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AXÓS E ILEQUÊS pdf · versão 1

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS 
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIOLOGIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AXÓS E ILEQUÊS 
RITO, MITO E A ESTÉTICA DO CANDOMBLÉ 
 
 
 
Patrícia Ricardo de Souza 
 
 
 
 
 
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em 
Sociologia, do Departamento de Sociologia da Faculdade 
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade 
de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em 
Sociologia. Orientador: Prof. Dr. J. Reginaldo Prandi. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo, 2007 
 2
 
 
 
 
 
 
 
Resumo 
 
 
O candomblé é uma religião em que a experiência visual é muito valorizada. Essa experiência 
ganha mais amplitude e força durante as festas públicas, ocasiões em que a religião é 
celebrada. Nesses momentos, de maneira muito especial, e também no dia-a-dia, a dimensão 
estética é um aspecto central. A beleza nessa religião é uma intenção e uma busca 
permanente. É com beleza que se agradam os orixás, e agradá-los é dever religioso. A beleza, 
no entanto, não é um fim em si: ela está sempre ligada ao sentido. Este trabalho trata da 
dimensão estética do candomblé em seu aspecto mais visível e plástico, e dos sentidos que 
essa dimensão revela. 
 
Palavras-chave: candomblé, religiões afro-brasileiras, estética, mito, rito. 
 
 
 
 
 
 
Abstract 
 
 
Candomblé is a religion in which the visual experience is very intense. This experience is 
much deeper and stronger during the public festivals when the religion is celebrated. In these 
moments, in a very special way, and also daily, the esthetic dimension is a central aspect. The 
beauty in this religion is a purpose and an permanent search. By means of beauty people 
please the orishas and to do that is a religious obligation. The beauty, meanwhile, is not an 
itself intention it's always attended with the signification. This work is about the candomblé's 
esthetic dimension in it's much manifested and plastic face and about the significations that 
this dimension brings out. 
 
Key-words: Candomblé, African-Brazilian religions, esthetic, myth, cult. 
 
 
 
 
 3
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Axó, do iorubá aso: roupa, vestuário, paramento. 
Ilequê, do iorubá ìlèkè: contas, fio de contas, colar ritual. 
 
 4
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para Julia e Aníbal, meus pais 
 5
Sumário 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Agradecimentos............................................................................................................ 6 
Introdução..................................................................................................................... 8 
1. Ilequês: os colares rituais ....................................................................................... 12 
1.1. Os colares fora do contexto ritual ..........................................................................................13 
1.2. Os colares na religião .............................................................................................................14 
1.2.1. Os colares na umbanda ............................................................................................14 
1.1.2. Os colares no candomblé .........................................................................................16 
1.1.3. Os colares no tambor-de-mina .................................................................................40 
2. Axós: trajes dos adeptos ......................................................................................... 47 
2.1. O traje do dia-a-dia.................................................................................................................50 
2.2. O traje de festa........................................................................................................................62 
2.2.1. O traje de baiana ......................................................................................................71 
2.2.2. A baiana do candomblé............................................................................................76 
3. Axó-orixá: roupas e adereços dos deuses............................................................... 89 
3.1. Orixá odara .............................................................................................................................89 
3.2. Trajes e ferramentas dos orixás..............................................................................................95 
4. Fazendo axós: costura e nós ................................................................................. 127 
4.1. Os criadores dos trajes..........................................................................................................127 
4.2. As zeladoras dos axós...........................................................................................................132 
5. Enfeitando os espaços: o barracão e os laços ....................................................... 136 
5.1. O templo e as marcas da autoridade.....................................................................................136 
5.2. Reafirmando as origens ........................................................................................................142 
Conclusão ................................................................................................................. 145 
 
Caderno de imagens ................................................................................................. 151 
Índice e créditos das fotos ........................................................................................ 168 
Glossário................................................................................................................... 173 
Referências bibliográficas ........................................................................................ 178 
 6
AGRADECIMENTOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Agradeço ao CNPq pela bolsa que financiou parte dessa pesquisa. 
A Reginaldo Prandi, meu orientador, por todos esses anos de trabalho, pela 
generosidade intelectual, pela confiança depositada, pela amizade e alegria, pela minha 
descoberta do mundo acadêmico. 
Aos professores e amigos Teresinha Bernardo e Armando Vallado pelas observações e 
sugestões importantes em meu exame de qualificação. 
À minha família, em especial a meus pais Julia e Aníbal, sem quem absolutamente 
nada teria sido possível. A meu irmão André, interlocutor de todas as horas, parceiro na 
jornada acadêmica, pelo incentivo e rigor intelectual de sempre. 
A todo o povo-de-santo de diversos lugares, aos veneráveis pais e mães-de-santo do 
candomblé de São Paulo, que sempre me receberam tão bem em suas casas. Em especial a Pai 
Carlito de Oxumarê, Pai Carlinhos de Oxum e Mãe Carmem de Oxum. A Pai Pércio de 
Xangô, Pai Francelino de Xapanã e Mãe Neide de Obaluaê, cujos terreiros aparecem nas 
imagens que acompanham este trabalho. 
Agradeço de modo especial ao Pai Armando Akintundê de Ogum, babalorixá da Casa 
das Águas, e aos seus filhos-de-santo pela paciência com minhas infindáveis questões, fotos e 
observações, mas sobretudo pela convivência e oportunidade de aprender com eles. Dívidas 
que nunca poderei pagar. 
Ao Ebômi Jurandir Cseny pelo incentivo e por ceder imagens. A Carlos Globo, com 
quem aprendi a fazer fotos digitais, e que esteve comigo em inúmeras festas, incentivando 
meu trabalho e produzindo algumas das imagens aqui presentes. 
 7
Aos meus amigos queridos que colaboraram, das mais diversas maneiras, para que este 
trabalho chegasse a termo: Alessandra, Rosangela, Cristina, Nia, Júnior, Denise, Rubens e 
tantos outros. Grata pelo carinho e apoio. 
 
 
 8
Introdução 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
O candomblé é uma religião em que se celebra por meio da festa dançante (Amaral, 
1992; 2002). É na festa com música, dança e comida que os orixás vêm à Terra conviver com 
seus filhoshumanos, reabrindo as portas de comunicação entre o mundo sagrado em que 
vivem os deuses e espíritos e o mundo dos homens. Diz o mito que um dia a fronteira entre 
esses mundos foi fechada e só é reaberta por curtos períodos, exatamente durante as 
celebrações religiosas. E isso porque os deuses gostam de conviver com os humanos e 
participar de sua festa. Manifestados no corpo dos sacerdotes em transe, eles se 
confraternizam com os mortais, vestem suas roupas especiais e dançam coreografias que 
relembram aventuras narradas por seus mitos. 
A festa é o momento em que a experiência visual do candomblé é mais intensa, em 
que sua dimensão estética se revela com mais força e maior amplitude. Beleza para ser vista e 
gozada, tanto pelos que são da religião como pelos demais, pelos olhares de fora, olhares dos 
que não são adeptos mas comparecem aos terreiros para fruir de sua beleza, para apreciar o 
que também pode ser tido como um espetáculo (cf. Santos: 2005). Beleza é fundamental na 
religião dos orixás. É uma busca incessante, uma intenção que está marcada no mito e que 
perpassa e estrutura o ritos. 
"A arte não é apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimular 
o que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algo 
de estético" (Durkheim, 1989: 455). 
O culto, o rito do candomblé, é carregado de uma beleza proposital e necessária. Os 
deuses se agradam do que é bonito, e agradar os orixás é dever religioso. Mas, aqui a beleza 
não é um fim em si mesmo. Ela tem necessariamente uma finalidade e um sentido que se 
relaciona seja aos orixás e seus mitos, seja à identidade, à hierarquia ou à organização interna 
do grupo. 
 9
É do aspecto estético, em sua manifestação mais aparente, e de seus sentidos, que o 
presente trabalho trata. Optei por fazer um recorte e me ater à manifestação estética em sua 
dimensão plástica, material, visível, e ao alcance de todos os olhares. Isso exclui dimensões 
estéticas importantes como a dança, que foi estudada por Rosamaria Susanna Barbàra (2001), 
e a música, um tema que vem sendo trabalhado por Angela Lühning (1990). Também não 
estão aqui tratados os objetos mais estreitamente ligados ao cerimonial mantido em espaços 
secretos do terreiro, aos quais somente iniciados têm acesso, ou seja, os altares e 
assentamentos das divindades. 
No primeiro capítulo trato do elemento estético mais visível, o mais portátil deles, que 
são os colares de contas, os ilequês. Abordo os colares fora e dentro do contexto ritual, 
procurando os sentidos que eles revelam em termos de identidade e hierarquia no grupo 
religioso, além do aspecto propriamente mágico. 
No segundo capítulo abordo os trajes dos adeptos tanto no cotidiano da religião quanto 
na festa, inclusive jóias e outros elementos que compõem esses trajes. Analiso seus sentidos, 
plurais, também no caso do traje de baiana e seus múltiplos usos, religiosos ou profanos. 
No terceiro capítulo trato dos protagonistas desse espetáculo, os orixás. Abordo as 
relações e o diálogo entre a estética do candomblé e o carnaval. Relaciono um traje de cada 
orixá especificamente e valho-me de um mito de cada um a fim de mostrar a relação entre a 
estética e a mitologia. 
No quarto capítulo cuido da confecção e preparo das roupas e de seus executores. 
No quinto, e último capítulo, detenho-me em outros elementos, como o espaço físico 
do terreiro e sua decoração onde a religião acontece como expressão estética, o que inclui até 
mesmo as comidas sagradas. O objetivo principal é entender o sentido do uso da beleza e sua 
manifestação como expressão de religiosidade. 
 
A pesquisa foi realizada de modo mais sistemático entre 2001 e 2006, mas desde 1996 
mantive contato com terreiros de candomblé na condição de bolsista de iniciação científica 
orientada pelo Prof. Reginaldo Prandi, trabalhando no projeto "Os afro-brasileiros", 
financiado pelo CNPq. 
 10
Ao longo de todo esse tempo participei de inúmeras festas e rituais, fazendo 
observação sistemática, entrevistas e registro fotográfico. A observação sistemática realizada 
em municípios da Grande São Paulo foi complementada com visitas a outros estados. 
No Rio de Janeiro visitei uma exposição de colares de candomblé realizada na galeria 
Mestre Vitalino e entrevistei o curador da exposição Prof. Roberto Conduru. Na mesma 
ocasião estive no Mercado de Madureira, um local de grande concentração de lojas de artigos 
para o candomblé. 
Em Salvador visitei os terreiros mais antigos, que são em grande medida a origem do 
candomblé de São Paulo. Também fui a museus, feiras e lojas de artigos religiosos, e realizei 
entrevistas com adeptos, não adeptos e turistas que vão a Salvador também com o objetivo de 
conhecer o candomblé. 
Empreendi também visitas a diversas lojas de artigos religiosos em São Paulo e 
Grande São Paulo, por vezes acompanhando as filhas-de-santo em suas intermináveis buscas 
por belos tecidos, rendas, fitas, bordados, contas, canutilhos, pedrarias, firmas e tudo o mais 
que a criatividade e a imaginação permitem usar para a confecção de trajes dos filhos-de-
santo e dos deuses. 
Realizei nesses lugares entrevistas abertas com pais e mães-de-santo, adeptos de todas 
as categorias, pessoas que simplesmente simpatizam com a religião e a conhecem muito ou 
quase nada. Entrevistei também pessoas, religiosas e não religiosas, envolvidas na criação e 
confecção e venda dos trajes e adereços dos adeptos e dos orixás. 
Durante a pesquisa de campo, fui a exposições, espetáculos de dança, performances, 
festas em escolas de samba, congressos religiosos, cerimônias ecumênicas e eventos 
relacionados ao universo do candomblé e seus orixás. Tudo isso me permitiu conviver com 
diversos olhares e me ajudou na percepção dos sentidos da dimensão estética do candomblé e 
no amadurecimento de muitas das idéias que apresento a seguir. 
As religiões afro-brasileiras apresentam-se em variadas denominações, incluindo o 
candomblé, o tambor-de-mina, o batuque, a umbanda e outras menos conhecidas. Cada 
modalidade se apresenta estruturada em diferentes ritos ou nações, dependendo da origem 
étnica predominante em sua formação. O centro da presente pesquisa é o candomblé de nação 
queto, uma das variantes originárias das tradições predominantemente iorubás. Essa 
modalidade é, sem sombra de dúvida, a mais estudada, a mais conhecida, e a que tem se 
 11
apresentado como fonte de influência para as demais. Além disso, está muito presente no 
processo de expansão do candomblé nordestino em direção ao Sudeste, e conta com uma 
produção etnográfica ampla, permitindo referências cruzadas com temas que lançam luz sobre 
a questão da estética. É o caso por exemplo, da mitologia dos orixás. 
O estudo é sobre o candomblé queto, mas lancei mão de informações sobre outras 
religiões afro-brasileiras com o propósito de buscar generalizações e apontar para 
especificidades que reforçam a idéia básica desse trabalho, a de que, beleza e ostentação estão 
no cerne do culto aos deuses africanos. Odara, palavra de origem iorubá, que significa ao 
mesmo tempo bonito e bom, é um emblema. 
 12
1. 
ILEQUÊS: OS COLARES RITUAIS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os colares rituais usados pelos adeptos das religiões afro-brasileiras são, sem dúvida, 
um sinal diacrítico importante da pertença a essas religiões. Trata-se mesmo de um elemento 
decisivo e constantemente presente e isso se relaciona igualmente ao fato de que na cultura 
brasileira os colares de contas estão definitivamente associados a essas religiões. 
A associação dos colares rituais às religiões afro-brasileiras também se deve ao fato de 
que os colares integravam, e ainda integram, as diversas culturas africanas que foram trazidas 
ao novo continente, na África, entretanto, eles eram importantes na distinção não de grupos 
religiosos, mas das diversas etnias. 
No segmento religioso afro-brasileiro,é especificamente o candomblé o grande 
responsável pela associação entre essas religiões e os colares de contas tendo em vista a 
visibilidade que essa religião alcançou. Os colares fazem parte, inclusive, dos estereótipos que 
a televisão e outros meios de comunicação incansavelmente divulgam. 
Para além do âmbito do candomblé e das demais religiões afro-brasileiras os colares 
de contas são presença marcante no cotidiano brasileiro de um modo geral, não ficando 
restritos ao âmbito religioso. 
No candomblé, o colar é chamados genericamente de fio de contas ou de ilequê, termo 
de origem iorubá. Alguns tipos, com forma, material usado e destinação ritual próprios, 
recebem nomes específicos como brajá, quelê e laguidibá. Na umbanda os colares são 
chamados de guias, e no tambor-de-mina, de rosários. 
 13
1.1. Os colares fora do contexto ritual 
 
Conforme diz Solange Godoy (2006: 83): 
"Feito dos mais variados materiais como sementes, conchas, coral, pedras (preciosas 
ou não), vidro, pérolas ou metais, o colar de contas existiu desde sempre". 
Nas religiões afro-brasileiras, os colares de contas foram observados desde os 
primeiros tempos da religião no país. Usados inicialmente nas comunidades de culto, 
acabaram por extravasar os muros dos templos, de tal forma que os colares usados nos ritos, 
no cotidiano dos terreiros e em cerimônias religiosas em lugares públicos, são também 
freqüentemente vistos fora do contexto ritual. 
Por exemplo, eles podem ser observados adornando o pescoço das típicas baianas de 
acarajé, que vendem seus bolinhos de feijão fradinho fritos em azeite de dendê por toda parte: 
nas ruas das capitais do Nordeste, como também de grandes cidades do Sul e do Sudeste. 
Onde quer que estejam, as baianas de acarajé são vistas sempre portando seus muitos colares 
multicoloridos. Parece ser essa marca que lhes dá legitimidade. 
Trata-se de algo muito interessante porque, obviamente, nem todas as baianas de 
acarajé espalhadas pelo Brasil são baianas da Bahia, nem tampouco são todas elas adeptas do 
candomblé. Mas é de fato o traje que necessariamente inclui os colares que compõe esse 
personagem amplamente conhecido, de presença obrigatória até mesmo nos desfiles de 
escolas de samba, em que a ala das baianas é um quesito obrigatório embora não conte pontos 
no campeonato dos desfiles. Carmem Miranda levou a baiana e seus colares para as telas de 
Hollywood e "tornou a baiana internacional" como dizia o samba-enredo da escola carioca 
Império Serrano em 1972. 
O traje da baiana, que vemos hoje é, no que diz respeito à forma, praticamente igual ao 
que as escravas vestiam em meados do século XIX, especialmente as escravas de ganho que 
iam para as ruas vender quitutes em seus tabuleiros. Os tempos são outros mas o traje 
permaneceu, inclusive no candomblé. 
Um momento importante em que os colares aparecem com força na vida fora dos 
muros do terreiro é no carnaval, e para ficar num pequeno exemplo basta citar o famoso bloco 
afro Ilê Aiyê e o afoxé Filhos de Gandhy, ambos soteropolitanos. No Ilê, os colares não são 
parte obrigatória da indumentária do desfile, mas aparecem em diversas formas e nas cores do 
 14
bloco (verde, vermelho, amarelo e preto). Já no Filhos de Gandhy, os colares de contas branco 
e azul intercaladas são parte constituinte da indumentária do afoxé. 
Carnaval e venda de acarajé são contextos profanos e o uso dos colares rituais não tem 
aí necessariamente conotação religiosa ou mágica, o que é diferente do uso nos contextos 
litúrgicos. Fora do contexto ritual, os colares em geral embora não tenham nenhuma dimensão 
religiosa ou mágica, podem ser usados como elementos mágicos, como ocorre no uso nos 
espelhos retrovisores de automóveis. Das mais diversas cores, arranjos, tamanhos e 
procedências, sua presença é bastante difundida e não se restringe aos veículos cujos 
proprietários são adeptos das religiões afro-brasileiras. Aqui o uso do colar tem a propriedade 
de conceder proteção, e não é por outro motivo, aliás, que católicos muitas vezes também 
penduram terços nos espelhos de seus automóveis. 
Em que pese o fato de que essa é uma prática corrente entre os fiéis das religiões afro-
brasileiras, é possível afirmar que esse uso do colar é uma prática mais umbandista. 
 
 
1.2. Os colares na religião 
 
 
Qualquer que seja a religião afro-brasileira, o uso de colares rituais — os fios de 
contas ou guias — é emblemático. Mudam as formas, as cores e mesmo os significados, mas 
o fio sempre pode ser visto no pescoço dos devotos. Embora o presente trabalho trate 
especificamente do candomblé de nação queto, é interessante uma apresentação do fio de 
contas também em outras modalidades religiosas afro-brasileiras. 
 
1.2.1. Os colares na umbanda 
 
A umbanda é a religião afro-brasileira mais difundida, ainda que esteja perdendo 
espaço (Prandi, 2003). Seus adeptos declarados representam 0,26% da população, enquanto os 
do candomblé somam 0,08% (IBGE 2000). Esse é, por si, um motivo para explicar o fato de 
que a maioria dos colares que encontramos em automóveis seja de adeptos dessa religião, mas 
 15
há ao lado disso uma razão que diz respeito à própria constituição da umbanda e do 
candomblé. 
Na umbanda os ritos são muito importantes, mas menos complexos do que no 
candomblé, como também seus repertórios simbólico e mítico são menos elaborados, a 
despeito da enorme versatilidade e, portanto, capacidade de transformação, adaptação e 
inclusão que essa religião tem. Disso decorre que a umbanda é, em comparação ao 
candomblé, visivelmente mais simples com relação aos elementos utilizados em seus ritos, 
altares, templos e, igualmente, na indumentária das divindades e adeptos. O que não quer 
dizer que aí não se vá encontrar rituais e templos grandiosos, altares muito elaborados e belas 
roupas. 
Nesse sentido, exatamente porque não há uma diversidade tão grande de elementos 
sagrados a serem manipulados quanto no candomblé é que os colares, ou as guias como são 
chamados nessa religião, ocupam uma posição de evidência como elemento portador de poder 
mágico, do qual são revestidos pelo rito. Vejamos o que diz uma sacerdotisa de umbanda: 
"A gente acredita que a guia funciona como um escudo de proteção para o corpo do 
médium. Então se vai cair alguma carga, alguma demanda, alguma energia negativa, 
as guias estão ali para... como um espelho: para segurar a carga. Às vezes estoura o fio 
no meio do trabalho, alguma coisa, como pra refletir de volta também. Então elas 
funcionam assim" (Mãe Márcia de Iemanjá). 
Esse forte caráter mágico dos colares na umbanda se evidencia também pelo fato de 
que eles não podem ser sequer tocados por outras pessoas, estranhas ou não à religião. Algo 
que, em geral, não ocorre no candomblé. 
É, ao meu ver, dessa concepção do colar como um elemento mágico, um amuleto 
mesmo, que advém seu uso tão recorrente nos retrovisores dos automóveis. A fala de uma 
mãe-de-santo ilustra essa noção entre os umbandistas: 
"Eu acho que quase todo mundo que tem carro e é umbandista tem uma guia 
pendurada no pára-brisa. É proteção pro carro, pra evitar que quebre o carro, que tenha 
batida, que seja alvo de olho-gordo, de inveja... pra proteção mesmo" (Mãe Márcia de 
Iemanjá). 
Aqui a precisa definição de Pierucci esclarece os termos: 
"Chama-se talismã o objeto que serve para atrair a boa sorte. (...) Chama-se amuleto 
aquele objeto cuja finalidade é proteger, afastar a infelicidade, repelir a urucubaca, o 
pé-frio, a inveja o mau-olhado. Confeccionado ou preparado magicamente com o fim 
 16
de proteger seu portador das influências malignas, um amuleto funciona como uma 
espécie de escudo, um 'preservativo mágico'" (2001: 19, 20. Grifos do autor). 
É certo que o colar ritual umbandista não é confeccionado e nem concebido 
especificamente como um amuleto, mas essa definição se dá através da percepção dos fiéis e 
também pelouso que fazem do objeto. Um uso bastante difundido, inclusive, porque não é 
necessário que a pessoa seja adepta da religião para ganhar uma guia, ela pode ser 
simplesmente alguém que, mesmo tendo outra religião, busca na umbanda e seus guias alívio 
para suas aflições. 
Tudo isso reitera o primeiríssimo sentido dos colares nas religiões afro-brasileiras que 
é o de dar proteção mágica. E esse sentido não se restringe à umbanda, pois igualmente os 
adeptos do candomblé usam os colares em seus automóveis pela mesma razão, mas aí ele 
carrega também, para além do caráter de proteção, toda uma ampla gama de significados. 
 
1.1.2. Os colares no candomblé 
 
Não se pode perder de vista que os colares, ou os ilequês como são chamados no 
candomblé, cumprem também o papel fundamental de enfeitar, o que certamente não é algo 
secundário porque adornar, tornar (mais) bonito é por sinal uma busca constante no 
candomblé. De todo modo, a principal finalidade do ilequê é dizer qual é o orixá da pessoa, é 
dar identidade. Além do mais eles se destinam também a proteger quem os carrega. Magia e 
estética andam de mãos dadas nessa religião. 
Há no candomblé uma infinidade de tipos de colares. Esses são em geral compridos, 
até a cintura aproximadamente, e são sempre arrematados por um tipo de conta maior, 
arredondada ou cilíndrica que recebe o nome de firma. Nas palavras de Raul Lody, "a firma 
tem função de firmar o fio de contas – arremate de uso mágico religioso. É uma espécie de 
conclusão do discurso simbólico do próprio fio de contas" (Lody, 2003: 242). 
O acabamento do ilequê é uma tarefa delicada porque requer conhecimento religioso 
para se saber qual firma usar, e para tanto se leva em conta não somente a que orixá pertence 
aquele colar específico, bem como a posição sacerdotal que aquele que usará o colar ocupa no 
grupo. Exige também certa técnica para que os fios não arrebentem, para que todo o trabalho 
não se perca, além de ser necessário muitas vezes bordar contas para que o acabamento fique 
 17
perfeito. O povo-de-santo costuma reparar muito nos detalhes dos ilequês e em seu 
acabamento. Ouvi mais de uma vez adeptos do candomblé dizendo que se deveria ter 
paciência para fazer um bom acabamento nos colares para que não ficassem "cheios de pontas 
soltas aparecendo, como na casa de fulano". 
Os materiais empregados na confecção dos ilequês são muitos e variam de acordo com 
o orixá, a categoria sacerdotal a que pertence o adepto e seu poder aquisitivo, o gosto de quem 
elabora o colar, e também, em grande medida, das preferências do pai ou mãe-de-santo. 
É preciso sempre ter em mente que os pais e mães, babalorixás e ialorixás, são as 
autoridades máximas dentro do terreiro a qual todos devem obediência e por mais que se 
conquiste, com o passar do tempo, uma certa liberdade de criação tudo passa necessariamente 
pelo crivo deles. Em função disso pode-se dizer que há um certo estilo em cada terreiro, que é 
determinado pelo sumo sacerdote, e seguido pela comunidade, que na prática marca 
diferenças estéticas entre as casas, que são na verdade diferenças superficiais, uma vez que 
estruturalmente não se pode inovar tanto. 
Mas é igualmente importante notar que, se perguntados acerca da razão de ser desse 
ou daquele jeito, em geral os sacerdotes recorrem às suas raízes, às suas casas mãe, como um 
modo de legitimar suas opções estéticas, e nunca dizem simplesmente que é assim porque 
assim eles o preferem. Como sempre se dá nessa religião, a legitimidade remonta aos mais 
velhos e à vontade dos orixás. 
Há, entretanto, algumas noções e parâmetros que formam e informam, inspiram e 
delimitam toda a criação estética do candomblé e que aos poucos se pode perceber e pontuar. 
Dentre essas está a de que forma e significado caminham estritamente ligados. 
No candomblé quase toda forma está, necessariamente remetida a um significado. 
Quase tudo que se vê, e que aos olhos menos atentos pode aparentar ser tão somente um 
enfeite — que como já foi dito também é muito importante — tem um significado, ainda que 
não possa ser imediatamente apreendido. Nada é por acaso ou por gosto. Em geral o que 
parece ter exclusivamente a função de enfeitar é portador de algum significado. No 
candomblé como nas culturas africanas, "a experiência estética não se esgota em si mesma, 
pois participa de um sistema em que cada objeto tem função e finalidade, com relação ao 
sagrado" (Montes, 1999). 
 18
Identidade 
Quando um potencial adepto se aproxima do candomblé, o primeiro passo é a consulta 
ao oráculo para se saber a qual orixá aquele indivíduo pertence, qual é sua origem mítica. 
Uma vez que se sabe qual é o deus particular daquela pessoa, ela receberá um colar que a 
identificará como filha do orixá, havendo inclusive uma cerimônia para sacralizar o ilequê, 
chamada lavagem de contas. 
Isso reforça a idéia de que o colar pode ser tomado como o sinal diacrítico da pertença 
às religiões afro-brasileiras e ao candomblé especificamente. Nas trajetórias de inserção dos 
adeptos ele aparece como o primeiro elemento material sagrado com o qual se tem contato. 
Há na bibliografia muitos registros da lavagem de contas, o que dá testemunho da 
importância desse adereço (Querino, 1938; Bastide, 1973; Lima, 1977; Verger, 1999). Trata-
se essencialmente de um rito relativamente simples, em que o colar é sacralizado por meio da 
lavagem em uma água em que diversas ervas pertencentes ao orixá do fiel, ao seu pai-de-
santo e ao orixá patrono do terreiro, dentre outras, foram maceradas. A partir desse momento 
o colar não será mais um colar qualquer, mas um ilequê sagrado que de alguma forma, e ainda 
que tênue, liga esse indivíduo a seu deus pessoal e à comunidade do terreiro. 
Nesse sentido, o ritual de lavagem das contas pode ser visto, como aponta Vivaldo da 
Costa Lima (1977), como um "rito integratório", uma vez que ele marca a inserção daquele 
aspirante, o abiã – que aliás quer dizer literalmente "aquele que vai nascer" — na 
comunidade, algo muito importante, pois como uma vez ouvi de um sacerdote, "quando um 
abiã chega, enquanto ele não tem um fio de contas ele não se sente parte". É certo, no 
entanto, que essa inserção somente se realizará plenamente em termos rituais quando esse 
indivíduo passar pelos ritos de iniciação, denominados "feitura-de-santo", o que pode ocorrer 
em pouco tempo, levar anos, ou até mesmo nunca chegar a acontecer. 
Além do caráter integratório, a lavagem das contas constitui o que se pode chamar de 
o primeiro rito de marcação da identidade do abiã. É comum na sociabilidade do terreiro 
tentar adivinhar qual é o orixá da pessoa: os mais velhos são consultados, a pessoa é 
submetida a uma série de perguntas, seus modos são observados, mas a última palavra é dada 
através da consulta que o pai ou mãe-de-santo faz ao jogo de búzios. 
Saber de que orixá é o outro permite compreendê-lo em profundidade, entender traços 
de seu caráter e comportamento, significa de alguma forma poder classificá-lo de acordo com 
 19
categorias pré-estabelecidas (Augras, 1983; Prandi, 1991; Birman, 1995; Segato, 1995; 
Amaral, 2002; Vallado, 2002). 
Isso não significa de forma alguma, no entanto, que todos os que pertencem a uma 
mesma divindade serão iguais, muito pelo contrário, cada um é uma configuração particular 
em que outros elementos tomam parte, mas haverá sempre e indiscutivelmente elementos 
muito característicos referidos a cada orixá. Assim é muito comum ouvir num terreiro coisas 
do tipo "Ah, aquele é assim mesmo daqui posso ouvir seus passos, também, é de Ogum né?" 
ou ainda se alguém derruba panelas e faz um grande barulho: "Eh, lá vem Oiá derrubando 
tudo!". 
É através do ritual de lavagem das contas que o abiã travará uma primeira 
aproximação com a divindade de que sua essência se constitui. Por isso podemos entender a 
lavagem de contas como um ritual de marcação da identidade. Todoo longo processo 
iniciático levará a uma identificação cada vez mais forte e profunda do fiel com seu deus, com 
seu eu profundo, da qual a lavagem das contas constitui o primeiro passo, nas palavras de 
Armando Vallado: 
"A iniciação ao orixá pode, com certeza, ser entendida como um processo social, 
controlado pelo grupo do terreiro, de enfatização e internalização de determinados 
padrões de comportamento, de modo a tornar a identidade do filho-de-santo com o 
orixá que é considerado seu pai ou sua mãe como uma ligação íntima e pessoal" 
(Vallado, 2002: 153). 
Num mito sobre a invenção do candomblé, os colares aparecem como elemento 
importante da identificação dos fiéis com seus deuses, e o momento em que os recebem são 
marcos dessa ligação. Diz esse mito que, após a separação entre o Aiê, a Terra dos humanos, e 
o Orum o Céu dos orixás, Olorum, o Senhor do Céu, encarregou Oxum que gostava muito de 
vir à Terra brincar com as mulheres, de preparar os mortais para que recebessem em seus 
corpos os orixás, quando esses quiserem vir conviver novamente com os humanos. 
"Oxum fez oferenda a Exu para propiciar sua delicada missão/ ... Veio ao Aiê juntou 
as mulheres à sua volta,/ banhou seus corpos com ervas preciosas,/ cortou seus 
cabelos, raspou suas cabeças/ pintou seus corpos./ ... Vestiu-as com belíssimos panos e 
fartos laços/ enfeitou-as com jóias e coroas./ ... O colo cobriu com voltas e voltas de 
coloridas contas/ e múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais" (Prandi, 2001: 527). 
Para que a ligação com o orixá se faça é preciso, nas palavras de Roger Bastide, 
 20
"que exista no colar um certo poder de atração da força divina, uma simpatia 
preestabelecida; é preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atração, 
sem o que a participação não poderá se estabelecer" (Bastide, 1973: 367). 
Essa força de atração se concretiza por meio da manipulação mágica, a sacralização do 
colar, e igualmente pelo uso do material correto para cada deus em sua especificidade, uma 
vez que a cada orixá corresponde um tipo e cor de conta e, dependendo do orixá, da 
criatividade daquele que elabora o fio e do poder aquisitivo do filho-de-santo, ele poderá 
conter ainda outros materiais. 
Tudo isso aponta para uma "propriedade", por assim dizer, do ilequê, que é a de 
constituir, e, ao mesmo tempo expressar, a identidade do adepto. Um filho de Ogum na nação 
queto, por exemplo, vai usar colares de contas na cor azul-escuro. Pelo colar será reconhecido 
como filho de Ogum, deus do ferro fundido, azul-escuro é a cor do minério de ferro, elemento 
do orixá. Sabe-se, aliás, que a malaquita tem de fato essa cor. 
Uma passagem de Pierre Verger em um texto que trata da viagem que ele e Roger 
Bastide fizeram a África em 1958 traz o seguinte relato, que mostra com beleza e precisão o 
caráter de identidade e integração de que estão impregnados os colares de contas no 
candomblé: 
"Pelo fato de sua consagração ao culto de Xangô, Bastide tinha recebido na Bahia um 
colar de pérolas de vidro vermelhas e brancas alternadas, cores simbólicas de seu deus. 
Esse colar era considerado por Bastide um 'passaporte' que o creditava a identificava 
como 'filho de Xangô' junto aos seus correligionários africanos. 
"Isso, mais do que sábios discursos, serviu efetivamente de laço entre ele e diversas 
sociedades (egbe) formadas pelas pessoas dedicadas a Xangô em diversas aldeias da 
África" (Verger, 2003:47). 
Usar ilequês significa, de algum modo, por mais tênue que seja, fazer parte do grupo 
religioso e ter uma identidade mítica própria. 
Certa vez, assisti a uma festa em que um pai-de-santo de outra casa estava sendo 
confirmado em um cargo importante que havia recebido naquele templo. Tratava-se de uma 
festa esplêndida como a ocasião demandava, e a certa altura Ogum o orixá dono da cabeça do 
babalorixá e patrono daquela casa, incorporado no sumo sacerdote, dançava em homenagem 
ao pai-de-santo que ora se confirmava como um importante oloiê (alguém que tem um título) 
quando tirou um dos colares que carregava e o deu de presente ao sacerdote. Ele agora entrara 
para aquela família. 
 21
Receber um ilequê de presente é sinal de estima e reverência; é comum quando há 
uma iniciação, que aqueles que estão passando pelo rito confeccionem fios de seu orixá 
pessoal para presentear as pessoas que ajudaram em sua obrigação. Os colares de orixás 
menos comuns são os mais desejados e quem ganha um colar daquele que está sendo iniciado 
faz questão de mostrá-lo a todo o grupo. Trata-se de um gesto muito significativo, uma forma 
de agradecer, fazendo com que os presenteados participem do axé de seu próprio deus. 
Igualmente através do reconhecimento público, motiva toda a comunidade a perceber e 
valorizar o gesto daqueles que se colocaram a serviço. 
Os colares que protegem, identificam e integram também indicam a que categoria 
sacerdotal cada um pertence. São emblemas de identidade e hierarquia. 
 
Hierarquia 
A hierarquia do candomblé, a divisão sacerdotal do trabalho, sua organização em 
cargos atribuídos individualmente para o exercício de funções rituais é bastante complexa 
(Lima, 1977, Dantas, 1988, Prandi, 1991). Convém retomar sucintamente esse assunto a fim 
de expor a relação entre a hierarquia religiosa e os colares rituais. 
O candomblé se constitui em comunidades denominadas terreiros. Essas casas, por sua 
vez, se organizam de acordo com uma rígida hierarquia estruturada pelo tempo de iniciação e 
a categoria sacerdotal a que cada um pertence e a qual não se pode escolher nem tampouco 
mudar (Lima, 1977). 
São duas as grandes categorias sacerdotais: a daqueles que manifestam os orixás em 
transe, os chamados rodantes, e aqueles que não entram em transe, os não-rodantes. Os 
rodantes se dividem em iaôs (filhos-de-santo) e ebômis (irmãos mais velhos). Os não-rodantes 
em ogãs e equedes. Os diversos oloiês, literalmente os "donos dos cargos", são homens e 
mulheres que ocupam uma vasta gama de cargos rituais ou honoríficos. A cada categoria, no 
entanto, corresponderá um tipo de inserção na hierarquia da comunidade. 
A hierarquia baseada na idade de iniciação é um princípio das sociedades africanas em 
que os mais velhos são profundamente respeitados por sua sabedoria. Nessas sociedades 
ágrafas são eles os depositários do conhecimento e a eles se deve reverência (Prandi, 2001b). 
 22
Na religião dos orixás os "mais velhos no santo", chamados ebômis, são igualmente 
reverenciados. O que conta, para tanto, é o tempo de iniciação e o devido cumprimento das 
obrigações rituais. Assim, aquele que se aproxima da religião e ainda não é iniciado pertence 
à categoria dos abiãs. Esse nome traz à tona a percepção de que a iniciação representa um 
novo nascimento, o nascimento para uma nova vida (Bastide, 1961, Prandi, 1991, Eliade, 
1999, Vallado, 2002). 
Aqueles que já foram inciados são chamados iaôs e ocupam uma posição 
intermediária, se, por um lado, não são mais abiãs, por outro, ainda não cumpriram todas as 
suas obrigações rituais, e devem reverência a seus mais velhos. 
O longo ciclo iniciático se completa após sete anos e o cumprimento das obrigações de 
um, três e por último a de sete anos, em que o iaô finalmente se torna um ebômi e atinge a 
senioridade sacerdotal na hierarquia do terreiro. Essa passagem garante-lhe uma série de 
prerrogativas, e é expressa simbólica e esteticamente de muitas maneiras. 
A categoria sacerdotal dos não-rodantes tem um modo diverso de inserção. Os ogãs e 
equedes são escolhidos, o termo usado no candomblé é suspensos, pelos orixás em transe e 
enquanto não se iniciam são igualmente abiãs, a despeito de estarem aprendendo com aqueles 
que exercem as mesmas funções o seu futuro papel no rito. Quando se iniciam são incluídos 
imediatamente na categoria de ebômis, mas, diferente dos ebômis rodantes, esses, com 
algumas famosas exceções, nunca poderão abrir seus próprios terreirose, embora gozem de 
muito prestígio na comunidade, assumindo inclusive por vezes uma postura arrogante, estarão 
sempre submissos ao pai ou mãe-de-santo. 
Essa hierarquia complexa e rígida está em constante movimento em função das 
diversas obrigações que sempre ocorrem e que acarretam mudanças na distribuição do poder. 
A possibilidade de ascensão no interior do grupo religioso é algo significativo nessa que é, 
como já foi dito, uma "religião rica de adeptos pobres" que em sua maioria encontram nela 
um espaço de realização conquistado a duras penas, tendo em vista que as obrigações são 
sempre caras e, para sua realização, impõem sacrifícios e privações ao fiel que não mede 
esforços para agradar aos deuses. 
A hierarquia é o tempo todo permeada por tensões. Há no seu interior uma disputa de 
poder entre os filhos e nessa disputa cada detalhe pode ser motivo para que rivalidades e 
 23
alianças sejam feitas e desfeitas. Nessa intricada rede, as expressões estéticas do poder 
sacerdotal ganham uma dimensão que não se pode supor num primeiro momento. 
Uma vez vi um filho-de-santo, com aproximadamente dois anos de iniciado, todo 
enciumado de uma abiã da casa. Ela fora suspensa equede do orixá do pai-de-santo. Ao 
perceber que o colar da outra tinha como firma um pequeno coral, que é considerado um 
material nobre, ele disse em tom irônico: "Poderosa, hein, iaiá!" 
A cada momento da trajetória religiosa corresponde um tipo de colar. Observando os 
adeptos em uma festa pode-se perceber claramente através dos tipos de ilequês que usam em 
que ponto da hierarquia estão situados; nesse contexto privilegiado "a soma das escolhas de 
cada membro da comunidade, segundo os limites do culto, resulta em uma curadoria coletiva 
da coleção de colares do terreiro" (Conduru, 2002). 
Os abiãs são identificados por usarem poucos fios de uma única volta e sem nenhum 
enfeite. Comumente esses têm apenas o colar de contas de seu orixá principal, o branco de 
Oxalá, orixá da criação, às vezes também de seu orixá secundário, chamado adjuntó, o do 
orixá patrono daquela casa e mais algum que eventualmente lhe seja permitido. 
Muito diferente são os iaôs, que carregam fios de várias voltas; em geral usam ilequês 
de muitas voltas de seu orixá principal, do secundário, adjuntó, de Oxalá, dos orixás de seu 
pai ou mãe de santo, e também ainda que apenas um fio simples, dos orixás de seus "irmãos 
de barco", aqueles com quem foi iniciado junto. Todos esses também sem nenhum enfeite. O 
número de "pernas", que é como se chama cada uma das voltas de um colar, vai depender do 
orixá em questão e quem determina isso é o pai ou mãe-de-santo, para tal decisão leva-se em 
conta o número do orixá no jogo de búzios. 
Independentemente do número de pernas dos colares o iaô invariavelmente usa muitos 
fios o que provoca incômodo porque tantos colares juntos somam peso considerável e 
atrapalham durante a dança. Em algumas casas os iaôs costumam polvilhar talco nas firmas 
dos colares, a parte que fica em contato direto com a nuca, para tentar amenizar o desconforto 
causado pelo calor e o atrito dos ilequês com a pele. Obviamente ninguém gosta desse 
desconforto, mas os adeptos agem como se esse incômodo, esse sofrimento, fizessem parte da 
condição de iaô. Subjaz aqui a noção recorrente no candomblé de que "iaô tem que sofrer". 
Todo o processo iniciático, aliás, é marcado pela imposição de sofrimento ao corpo; 
dentre outras coisas, a pessoa dorme em esteiras sobre o chão duro, toma banhos frios, come 
 24
com a mão, tem seu cabelo raspado e sua pele perfurada em diversos pontos. Além disso o iaô 
tem que andar de cabeça baixa, deitar-se no chão para saudar o pai ou a mãe-de-santo, e 
seguir uma etiqueta bastante rígida no que diz respeito ao trato como os iniciados a mais 
tempo. 
Os adeptos costumam zelar bastante para que as regras que dizem respeito à hierarquia 
sacerdotal sejam estritamente cumpridas e estão sempre preocupados com isso. Conversas 
sobre o tema "quem toma benção de quem", para ficar em um pequeno exemplo, são 
constantes, além, é claro, das reprimendas àqueles que por alguma razão cometem qualquer 
deslize. 
A importância de se viver cada fase da experiência iniciática é muito enfatizada pelo 
povo-de-santo, uma vez que aqui o aprendizado se dá por meio da observação e repetição. 
Nessa religião de tradição oral e segredo, a curiosidade não é bem vista e até mesmo uma 
pergunta simples pode causar problemas. Afirma-se o tempo todo que não há outro meio de se 
aprender e ser um bom filho-de-santo, "verdadeiro conhecedor das coisas do orixá" sem 
passar inclusive pelo relativo sofrimento que esse longo processo iniciático implica. 
A valorização positiva do sofrimento, no entanto, é pontual, diz sempre respeito ao rito 
e não faz parte da visão de mundo do povo-de-santo. Para os adeptos do candomblé o 
sofrimento não é um valor, a idéia de ascese puritana é inconcebível assim como a negação do 
mundo como o lugar do pecado. Muito pelo contrário, o candomblé valoriza o mundo como 
espaço de realização e, como bem mostrou Rita Amaral, diferente das religiões cristãs, nega o 
pecado e vive o que ela chamou de "ética da felicidade urgente" (Amaral, 1992, 2002: 75). 
As contas e outros materiais de que são feitos os colares não são baratos, ainda mais 
porque são grandes as quantidades usadas. Então muitas vezes o número de voltas dos ilequês 
também é determinado pelo poder aquisitivo do fiel, que nunca deixará de fazer enorme 
esforço para ter tudo que sua iniciação requerer ainda que para isso sejam necessários anos de 
economia e a ajuda de irmãos-de-santo e outros amigos e familiares. Quando ainda for 
necessário fazer um colar com menos voltas do que seria a princípio determinado, a decisão 
não é aleatória, procura-se sempre um submúltiplo do número do orixá. Por exemplo, se o 
número do orixá for doze, como é o caso de Xangô, na impossibilidade de se fazer um fio 
com doze voltas se fará um de seis, ou mesmo quatro. 
 25
O Quadro 1 indica o número de voltas que um colar dever ter na nação queto de 
acordo com o orixá, e com a sua posição na constelação pessoal do indivíduo, ou seja, a de 
orixá principal ou adjuntó. 
 
Quadro 1 – A quantidade de voltas dos colares 
 
Orixá Número de voltas se é orixá 
principal 
Número de voltas se é orixá 
secundário (juntó) 
Exu 14 7 
Ogum 14 7 
Oxóssi 9 6 
Ossaim 9 7 
Logum Edé 16 8 
Omulu 11 7 
Nana 9 6 
Oxumarê 11 6 
Eua 9 6 
Xangô 12 6 
Oiá 9 7 
Oxum 8 5 
Obá 9 6 
Iemanjá 9 8 
Oxaguiã 8 6 
Oxalá 10 8 
Segundo etnografia na Casa das Águas 
 
Outras adaptações são feitas pelo mesmo motivo, para tanto se lança mão de muita 
criatividade e capricho, tomando o cuidado de nunca mudar o que é essencial na composição 
dos colares. Um exemplo desse tipo de adaptação que ocorre com freqüência é no caso de 
orixás que usam contas de mais de uma cor; as contas rajadas e bicolores são ainda mais caras 
do que as simples e nesse caso podem ser substituídas por contas simples, nas cores dos 
orixás, dispostas alternadamente. Assim se pode ver um fio do orixá Omulu cujas cores são 
vermelho, preto e branco tanto de contas rajadas nessas cores quanto de contas vermelhas, 
 26
pretas e brancas alternadas, sem que isso cause qualquer problema para o adepto, ou desperte 
a ira do deus. 
Os iaôs também usam no pescoço um outro adereço, que não é exatamente um colar. 
Feito de palha-da-costa trançada e bordada com contas da cor de seu orixá principal, termina 
em uma espécie de vassoura chamado mocã (do iorubá, minha corda). O mocã é usado para 
puxar o iaô em transe e conduzi-lo. É uma peça de uso exclusivo do iaô. Ele a recebe em sua 
iniciação e a deixará de usar quando completar seu ciclo iniciático na obrigação de sete anos, 
simbolizando a liberdade de movimento do seu orixá. Segundo os sacerdotes entrevistados, o 
mocã simboliza esse período de maior submissãodo iaô tanto ao orixá, o iaô entra mais em 
transe do que o ebômi, quanto aos mais velhos e, igualmente, ao pai ou mãe-de-santo. 
Outro colar muito importante que marca a submissão e a relação profunda do iniciado 
com seu orixá é o chamado quelê. Trata-se de um colar disposto em formato de gargantilha, 
de contas que são sempre exclusivamente do orixá principal da pessoa, de várias voltas, 
truncado com firmas. Podem ainda ser de búzios, no caso de Oxumarê e Omulu, ou ferro para 
um Ogum específico, mas invariavelmente a prerrogativa da confecção é do sumo sacerdote 
do terreiro, que pode eventualmente ser ajudado por pessoas da alta hierarquia. É, dentre 
todos os ilequês, talvez aquele cuja sacralidade seja mais densa posto que nem mesmo aquele 
que o carrega deve tocá-lo com freqüência. 
O quelê era originalmente na África um colar específico do orixá Xangô. No Brasil 
ganhou outra atribuição, talvez uma conseqüência de ser Xangô o orixá cultuado na cidade de 
Oió, região de onde saíram as fundadoras do candomblé no Brasil (Verger, 1981). Tanto é que 
esse é o orixá patrono do terreiro tido como o mais antigo do País, a Casa Branca do Engenho 
Velho, em Salvador. 
O quelê é usado obrigatoriamente na feitura e também por ocasião das diversas 
obrigações pelas quais o adepto passa ao longo de sua trajetória, sempre marcando esses 
momentos de passagem em que esse está ligado de modo muito próximo a seu orixá. Tão 
importante é o quelê que ele só é usado nas obrigações em que se faz sacrifício de animais de 
quatro patas, as chamadas obrigações grandes. 
Nos períodos de uso do quelê o iaô fica impedido de fazer inúmeras atividades sob 
pena de desagradar sua divindade, que pode se ressentir de algum ato em falso; além do que a 
necessidade do cumprimento de todas as obrigações relativas ao quelê é algo sobre o qual 
 27
toda a comunidade adverte o fiel. Exemplos de prescrição são a abstinência sexual, regime 
alimentar apropriado, obrigatoriedade de dormir em esteira, de vestir-se de branco cobrindo a 
cabeça, impedimento de se sentar em cadeira, e mesmo no ônibus, metrô e até no escritório 
etc. Uma restrição importantíssima é que durante o uso do quelê o orixá é mudo. O tempo de 
uso do quelê após a iniciação e as obrigações varia de acordo com a casa, com o orixá e com a 
categoria sacerdotal, podendo ir de uma semana a até três meses. O quelê é em muitas casas 
chamado de "gravata do orixá". 
Ainda durante o período de uso do quelê, logo após a saída da iniciação, ocorre o ritual 
do panã em que "os iaôs executam simbolicamente todas as atividades da vida corrente" 
(Verger, 1999: 110), como que se reeducando para a regressar à vida secular. 
Ao término do tempo de uso do quelê a retirada do colar é a ocasião em que o orixá 
manifestado vai dar o seu ilá, vai emitir pela primeira vez a sua saudação, o som pelo qual 
será reconhecido quando vier em terra na cabeça daquele adepto. Esse momento marca, como 
me afirmou um sacerdote "o fim do silêncio da criação da nova vida que agora se manifesta 
publicamente, tal como o bebê que chora ao vir ao mundo". 
Os ebômis que constituem a mais alta categoria sacerdotal, são os que possuem os 
colares mais elaborados do candomblé. De acordo com o princípio da antiguidade, que 
associa tempo a sabedoria, quem é mais velho tem mais conhecimento e portanto maior 
liberdade, seja dentro do espaço do terreiro em que pode transitar livremente por todos os 
quartos sagrados, seja no acesso aos ritos, como também liberdade criativa. 
"O saber é ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar o 
conhecimento, transmutando mitos em ritos, práticas e objetos. Quanto mais 
conhecimento, tanto mais ritos, práticas e objetos" (Lemos, 2002). 
Embora tenham, ou devam ter, relativo domínio e conhecimento ritual os ebômis 
nunca estão livres de cometerem erros e serem censurados, freqüentemente em público. Uma 
vez ouvi um pai-de-santo conversando com seus filhos acerca das falhas que ele tinha notado 
na última festa dizer que havia ebômis que sofriam da "síndrome do fio truncado". "Vocês 
sabem o que é isso? Funciona assim: um filho vira ebômi, ganha um fio truncado e sai por aí 
achando que pode fazer o que lhe dá na telha! Não é bem assim, não..." O fato desse 
sacerdote se referir a essa relativa autonomia da categoria dos ebômis como a "síndrome do 
fio truncado" reitera o quão emblemáticos são esses colares. 
 28
Os ilequês muito elaborados e enfeitados dos ebômis utilizam uma ampla gama de 
materiais, dentre esses o principal são as miçangas que podem ser de vidro translúcido ou 
leitoso. A diversidade de materiais, aliás, é algo que vem aumentando com a expansão da 
indústria produtora de peças para bijuteria, e o aumento das importações nesse segmento. 
Segundo me contou certa vez Reginaldo Prandi, na impossibilidade de adquirir miçangas, os 
adeptos da santería em Cuba, num período de importações muito restringidas pelo governo, 
chegaram a usar a cobertura de plástico colorido dos fios de telefone cortada em pedacinhos 
para confeccionar os fios de seus orixás. 
Quanto mais peças importadas das diversas origens melhor. A criatividade sempre 
acrescenta novas possibilidades, e vem somar-se ao desejo de ser original e criativo de tal 
forma, que atualmente é comum ver fios de ebômis intercalados com corações, peixinhos, 
raios e muitos outros elementos que possam relacionar-se ao orixá a que o determinado colar 
pertence. Coisa que, como se pode observar nos registros mais antigos, não era comum. 
Mais comum e recorrente é, e foi desde muito tempo, o uso de materiais importados da 
África, como os corais, o monjolô, o segui, que é um tipo de canutilho azul utilizado para o 
orixá Oxaguiã; o laguidibá, que são lâminas de chifre de búfalo, usado para Omulu; o 
chamado laguidibá branco, que são lâminas de osso também utilizadas para Oxalá e Oxaguiã; 
búzios, além de marfim, âmbar, ferro (para Ogum), e outros tantos tipos de pedras e materiais, 
como dente de animais encastoado, casca de coco, pequenas peças em madeira, conchas, 
pérolas etc. Ou seja, tantos quantos materiais a imaginação, a criatividade e o desejo de 
agradar aos deuses permitir. 
Grande parte desses artefatos são importados da África e podem ser encontrados em 
casas que vendem artigos para umbanda e candomblé. Há muitas dezenas de locais de 
comércio de materiais para umbanda e candomblé em São Paulo e, embora o povo-de-santo 
tenha uma complexa rede de comunicação que faz com que sempre se saiba o que comprar e 
onde, por vezes quando podem as pessoas vão ao que talvez seja o maior mercado de artigos 
para as religiões afro-brasileiras que é o Mercado de Madureira no Rio de Janeiro. 
As contas de vidro translúcido ou leitoso são compradas em São Paulo nas muitas 
lojas da rua Vinte e Cinco de Março ou da ladeira Porto Geral. Atualmente grande parte das 
contas provém de Taiwan ou da China, mas ainda uma parte expressiva delas, e costuma-se 
dizer que as de melhor qualidade, são importadas da República Tcheca. 
 29
Já as outras peças de acrílico, vidro, madeira, louça, plástico etc. têm origens variadas 
e muitas, inclusive, são de fabricação nacional. É interessante notar que, como me afirmou um 
sacerdote, "é chique" entre o povo-de-santo dizer que as coisas são importadas, sinal de status 
que eles gostam de exibir, como pude observar, sempre dizendo que se trata de "material 
importado". De todo, o modo o que realmente preocupa os fiéis é que sejam a conta e o 
material certos, e para tanto se empreende muito esforço e dinheiro também, porque quanto 
mais raras e difíceis de encontrar, tanto mais caras serão as miçangas. 
Dentre os adeptos do candomblé é sinal de muita distinção e prestígio ter colares de 
ebômi. Se por alguma razão vão visitar uma outra casa, eles o fazem portando seus fios mais 
importantes, elaborados e ricos. Esses também são os fios escolhidospara serem usados em 
eventos públicos em que comparecem com seus trajes rituais, como celebrações ecumênicas, 
homenagens diversas, congressos, feiras e até no afoxé que abre o desfile das escolas de 
samba de São Paulo. Tive oportunidade de ver uma rica exposição desses colares por ocasião 
do IV Congresso do Intecab – Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira — 
realizado em seis de abril de 2002 em Diadema na grande São Paulo, que tinha como patrono 
o orixá Oxóssi. Havia lá muitos líderes religiosos e muitos ebômis ostentando fios do orixá 
homenageado, e além de seus colares de senioridade ricamente enfeitados, muitos, inclusive, 
com peças em ouro, especialmente quando se tratava de algum filho ou filha de Oxum. 
Isso nos remete a um outro valor estruturante da criação estética do candomblé, que é 
a ostentação. Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São 
Paulo, o africano Kabengele Munanga, em comunicação oral, me contou, certa vez, que para 
o africano a ostentação é um valor, ou seja, se mostrar, se exibir é nessas culturas algo muito 
importante, muito valorizado. Esse é um valor que foi sem dúvida preservado no candomblé e 
persiste até os dias de hoje com muito vigor. 
Entre o povo-de-santo é muito importante ser visto, chamar a atenção para si, e isso 
independe da classe social da qual o fiel faz parte. O candomblé é uma religião em que os 
adeptos pobres são a maioria mas em que é possível encontrar pessoas de todos os estratos 
sociais, e todas dão importância ao modo como se apresentam, em especial nas festas 
públicas. 
As festas são ocasiões em que se mostra "o que o grupo é e como pensa" (Amaral, 
2002: 32), é "o momento em que os humanos recebem os deuses em sua casa, às vezes até 
 30
mesmo em seu próprio corpo" (idem: 32). São também, como mostrou Rita Amaral, espaço 
de sociabilidade e lazer, momento para ver e ser visto, conhecer pessoas, trocar idéias, fazer 
fofoca, flertar. 
A tudo isso se deve tanto esmero na confecção de tudo o que se vai usar. Desde a 
roupa mais simples do dia-a-dia, até o traje de gala, passando pelos colares, tudo tem que ser 
bonito e chamativo. Ainda que isso implique, para não falar dos altos custos financeiros, um 
grande esforço físico, pois em geral os ilequês são muito pesados, ainda mais quando se usam 
vários de uma vez. 
Os colares mais pesados são os dos iaôs, que têm mais voltas, com peso que chega a 
somar três quilos e meio (para um iaô de Xangô com Oxum, por exemplo). Esse peso no 
pescoço forçaria o iaô a andar curvado, de cabeça baixa, em postura de submissão que é 
exigida para eles, sobretudo no primeiro período da iniciação. Se non è vero è bene trovato. 
Em uma ocasião fui à famosa rua Vinte e Cinco de Março, acompanhando algumas 
filhas-de-santo que iam comprar tecidos para roupas de candomblé, e a cada tecido que eu 
apontava elas prontamente tinham um julgamento que não deixava dúvidas: "Ah, esse não, 
essas flores são muito pequenininhas, nem vai aparecer!" ou então "Ah, essa cor é muito 
apagada, desse jeito ninguém vai me ver, menina!". 
A combinação do gosto por ser visto e a conseqüente vontade de se exibir que se 
expressam nessa estética remetem a uma concepção profunda e vigorosa da religião dos 
orixás, pois nas palavras de Prandi: 
"O candomblé afirma o mundo, valoriza-o: muito daquilo que é considerado ruim 
segundo outras religiões, como dinheiro, prazeres (inclusive os da carne), sucesso, 
dominação, poder para o candomblé é bom" (1991: 214). 
A afirmação do mundo faz dessa combinação entre o prazer em ser admirado e o 
desejo de se mostrar, que é parte do estilo de vida, da sociabilidade do povo-de-santo, algo 
legítimo sobre o qual não há nenhum tipo de restrição, ser bonito é também muito valorizado 
(Amaral, 1992, 2002). O julgamento acerca do que é bom por vezes se confunde mesmo com 
o belo; por sinal, a palavra iorubá que designa belo é odara que também significa bom. De 
uma festa pública diz-se sempre e antes de tudo que "foi linda", que "os orixás estavam muito 
bonitos", "que dançavam muito bem", ou seja, o julgamento daquilo que é bom está 
inextricavelmente associado ao belo. 
 31
A valorização da beleza é um dos fatores que contribui para a inserção e reprodução 
do candomblé na metrópole moderna. Igualmente, muito de sua visibilidade, de seu alcance 
simbólico, evidenciado especialmente pelas artes, advém de sua estética plástica exuberante, 
que se manifesta sobremaneira na festa pública. 
Ser um ebômi é definitivamente ter atingido uma posição em que se pode e mesmo se 
deve ostentar. É claro que, mesmo essa ostentação é limitada pelo pai ou mãe-de-santo. Por 
mais liberdade criativa que se tenha, conhecimento adquirido, e até mesmo dinheiro, porque 
muitos materiais são bastante caros, ainda é o chefe do terreiro que vai efetivamente ditar os 
limites do que se pode ou não usar e não só porque é ele quem detém mais conhecimento 
ritual, é iniciado a mais tempo, mas igualmente porque os sacerdotes estão sempre 
preocupados com a imagem que seus terreiros passam às pessoas de fora, e também porque 
ninguém deve ser mais bonito, vestir-se melhor, ter ilequês mais belos do que o sumo 
sacerdote, afinal, beleza é poder. 
São basicamente dois os colares de distinção do ebômi na nação queto: os brajás e o 
hungebe. O brajá tem um formato específico: as muitas voltas de miçangas são unidas a 
intervalos regulares por uma firma que pode ser de louça, resina, coral, pedra, búzio ou um 
outro material. O número de contas de cada segmento é dado por um múltiplo do número 
característico do orixá. A despeito de o ebômi poder ter tantos brajás quanto queira e possa 
ter, os mais importantes são do orixá principal e do segundo orixá que se costuma arranjar da 
seguinte maneira: o brajá do orixá principal com as contas nas cores do orixá principal da 
pessoa e com as firmas nas cores do segundo orixá e o brajá do segundo orixá de modo 
inverso. Mas há outras opções de combinação. Brajá, aliás, é um nome de uso hoje 
generalizado mas que originalmente designava tão somente os colares de búzios feitos para os 
orixás de origem jeje: Nanã, Omulu e Oxumarê. 
Observando atentamente uma roda de filhos-de-santo, o xirê, poderá se saber com 
facilidade quais são os ebômis apenas verificando quem dentre eles usam brajás. Eles 
distinguem e localizam na hierarquia que se expressa publicamente no por ocasião das festas, 
qualquer alteração nessa ordem causa muito desconforto entre os fiéis. Uma vez um pai-de-
santo me contou que na sua iniciação sua então mãe-de-santo fez para ele um brajá de Ogum, 
seu orixá, e ele saiu na primeira festa depois de iniciado, como ele mesmo disse, "no fim da 
fila e com o brajá no pescoço", fato que foi amplamente comentado por seus irmãos de santo, 
 32
fonte de muito ciúmes, discussões e problemas para a mãe-de-santo posto que o uso de brajá 
por um iaô é uma incoerência por definição. 
É preciso ressaltar, no entanto, que embora os brajás sejam um importante símbolo de 
distinção dos ebômis, com o passar do tempo eles acabam preferindo usar ilequês mais leves, 
com menos voltas, porém ainda mais elaborados, frutos de sua já comentada, liberdade de 
criação. É comum usarem nesses fios elementos mais nobres, freqüentemente mais caros e 
preciosos, e sempre relacionados aos orixás em questão. 
O hungebe, por sua vez, é por excelência o colar do ebômi; trata-se de um fio de uma 
volta, de contas de louça marrom intercaladas com coral. Um colar até bastante simples 
comparado aos brajás, mas de suma importância. Vejamos o que nos diz a esse respeito, Leda 
de Ogum, 15 anos de santo: 
"O hungebe tem uma importância suprema, e ele identifica não o orixá, ele identifica o 
ebômi. É um fio que a gente recebe no dia que recebe o oiê e ele te acompanha até 
depois da morte". 
De acordo com os entrevistados o hungebe é o único colar que acompanhao morto em 
seu caixão, simboliza "a quebra do pacto da vida, da ligação com o mundo dos viventes". 
No candomblé queto o hungebe tem uma ligação direta com o orixá Oiá, essa é a cor 
dos fios da deusa também, e é essa divindade, de acordo com a mitologia, a encarregada de 
levar os espíritos dos mortos, os eguns, para o Além. Daí, segundo alguns sacerdotes, sua 
ligação com a vida terrena. Além disso, ainda de acordo com esses, esse fio teria a 
propriedade de proteger seu portador da morte tendo em vista que o ebômi também lida com 
as intempéries e eventualmente os eguns que atrapalham os seres humanos e devem ser 
despachados através de ritos apropriados, além dos ritos fúnebres. 
A importância desse colar como expressão estética da senioridade é algo que não se 
pode perder de vista e que é muito clara inclusive no cotidiano da comunidade; tanto é assim 
que muitas vezes os ebômis não usam qualquer outro fio que os identifiquem a seus orixás 
mas nunca deixam de usar o hungebe. 
"Ele é a identificação de você ser um ebômi. Se de repente eu não tiver um outro fio 
de contas, eu tiver só o hungebe, ele é tudo, ele é o principal de tudo. Eu posso não ter 
um brajá, eu posso não ter um fio truncado, mas se eu tenho meu hungebe vão saber 
que eu sou do candomblé e que sou uma ebômi" (Leda de Ogum). 
 33
Uma ocasião, em janeiro de 2003, assisti a uma saída de iaô em que havia também um 
rapaz dando obrigação de sete anos, e portanto tornando-se um ebômi. Ele foi trazido ao 
barracão e, sentado em sua cadeira, aguardava visivelmente emocionado o momento em que o 
sacerdote que o homenageava dançando em sua frente e ostentava o colar do ebômi nas mãos, 
lhe colocaria o hungebe no pescoço, sinal de sua maioridade sacerdotal, de sua grande 
intimidade com os deuses. Se o ilequê funciona como documento de identidade o hungebe é 
usado como prova de maioridade. 
 
Algodão ou náilon? 
Os colares rituais têm uma dinâmica de circulação, montagem, desmontagem, 
remontagem e uso dentro dos terreiros. Muitas vezes acontece, por exemplo, de alguém 
comprar um determinado tipo de conta que não é exatamente a cor de seu orixá. Essa conta 
fica guardada e um dia mais tarde vai servir a outro filho-de-santo. É muito comum também 
que por ocasião da obrigação de sete anos os ilequês de iaô sejam desmontados e remontados 
como brajás. 
Outra situação bastante usual é daqueles que mudam de axé, que por alguma razão 
saem de uma casa e vão para outra em busca de algo que não encontraram anteriormente, e aí 
pode ocorrer de a cor de suas contas mudar. Nessas circunstâncias possivelmente as firmas 
poderão ser reaproveitadas. 
Mais de uma vez pude acompanhar a montagem dos colares no terreiro. Enfiar contas 
é um trabalho que pode envolver toda a comunidade que se mobiliza para a iniciação ou em 
períodos de obrigação em que fiéis ficam recolhidos no templo. Esses são momentos 
privilegiados na sociabilidade do grupo, quando emergem, dentre outros, assuntos como de 
onde veio essa ou aquela firma, em que circunstâncias se ganhou esse ou aquele colar, a razão 
do uso de determinado material ou cor. 
Em mais de uma dessas oportunidades ouvi comentários acerca do tipo de fio utilizado 
para se fazer o colar. Na grande maioria das casas pesquisadas de que tive notícia, usa-se fio 
de náilon para a confecção dos ilequês, por razões de ordem prática uma vez que esses fios 
são muito resistentes, fáceis de se passar nos buracos das miçangas e também não absorvem a 
água de folhas, nem o sangue por vezes vertido sobre os fios. Além disso secam rapidamente 
e não ficam com mau cheiro. 
 34
Existem, no entanto, algumas casas que usam o chamado cordonê, um fio de algodão 
levemente encerado, que não é tão resistente quanto o fio de náilon nem tampouco prático ou 
higiênico, uma vez que estraga com facilidade e é muito mais difícil de passar pelas contas. É 
no entanto, o fato de absorver a água, o amassi e o sangue sacrificial que segundo alguns 
sacerdotes o faz ritualmente mais apropriado que o fio de náilon, porque de acordo com esses, 
ao reter esses elementos o cordonê de algodão retém axé. 
A discussão subjacente ao uso de um ou outro material é algo muito recorrente nessa 
religião de tradição oral, em que cada templo é autônomo, e em que cada pai ou mãe-de-santo 
é muito criativo. 
O candomblé se formou no Brasil em meados do século XIX como uma organização 
original da diáspora de diversos povos africanos e, como religião de dominados, sofreu fortes 
pressões que poderiam ter levado à sua extinção. O que se verificou, no entanto, foi que a 
religião dos orixás não só sobreviveu como se expandiu e há muito tempo já não é mais uma 
religião de negros, mas universal, cujo alcance extrapola, inclusive, os limites das fronteiras 
nacionais. 
Nesse longo processo de resistência e reprodução, o candomblé sempre se preocupou, 
e se preocupa ainda, em preservar-se, em guardar bem os seus segredos, seus ritos, mitos, 
enfim, sua tradição (Prandi, 2005). 
Manter a tradição, no entanto, não significa ausência de mudanças, uma vez que 
mesmo "aquele traço aventado de querer-se permanente da tradição não exclui a sua própria 
evolução histórica – mesmo a permanência tem uma história" (Bornheim, 1987: 23). E no 
candomblé assim também se faz, a mudança, a ruptura, é necessária à sua conservação e 
manutenção. Como assinala Bornheim: 
"A tradição só parece ser impertubavelmente ela mesmo na medida em que afasta 
qualquer possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de que 
a ausência de movimento termina condenando-a à estagnação da morte. A necessidade 
da ruptura se torna, em conseqüência, imperiosa, para restituir a dinamicidade ao 
que parecia 'sem vida'" (idem, : 15, grifo meu). 
Tratam-se de mudanças, de rupturas, que visam a conservar, restituir a tradição, ou 
seja: 
"A noção de 'tradição' para o próprio candomblé é, portanto, uma noção que tem a 
dinâmica como um forte elemento constitutivo, em termos de que a transformação seja 
 35
por meio de abandonos, resgates, acréscimos, substituições, etc. é um mecanismo 
presente nas várias possibilidades de representação desta religião e que assegura, de 
resto, sua continuidade nos vários contextos em que se insere" (Silva, 1995: 291). 
 As mudanças aqui são sempre feitas em nome da manutenção, ou mesmo recuperação 
da tradição, ainda que o resultado seja uma "tradição inventada". 
"Tradições inventadas" são, de acordo com Eric Hobsbawm, altamente aplicáveis no 
caso da "nação", uma inovação histórica comparativamente recente, e seus fenômenos 
associados. Por tradição inventada entende-se: 
"Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente 
aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e 
normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma 
continuidade em relação ao passado" (Hobsbawn, 2002: 9). 
Como no candomblé a legitimidade é garantida por meio dessa continuidade em 
relação ao passado, pela referência constante aos mais velhos, as novidades, as 
transformações, que são introduzidas no processo de reprodução da religião adquirem 
necessariamente o status, por assim dizer, de tradição e se configuram, por meio da repetição, 
em verdadeiras "tradições inventadas". 
É desse modo que um novo modelo de roupa que nunca tenha sido usado em um 
determinado terreiro, por exemplo, pode ser introduzido pelo pai-de-santo que simplesmente 
tenha visto esse modelo em outra casa, achado bonito e copiado. Logo se ouvirá dizer da 
roupa nova que "é assim" porque no terreiro de origem, "é assim que se veste". 
 Há, no entanto, um espaço efetivamente aberto para as inovações, em que não há a 
possibilidade de se afirmar que "é assim porque sempre foi assim". Esse é o caso das 
inovações técnicas no âmbito da cozinha, que é central no candomblé porque é lá que as 
comidasque alimentam os deuses são preparadas. Há todo um debate dentro da religião se a 
adoção alimentos já processados, como o pó de feijão para o preparo do acarajé por exemplo, 
ou mesmo de eletrodomésticos modernos que facilitam a preparação das comidas, não seriam 
ruins para a religião por caracterizarem um afastamento do modo tradicional de se cozinhar a 
comida dos deuses. 
Mas a despeito de toda a discussão não se vê, hoje em dia, alguém pilando feijão para 
obter a farinha para o acarajé e é possível até que de tão habituados aos pacotes de farinha 
 36
pronta, facilmente encontrados no comércio, que filhos mais novos nem saibam qual era o 
processo para produzi-la no passado. 
Perguntados acerca disso, a maioria dos sacerdotes afirma não ver nessas inovações 
um perigo, pois há a percepção de que elas contribuem para que a vida no santo seja menos 
penosa e o dispêndio de tempo com a religião, de um modo geral, seja menor. Algo sem 
dúvida muito importante para a manutenção do candomblé e mesmo para arregimentação de 
novos adeptos, especialmente em uma cidade tão grande como São Paulo em que talvez o 
bem maior de que as pessoas possam dispor seja exatamente tempo livre. Conforme ouvi de 
uma mãe-de-santo "O que importa é a fé minha filha! Se vai usar liquidificador ou pilão o 
orixá não vai se importar, desde que a comida dele seja feita com os ingredientes certos e 
com devoção". 
Esse debate, obviamente, não se restringe somente às "coisas da cozinha". O povo-de-
santo está sempre discutindo se a adoção de técnicas e materiais industrializados não seria 
prejudicial à religião, não provocaria uma perda paulatina da tradição e conseqüentemente da 
força, do axé, a energia vital que move o mundo e sustenta a religião. O uso do náilon vesus 
cordonê é apenas uma pequena amostra desse debate, que é o mesmo que se trava em torno de 
outros pares de alternativas como usar o liquidificador ou triturar os alimentos no pilão, usar 
fogão a gás ou fogão a lenha, comprar farinha pronta para fazer acarajé ou produzi-la, 
comprar os ilequês prontos ou enfiá-los etc. 
 
Os ilequês e as cores 
Além dos tipos de colares já mencionados é preciso lembrar que eles também podem 
ter comprimentos diversos. Em geral eles vão até o umbigo, mas os colares dos orixás 
masculinos são usados pelos ebômis atravessados sobre o peito e são, portanto, um pouco 
mais compridos. Usar colares atravessados é, de acordo com Mãe Stella, a ialorixá do Axé 
Opô Afonjá, uma prerrogativa exclusiva dos filhos de orixás masculinos "independentemente 
de tempo de iniciação e condição hierárquica" (Santos, 1995). 
Existem também colares de contas mais curtos que se fazem para uso cotidiano, fora 
do rito, e igualmente colares de pedras, corais ou outros materiais, usados somente por 
ebômis, que podem também ser mais curtos. Uma vez ouvi um sacerdote dizendo que sua 
 37
mãe-de-santo o havia aconselhado a fazer para si alguns colares mais curtos para proteger o 
peito, uma parte do corpo simbólica e efetivamente central. 
Além da enorme diversidade de materiais que podem ser usados nos ilequês, conforme 
já mencionei, é preciso ter em vista que as miçangas também são diferentes. Existem dois 
tipos de contas as que são de vidro opaco, leitosas, e as de cristal, que são translúcidas. 
As contas translúcidas são usadas, em geral, para as divindades femininas, em 
específico as ligadas às águas, como é o caso de Iemanjá e Oxum; esse uso é uma referência à 
transparência das águas que essas deusas habitam. Nas palavras de Claude Lèpine "o cristal 
evoca por sua transparência as águas doces como as águas salgadas" (1978: 300). 
Há o caso especial de Logum Edé, o orixá masculino, que é filho de Oxum com 
Oxóssi e usa alternadas, as contas de seu pai, azul-turquesa opacas, e de sua mãe, dourado 
translúcido claro. Igualmente também é possível encontrar miçangas translúcidas para um ou 
outro orixá masculino em um avatar muito específico, dependendo do templo, mas isso é raro. 
Muito da exuberância e diversidade dos colares se deve ao seu colorido, ou 
multicolorido, tendo em vista que são muitas as cores usadas. No candomblé queto são 
aproximadamente dezesseis as divindades cultuadas e cada uma comporta em geral uma ou 
duas cores básicas que podem variar de tom de acordo com a invocação do orixá, a qualidade 
como diz o povo-de-santo, conforme se vê no Quadro 2. Nas palavras de Armando Vallado 
(2002: 41): 
"Qualidade é o termo usado no candomblé para referir-se às múltiplas invocações ou 
avatares dos orixás. (...) as qualidades referem-se a cultos específicos dos orixá, em 
que são invocados aspectos míticos da sua biografia mítica, o que inclui suas 
diferentes idades, suas lutas, seus momentos de glória etc. Também locais geográficos 
passam a compor a qualidade". 
De tal forma que se pode ter um ilequê de Oxum cuja cor é o dourado desde o mais 
claro até quase marrom dependendo do avatar da deusa em questão. Nesse sentido Claude 
Lèpine (1978: 308) sustenta que tanto mais velho o orixá, mais escuras são as contas e, por 
conseqüência, quanto mais jovem, mais claras. 
Juana Elbein dos Santos (1975) e Rosa Maria Bernardo (1994) classificam as cores 
usadas nos colares e roupas dos orixás de acordo com um sistema tripartite baseado em Victor 
Turner (1967), segundo o qual as cores-significado podem ser classificadas a partir do branco, 
vermelho e preto do qual todas as outras cores derivariam. 
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Assim, de acordo com essa teoria (Santos, 1975: 41), ao vermelho estariam 
associados: o corrimento menstrual, o sangue humano ou animal; o azeite de dendê, o ossùn, 
um pó ritual vermelho muito usado nas iniciações, o mel; cobre e o bronze. O vermelho 
também abrange o amarelo. 
 
Quadro 2 – Os colares e as cores no candomblé de nação queto e na umbanda 
 
Orixás Cores das contas no candomblé de 
nação queto 
Cores das contas na umbanda 
Exu vermelho e preto, azul e preto 
(alternadas) 
vermelho e preto (alternadas) 
Ogum azul escuro, verde escuro, azul escuro 
rajado de verde 
vermelho 
Oxóssi ou Odé azul turquesa verde 
Ossaim verde e branco (alternadas ou rajadas) - 
Oxumarê amarelo e preto, laranja e preto, verde 
e amarelo (alternadas), búzios 
- 
Obaluaê ou Omulu vermelho, branco e preto (rajadas ou 
alternadas) 
preto e branco, amarelo e preto 
Xangô vermelho e branco, marrom e branco 
(alternadas) 
marrom, amarelo, roxo 
Oiá ou Iansã marrom, vermelho escuro laranja 
Obá vermelho e amarelo translúcido, 
vermelho escuro, laranja translúcido 
- 
Oxum dourado translúcido dourado translúcido, amarelo, azul 
escuro 
Logum-Edé dourado translúcido e turquesa 
(alternadas) 
- 
Euá búzios, vermelho escuro translúcido - 
Iemanjá vitrificada cristal transparente, ou 
alternada com azul ou verde 
translúcido 
vitrificada cristal transparente ou 
azul claro translúcido 
Nanã branca rajadas de azul cobalto, roxo roxo 
Oxaguiã (Oxalá 
jovem) 
branco e azul real intercaladas - 
Oxalufã (Oxalá 
velho) 
branco branco 
 
Ao branco estariam associados: o sêmen, a saliva, o hálito, as secreções, o plasma; a 
seiva, o sumo, o álcool e as bebidas brancas derivadas das palmeiras e outros vegetais, o 
ìyèrosùn, pó branco de uso ritual, o ori que é uma manteiga vegetal; além de sais, giz, prata e 
chumbo. 
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Por fim, ao preto estariam associados: cinzas de animais; sumo escuro de alguns 
vegetais; o wájì, pó azul escuro também de uso ritual; carvão, ferro e outros minerais. O preto 
compreenderia ainda o verde e o azul. 
Parece-me muito difícil afirmar, com base na pesquisa de campo, que a determinação 
das cores consagradas aos orixás obedeça a princípios cujo simbolismo tem um alcance tão 
preciso. As cores estão ligadas às características dos orixás, que por sua vez se depreendem de 
sua mitologia, que, como já foi dito, forma e informa a estética do candomblé como um todo e 
inclusive as cores dos colares. 
Um mito de Xangô