discussão aprofundada sobre questões que envolvem a efetividade do direito à saúde diante das dificuldades de ordem financeira. Para tanto, tal discussão foi desenvolvida de forma instrutiva e clara, dirigida por uma metodologia de pesquisa bibliográfica e documental. No capítulo primeiro, será analisado os aspectos centrais tocantes ao direito à saúde no Brasil. A começar pelo aspecto histórico, onde será feita uma exposição de quando o direito a saúde se normatizou dentro das Constituições brasileiras e como se deu essa normatização. Portanto, preliminarmente, discorrerá a respeito do processo evolutivo histórico da constitucionalização da saúde no Brasil. Em seguida, atendo-se ao aspecto característico e classificatório da norma, será dedicado um estudo da saúde como um direito fundamental social, emendando, para última análise, as implicações que decorre disso. Tal como, referindo-se ao aspecto empírico, a obrigação do Estado em promover a efetivação da saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). No segundo capítulo, será examinado o tema da reserva do possível. Nessa seção, no esforço de trazer uma compreensão correta e completa sobre o assunto, será, incialmente, abordado sobre o surgimento da chamada reserva do possível. Na sequência, investigará a possibilidade da aplicação da reserva do possível no direito brasileiro, apresentado os aspectos conceituais sobre o tema, e como este pode limitar o direito à saúde. No terceiro e último capítulo, o direito à saúde e a reserva do possível serão avaliados no campo da judicialização da saúde. Nesse sentido, a judicialização será averiguada como um fenômeno judicial que garante a efetivação da saúde e que, ao mesmo tempo, traz impactos direitos a Administração pública e, especialmente, ao orçamento público. Ainda, por fim, será estudado sobre os efeitos positivos e negativos gerados pela judicialização. 10 1 DIREITO À SAÚDE NO BRASIL O período da segunda guerra mundial e o da ditadura militar brasileira são uns dos principais e mais dramáticos acontecimentos que antecederam a Constituição Federal de 1988. O primeiro ocorreu no âmbito mundial entre os anos de 1939 a 1945, marcando a história do mundo pelas crueldades que foram realizadas durante a guerra, inclusive, com milhares de mortes de inocentes. O segundo sucedeu no âmbito nacional entre os anos de 1964 a 1985, onde instaurou um regime político antidemocrático e ocorreu as mais variadas ofensas aos direitos e garantias dos cidadãos brasileiros. (BARCELLOS, 2019). Após esses dois períodos sucessivos caracterizados pelas mais diversas violações dos direitos humanos, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) foi promulgada, fixando um rumo à redemocratização do país, restabelecendo o respeito à dignidade da pessoa humana, e com isso, o apreço aos direitos e garantias individuais e coletivas. Dessa forma, o cenário inóspito à uma vida digna que perdurou durante muitos anos — acentuado nos períodos da segunda guerra mundial e do regime militar — foi substituído por um ambiente democrático e com profunda estima aos direitos humanos. Neste contexto, uma das principais marcas da Constituição Federal de 1988, foi o fato de instituir uma nova ordem jurídica, tendo como um dos destaques a consagração de um extenso rol de direitos sociais. Como denota os professores Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2019, p. 273-274), “[...] particular atenção merece o título dos Direitos e Garantias Fundamentais, pela sua atualidade e amplitude, pois contempla tanto os direitos e garantias individuais ‘clássicos’ quanto os direitos sociais”. Segundo os autores, a garantia constitucional dos direitos sociais pode ser apontada, além de um importante e necessário avanço, mas também como uma reação às privações de direitos que ocorreram no passado. Visto que, a constitucionalização desses direitos reconheceu a pessoa humana como sujeito detentor de direitos e garantias, reforçou a igualdade entre todos, o cuidado com a dignidade da pessoa humana e, assim, dedicou a alcançar uma sociedade justa e 11 igualitária (SARLET; MARINONI; MITIDIERO). É o que conclui, por exemplo, do artigo 6º da Constituição, no título II - Dos Direitose Garantias Fundamentais, Capítulo II – dos direitos sociais, onde estabelece que todos têm direito à educação, à moradia, à alimentação, à saúde, além de outros. (BRASIL, 1988). Assim, atendo-se ao direito à saúde, tendo em vista ser parte do tema central deste trabalho, observa-se que este está inserido como um dos direitos sociais expressamente previstos no texto constitucional. Verifica-se, ainda, que essa constitucionalização da saúde, acabou por identificar a saúde como um direito fundamental e esboçar um comprometimento do Estado em agir efetivamente na sociedade. Todavia, sobre essas questões, será mais aprofundado adiante. Por ora, o objetivo é fazer perceber que a Constituição de 1988 impulsiona a busca por um ideal de sociedade erguido pós-segunda guerra mundial e pós ditadura militar e, como resposta as arbitrariedades que existiram nesses dois momentos, enquadrou uma profusão de direitos antes postergados, de ordem social, entre os quais, enfatiza está consagrado o direito à saúde — onde recebeu um tratamento constitucional inédito, representando, assim, um progresso decisivo para a saúde pública do país, ao menos em termos de proteção normativa. No entanto, vale sublinhar, que isso não significa que antes da Constituição atual inexistiu qualquer tratamento à saúde nas Constituições passadas. Dizer que a normatização constitucional da saúde, nos moldes atuais, expressa uma proteção inédita, não é o mesmo que afirmar que a questão da saúde foi completamente ausente nas Constituições anteriores, pois todas exibiram normas voltadas a esse assunto, embora nenhuma tenha sido mais abrangente que a de 1988. Dado que a Constituição de 1988, diferentemente das que lhe precederam, conferiu uma essencialidade à saúde, procedendo-a como um verdadeiro direito fundamental social, a ponto de remodelar e reestruturar uma política pública sanitária com base no acesso universal à saúde. Nesse sentido, quanto ao processo evolutivo do direito à saúde nas Constituições brasileiras, será feita uma melhor análise a seguir. 12 1.1 Evolução histórica do direito à saúde O desenvolvimento normativo da saúde nas Constituições brasileiras, como iremos ver, ocorre de forma lenta e progressiva. No entanto, antes de se ater a este assunto, vale discursar, brevemente, a respeito das Santas Casas de Misericórdias. Segundo a Confederação das Santas Casas de Misericórdia do Brasil (2020), em linhas gerais, estas casas hospitalares integram uma instituição que dispõe a conceder assistência médica à população carente. Sua fundação foi feita por jesuítas que, a princípio, atendiam de forma leiga, com poucos recursos aos doentes que as procuravam. Ainda Segundo a Confederação, as primitivas Santas Casas surgiram já com a descoberta do Brasil, isso significa que elas existem antes mesmo de haver a primeira Constituição. Algumas delas eram: as Santas Casas de Santos (1543), Salvador (1549), Rio de Janeiro (1567), Vitória (1818), São Paulo (1599), João Pessoa (1602), Belém (1619), entre outras. Assim sendo, sem a existência de uma ordem jurídica constitucional que assegurasse o serviço público à saúde, as Santas Casas foram, por muitos anos, o único meio de acesso à saúde para as pessoas sem recursos financeiros suficientes para arcar com as despesas médicas da época. O Brasil só foi ter a primeira carta constitucional, especificamente, na data de 25 de março de 1824, conhecida também como a Constituição imperial, pois esta instituiu a monarquia constitucional e o Estado unitário, centralizando toda autoridade política na Capital. Neste contexto imperioso, sob a perspectiva de direitos, houve uma garantia genérica quanto aos direitos e garantias individuais. Embora a atenção maior tenha sido dada aos direitos civis e políticos, a Constituição Imperial, ainda que genericamente, amparou alguns direitos sociais, como o direito a instrução primária gratuita de todos os cidadãos, dos colégios e universidades para o ensino das ciências, belas-artes e letras e, no tocante a assistência à saúde, foi conferida sob a denominação de “socorros públicos”. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019). No que atine ao direito à saúde, observa-se que a Constituição de 1824, embora tenha declarado alguns direitos sociais, não tratou expressamente sobre o tema, na verdade fez uma referência, absolutamente, genérica. Assim, o que conclui 13 é que a saúde teve um espaço inexpressivo no sistema normativo da primeira constituição. Após a Proclamação da República em 1889, sob evidente influência do constitucionalismo norte-americano, foi promulgada no dia 24 de fevereiro de 1891 uma nova Constituição, que consolidou o regime republicano e estruturou o Brasil em uma República Federativa. No campo de direitos e garantias fundamentais, a Constituição Republicana, tem como destaque a ocorrência de nomear expressamente em seu texto um catálogo de direitos e garantias, que amparou, de forma geral, direitos individuais de liberdade e propriedade, como também os direitos políticos. No entanto, essas declarações de direitos e garantias, além de seguir com a ênfase de proteger os direitos individuais e políticos clássicos, não apresentou uma reforma relevante em relação à defesa do direito à saúde. Na verdade, os direitos sociais reconhecidos anteriormente na Carta Imperial foram suprimidos, entre os quais o dispositivo que garantia os “socorros públicos”. (BARCELLOS, 2018). O que existiu, em termos de proteção à saúde, foi uma garantia a “segurança individual”, que segundo Silva (2016, p.10), tal garantia tratava-se de “[...] uma leve e indireta proteção sanitária”. Sendo assim, é possível afirmar que se manteve uma proteção à saúde superficial, sem um alcance efetivo na vida das pessoas. Já a Constituição de 1934, por sua vez, estabeleceu uma reforma constitucional sem precedentes. Promulgada em 16 de julho de 1934, a segunda Constituição da República, entre as principais características, destaca-se a consagração de direitos individuais e políticos para além dos clássicos (como mandado de segurança, ação popular, anistia por crime político e voto direto e feminino) e a implementação de um avançado sistema de proteção social, até então, inédito, que marcou a introdução do constitucionalismo social no país. Entre os direitos sociais que garantiu, estava o direito a assistência médica e sanitária aos trabalhadores e às gestantes, bem como a proteção à maternidade e à infância, responsabilizando o Poder Público a adotar medidas a fim de restringir a mortalidade e a morbidade infantis. (BARCELLOS, 2018). Destarte, além de ampliar o rol de direitos individuais e políticos, a Constituinte de 1934, até aquele momento, conferiu o maior tratamento constitucional aos direitos sociais, entre os quais esteve incluso expressamente a proteção a saúde. Em razão 14 disso, costuma ser citada como umas das constituições republicanas mais criativas. Nesse sentido vale apontar a seguinte avaliação, “[...] apenas na Constituição de 1934 que o comprometimento (ao menos formal) com a noção de um Estado Social e com a ideia de direitos sociais passou a ser incorporada, de forma perene, ao constitucionalismo brasileiro. [...] o país deu seu primeiro passo no sentido da constitucionalização de um extenso rol de direitos sociais.” (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.258). Todavia, urge salientar que, com base no adendo de Mendes e Branco (2017), mesmo que o projeto constitucional tenha sido bastante progressista, no sentido de trazer uma série de elementos novos, especialmente em matérias de direitos sociais, o diploma constitucional teve uma duração curta, pois foi substituído, autoritariamente, por outro texto já no ano de 1937, em razão do golpe do Estado Novo. Assim, os direitos sociais inaugurados na Carta de 1934, praticamente, não tiveram chance dese consolidar na vida cotidiana da população. Portanto, no ano de 1937 houve o golpe do Estado Novo, nesse mesmo ano, o país passou a ser regido por uma Constituição outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas. A tônica da Carta do Estado Novo foi fortalecer sobremaneira o Poder Executivo, concentrando neste, além das suas atribuições típicas, todas as atribuições do Poder Legislativo, conforme relata Mendes e Branco (2017, p.48), O Presidente da República era, por disposição expressa do art. 37, a ‘autoridade suprema do Estado’. Podia adiar as sessões do parlamento, além de lhe ser dado dissolver o Legislativo. Habilitou-se o Presidente da República a legislar por decreto-lei. As casas legislativas foram dissolvidas e o parlamento não funcionou no regime ditatorial, desempenhando o Presidente da República, por si só, todas as atribuições do Legislativo, inclusive a de desautorizar a declaração de inconstitucionalidade de lei pelo STF. Ademais, segundo a explicação de Tâmara Luz Miranda Rêgo, sob a perspectiva de direitos e garantias, se comparada a constituição anterior, a Constituição de 1937 se destacou negativamente, porque além de reduzir os direitos fundamentais declarados na constituição passada, os direitos que foram previstos ganharam uma referência apenas simbólica. Nesse sentido, no quesito saúde pública, foi mantida a obrigação da legislação trabalhista de proteger a saúde dos trabalhadores, ou seja, não houve uma inovação de tratamento constitucional a esse tema, com exceção do fato de passar a existir uma disposição expressa, onde restringia somente a União a competência legislativa sobre normas fundamentais de defesa e proteção da saúde. No entanto quem recebia os serviços de saúde de maior 15 qualidade eram trabalhadores contribuintes, aqueles que contribuíam com o seguro social, quanto aos trabalhadores informais e os desempregados recebiam serviços públicos de saúde com maior limitação e de baixa qualidade ou, na pior das hipóteses, dependiam, exclusivamente, da assistência médica de instituições de caridade. (RÊGO, 2017). Após superar o Estado autoritário do regime de Vargas, os partidos se reestruturaram, sucederam as eleições e o novo Congresso apropriou-se dos poderes constituintes, momento que foi elaborada a Constituição de 1946. No que atine ao sistema normativo, a Carta de 1946 muito se assemelhou à Constituição de 1934, de tal maneira que “reavivou a importância dos direitos individuais e da liberdade política. Voltou-se a levar a sério a fórmula federal do Estado, assegurando-se autonomia real aos Estados-membros.” (MENDES; BRANCO, 2017, p.48). Em termos de direitos sociais, sob o enfoque do direito à saúde, é possível destacar na Constituição de 1946 a garantia de assistência médica, mas ainda associada aos trabalhadores formais que contribuíam com a previdência. Dessa forma, pode-se dizer, que a saúde foi objeto de proteção, contudo, essa proteção seguiu sendo garantida, basicamente, apenas no campo trabalhista. Em 15 de março de 1967 entrou em vigor um novo documento constitucional, fruto do golpe militar ocorrido em 1964. A Carta constitucional de 1967, entre uma das características mais marcantes, concentrou amplamente os poderes na União e na figura do Presidente da República. Assim, por exemplo, determinou que a escolha do Presidente da República seria feita por eleição indireta; que o chefe do executivo poderia aprovar leis por decurso de prazo e ainda tinha prerrogativa para expedir decretos-leis sobre segurança nacional e finanças públicas. Sob a perspectiva de direitos, o texto constitucional previu um catálogo de direitos individuais e políticos clássicos, porém permitia a suspensão de direitos e garantias constitucionais. A Constituição seguiu garantindo os direitos previdenciário aos trabalhadores e, nesse contexto, o direito à proteção preventiva da saúde. (BRACELLOS, 2018). Verifica-se que até aqui a assistência médica só era garantida, basicamente, aos trabalhadores. As pessoas que não tinham nenhuma relação trabalhista - isto é, que não contribuíssem para a previdência social, não eram acolhidas pelas instituições públicas de receber os serviços à saúde. Dessa maneira, o Estado atuava 16 de forma diminuta, já que em termos de assistência médica, atendia apenas os trabalhadores. Contudo, esse cenário de menor prestação estatal de serviços públicos à saúde perdurou até a aparição da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). Visto que nela, o direito à saúde foi inserido no rol de direitos fundamentais sociais, demandando, assim, uma ação positiva por parte do ente estatal. A Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 trouxe inovações em numerosos aspectos. No que se refere ao seu conteúdo, consiste em texto constitucional sem precedentes na história do Brasil. Além de estabelecer um federalismo mais descentralizado, inovou com novos remédios constitucionais para proteção de direitos individuais (habeas data, mandado de segurança coletivo), com a presença do princípio à dignidade da pessoa humana (dando ênfase a proeminência do ser humano) e do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais (consagrando um extenso rol de direitos e garantias individuais e coletivos). Com referência ao seu conteúdo, vale sublinhar a respectiva nota, [...] cuida-se de documento acentuadamente compromissário, plural e comprometido com a transformação da realidade, assumindo, portanto, um caráter fortemente dirigente, pelo menos quando se toma como critério o conjunto de normas impositivas de objetivos e tarefas em matéria econômica, social, cultural e ambiental contidos no texto constitucional. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.272). Nessa linha, importa acentuar o progresso em sede direitos sociais. O novo texto fulgurou pela inclusão de uma extensa lista de direitos sociais, entre os quais foi inserido expressamente o direito à saúde. Dessa forma, o Estado se comprometeu a participar na sociedade civil, no que fosse relevante para garantir a dignidade de todos. No que concerne ao direito à saúde, sua previsão está amparada por um extenso arcabouço jurídico. As disposições constitucionais assegurando o direito à saúde são, significativamente, numerosas. Posto isso, faz-se oportuno expor uma síntese dessas disposições feito por Leny Pereira Silva. No artigo 7º, incisos IV e XXII a saúde recebe proteção no âmbito dos direitos trabalhistas. Enquanto os artigos 23, II e 24, XII determina que é função de todos os entes federativos cuidar da saúde e legislar em sua defesa. Ainda, o artigo 30, VII designa os Municípios, com a cooperação técnica e financeira da União e dos 17 Estados, atender as demandas feitas pela população de receber serviços de saúde. (SILVA, 2011). Ademais, nos artigos 34, alínea “e” e 35, III permite uma ação intervencionista da União nos Estados e Municípios quando estes não aplicar o mínimo exigido para a preservação e aperfeiçoamento das ações e serviços públicos de saúde. Mais adiante, no capítulo que dispõe sobre a seguridade social, na seção II, os artigos 196 a 200, dedica – se a dar um tratamento especial a saúde. (SILVA, 2011). O artigo 208, VII, insere a assistência à saúde entre os programas designados aos educandos do ensino básico como forma de se tornar a educação efetiva. No dispositivo 220, §3º, inciso II, prever a possibilidade de proteger a saúde vetando, por intermédio de lei federal, campanhas de publicidades de produtos, práticas e serviços prejudiciais à saúde. O artigo 227, declara ser obrigação da família, da sociedade e do Estado garantir à criança, ao adolescente e ao jovem, entre outros, o direito à saúde, bem como no §1° do mesmo artigo, determina que o Estado atue promovendo programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem. Por fim, no mesmo dispositivo,no inciso I prever a aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil. (SILVA, 2011) Como se observa, o direito à saúde nos moldes atuais representa um progresso decisivo para a saúde pública do país. Uma vez que, mediante diversos dispositivos constitucionais, o constituinte demonstra a intenção de oferecer plena garantia deste direito. Certamente, não há como desconhecer a importância da nova constituição, considerando que é como uma inestimável Carta de Direitos, contudo, vale considerar as importantes críticas que cabem ao texto devido, justamente, a este catálogo vasto de direitos e garantias. Assim, vele inserir como exemplo, a crítica que alguns fazem de que houve uma irresponsabilidade dos constituintes, por prometeram mais do que se poderia cumprir, gerando expectativas, no que diz respeito com a efetividade dos direitos sociais, que estariam, desde logo, fadadas à frustração. Desse modo, a normatização do direito à saúde nos moldes do texto constitucional vigente trouxe muitas implicações, entre as principais, estão as que são relacionadas a sua efetivação. No entanto, antes de versar acerca da efetivação do direito à saúde, cabe primeiro a tarefa de classificá-lo e, isso, é que será feito a seguir. 18 1.2 Saúde: um direito fundamental social As constituições precedentes ao texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988, conforme já evidenciado em seção anterior, fizeram referências a alguns direitos sociais mediante dispositivos esparsos e, algumas delas, tratavam de modo genérico determinados direitos, como por exemplo a Constituição de 1824, que fazia referência à garantia de “socorros públicos” para tratar sobre a questão da saúde. No entanto, apenas na Constituição Federal de 1988 houve a previsão de um catálogo específico para os chamados Direitos e Garantias Fundamentais, onde foram efetivamente positivados os direitos sociais na qualidade de direitos fundamentais. Diante desse quadro, já que o presente trabalho é voltado para a questão da efetividade do direito à saúde frente às situações de ordem orçamentária — como a escassez de recursos necessários à sua concretização, torna-se importante tratar do assunto relativo à fundamentalidade do referido direito. Afinal, trata-se de uma questão de ordem lógica, pois seria leviano lidar com o tema da efetividade de algum direito sem haver um mínimo de esclarecimento acerca da posição assumido por ele no ordenamento jurídico. Contudo, é oportuno adiantar que esse subtítulo será desenvolvido no intuito de seguir uma abordagem clássica que acomoda o direito à saúde como um direito fundamental social. Dessa forma, entende-se ser necessário tecer alguns comentários sobre as linhas gerais dos direitos fundamentais em geral e, especialmente, da categoria de direitos sociais. Visto que não há como falar da espécie (direito fundamental social à saúde) sem antes situar tal direito dentro do gênero que é os direitos fundamentais. 1.2.1 Aspectos gerais dos direitos fundamentais A princípio, pela notável importância da questão e por se tratar das duas expressões mais empregadas e admitidas, é necessário fazer a distinção terminológica entre os assim denominados direitos fundamentais e os direitos humanos. Com esse objetivo, destaca-se a respectiva elucidação, [...] o termo “direitos fundamentais” se aplica àqueles direitos (em geral atribuídos à pessoa humana) reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com 19 determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e em todos os lugares, de tal sorte que revelam um caráter supranacional (internacional) e universal. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.340). De acordo com essa lição, certifica-se que as duas expressões, muito embora sejam habitualmente usadas como sinônimas, possuem conceitos diferentes. Enquanto a expressão direitos fundamentais designa um conjunto de direitos consagrados pela ordem jurídica de um país, a expressão direitos humanos refere-se aos direitos reconhecidos pela ordem jurídica internacional. Para uma melhor visualização da distinção em pauta, vale a observação feita por Barcellos (2018, p.196-197), A Constituição de 1988 utiliza a expressão “direitos fundamentais da pessoa humana” apenas uma vez (art. 17) e “direitos e garantias fundamentais” uma outra (art. 5º, § 1º), ocupando-se mais das espécies de direitos que integram o gênero dos direitos fundamentais e dos quais ela cuida de forma específica, a saber: direitos individuais, trabalhistas, políticos e sociais, além de direitos coletivos e difusos. A expressão “direitos humanos” é utilizada algumas vezes no texto constitucional, em geral no contexto das relações internacionais do País (art. 4º, II) e de tratados internacionais de direitos humanos (art. 5º, § 3º; art. 109, § 5º). Assim, ainda que seja reconhecida a aproximação entre ambos os termos, é importante a consideração dessa distinção, à vista que o próprio texto constitucional, conforme apontado acima por Barcellos, indica essa diferença — na medida que os direitos humanos provêm dos tratados internacionais e os direitos fundamentais são positivados no âmbito constitucional interno. Portanto, conforme o direito constitucional pátrio, a expressão direitos fundamentais trata-se de todos os direitos positivados na esfera do direito constitucional. Para Dimolulis e Martins, os direitos fundamentais são definidos como, [...] direitos públicos subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual. (DIMOLULIS; MARTINS, 2012, p.40 apud RÊGO, 2017, p.30). De forma sintética, essa definição concentra em destacar os direitos fundamentais como uma limitação do poder estatal para preservar a liberdade individual. No entanto, tal definição, no máximo permite uma orientação preliminar quanto as funções dos direitos fundamentais, já que sua finalidade, além de direitos de defesa — que garantem a liberdade individual contra interferências ilegais do Poder 20 Público, assumem também a função como garantias positivas do exercício da liberdade. Nesse sentido, explica Mendes e Branco, Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado) mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. Assim, enquanto os direitos de defesa (status libertatis e status negativus) dirigem-se, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, ressalvados os avanços registrados ao longo do tempo, [...], implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material. (MEDES; BRANCO, 2017, p.526). Assim, conforme a elucidação supracitada, os direitos fundamentais guardam pelo menos dupla função. A função de statusnegativo, onde a liberdade individual é protegida pela imposição de limites para as ações do Poder Público que interfira na vida particular do indivíduo, e a função de status positivo, onde exige ações de prestação material que viabilizam o exercício da liberdade individual. Para um apropriado entendimento do conteúdo e das funções dos direitos fundamentais, ainda que de forma sucinta, será tratado, seguidamente, sobre as dimensões ou gerações dos direitos fundamentais e suas características principais. Conforme explica Pimenta (2017, p.16-17), a “teoria das gerações dos direitos” foi desenvolvida por um jurista tcheco chamado Karel Vasak. Inspirado pelo lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), sua teoria equivale a três gerações de direitos. A primeira geração (dos direitos civis e políticos) atende ao ideal de liberdade; a segunda geração (dos direitos sociais, econômicos e culturais) corresponde ao ideal de igualdade e, por último, a terceira geração (dos direitos de solidariedade) completa a tríade com o ideal da fraternidade. Além dessas Três gerações teorizadas pelo jurista tcheco, há autores que, ao aprofundar o ensino a respeito dos aspectos característicos de cada uma dessas gerações de direitos, atualizaram essa teoria somando com novas gerações. 21 Contudo, antes de versar sobre essa questão, importa fazer um adendo, no sentido de que será deixado de lado toda a discussão em relação ao uso dos termos “gerações” ou “dimensões” de direitos, considerando como ideal usar nesse trabalho o termo “dimensões” com base na concisa e clara aula do professor Paulo Bonavides (2010, p.525), [..] força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Assim, a fim de afastar a equívoca ideia de sucessão, em que uma geração substitui a outra, justifica substituir termo “gerações” pelo termo “dimensões”. Nessa toada, o mais essencial é mirar no fato de que os direitos fundamentais podem ser analisados e compreendidos em múltiplas dimensões. Abrangendo o que foi desenvolvido por Karel Vasak, Paulo Bonavides ensina que os direitos fundamentais são divididos em primeira, segunda, terceira, quarta e quinta dimensão. Os direitos fundamentais de primeira dimensão são os direitos relativos às liberdades individuais, a saber os direitos civis e políticos. São direitos oponíveis ao Estado traduzidos em uma prestação negativa, um não fazer do Poder Público, que proteja a liberdade individual de cada cidadão. (BONAVIDES, 2010). A segunda dimensão dos direitos fundamentais são os direitos sociais, culturais e econômicos, ou seja, direitos coletivos ou de uma coletividade. São direitos de íntima relação com o princípio da igualdade, que também se caracterizam por garantir aos indivíduos direitos a prestações positivas, uma vez que cuida de impor uma ação de fazer por parte do ente estatal em pró ao cidadão. (BONAVIDES, 2010). Os direitos fundamentais de terceira dimensão são direitos transindividuais, dotados de grandes doses de humanismo e universalidade, tendo como destinatário o gênero humano, com uma titularidade coletiva, muitas vezes indeterminável e indefinida, como, por exemplo se revela no direito ao meio ambiente e ao desenvolvimento. (BONAVIDES, 2010). Têm-se como direitos fundamentais de quarta dimensão os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. Tal dimensão é resultante da globalização 22 dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização desses direitos no plano de todas as relações de convivência. (BONAVIDES 2010). Quanto aos direitos fundamentais de quinta dimensão, diferente do entendimento de Karel Vasak, o professor Paulo Bonavides incluiu em seu conteúdo o direito à paz. Assim, Bonavides faz uma reclassificação do direito à paz, demovendo da terceira dimensão para alocar em uma dimensão nova e autônoma. (BONAVIDES, 2010). Feita essa breve exposição acerca da teoria das dimenões dos direitos fundamentais com base nas lições de Bonavides, como encerramento dessa seção, será feita uma abordagem sobre as principais características dos direitos fundamentais em geral. Afinal, o estudo das características básicas dos direitos fundamentais, não só constitui tarefa meramente acadêmica envolvendo problemas abstratos, mas revela-se relevante para a resolução de questões concretas. Dessa forma, o esforço desse estudo é necessário para ser mais compreensível a matéria dos direitos fundamentais e para tornar possível a identificação desses direitos. Admite-se duas perspectivas para os direitos fundamentais, uma subjetiva e outra objetiva. A primeira, corresponde aos direitos fundamentais como direitos subjetivos do indivíduo, tendo a possibilidade de serem exigidos judicialmente perante o obrigado, enquanto a segunda corresponde aos direitos fundamentais como decisões valorativas da Constituição, vinculando todos os poderes como uma ordem objetiva de valores. Assim, elucida Dirley da Cunha Júnior: [...] os direitos fundamentais operam, para além da dimensão de garantia de posições jurídicas individuais, também como elementos objetivos fundamentais que sintetizam os valores básicos da sociedade democraticamente organizada e os expandem para toda a ordem jurídica. Vale dizer, os direitos fundamentais devem ser concebidos não só como garantias de defesa do indivíduo contra o abuso estatal, mas também como um conjunto de valores objetivos básicos e diretrizes da atuação positiva do Estado. (JÚNIOR, 2010, p.608 apud PIMENTA, 2013, p.26). Em termos gerais, os direitos fundamentais não se limitam a perspectiva subjetiva, como apenas garantias dos interesses individuais, mas passaram a apresentar-se, no âmbito da perspectiva objetiva, como um conjunto de valores básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos. Vale detalhar brevemente acerca das implicações decorrentes dessas duas perspectivas. 23 Como um dos mais importantes desdobramentos da força jurídica subjetiva dos direitos fundamentais, costuma apontar-se o Judiciário e o conjuntos de mecanismos processuais por meios dos quais podem ser garantidos os direitos fundamentais. Segundo escreveu Ana Paula de Barcellos, quando algum direito fundamental é violado por ação ou por omissão, o titular do direito, ou até mesmo, um representante ou substituto processual, pode ajuizar uma demanda sobre o tema, à fim do Judiciário promover o respeito e a promoção dos direitos dos autores das demandas ou de seus eventuais substitutos. Dessa forma, o Poder Judiciário poderá, então, desde que julgando procedente o pedido formulado e determinando que seja adotada certa conduta ou leve a cabo providências, garantir o respeito e/ou promoção do direito fundamental em questão. (BARCELLOS, 2018). No âmbito dessa perspectiva, segundo a autora, tem se admitido múltiplos desenvolvimentos, Um primeiro descreve as ações individuais, tradicionalmente manejadas por indivíduos para tutela de seus direitos, sejam eles a liberdade de locomoção, protegida pela via do habeas corpus, seja o direito a prestações de saúde, passando pela garantia da liberdade e da igualdade, entre tantos outros direitos de que se possa cogitar. Um segundo desenvolvimento que pode ser identificado cuida das ações coletivas nas quais se postulam bens privados, isto é, aqueles que, ao serem consumidos, têm sua quantidade disponível reduzida para o restante da sociedade [...]. Um terceiro desenvolvimento do papel clássico da jurisdição em matéria de direitos fundamentais diz respeito a demandas nas quais se postulam bens públicos, isto é, aqueles cujo consumo não reduz a disponibilidadedo bem para o restante das pessoas. (BARCELLOS, 2018, p. 201-202). Neste contexto, de vincular o Judiciário aos direitos fundamentais, ainda que o objetivo não seja apresentar todas as variantes apontadas na doutrina sobre as possibilidades ligadas à noção de direito fundamental na condição de direito subjetivo, torna-se importante, a título de complementaridade, referir-se à lição de Mendes e Branco (2017, p.90), Cabe ao Judiciário a tarefa clássica de defender os direitos violados ou ameaçados de violência (art. 5º, XXXV, da CF). A defesa dos direitos fundamentais é da essência da sua função. Os tribunais detêm a prerrogativa de controlar os atos dos demais Poderes, com o que definem o conteúdo dos direitos fundamentais proclamados pelo constituinte. A vinculação das cortes aos direitos fundamentais leva a doutrina a entender que estão elas no dever de conferir a tais direitos máxima eficácia possível. Sob um ângulo negativo, a vinculação do Judiciário gera o poder-dever de recusar aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais. 24 Já em relação as implicações advindas da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, destaca-se o que se denomina como eficácia irradiante ou efeito de irradiação dos direitos fundamentais, a qual determina que estes, na condição de direitos objetivos, constituem em diretrizes para a aplicação e interpretação de todos os textos normativos conforme aos direitos fundamentais de todo o ordenamento jurídico. Assim, os direitos fundamentais norteariam a interpretação e aplicação do sistema jurídico, o que pode ser considerado, ainda que com ressalvas, como modalidade equivalente à técnica hermenêutica da interpretação conforme a Constituição. Outro desdobramento importante dos direitos fundamentais, na condição de direitos objetivos, diz respeito à função de proteção por eles determinado, no sentido de impor ao Estado o dever de zelar pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não apenas diante dos poderes públicos, mas também em relação a atos dos particulares e até mesmo de outros Estados. Nessa linha, escreve Sarllet, Marinoni e Mitidiero (2019, p.397), Por força dos deveres de proteção, aos órgãos estatais incumbe assegurar níveis eficientes de proteção para os diversos bens fundamentais, o que implica não apenas a vedação de omissões, mas também a proibição de uma proteção manifestamente insuficiente, tudo sujeito a controle por parte dos órgãos estatais, inclusive por parte do Poder Judiciário. Assim, os deveres de proteção implicam deveres de atuação (prestação) do Estado e, no plano da dimensão subjetiva – na condição de direitos à proteção –, inserem-se no conceito de direitos a prestações (direitos à proteção) estatais. Ainda, em continuidade ao estudo das principais características dos direitos fundamentais em geral, vale a abordagem sobre a titularidade desses direitos. Destarte, não é descabida a afirmação de que todas as pessoas são titulares de direitos fundamentais e que a qualidade de ser pessoa constitui requisito suficiente para a titularidade desses direitos, que tende ser efeito do fato de que o princípio da universalidade foi acolhido no direito constitucional positivo pátrio. Assim, conforme o princípio da universalidade, todos os indivíduos, pela condição de ser humano, são titulares dos direitos e garantias fundamentais, consoante o respectivo ensino, O princípio da universalidade, por sua vez, diz respeito, em primeira linha, à pessoa natural (pessoa física). A Constituição Federal, no caput do seu art. 5.º, reconhece como titular de direitos fundamentais, orientada pelo princípio 25 da dignidade humana (art. 1.º, III) e pelos conexos princípios da isonomia e universalidade, toda e qualquer pessoa, seja ela brasileira ou estrangeira residente no País. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.406). Dessa forma, parece claro que os direitos fundamentais são universais, no sentido de estarem sob a tutela de todo e qualquer indivíduo, porém é importante destacar que, por outro lado, no rol dos direitos fundamentais positivados na Constituição de 1988, há direitos de todos os homens – como o direito à vida –, mas há também posições que não englobam a todos os indivíduos, referindo-se apenas a alguns – assim como ocorre, por exemplo, com os direitos dos cônjuges, dos pais, dos filhos, dos trabalhadores, dos consumidores, tudo a demonstrar que há diversos fatores, permanentes ou vinculados a determinadas situações ou que determinam a definição de cada uma dessas categorias. Em suma, o que importa para efeitos de aplicação do princípio da universalidade é que toda e qualquer pessoa que se encontre inserida em cada uma dessas categorias seja, em princípio, titular dos respectivos direitos. Ademais, no intuito de indicar os aspectos característicos básicos dos direitos fundamentais, em última análise, importa trazer algumas considerações gerais apontadas por José Afonso da Silva, que identifica como característica dos direitos fundamentais a historicidade, a inalienabilidade (ou indisponibilidade) e a imprescritibilidade. Segundo o autor José Afonso da Silva a característica da historicidade dos direitos fundamentais expõe que os direitos possam ser declarados em certo tempo, ocultados em outro, ou que se transformam no tempo. Revela-se, assim, o aspecto evolutivo dos direitos fundamentais. (SILVA, 2015). Por conseguinte, depara-se com a inalienabilidade, que consiste na impraticabilidade de alienar os direitos fundamentais, sendo que estes não possuem caráter monetário, não podendo ser disponíveis. (SILVA, 2015). Por fim, identifica-se uma terceira característica, o da imprescritibilidade, que indica que a pretensão de respeito e concretização dos direitos fundamentais não prescreve pelo decurso do tempo, podendo ser exigíveis a qualquer momento, uma vez que a prescrição “é um instituto jurídico que somente atinge a exigibilidade dos diretos de caráter patrimonial” (SILVA, 2015, p. 181). 26 Feito essas considerações gerais acerca dos direitos fundamentais, faz-se pertinente seguir com um breve estudo a respeito dos direitos sociais como conteúdo dos direitos fundamentais de segunda dimensão. 1.2.2 Direitos sociais como conteúdo dos direitos fundamentais Conforme já referido, a Constituição de 1988 consagra, de forma expressa e sem precedentes, amplo catálogo de direitos sociais. Destaca-se, assim, o enunciado do artigo 6° da atual Constituição, onde dispõe, expressamente que “são diretos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988). Desse modo, vê-se que os direitos sociais básicos estão consagrados na ordem jurídica-constitucional, sendo assim, recepcionados explicitamente como direitos constitucionais. Essa característica da constitucionalização dos direitos sociais atinge um estudo de evidente relevo sobre sua fundamentalidade, fazendo-se, portanto, oportuno sua abordagem. Na condição de direitos fundamentais, os direitos sociais apresentam dupla fundamentalidade: a formal e a material. Nesse diapasão, faz-se conveniente iniciar com alguns comentários acerca da fundamentalidade formal. A despeito de reconhecer que não existe apenas os direitos sociais expressamente previsto no enunciado do artigo 6º, isto quer dizer, que existem também os direitos de caráter implícito, salienta-se que, no objetivo de explicar sobre a fundamentalidade formal, a ênfase do estudo permeará pelo dispositivo citado (art. 6º da CRFB/88). Isto posto, valendo-se do ensino contido na obra desenvolvida por Sarlet, Marioni e Mitidiero (2019) — em síntese, a fundamentalidade formal é verificada, basicamente, com a inclusão dos direitos sociais na Constituição Federal,isto é, ocorre pela constitucionalização dos direitos. A razão disso, é porque o fundamento para fundamentalidade formal dos direitos fundamentais está associado ao direito constitucional positivo brasileiro apresentando os seguintes aspectos: 27 a) como parte integrante da constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, gozando da supremacia hierárquica das normas constitucionais; b) na qualidade de normas constitucionais, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional (art. 60 da CF); c) além disso, as normas de direitos fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam de forma imediata as entidades públicas e, mediante as necessárias ressalvas e ajustes, também os atores privados (art. 5.º, § 1.º, da CF). (SARLET; MARIONI; MITIDIERO, 2019, p.361). Assim, no âmbito da positivação jurídico-constitucional, os direitos sociais positivados são autênticos direitos fundamentais, com destaque os expressamente previsto no enunciado observado. Haja vista que tais direitos estão formalmente insculpidos no texto constitucional sob a denominação do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Nesse mesmo sentido, Paulo Bonavides defende que os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal, segundo a regulamentação que se encontra no Capítulo da ordem social, são verdadeiros direitos fundamentais, pois entendi que o caráter da fundamentalidade formal é atribuído na medida em que estão positivados no texto constitucional. O autor ainda salientou a existência de dois critérios formais para identificação dos direitos fundamentais: (a) são direitos fundamentais todos aqueles assim especificamente nomeados no texto da Constituição; (b) são direitos fundamentais os direitos dotados de maior proteção pelo constituinte, seja em virtude de sua imutabilidade sob a ótica da reforma constitucional (“cláusulas pétreas”), seja em virtude da criação de procedimentos mais complexos de modificação. (BONAVIDES, 2010, p.515). Dessa forma, a partir do primeiro critério, sob ordenação colocada pelo constituinte, a compreensão lógica e coerente que se apresenta de imediato é no sentido de considerar que os direitos sociais estão explicitamente previstos como uma dimensão dos direitos fundamentais, uma vez que é incontestável que o tratamento constitucional oferecido aos direitos sociais no dispositivo citado (artigo 6º) possui fundação no Título II, onde nomeia-se os direitos fundamentais. Feitas essas observações sobre a fundamentalidade formal, vale destacar que ela não se apresenta ser o bastante para considerar superada a questão da fundamentalidade dos direitos sociais, pois ainda se faz necessário descobrir a fundamentalidade material de tais direitos. Assim, aponta a seguinte avaliação, [...] é, portanto, evidente que uma conceituação meramente formal, no sentido de serem direitos fundamentais aqueles que como tais foram reconhecidos na Constituição, revela sua insuficiência também para o caso brasileiro, uma 28 vez que a nossa Carta Magna, como já referido, admite expressamente a existência de outros direitos fundamentais que não os integrantes do catálogo (Título II da CF), seja com assento na Constituição, seja fora desta, além da circunstância de que tal conceituação estritamente formal nada revela sobre o conteúdo (isto é, a matéria propriamente dita) dos direitos fundamentais. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.362). Portanto, a fundamentalidade material refere-se aos direitos que, pela essencialidade de seu conteúdo, qualificam-se como fundamentais, até mesmo aqueles que não estão positivados expressamente no texto constitucional. Tal fundamentalidade decorre da análise de os direitos corresponderem com o núcleo de valores materiais declarados na Constituição, informando serem elementos constitutivos do Estado e da sociedade. Neste sentido, importa considerar as intenções constitucionais demonstradas no preâmbulo da Constituição atual, que consagra como um dos valores supremos da sociedade o exercício dos direitos sociais. Ainda, o art. 3º revela os objetivos da República Federativa do Brasil, destacando-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I) e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III). Assim, é de se concluir, que os direitos sociais são o meio para se atingir os valores escolhidos pelo constituinte, notadamente por serem direitos que, sob aspecto material, representam como uma das fundações do Estado Democrático de Direito. De acordo a fundamentalidade material, é possível que a Constituição Federal recepcione direitos fundamentais sociais além dos inseridos formalmente em seu texto. Estabelecendo, desse modo, uma abertura para inserção de direitos fundamentais fora do catálogo constitucional estabelecido sob o Título II. Nesse sentido, assevera José Marcelo Barreto Pimenta, A própria Constituição Federal, em seu art. 5º, § 2º, traz norma contemplando um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, o que se coaduna com os diversos direitos sociais previstos ao longo de seu texto, deixando claro que o rol do Título II não é exaustivo. A título de exemplo, podem-se citar os direitos previstos no Título VIII, da “Ordem Social”, que se baseia na justiça social. Nesse contexto, reafirma-se o papel dos direitos sociais como meio de atingir a tão almejada justiça social, corolário dos objetivos do Estado, mormente o que trata de desigualdades sociais. (PIMENTA, 2013, p.31). Como justificativa da abertura material em comento, Sarlet, Marioni e Mitidiero (2019), argumenta que a literalidade do texto da norma do artigo 5º, §2º traz expressamente uma cláusula de abertura, quando admitiu como direitos fundamentais 29 os decorrentes dos princípios e do regime constitucional, bem como os previstos em tratados internacionais. Outro argumento feito pelos autores, em defesa da abertura material, reporta-se à adição dos direitos sociais no título dirigido aos direitos fundamentais, o que permite um entendimento em prol da amplitude de tais direitos pelo dispositivo em exame. Por fim, alega ainda os autores que o artigo 6º da CRFB/88, ao listar alguns direitos sociais (educação, saúde, trabalho etc.), finaliza com a locução “na forma desta Constituição”, proporcionando, assim, a inserção de mais direitos sociais que possam ser identificados em caráter implícito na Constituição. No entanto, essa noção da fundamentalidade material não pode ser vista somente como fundamento voltado para identificar os direitos fundamentais implícitos, mas, também, assume especial relevância para se compreender a real fundamentalidade de todos os direitos fundamentais previstos expressamente no texto constitucional. Assim, a utilidade do conceito material de direitos fundamentais sociais mostra- se ser de suma importância também ao que diz respeito aos direitos expressamente previstos no catálogo do Título II da Constituição Federal, pois informa os valores que foram levados em consideração pelo constituinte para a previsão constitucional desses direitos, permitindo, com isso, uma real compreensão da importância ética e jurídica dos direitos fundamentais para a realização dos fins que o Estado Brasileiro se propôs. Por ora, foi delimitado estudar a fundamentalidade dos diretos sociais em geral. Assim logo, conforme um dos propósitos do presente trabalho, faz necessário, a seguir, situar em definitivo a saúde no âmbito de direito fundamental social, estabelecendo a compreensão da sua fundamentalidade no sentido formal e material. 1.2.3 Uma compreensão formal e material do direito fundamental social à saúde Com base nas lições apresentadas ao longo dos itens anteriores, é preciso enfatizar que, no sentido formal, determinado direitoé fundamental quando se encontra como parte integrante da constituição escrita, gozando da supremacia hierárquica das normas constitucionais. Por outro lado, no sentido material, o que 30 qualifica um direito como fundamental é o grau de relevância do bem jurídico tutelado considerado em si mesmo, com reflexão a uma ralação direta e harmônica com os princípios adotados pela Constituição. Nessa perspectiva, resta claro que o direito à saúde é, indubitavelmente, um direito fundamental na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pois em diálogo com as noções já traçadas, comunga da dupla fundamentalidade formal e material, que justamente confere os direitos fundamentais como tais. Na esfera do direito constitucional, sob o aspecto formal, a fundamentalidade do direito à saúde é conferida pela sua expressa normatização constitucional, estando consagrado na Constituição Federal de 1988, especificamente no artigo 6º como um dos direitos sociais integrados ao Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais e, especialmente, no artigo 196 a 200, onde é compreensível considerar estar sua maior concretização em nível normativo-constitucional, pois com a leitura dos dispositivos pertinentes, se percebe facilmente, no que diz com a forma de positivação, que é inequívoca a fundamentalidade do direito à saúde em seu conceito formal. Considera-se, assim, de que não há como negar que o direito à saúde está formalmente classificado pelo constituinte, na medida que este está sob uma proteção jurídica e normativa pertinente ao direito constitucional positivo. Dessa forma, mediante a análise do que consta no texto constitucional, revela- se facilmente a fundamentalidade formal do direito à saúde. A ratificação da fundamentalidade formal do direito à saúde pressupõe a admissão em reconhecer também a fundamentalidade material desse direito, pois até para o direito formalmente classificado, a posição jurídica feita pelo constituinte não está desagregada dos critérios de ordem material, já que certamente a própria proteção positiva aponta para relevância de tais bens jurídicos. Isso significa, portanto, que o direito formalmente fundamental, em regra, cumpre com os critérios exigidos para identificação dos direitos materialmente fundamentais. Acerca desses critérios, destaca-se o seguinte apontamento, [...] a busca do referencial material para a identificação de direitos fundamentais deverá guardar sintonia com os critérios estabelecidos, ainda que não diretamente, pela própria Constituição, como, por exemplo, quando no art. 5.º, § 2.º, da CF se faz referência a direitos decorrentes do regime e dos princípios. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.376). 31 Sob essa perspectiva material, é assertivo dizer que os direitos fundamentais, em regra, devem possuir vínculo com os princípios fundamentais que orientam a ordem constitucional. Neste contexto, vale ponderar que por vezes o princípio da dignidade da pessoa humana é tomado como um dos principais elementos materiais identificadores dos direitos fundamentais. Assim, o professor lusitano Vieira de Andrade reconhece no princípio da dignidade da pessoa humana um critério material valioso para a identificação de direitos fundamentais. Segundo o autor, “seriam direitos fundamentais aqueles direitos radicados no princípio da dignidade da pessoa humana, que conferissem a seus titulares direitos subjetivos, e que tivessem função protetora de determinados bens jurídicos individuais ou coletivos.” (ANDRADE, p.83 apud SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.427). Ainda, com entendimento similar, afirma Ana Paula Olsen (2006, p.34), [...] dentre os critérios materiais que permitem a identificação de direitos fundamentais, a partir da referência do § 2º do art. 5º da CF, parece acertado reconhecer no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental reitor da República Federativa do Brasil, o critério material por excelência dos direitos fundamentais sociais. À vista do exposto, percebe-se que, dentre os princípios constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana assume especial relevância como critério material para identificação de direitos fundamentais, visto que, tratando-se de um direito que preserve a dignidade da pessoa humana, não se haverá de questionar sua fundamentalidade. A respeito do princípio da dignidade da pessoa humana, é um princípio que foi constituído pela Constituição Federal de 1988 como um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, condutor da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III). Com base neste reconhecimento constitucional, observa-se que o princípio da dignidade da pessoa humana adentrou na esfera normativa, assumindo o status de verdadeira norma jurídica, revestida de imperatividade. Logo, é justamente neste âmbito positivo que o princípio da dignidade da pessoa humana se posiciona como relevante critério material na identificação e fundamentação dos direitos sociais. 32 Ainda, somado aos autores anteriormente citados, Paulo Bonavides identificou o estreito laço entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa humana ao escrever que não há distinção de valor entre os direitos sociais e os direitos individuais, pois os dois estão ligados a um valor supremo: a dignidade da pessoa humana. (BONAVIDES,2010). Sob prisma similar, Sarlet declara que os direitos e garantias fundamentais, de forma geral, encontram seu fundamento direto e imediato na dignidade da pessoa humana. (SARLET, 2014). Portanto, ainda que o princípio da dignidade da pessoa humana não seja o único critério material de valor significativo para a elaboração de um conceito material da fundamentalidade dos direitos, é inegável que sua relevância se impõe ao demonstrar ser um critério material basilar. É certo, ainda, que este critério material não permite a negação de determinados direitos fundamentais sociais por apresentarem ausência de uma conexão imediata com a dignidade da pessoa humana. Neste sentido escreve Ana Carolina Lopes Olsen, Ainda que se considere referido princípio (dignidade da pessoa humana) como um critério material unificador e identificador dos direitos fundamentais, é preciso respeitar um gradualismo de sua vinculação às normas jusfundamentais, de modo que pode haver direitos formal e materialmente fundamentais que pouco se relacionem com o princípio da dignidade da pessoa humana. Sua fundamentalidade, formal e material, ainda assim subsistirá, na medida em que existem outros valores que podem ter sustentado a decisão do constituinte ao positivar referidos direitos como fundamentais. (OLSEN, 2006, p.35). Feito, então, os esclarecimentos necessários para julgar se um direito é ou não materialmente fundamental, será dado sequência, como última análise, o exame para compreender o direito à saúde como um direito que possui também a fundamentalidade material. Dentre os direitos sociais reconhecidos e catalogados na Constituição atual, o direito à saúde merece destaque, pois este guarda uma estreita relação com a vida, não somente no sentido de preservar a sobrevivência física do indivíduo, mas também na visão de garantir uma existência de vida com dignidade, uma vez que, na perspectiva do mínimo existencial, a saúde integra o arrolamento das necessidades básicas do ser humano. 33 Assim, não se pode desconsiderar a noção de que no âmbito do direito à saúde é conferida de forma mais contundente a concretização do direito à vida e à dignidade da pessoa humana, de modo que a garantia do direito ou acesso à saúde pressupõe que estes dois últimos direitos estão resguardados. Por esse ângulo, já se pode considerar que o direito à saúde é um dos mais essenciais para os indivíduos e, diante de sua importância, pode ser percebido como direito indispensável para o ordenamento jurídico.Há autores que converge com essa visão de haver uma relação imanente do direito à saúde com a vida e a dignidade humana que, conforme os ensinos já observados, constitui em uma fundamentalidade material. Neste caso, (RÊGO, 2017, p.36) entende que “[...] a saúde é, senão o primeiro, um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto indispensável para a sua existência, seja como elemento agregado à sua qualidade.” Ademais, para Dirley da Cunha Júnior, [...] o direito à saúde é tão fundamental, por estar mais diretamente ligado ao direito à vida, que nem precisava de reconhecimento explícito. Assim, constitui exigência inseparável de qualquer Estado que se preocupa com o valor vida humana, o reconhecimento de um direito subjetivo público à saúde. (JÚNIOR, 2005, p.554 apud RÊGO, 2017, p.36). Assim, pode-se dizer que a fundamentalidade material do direito à saúde se evidencia por ser o pressuposto da manutenção e gozo da vida, e vida com dignidade, que opera como garantia das condições necessárias à fruição dos demais direitos fundamentais, pois quando o indivíduo não tem o direito ou acesso à saúde que lhe oportunizam gozar de uma vida saudável, estará não apenas diante da negativa do direito à saúde, mas em verdade, perante a supressão dos demais direitos fundamentais, especialmente do direito à vida e à dignidade humana. Seguindo esse entendimento, aponta Michelle Emanuella de Assis Silva (2016, p. 13), [...] o direito à saúde, por ser um desdobramento do próprio direito à vida, pode ser conectado a praticamente todo e qualquer direito constitucionalmente previsto, uma vez que, sem saúde, não há vida; e sem vida, não há como se exercer qualquer direito. Sendo assim, o direito à saúde traduz em um direito essencial, de natureza social e fundamental à pessoa humana e que, portanto, sob essa análise, revela atender o critério que o qualifica como um direito fundamentalmente material, tendo 34 em vista que há uma indissociabilidade entre o direito à saúde com o princípio da dignidade da pessoa humana, no sentido de a saúde ser um bem fortemente marcado pela interdependência com outros bens e direitos fundamentais, constituindo além disso, pré-condição da própria dignidade humana, visto que a recusa do direito à saúde implicaria na interdição da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. No âmbito desta perspectiva, compreende-se, então, que o direito a saúde, em sentido formal, pode ser entendido como uma posição jurídica que, por decisão expressa do legislador-constituinte, foi consagrado como um dos direitos formalmente fundamentais. Por outro lado, em sentido material, pode ser compreendido como uma posição jurídica que, por seu conteúdo e por sua importância, é materialmente fundamental. Assim sendo, o direito a saúde está situado na espécie de direitos formal e materialmente fundamentais, pois é possível identificá-lo como direito expressamente positivado na Constituição e reconhecer que corresponde diretamente às exigências mais elementares do princípio da dignidade da pessoa humana. Para encerramento, é oportuno trazer a afirmação feita pelo famigerado professor Sarlet, [...] não há dúvida alguma de que a saúde é um direito humano fundamental, tão fundamental que mesmo em países nos quais não está previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da saúde como um direito fundamental não escrito (implícito) [...]. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que reconhece a dignidade da pessoa como valor central e referencial, protege o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também reconhece e assegura a saúde como bem jurídico fundamental. (SARLET, 2014, p. 85). Para além dessas observações, considera-se que, uma vez elevada à condição de direito fundamental, o direito à saúde exige uma atuação positiva do Estado voltada a sua efetivação, tendo em vista que a efetivação do direito fundamental à saúde tem como ideal máximo a defesa da vida e da dignidade da pessoa humana. Portanto, muito embora seja determinante a constitucionalização do direito fundamental social à saúde, a garantia concreta desse direito depende da superação de questões cruciais à efetivação. Assim, tal questão será objeto de estudo a seguir. 35 1.3 A efetivação do direito à saúde A efetivação do direito a saúde não se dá apenas pela sua normatização, isto é, com a elaboração de normas no ordenamento jurídico, mas implica, na concretização da norma na vida das pessoas, com ações que promovem a realização efetiva do direito. Nos dizeres de Ana Paula de Barcellos, a efetividade traduz na execução do direito, quando o efeito pretendido de determinado direito é verificado no mundo dos fatos. Reflete a conformidade entre o dever normativo e o ser da realidade social. Explica, ainda, a autora que a efetividade da norma é determinada pela sua eficácia jurídica, sua aptidão formal para pertencer e gerir a vida em sociedade, realizando os efeitos que lhe são inerentes. Não se refere somente a vigência da norma, mas, sobretudo, da capacidade do enunciado de uma norma conferir condições de atuação, pois se o efeito jurídico intencionado pela norma for impraticável, não existe efetividade viável. (BARCELLOS, 2018). Assim, compreende-se que o direito fundamental à saúde é realmente efetivado quando as demandas da sociedade relacionada a essa área são atendidas, visto que é necessário que os efeitos da norma constitucional sejam sentidos na vida das pessoas para que alcance sua efetivação. Neste sentido, a efetividade passa por uma prestação material, uma vez que, os direitos a prestação, como a saúde, notabilizam-se por ações positivas que possibilitam a satisfação de seus titulares. Portanto, quando se coloca em pauta a efetivação do direito à saúde e as ações necessárias para sua aplicação envolve discutir a responsabilidade do Estado de prestar os serviços públicos de saúde e estudar sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), tendo em vista que é por intermédio do SUS que estes serviços são prestados. 1.3.1 A responsabilidade estatal à saúde Conforme as lições já traçadas até aqui, foi ensinado que a saúde é um dos direitos sociais relacionados na Carta Constitucional atual e que, como direito social, identifica – se como direito fundamental de segunda dimensão. 36 Os direitos de segunda dimensão correspondem a direitos que propõe fornecer maior qualidade de vida a população. À vista disso, esses direitos reivindicam prestações de serviços públicos para sua concretização. Nesse contexto, o professor Paulo Bonavides assevera que o direito à saúde revela - se como um direito de prestação material, uma vez que estes necessitam de uma atuação positiva por parte do ente estatal. (BONAVIDES, 2010). Ainda nesta direção, o professor constitucionalista José Afonso da Silva ensina que, [...] o direito à saúde comporta duas vertentes: uma negativa, que consiste no direito de exigir do estado que se abstenha de qualquer ato que prejudique a saúde; outra positiva, que significa o direito às medidas e prestações estatal visando a prevenção das doenças e os tratamentos delas. (SILVA, 2015, p. 312). Assim, a saúde é um direito que demanda ações do Estado, estando este encarregado pela preservação, melhoria e requalificação da saúde pública. Ainda vale trazer à baila, o ensino proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello, que destaca haver uma indicação expressa da Constituição Federal de serviços antecipadamente propostos como da alçada do Poder Público, sob a competência do Poder Executivo, em razão da sua função administrativa — os considerados serviços públicos por determinação constitucional. No que concerne a esses serviços, tem-se o serviço a saúde, cuja prestação compete à União, Estados, Distrito federal
Compartilhar