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Texto 1 -Antropologia - Ser pessoa é tornarp-se via cuidado_2252e5b38b8fd51f52e1d1f4c96a6b0a

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1 
 
 
 
AS INTERROGAÇÕES HUMANA E O SENTIDO DA 
VIDA 
Prof. Dr. Luís Evandro Hinrichsen 
 
INTRODUÇÃO 
 Quem é o ser humano? Pergunta vital – de 
extraordinária complexidade – tematizada pela 
Antropologia Cultural, Paleoantropologia, História, 
Psicologia, Biologia e Antropologia Filosófica é 
sempre atual e decorrentes tentativas de respostas 
[iterativas ou autorreferentes], pela característica 
da pergunta, são sempre abertas e atuais. Martin 
Heidegger, em Ser e Tempo [1927], anuncia que, se 
nos presentes dias, há tantas informações sobre o 
ser humano, entretanto, nunca foi tão 
desconhecido por si mesmo. Através das 
especializações, efetivamente, antropologias 
setoriais pretendiam elaborar visão definitiva sobre 
o homem. Max Scheler, colega de Martin 
Heidegger, em A Posição do Homem no Cosmos 
[1928], nas pegadas de Edmund Husserl, denuncia: 
perdemos visão unitária – integrativa e não 
setorial – sobre o ser humano. É urgente, escrevia 
frente à crise antropológica da época, investigar a 
essência do fenômeno, que Scheler descreveu pela 
expressão ser pessoa. 
a) A pergunta pelo sentido do existir, a pergunta 
das perguntas, intransferível e decisiva 
 O que é o ser humano? Para os 
gregos anthropos designa o ente que se eleva para 
o alto, sonda o kosmos, elabora teorias, dá-se conta 
da harmonia na qual está inserido e que une todas 
as coisas: o logos, razão invisível que torna o 
kosmos belo e rítmico. Para os romanos, Homo 
deriva de humus, terra, ou seja, a palavra homo [ser 
humano] significa o ente que trabalhando a terra, 
constrói civilizações, edifica a si mesmo como 
indivíduo e gênero humano. 
 Transcorrido dois mil anos, na década de 20 
do século passado, o desenvolvimento das ciências 
da natureza através da adoção do método 
mecanicista permitiu elaborar incontáveis imagens 
sobre o ser humano, contudo, antagônicas, 
parciais, fragmentadas, resultado da especialização 
e incapacidade de diálogo entre as diversas áreas 
que examinam o ser humano. 
 O problema percebido por Heidegger e 
Scheler – os reducionismos explicativos, a 
fragmentação do humano e a consequente crise 
antropológica – é desafio para os tempos que 
vivemos. Constatamos, ainda, nos presentes dias, 
atribuição de valor universal às teorias parciais, 
elaboradas setorialmente. A fragmentação, 
divórcio e hiperespecialização das ciências que 
tratam o ser humano, apenas, como objeto a ser 
observado externamente é questão que precisa ser 
considerada. A pretensão de respostas setoriais – 
sem articulação interdisciplinar – de se 
apresentarem como ‘a visão definitiva e completa’ 
é entrave ao pensamento que procura dar conta da 
complexidade e do sentido. O ser humano, 
contudo, é ente complexo, irredutível à 
reducionismos, é indivíduo singular, 
multidimensional, integral. 
 A visão unitária, é preciso ressalvar, não é 
visão única, ao contrário, consiste em visão que 
considera todas as dimensões da existência 
humana, valorizando um ente dotado de vida 
biológica, ser cultural, racional, formado por 
emoções, circunstanciado, mas capaz de escolhas. 
O ser humano, em descrição contemporânea, é 
organismo bio-psíquico-social, ser relacional e 
ético, aberto ao mundo, portador de uma 
dimensão espiritual. 
 
b) O específico da pergunta antropológica 
 Quando indagamos o que é o ser humano, 
concomitantemente, perguntamos: quem sou? É 
pergunta envolvente e autorreferente. Ademais, 
considerada a envolvência, é pergunta complexa 
que solicita elaborações complexas. As respostas, 
igualmente, não resultam da mera soma de 
informações das diversas áreas nas quais ocorre a 
pergunta, mas da articulação dialógica das 
renovadas descobertas elaboradas pelas 
diversas investigações e que são capazes de des-
velar ou revelar a existência. Se o fenômeno [o que 
se mostra à consciência] é a existência, o logos [a 
razão do fenômeno] somente poderá ser inquirido 
e descrito pelo exame das ‘constantes existenciais’ 
ou ‘notas características da existência 
humana’. Tomás, Duns Escoto e Heidegger 
sondaram a existência humana e contribuíram ao 
des-velamento de constantes presentes na vida dos 
seres humanos. Não elaboram, apenas, teorias, 
mas descreveram a existência desde o mundo da 
vida [lebenswelt] articulando conceitos, 
definições, relações, inferências, ou seja, pensando 
rigorosamente, justificando as descobertas. Para os 
pensadores em tela, vale a vida vivida e os desafios 
que a existência nos propõe como indivíduos e 
2 
 
espécie, pois somos tão-somente e tudo, seres 
humanos. 
 
1 Platão e o Mito do Caverna: ascensão ao 
esclarecimento 
 Os helênicos interpretaram o anthropos 
[etimologicamente: Aquele que se eleva para o 
alto] desde sua posição no cosmos. Habitante da 
polis [cidade, demarcada por fronteiras geográfica 
e culturais correspondente à noção de Estado], 
portador de logos é capaz de pensar, fazer teoria, 
expressar desejos e posições, cultuar os deuses, 
participar da vida política. Platão [428/427 – 347 
a.C.] descreve o anthropos desde a capacidade de 
conceber ideias, dialeticamente ultrapassando as 
sombras [Eikasia], a opinião [Pistis], a dianoia 
[raciocínio matemático] até a noesis – é capaz de 
intuir as ideias, fundamento último do real. A 
ciência ou episteme é conhecimento rigoroso da 
essência das coisas via intuição das ideias. A síntese 
de Platão é compreensão sistêmica que percebe as 
realidades sensíveis e inteligíveis interligadas pela 
Ideia das Ideias, o inefável Bem, fonte de tudo o 
que é. É metáfora do esclarecimento, nessa 
perspectiva, o percurso ascendente e descendente 
que o filósofo realiza das trevas à luz e da luz às 
trevas na Alegoria da Caverna na qual, o Sol, Filho 
do Bem, é o símbolo do Bem em Si. A luz, no Mito, 
é metáfora do esclarecimento. 
 O ser humano – psyché existindo 
corporalmente – é composto pelo divino e pelo 
terreno. Se a Psyché é imortal, semelhante às 
ideias, o corpo pertence ao kosmos [mundo que é 
harmonia, beleza, ritmo, ordem]. Habitando o 
kosmos pela condição corporal, movido por eros, é 
capaz de transcendência. Transcende ou ultrapassa 
a si mesmo pelo conhecer percebendo a sombra 
das coisas físicas, as próprias coisas, 
posteriormente, através dos exercícios 
matemáticos e, finalmente, intuindo ou 
recordando as Ideias e o Bem. 
 Em continuidade, é importante esclarecer, 
que Psyché ou alma [do latim anima] é o princípio 
do movimento e da vida, é causa da organização do 
corpo da capacidade de perceber e compreender 
as coisas. O kosmos – beleza, ritmo , harmonia – 
ordem – segundo o filósofo de Atenas, foi 
moldado, pelo arquiteto divino Demiurgo, segundo 
as ideias. As ideias são imateriais, estáveis, eternas 
e paradigma [modelo] de todas as realidades 
sensíveis. A ideia é o Uno do qual participam os 
múltiplos – as coisas sensíveis. Eros é desejo – 
impulso que, desde as coisas sensíveis – conduz à 
procura do bem, da beleza e da verdade. 
 Em A República (Cf. A República, Livros IV, 
VI e VII), Platão descreve as relações entre alma e 
corpo e o processo de subida ao Mundo das Ideias 
e retorno à vida cotidiana. Se compete à alma 
racional governar a vida corporal, é preciso – desde 
a percepção – dirigir o olhar das coisas sensíveis às 
inteligíveis, ideias. Duplo exercício é solicitado, pois 
se a razão é o olho da alma, necessita ascender, 
gradativamente, das coisas sensíveis às ideias e das 
ideias à Ideia das Ideias, ao Bem. A ideia do Bem – 
divino por excelência – é inefável, pois, se fosse 
definível não seria o fundamento dos existentes. 
De que modo podemos, provisoriamente, 
compreender o Bem? Assim como o Sol é a causa 
da existência, geração, nutrição e visibilidade das 
coisas sensíveis, o Bem – no mundo espiritual – é a 
causa da existência das ideias e de sua 
inteligibilidade. A razão humana, via recordação, 
conforme lemos na alegoria do Sol em O Livro VI de 
A República, passo-a-passo, é capaz de 
compreender que o Bem éo fundamento não 
fundado de todas as coisas, sensíveis e inteligíveis 
e meta da existência humana. 
 Em o Mito da Caverna, Platão relata a 
subida ou libertação de um prisioneiro que, desde 
a Caverna, questionando as sombras projetadas na 
parede, atinge o mundo exterior e, 
gradativamente, habilita-se à visão do Sol. Ora, o 
mundo da caverna é o mundo sensível, o mundo 
exterior é o mundo inteligível. Se sombras e 
marionetes correspondem às impressões sensíveis, 
entretanto, o mundo exterior – composto de entes 
iluminados pelo Sol – é o mundo inteligível. O Sol, 
que doa vida e existência às realidades do mundo 
exterior é o Bem. É preciso adaptar o olhar, 
gradativamente, à contemplação do Sol – Bem. No 
Mito da Caverna há dupla adaptação que o 
anthropos – vivente mortal – precisa realizar. A 
primeira, das sombras [caverna: reino do sensível] 
à luz [mundo exterior: reino do inteligível], consiste 
em tornar-se apto a compreender as coisas 
iluminadas pelo Sol ou pela luz do Bem. A segunda, 
consequência da contemplação do Sol ou Bem – 
implica na readaptação à caverna, no retorno ao 
mundo sensível. Por que o prisioneiro se liberta? 
Movido por eros – desejo de verdade, beleza e 
bondade – ultrapassa a si mesmo à procura do 
sentido da vida. Por que o liberto retorna à 
Caverna – correndo o risco de incompreensão e 
morte? Porque a visão do Bem é gratuita e 
compromete os que a alcançam. O liberto, de 
consequência, retorna à caverna para testemunhar 
aos antigos companheiros – ainda prisioneiros de 
seus pré-conceitos e valores – de que o mundo é 
3 
 
infinitamente maior e incrivelmente belo do que 
possam imaginar. A dialética entre mundo sensível 
e mundo inteligível, descrita na ascensão ao mundo 
exterior e retorno ao mundo da caverna sinaliza o 
processo de libertação – via esclarecimento – da 
qual a luz é símbolo. 
 
2 Aristóteles e a Justa Medida 
 Aristóteles [384/383 – 322 a.C] definiu o 
anthropos como Animal Racional e Político, capaz 
de teorizar e participar dos debates na ágora. É na 
Ágora ou Praça Pública – espaço de debates – que 
acontecia a vida política da Cidade. Segundo o filho 
de Estagira, é fundamental aos fins da vida humana 
a participação na vida política através da 
concretização da justiça. A Vida Boa, digna de ser 
vivida, em consequência, é a vida teorética, 
virtuosa, vivida desde a amizade filosófica, no 
contexto da Polis. Aristóteles, para evitar tanto o 
isolamento intelectual quanto o ativismo, propõe 
alternância entre vida contemplativa [filosófica] e 
vida ativa [política]. Eis o círculo virtuoso entre 
teoria e práxis que, julgamos, permanece atual. 
 Se Platão propõe autêntica religião 
cósmica, cujo ápice encontrar-se-ia na visão do 
Bem no mundo espiritual; Aristóteles, entretanto, 
ao demonstrar a existência de Deus, afirma que a 
Religião possuiria, tão-somente, valor cultural. 
Deus, pensamento do pensamento ou 1º Motor 
Imóvel atrairia os entes ao ser como um imã atrai 
metais, mas sem os conhecer, pois, se os 
conhecesse tornar-se-ia imperfeito. Deus sabe que 
é causa última ou primeira do cosmos, mas, não 
conhece os entes que, amando-o, existem. 
 Aristóteles em Ética a Nicômaco convida à 
vida ativa pela conquista das virtudes. A razão 
prática, segundo o estagirita – orientando a 
deliberação – asseguraria ao agir moderação e 
racionalidade. Cultivando as virtudes via hábito – 
repetição consciente que incorpora ao caráter um 
modo der ser segundo a moderação – 
alcançaríamos à atualização da humanidade. Para 
Aristóteles, em cada decisão e ação, nos tornamos 
o que somos: seres racionais. Capazes de teorizar, 
contemplar a essência das coisas, entretanto, a 
vida boa – eudaimonia – solicita que participemos 
da vida da cidade. Procurar a vida boa, conhecendo 
e agindo – contemplação e práxis – eis a proposta 
ética de Aristóteles. 
 Virtude, de virtus em latim, é importante 
precisar o conceito, indica força, vitalidade, 
capacidade. O termo grego para virtude é areté. 
Aristóteles propõe educação à virtude – vida 
moderada pela razão – na direção do governo de si 
mesmo [autarquia] segundo o cultivo da 
temperança, da coragem e da justiça. 
 O politeísmo helênico, rico em significados, 
foi substituído pelas filosofias de Platão e 
Aristóteles, que formularam antropologias 
integrais, abertas e sempre atuais e que seriam 
redescobertas e interpretadas em chave cristã. 
 
3 História da Antropologia: Patrística e Escolástica 
 Santo Agostinho, Tomás de Aquino e Duns 
Escoto, herdeiros da Tradição helênica, mas, 
cristãos por opção e formação, em contextos 
diversos, pensaram a existência humana desde o 
tempo, como tarefa e relação. Kant, 
posteriormente, desde a noção de pessoa, 
defenderá a dignidade e inviolabilidade da vida 
humana. 
 
3.1 Santo Agostinho: nos instantes – que 
constituem o tempo – experimentamos, 
brevemente, a eternidade 
 
Se estou para recitar uma canção que conheço, 
antes de começar, já minha expectativa se estende 
a toda ela. Mas, assim que começo, tudo o que vou 
destacando e entregando ao passado vai se 
estendendo ao longo da memória. Assim, a minha 
atividade volta-se para a lembrança da parte já 
recitada e para a expectativa da parte ainda a 
recitar; a minha atenção, porém, está presente: por 
seu intermédio, o futuro torna-se passado. E 
quanto mais avança o ato tanto mais se abrevia a 
espera e se prolonga a lembrança, até que esta fica 
totalmente consumida, quando o ato, totalmente 
acabado, passa inteiramente para o domínio da 
memória. Ora, o que acontece com o cântico todo 
sucede também para cada uma das suas sílabas; 
acontece também a um ato mais longo, do qual faz 
parte, por exemplo, o cântico, e em toda a vida do 
homem, da qual todas as ações humanas são 
partes. Isso mesmo sucede em toda a história dos 
filhos dos homens, da qual a vida de cada homem é 
apenas uma parte. Aurélio Agostinho, Confissões 
 Aurélio Agostinho de Hipona [354-430] 
viveu no crepúsculo da Antiguidade, entre um 
mundo que desaparecia e um novo que iniciava. A 
queda de Roma em 410 não significou o final do 
mundo, mas o começo de novo mundo. Batizou-se 
aos 32 anos em Milão. Retornando à África – após 
vida monástica em Tagaste – é eleito presbítero 
com direito à sucessão do Bispo Valério na diocese 
litorânea de Hipona. O ser humano, para 
Agostinho, é pessoa – ser único e irrepetível, é 
rosto. Aspira, no trânsito da história, o Absoluto: 
4 
 
amor pleno, capaz de conferir peso à alma - 
impedindo as flutuações entre isto e aquilo, 
conferindo sentido à existência. Ser integral, 
composto de corpo e alma, dotado de uma mente 
racional, é portador de inteligência, memória e 
vontade. A vontade, faculdade ativa, é capaz de 
querer. Ora, a vontade pode escolher contra si 
mesma. O amor, caritas, unificando a faculdade da 
vontade, unificaria a vida da pessoa e conferiria 
sentido e plenitude à existência. A pessoa, 
itinerante, membro da família humana, 
pertencente tanto à Jerusalém Peregrina quanto à 
Jerusalém Terrestre, é convidada, nas suas escolhas 
e atos, a construir a Paz na Cidade Terrestre, ainda 
que paz precária. A construção da Paz na Cidade 
Terrestre é antecipação e condição à inclusão na 
recriação escatológica, quando, no final dos 
tempos, manifestar-se-á a Jerusalém Celeste: 
ponto de convergência da Criação e da História. 
 Em As Confissões lemos: Ama e faz o que 
queres. Mas, de que amor nos fala o hiponense? De 
amor ordenado, da ordinata dilectio, que é graça e 
plenitude. Quem sou? Não sei, afirma em As 
Confissões. Continuando, clama: tu que conheces a 
mim, muito melhor do que me conheço, sonda os 
mistérios de minha alma e permite que ao 
conhecer-me te reconheça (Cf. Confissões, Livro X). 
A existência, para Agostinho de Hipona é itinerário 
de autoconhecimento que, desde a criação, nos 
encaminha, via interioridade ao Absoluto que é 
Sumo Bem, Suma Verdade e Suma Beleza. 
 Nesse sentido, Tomás de Aquino, que viveu 
no século XIII, refletindo sobreo ser indaga, se os 
entes finitos poderiam não existir, então, qual é a 
razão de suficiência da existência desses entes? 
Ora, quem pôs os entes finitos na existência é Deus, 
eterna fonte de amor e plenitude, parcialmente 
sondável pela razão humana. O ser humano, 
pessoa, pelo intelecto pode conhecer a verdade, 
pela vontade aspira o Bem. Se Deus é a fonte da 
Verdade, entretanto, o modo próprio de 
compreendê-lo consiste em amá-lo. Mas, como? 
Na vida presente, em cada escolha e ação, 
aspirando-o devemos amá-lo via cuidado do outro 
e da criação. Se para Tomás ser é agir, existir é 
realizar-se no convívio com outros seres racionais, 
segundo a prudência e a justiça. No tempo – 
fortalecidos pela Fé, esperança e amor – no 
transitar pela vida, experimentamos um pouquinho 
da eternidade. 
 
3.2 O Ser-pessoa: Tomás, Kant e Duns Escoto 
 A compreensão do o anthropos – ser 
humano – segundo as múltiplas dimensões que o 
constituem, é gradativa conquista que envolve a 
história do pensamento e implica em 
consequências vitais à ética, política e direito. A 
seguir, brevemente, descreveremos o itinerário 
que conduz à afirmação de que o ser humano é 
pessoa. 
 
3.2.1 Santo Tomás de Aquino: ser é agir 
 O Aquinate [1224/1225 - 1274], no 
contexto dos debates despertados pela 
redescoberta de Aristóteles no Ocidente, assume 
posição crítica, valorizando a contribuição do 
estagirita à Filosofia e à Teologia. 
 
 Santo Tomás de Aquino não rejeita Aristóteles. Ao 
contrário, estuda e comenta a obra do fundador do 
Liceu com inigualável profundidade. No transcurso 
da história do pensamento filosófico e teológico, é 
notável interprete da obra de Aristóteles. O frade 
dominicano é importante recordar, leu as obras de 
Aristóteles nas traduções latinas realizadas 
diretamente do grego. Comentou temas 
aristotélicos em opúsculos, na Suma Teológica e 
Suma contra os gentios. É na Suma Teológica que 
encontraremos ampla análise, sob a forma de 
questões disputadas, em ótica teológica, da Ética 
de Aristóteles. A Teologia prática solicitou do 
Mestre em Teologia da Escola de Paris atento 
estudo e interpretação da ‘Ética do Filósofo’. 
 Para Tomás de Aquino, ser pessoa é tornar-se 
pessoa pelo agir. O ser humano é pessoa; pois 
dotado de intelecto e vontade, pelo intelecto busca 
a verdade e pela vontade busca o bem. Segundo 
Cláudio Henrique Lima Vaz, 1991, v.1, p68-69), O 
ser humano nasce ‘pessoa’, mas precisa atualizar a 
humanidade, a racionalidade, através do agir. O 
agir busca sempre o bem. Bem é o que convém à 
natureza humana, é o que contribui à realização da 
pessoa, unidade corpo-alma que, inserida na 
história, precisa pensar, deliberar e agir segundo 
seu destino último: a união beatífica com Deus. Se 
a alma racional, prosseguindo, é a forma do corpo, 
compete à alma racional, unida substancialmente 
ao corpo, através da prudência, determinar a justa 
medida que, em cada ação, visando o bem do 
indivíduo humano. A Ratio ou Mens Racionalis, 
portanto, pode conhecer e querer através das 
potências do intelecto e da vontade. Há 
interessante dialética entre essas duas 
capacidades, pois não podemos amar aquilo que 
não conhecemos, todavia, o conhecimento culmina 
no amor, pois conhecer, em sentido pleno, é amar. 
Tomás opta, na sua antropologia, por equilibrada 
relação entre vontade e intelecto, afastando-se do 
5 
 
voluntarismo e do intelectualismo. Para Santo 
Tomás, o bem é conquistado pelo agir prudente, 
moderado, atualizador, como dizíamos, da 
racionalidade que confere virtude ou excelência à 
vida humana. 
Mas quem é a pessoa? A pessoa, não é uma coisa, 
é alguém. Portadora de singularidade irrepetível. 
Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, 
oferece oportunos esclarecimentos sobre a noção 
pessoa e seus significado, pois 
 
Quanto ao primeiro artigo, assim se procede: parece que 
não é conveniente a definição que Boécio escreve no livro 
Sobre as Duas Naturezas: ‘Pessoa é a substância 
individual de natureza racional. [...]. Quanto ao 1º, 
portanto, deve-se dizer que embora não se possa definir 
tal ou tal singular, entretanto, é possível o que constitui 
a razão comum da singularidade. É assim que o filósofo 
define a substância primeira. E é dessa maneira que 
Boécio define a pessoa. [...]. Além disso, Boécio diz: ‘o 
termo pessoa parece derivar das máscaras que 
representavam personagens humanas nas comédias ou 
tragédias: pessoa, com efeito, vem de per-sonare – 
ressoar, porque necessitava-se de uma concavidade 
para que o som se tornasse mais forte. Os gregos 
chamavam essa máscara de prósopa, porque 
colocavam-na sobre a face e diante dos olhos para 
esconder o rosto’. [...]. Quanto ao 2º, deve-se dizer que 
embora pessoa não convenha a Deus tendo em conta a 
origem do termo, entretanto, tendo em conta aquilo que 
passou a significar, convém sumamente a Deus. Com 
efeito, como nas comédias e nas tragédias se 
representavam personagens célebres, o termo pessoa 
veio a designar aqueles que estavam constituídos em 
dignidade. [...]. Ora, é grande dignidade subsistir em 
uma natureza racional. Por isso, dá-se o nome de pessoa 
a todo o indivíduo dessa natureza, como foi dito (Cf. 
Tomás de Aquino, ST Q 29, a.1 e a.3, p.522/528-530). 
 
 Os debates registrados em torno do termo 
pessoa nas Questões da Suma, referem-se, 
inicialmente, a Deus. Deus é Pessoa ou, 
propriamente, Pai, Filho e Espírito Santo – na 
unidade divina – são Pessoas. Para o Aquinate, é 
conveniente salientar, todos os seres racionais, 
capazes de conhecer e amar, donos de si mesmos 
através de suas ações, são pessoas. O termo 
pessoa, portanto, indica unidade, singularidade, 
irrepetibilidade, posse de si via reflexão e ação. 
 Na linguagem de Tomás, conforme a cita, 
interpretando Boécio, pessoa é substância 
individual de natureza racional. A pessoa humana, 
logo, é substância porque existe em si mesma, é 
completa e única. A pessoa humana é racional, 
como afirmávamos, porque portadora de intelecto 
e vontade, capacidades espirituais, é convocada a 
destinar-se através de escolhas e atos (vide atos 
imperados pela vontade cf. Suma Teológica. v.3. II. 
Q. 17. a.1-9. p.217-232). 
 A palavra pessoa, esclarece Santo Tomás, 
deriva da expressão latina persona. Inicialmente 
Persona ou Prosopon [πρόσωπον] designava a 
máscara utilizada pelos atores, tanto no teatro 
grego quanto nas encenações romanas. Ao vestir a 
máscara, o ator assumia as características da 
personagem a ser representada. Persona ou 
Prosopon indica: a face, o rosto, o que há de 
maximamente singular no indivíduo. Finalmente, 
Persona ou Prosopon significa a dignidade dos seres 
racionais, dentre os quais, além de Deus e dos 
anjos, há o ser humano. 
 Pessoa, portando, é noção apta a indicar a 
singularidade, na unidade corpo e alma, de um ser 
irrepetível, portador de dignidade, merecedor de 
profundo respeito e que portadora de um sendo do 
Absoluto, é vocacionada a Deus. Pessoa, 
igualmente, sinaliza a responsabilidade em 
atualizar, pelo desenvolvimento das virtudes 
cardeais (Cf. ST v.4. II. Q 61, a.1, a.2, a.3, a.4. p.160-
168: Prudência, Fortaleza, Temperança e Justiça], 
pelo cultivo das excelências intelectuais [Cf. ST v.4. 
Q. 57. a.1-a.6. p.114-128: Sabedoria e Ciências 
Particulares) e pela livre recepção das virtudes 
teologais (Cf. ST v.4. II. Q. 62. a.1-a.4. p.172-179: 
fé, esperança e amor) as amplas e dignas 
possibilidades inerentes à condição humana. 
 As virtudes teologais da fé, esperança e 
amor supõem o cultivo virtudes cardeais 
[prudência, fortaleza, temperança e justiça], bem 
como, o cultivo das virtudes da ciência. Se pelo 
cultivo das virtudes cardeais a pessoas alcança a 
autarquia, se pela conquista do conhecimento 
realiza a natureza racional, pela recepção da fé, 
esperança e amor é fortalecida no itinerário da 
existência. Tomás de Aquino, é importante, frisar, 
unifica as dimensões da fé e da razão. Compreende 
a razão unida à vida concreta, concebe-a como 
razão afetiva,situando-a na multidimensionalidade 
que é a pessoa. 
 Pessoa, em resumo, é rosto, identidade, 
irrepetibilidade. Designa um ser espiritual 
convocado a realizar a si próprio, a projetar-se, a 
ultrapassar-se. Indica um ser capaz de transcender, 
através do inteligir e do querer, pela realização do 
bem alcançado pela ação. Pessoa é alguém, 
portador de nome, chamado à promoção do 
próximo, ao reconhecimento do outro e ao cuidado 
da integridade da criação. Pessoa, finalmente, 
sinaliza ser que, desde as coisas finitas, procura o 
infinito, almeja o gozo em Deus. 
6 
 
3.2.2 Immanuel Kant e a dignidade da Pessoa 
 Immanuel Kant [1724 – 1804], criticista, no 
contexto das luzes, desenvolverá em sua Filosofia 
Moral (KANT, 2008. p.72), desde original análise da 
noção de pessoa, ponto de partida necessário à 
reflexão ética. Para o Filósofo de Königsberg, a 
pessoa, é portadora de valor inauferível, é singular 
e irrepetível. As coisas têm preço, a pessoa é 
dotada de dignidade inviolável. Kant diferencia 
coisas de pessoas. Coisas têm valor relativo, podem 
ser designadas por preço. Pessoas, seres racionais, 
aptos à autonomia, são portadoras de valor 
incondicional. O valor que dignifica a pessoa, logo, 
não é relativizável, pois a pessoa sempre, nas mais 
variadas circunstâncias, é fim-em-si-mesma. 
 A perda de uma vida humana empobrece a 
humanidade. De certo modo, em cada pessoa, se 
encontra em jogo o destino de toda a humanidade. 
Em decorrência, declara Kant: “Age de tal maneira 
que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como 
na pessoa de qualquer outro, sempre e 
simultaneamente como fim e nunca // 
simplesmente como meio”. (KANT, 
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p.73). 
 Para Immanuel Kant, a pessoa é portadora 
de valor imensurável e dignidade não negociável, 
pois sendo fim-em-si-mesma, em decorrência, não 
é instrumentalizável. O imperativo categórico 
formulado pela razão prática pura segundo a 
nomenclatura kantiana, é fundamental à 
proposição de uma Ética de Princípios racionais 
compartilháveis, caracterizados como mínimos 
éticos, ou seja, pontos de partida à convivência em 
sociedades plurais. Os imperativos citados, 
concebidos pela razão prática e queridos pela 
vontade, permitem à vontade determinar a si 
mesma por leis autonomamente propostas. Leis 
que encontram na universalização e na defesa da 
não instrumentalização da vida humana, referência 
permanente. 
 Através de exercício racional-comunicativo 
ou dialógico, inspirados em Kant, podemos 
inquirir: quais são os princípios que permitiriam a 
convivência entre os humanos em sociedades 
plurais? Os princípios que formariam o Mínimo 
Ético, por sua validade intersubjetiva, por seu 
caráter transcultural, por sua racionalidade 
compartilhável forneceriam as bases da 
convivência em um mundo plural. O respeito à vida 
e salvaguarda da dignidade das pessoas, o 
exercício da solidariedade, a promoção dos direitos 
e liberdades fundamentais, encontrariam no 
Mínimo Ético referência e fundamento. 
 Immanuel Kant, tal qual Santo Tomás de 
Aquino, em contexto diferente, segundo 
metodologia investigativa distinta, destacamos, 
também declara a dignidade incontestável da 
pessoa, referência à Ética, à Teologia, às práticas 
profissionais e pastorais, à vida em sociedade. 
 
3.2.3 Beato João Duns Escoto: da solitudo à 
solidariedade 
 
João Duns Escoto [1265 – 1308], Inteligência 
poderosa e sútil, educado na Ordem do Menores, 
desenvolveu estudos e atividades acadêmicas 
entre Oxford e Paris, falecendo, precocemente, no 
Estudo dos Franciscanos de Colônia. Defensor da 
Imaculada Conceição de Maria, proclamador do 
Primado de Cristo, difusor da Teologia da Glória, 
exerceu meritoriamente a tarefa de teólogo 
filosofante em Paris. O Beato João Duns Escoto, 
existência dedicada ao estudo e ao exercício 
pedagógico, nos escritos une: inteligência e afeto, 
lógica metafísica e piedade. Frei João Duns Escoto 
desbravou os enigmas do ser, meditou sobre o Ente 
Infinito, refletiu sobre a existência humana, 
desenvolveu autêntica metafísica orante. 
 Para o Doutor Subtil, segundo Merino 
(2008, p.130), o ser humano foi criado à imagem e 
semelhança de Deus. Desta afirmação decorre a 
preferência pela descrição de pessoa elaborada por 
Ricardo de São Vitor, pois a definição que dá 
Ricardo expõe e corrige a definição de Boécio, que 
diz que a pessoa é substância individual de 
natureza racional; porque essa afirmação 
implicaria que a alma é pessoa, o que é falso. 
 Escoto defende claramente a unidade do 
ser humano, composto indivisível de alma e corpo. 
A eleição de Frei João destaca o aspecto existencial 
da formulação de São Vitor, valorizadora da 
existência em sua unidade inquebrantável. Se 
Tomás de Aquino, igualmente, destaca a 
completude da vida humana, ultrapassando e 
adequando a definição de Boécio à integralidade da 
existência humana, contudo, João Duns Escoto – 
em conformidade com sua doutrina sobre a 
univocidade ou singularidade do ente – é 
responsável por acentuar: a) que a existência 
humana é una e irrepetível; b) que a distinção entre 
corpo e alma é formal, que o ser humano não é, 
apenas, alma informando um corpo, mas, 
totalidade, vida espiritual encarnada, existência 
completa e, por conseguinte, incomunicável. 
Afirma Merino: 
 
 
7 
 
 
Segundo este último, a natureza é uma sistencia. E a 
pessoa é o modo privilegiado de ter natureza, ou seja, 
sistencia, a partir do ex, numa relação de origem. Deste 
modo sancionou a palavra existência para significar a 
unidade do ser pessoal. A existência não é um modo 
qualquer de estar existindo, mas uma característica de 
existir que é o ser pessoal. A pessoa sistit, mas a partir do 
ex, exprimindo o ex a íntima unidade da pessoa, que se 
traduz numa subsistência pessoal. A pessoa é, pois, 
constituída, pela sua natureza intelectual e pela sua 
incomunicabilidade ( MERINO, 2008, p.131). 
 
 A antropologia de Duns Escoto, como 
lemos, privilegia a existência. Ser pessoa é existir ou 
ek-sistir, como afirmará Martin Heidegger. A 
existência, segundo o Doutor Subtil, é modo 
privilegiado de constituir-se em-o-ser, desde a 
intimidade e unidade (Cf. Merino, 2008 , p.131-
132). A pessoa, portadora de natureza intelectual, 
subsiste, é em si mesma una e completa. A 
personalização, em decorrência, reivindica a ultima 
solitudo, ou seja, estar livre de qualquer 
dependência real ou derivada, na ordem do ser, de 
outra pessoa. A solitudo, decorrente da 
completude humana, expressa a singularidade, a 
irrepetibilidade, a unidade do ser pessoa. A pessoa, 
consequentemente, precisa, na intimidade, 
cultivar-se, personalizar-se, penetrar no mistério 
da existência (Cf. Merino, 2008, p.131-132). 
 Duns Escoto, afirmando a ultima solitudo 
antecipa, pensamos, a compreensão de que a 
pessoa não cabe em definições essencialistas. 
Ademais, é necessário tornar-se pessoa pelo 
mergulho no si mesmo, consequência da afirmação 
de que existir é subsistir na singularidade e unidade 
irrepetível que caracteriza cada ser humano 
(Merino, 2008, p.134). Nessa perspectiva, Antônio 
Merino, comentando a Ordinatio, esclarece que 
 
A pessoa humana tem vocação de abertura ao outro e 
ao mundo e sente o chamamento de sua presença. Mas, 
a sua meta natural poderá consegui-la se prévia e 
simultaneamente conseguir viver em si mesma. É 
necessário chegar a ser pessoa em si mesma, para depois 
ser solidário com os demais, posto que primordialmente 
a pessoa está destinada a subsistir por si mesma; e 
somente, deste este ser para si, poderá lançar-se a ser 
para o outro. O homem, ao mesmo tempo que pertence 
a si mesmo, que possui sua própria individualidade e 
dignidade, é um ser relacionado e reciproco. Ipseidade, 
tuidade, nostridade, implicam-se num processo 
indefinido, enriquecedor e configurador. O homem 
precisa descobrir a própria subjetividade. Mas, não 
podendo encerrar-se na subjetividade, deve abrir-se à 
alteridade. Pertença e referência sãoduas categorias 
existenciais que pressupõem a ultima solitudo e a 
relação transcendental. Com intuição genial, Escoto 
adiantou-se à filosofia dialógica, que tanta importância 
tem na actualidade (Merino, 2008, 134). 
 
 Solicitude do latim Sollicitudo, designa 
preocupação para com o outro. Quem é solicito 
acolhe, dialoga, responde às necessidades do 
próximo. A constituição da subjetividade, desde a 
individuação, envia a pessoa ao outro, torna a 
pessoa capaz de reconhecer e acolher o outro. Para 
Duns Escoto, a solitudo, condição de subjetivação 
do indivíduo humano, reivindica a solicitude. De 
outro modo, somos vocacionados à solidariedade 
às outras pessoas e para com a totalidade da 
criação. 
 Ao destacar a individuação da pessoa, 
ressaltando a completude, João Duns Escoto põe 
em relevo a identidade irrepetível. A pessoa, una e 
completa, é ultima solitudo. O tornar-se pessoa, 
enfatizamos, supõe cultivo da subjetividade. A 
subjetivação, entretanto, nos envia ao outro. 
Compartilhamos, efetivamente, o mundo com 
outras pessoas e com a criação de Deus. A pessoa, 
aberta ao outro, é convidada à solidariedade. A 
Solitudo, em conclusão, reivindica a solicitude. 
Desde sua individualidade, cultivando a si mesma, 
a pessoa é vocacionada à solidariedade, ao 
cuidado, a ser-com-os-outros via edificação da 
habitabilidade e convivialidade no-mundo. 
 
4 René Descartes e a cisão entre homem e mundo 
 Os antigos compreendiam o ser humano 
desde a inclusão cósmico-divina; se Agostinho, 
Tomás e Duns Escoto afirmam que o sentido último 
da existência se encontra na procura e gozo na 
verdade em Deus, entretanto, situam o ser humano 
no contexto do kosmos e da polis, o localizam na 
comunidade humana e na história. Herdamos da 
Filosofia e Teologia constituídas ao longo de 2.400 
anos compreensão de que somente poderemos 
amar aquilo que nos esforçamos por compreender, 
pois se a recompensa da fé é o entendimento, é 
preciso refletir, dar razões de nossas asserções, 
certificar nossa esperança. As ricas antropologias 
desses períodos, em resumo, situam o ser humano 
na história, indicam que existir é ultrapassar-se, 
transcender através do conhecer, agir, amar, 
construir o mundo. São antropologia abertas e 
atuais, capazes de oferecer importantes 
significados à compreensão do ser humano. 
 
4.1 A perda dos centros de referência 
Os modernos, gradativamente, perderam o centro 
que situava, confortavelmente, o ser humano no 
8 
 
universo. A Terra é um pequeno planeta que gira 
em torno do Sol. O Sol é uma estrela que pertence 
à uma galáxia. Nicolau de Cusa, ao descobrir a 
possível Infinitude do universo, louva a douta 
ignorância sobre os fenômenos que nos cercam, 
pois nos torna humildes e convida à pesquisa. Os 
europeus, através das viagens marítimas 
descobriram novos mundos, culturas primais 
antiquíssimas. Ora, a Europa não é o centro do 
mundo, como imaginavam. Ademais, após reforma 
de Lutero e de outros grupos, a unidade religiosa 
quebrou-se. As guerras, igualmente, devastavam a 
Europa. Se a unidade política, religiosa, geográfica 
e cósmica fora rompida, é preciso, para reconstruir 
a ocidentalidade, postular uma reforma das 
ciências. 
 
4.2 O Projeto de Descartes: a ciência admirável 
 René Descartes, leitor de Agostinho, gênio 
matemático e filosófico propôs-se tarefa de 
postular a nova ciência, a Ciência Admirável. O 
ponto de partida é a dúvida metódica. Indaga no 
Discurso do Método: será que existo? Se penso, 
logo existo [Cogito, ergo sum]. Não estarei, 
contudo, sonhando, existem realidades extra-
mentais? Se sou capaz de conceber a Ideia de um 
Ser perfeitíssimo, pleno, simplesmente ser, carente 
de privações, logo, é necessário que o Sumo Ser 
exista para além da mente que o concebe. 
Demonstrada a existência de Deus [Res Infinita], 
em consequência, o Sumo Ser não permitirá que 
nos enganemos quanto à existência de realidades 
extra-mentais. Se Deus existe, não me engano 
quanto à existência das coisas extensas. Por Res 
Extensa ou Coisa Extensa devemos compreender 
tudo o que é dotado de altura, largura e 
profundidade e pode ser mensurado. Se Deus 
existe, sou e não me engano. Não me engano? 
Estou desperto e, portanto, não me engano sobre 
a existência das coisas extensas. Após demonstrar 
as certezas fundamentais propõe, a partir da 
geometria, o método da nova ciência: dividir o todo 
em suas partes, verificar o que há de verdadeiro e 
falso, eliminar o falso, remontar o todo 
permanecendo somente com o que é verdadeiro. 
 
4.3 O dualismo antropológico 
 Mas, quem é o ser humano? Se posso 
pensar a alma como realidade clara e distinta, pois 
é simples, imaterial e fonte do pensamento, ela 
existe. Se posso pensar o corpo como realidade 
clara e distinta, pois é composto de partes 
sensíveis, tal qual um relógio [Relógio Mecânico: 
paradigma do modelo científico mecanicista] o 
corpo existe. No contexto da pesquisa realizada por 
Descartes, salientemos, o relógio mecânico é o 
paradigma do modelo científico mecanicista. Mas, 
como relacionam-se corpo e alma? A alma 
receberia via sentidos externos, sistema nervoso 
periférico, cérebro e glândula pineal as 
experiências sensoriais. A alma, via glândula pineal, 
governaria o corpo-máquina. O que sou? Um ser 
que pensa e que comanda um corpo-máquina, que 
experimenta como estranha a condição corporal. O 
que é a morte? Quando o corpo-máquina deixa de 
funcionar, a alma, que é imaterial, abandona o 
corpo. 
 Diante do desafio de reunificar as ciências, 
responder questões vitais da existência humana, 
Descartes fundou o dualismo corpo versus alma. 
Ao propor a unidade de método para Filosofia e 
Ciências da Natureza – postulando o modelo 
matemático de orientação mecanicista – 
desencadeou, todavia, movimento na direção da 
fragmentação do conhecimento. Descartes não 
logrou conquistar a Unidade do Saber e tampouco 
ofereceu chave antropológica para melhor 
compreendermos o ser humano. Precisamos ir 
além de Descartes, pois o homem não é a soma de 
alma e corpo, tampouco o mundo extra-mental é 
uma máquina composta de coisas extensas. E Deus, 
como Deus, não se reduz à res infinita, noção 
mental pela qual Descartes sustenta o seu edifício 
cientifico. Aliás, não tenho um corpo: sou um 
corpo. Corpo que pensa, ama, relaciona-se. Deus, 
igualmente, não é mera noção mental, antes de 
tudo, é experimentado na vivência no amor. 
 Descartes merece elogio por sua tentativa 
de reunificar as ciências dispersas e fragmentadas, 
entretanto, é preciso destacar, fundou um 
solipsismo filosófico que necessita ser superado. O 
que sou? Segundo Descartes, uma coisa pensante 
vivendo na condição corporal. Descartes inaugura a 
metafísica da alma e a física das coisas extensas – 
dualismo que, até os presentes dias, nos influencia. 
No campo epistemológico, com repercussão na 
existência e nos processos de pesquisa, competiria 
às ciências da natureza explicar as coisas extensas, 
dentre as quais, encontra-se o corpo-máquina. Ora, 
o modelo mecanicista não é a coisa mesma. Seres 
vivos, por exemplo, não são máquinas. Máquinas 
são artificiais, montáveis e desmontáveis. Seres 
vivos são gerados, nascem, crescem, morrem. São 
unidade irrepetível na grande teia da vida. O ser 
humano, ademais, segundo a Filosofia da 
existência, é no mundo – espaço existencial – no 
qual, via linguagem, estabelece relações com 
outras pessoas e põe-se em relação com outros 
9 
 
entes. No mundo há distância e proximidade, 
caminhos e descaminhos. O mundo, para além da 
representação geométrica, é habitado e 
compartilhado. 
 
5 HEIDEGGER E O SER-AÍ-NO MUNDO 
 
Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nossa. 
A natureza concedeu-nos a posse desta coisa transitória 
e evanescente da qual quem quer que seja nos pode 
expulsar. É tão grande a insensatez dos homens que 
aceitam prestar contas de tudo quanto - mau grado o 
seu valor mínimo, ou nulo, e pelo menos certamente 
recuperável - lhes é emprestado, mas ninguémse julga 
na obrigação de justificar o tempo que recebeu, apesar 
de este ser o único bem que, por maior que seja a nossa 
gratidão, nunca podemos restituir. Sêneca, Cartas a 
Lucílio. 
 
 
 Verificamos que Tomás, Escoto e, também, 
Martin Heidegger não elaboraram teorias, mas 
descrições que tocam na essência do ser 
humano: somos pessoas (Tomás) e seres 
relacionais (Escoto). Nada nos pertence, somente 
o tempo é nosso, mas, um dia não mais seremos. 
Frente à temporalidade, somente o cuidado 
confere sentido à existência. 
 
5.1 Edmund Husserl e Martin Heidegger: conhecer 
é retornar ao mundo da vida 
 Martin Heidegger [1889-1976], discípulo 
de Edmund Husserl [1859-1938], colega de Max 
Scheler [1874-1928] e de Ernest Cassirer [[1874-
1945], interlocutor do teólogo Rudolph Bultmann 
[1884-1976], experimentou, na década de 30 e 
anos posteriores as consequências da 
fragmentação antropológica. Aprendera com 
Husserl que é preciso retornar ao mundo da vida, 
lócus das vivências originárias. Se Husserl ensinara 
que o conhecimento é movimento intencional na 
consciência, enquanto conhecimento de; Martin 
Heidegger afirmará que conhecer é des-cobrir, no 
mundo, o sentido das coisas. O ser humano é aí-
no-mundo, habita e constitui o mundo via 
linguagem. Se Para Husserl a relação sujeito e 
objeto dá-se na consciência, para Heidegger, o ser 
das coisas apresenta-se ao Dasein humano via 
linguagem. Para Husserl, por exemplo, não há duas 
macieiras: a macieira que se apresenta à 
consciência é a mesma macieira externa. A 
macieira que a consciência intenciona, portanto, é 
a macieira existente no mundo. Para Heidegger, 
antes de ser descrita cientificamente, a jarra é 
simplesmente o utensílio que recebe e doa água, 
manuseado no transitar no mundo. 
 
5.2 O ser-aí-no-mundo e o cuidado 
 Heidegger denomina o ser privilegiado que 
indaga pelo sentido da existência por Dasein [ser-
aí-em-o-mundo]. Se o mundo o precede, 
salientamos, não há Dasein sem mundo e não há 
mundo sem Dasein. Dasein é-com, é Mitdasein. Se 
a Linguagem é a casa do ser, se o Dasein habita essa 
casa, precisa ter cuidado para com a palavra [Cf. 
Carta sobre o Humanismo]. 
 No contexto do mundo, o Dasein precisa 
interpretar constantemente sua situação. O 
entender, portanto, é próprio do Dasein. O Dasein 
dá-se conta de que é finito, frágil e temporal. A 
resposta à finitude, pois um dia não mais será, é o 
Cuidado. Cuidado, do latim cura,e [curar, 
administrar, cuidar], na língua alemã Sorge. Sorge: 
preocupação. Daí: Besorgen = preocupação com o 
amanhã [é preciso assegurar as condições da 
sobrevivência pessoal e comunitária] e Fürsorge = 
movimento pelo qual acolhe o outro, solicitude. 
Existir, portanto, é cuidar. Quem cuida de si, cuida 
do outro. Assegura, no tempo, as condições da 
existência. A anterioridade do cuidado é tão 
evidente que, não apenas nas ações práxicas é 
presente, mas, inclusive, nas tematizações teóricas. 
Se o Dasein é-com, é via cuidado. 
 
5.3 O risco de existir é tarefa de destinação 
conforme nos ensinam pintores e poetas 
 A partir de Ser e Tempo, Martin Heidegger 
procurará novo modo de pensar a existência, não 
através de representações, definições, fórmulas. O 
pensar encontrará nas artes, notadamente, na 
poesia e na pintura novo paradigma ou ponto de 
partida. Van Gogh e os poetas Hörderlin e Rilke, 
por exemplo, serão seus companheiros. Diante da 
Técnica Moderna, para a qual o homem de nosso 
tempo tende a transferir a destinação da 
existência, perceberá a resistência dos pintores e 
poetas. Pintores e poetas habitam e constroem o 
mundo porque vivem no risco de ser para além da 
aparente proteção da técnica. A verdade é descrita 
como evento de manifestação do ser através dos 
acontecimentos, das vivências, do mostrar-se das 
coisas. Verdade, para o filósofo suevo, é significado 
pelo termo Alétheia [grego] e Wahrheit [alemão]. É 
preciso, no des-velamento, ir além da concepção 
de verdade como posse intelectual ou 
representação. A concepção de verdade como 
representação baseia-se na suposição de que a 
relação sujeito versus objeto não é um construto, 
10 
 
mas a coisa mesma ou, até, a totalidade do real. A 
situação homem-mundo, entretanto, antecede o 
modelo sujeito versus objeto. Há prioridade, na 
ordem das vivências, da vida sobre esquemas. 
Somente experimentando o risco – acolhendo o ser 
das coisas e os significados da vida no processo de 
des-coberta / ocultamento do ser via linguagem – 
poderemos conferir significado à existência e 
sentido à Técnica moderna, assumindo a tarefa 
intransferível de destinar-se ou de exercer o 
cuidado, responsabilidade intransferível. 
 Para além da armação da ciência positiva 
de orientação cartesiana, em resumo, é preciso 
acolher a novidade do ser via manifestação das 
coisas, do outro da vida vivida. O movimento pelo 
qual o Dasein acolhe o sentido é denominado por 
Martin Heidegger por Acontecimento [Ereignis]. A 
verdade é o acontecimento de revelação do ser ao 
Dasein via eventos, vivências, manifestar-se das 
coisas na história, verificável desde o mundo e 
compartilhável com outros seres humanos. 
 
6 APLICAÇÃO: O Dasein é no mundo via cuidado: 
prevendo e acolhendo 
 Para Martin Heidegger, o Dasein é ser-aí-
no-mundo. É no aberto do mundo: não vive em um 
bioma fechado e precisa assumir a 
responsabilidade de existir. Na linguagem de 
Heidegger, precisa destinar-se no-mundo-com 
outros-seres-humanos. O Dasein é frágil e 
temporal. Como afirmávamos: é finito. Qual é a 
resposta à finitude, frente à onipotência da técnica 
ou diante dos discursos que ignoram a finitude? A 
resposta é o cuidado. Cuidar é prever, cuidar é 
acolher. 
 Cuidar, assim, é administrar a vida em 
comum. Cuidado, interessante, também, é curar, 
no sentido de restabelecer a saúde. Lidamos com 
coisas para, prevendo necessidades, continuar a 
existir. Vamos ao Supermercado para suprir a casa 
de insumos. Por que? Para atender às necessidades 
da família. Se nos ocupamos com as coisas para 
podermos existir, entretanto, nos preocupamos 
com as pessoas, as acolhemos. A preocupação, 
lidar com as coisas, é para que possamos acolher e 
cuidar das pessoas. Lidamos com coisas 
e cuidamos dos outros. Cuidar de si, nessa 
perspectiva é cuidar do outro, cuidar do outro é 
cuidar de si. Nunca estamos atrás ou na frente do 
outro, mas, junto. Estamos juntos na tarefa edificar 
a existência em comum. 
 Confrontados com os desafios da crise 
pandêmica, por exemplo, responsavelmente 
procurarmos preparar ou constituir estratégias 
aptas a prevenir e, também, acolher e cuidar os 
que contraíram a doença causada pelo Sars-CoV-
02. Farmacêuticas, em consórcio com laboratórios, 
nos quatro hemisférios – como a AstraZeneca no 
acordo com a Fiocruz e Sinovac no acordo com o 
Butantã – pesquisaram e entregaram vacinas aptas 
a proteger populações. Profissionais da saúde, 
destacadamente o pessoal do front, empenham a 
vida no cuidado dos enfermos. Pesquisamos e 
produzimos vacinas, preocupados, para acolher e 
cuidar dos outros. A crise pandêmica recordou 
quão frágeis somos e quanto precisamos uns dos 
outros. 
 
6.1 O Uso sereno e efetivo dos Utensílios técnicos 
 O Dasein Humano, em resumo, é-com, 
precisa tornar a terra habitável, a vida possível, 
prevendo e acolhendo. O Cuidado é o ser do Dasein 
humano, pois se não cuidamos, não existimos. O 
cuidado não é mero acréscimo, nos define como 
indivíduos, é anterior às teorias e práticas. 
 Na contemporaneidade, entretanto, 
vivendo fragmentação existencial, pobres de 
sentido, tantas vezes, transferimos à Técnica 
moderna a tarefa de Cuidar: tornar o mundo 
habitável. Há um paradoxo a ser pensado: se não 
podemos viver sem a Técnica moderna, 
entretanto, se a ilusória proteção oferecida elude a 
finitude, é preciso interrogar: qual é o sentido da 
Técnica Moderna? Para tanto, é necessário tomar 
distância, sair de sua influência. Como conviver em 
um mundo cada vez mais técnico?Somos 
convidados a pensar o sentido da Técnica. Exemplo 
notável, pensamos, é o modo como 
transformamos as mediações eletrônicas, em 
tempos crise epidemiológica, em instrumentos de 
encontro, descobrimos, através das reuniões via 
Zoom, que distanciamento social não é isolamento 
existencial. Aspiramos retornar à proximidade do 
face-a-face, mas, presentemente, através dos 
encontros em tempo real mediados pelas 
possibilidades informáticas, como podemos cuidar 
uns dos outros? Precisaremos de distância para 
avaliar quão importantes foram ‘os encontros’ e 
‘conversas’ via Zoom da PUCRS. 
 Se utilizarmos os utensílios técnicos com 
prudência, usando-os - apenas - quando deles 
precisarmos, eis importante constatação, 
descobriremos que devotamos tempo exagerado à 
Técnica. Utilizando com serenidade e prudência os 
artefatos técnicos, recuperando o tempo da 
presença, poderemos, em decorrência, realizar a 
tarefa do cuidado - pela qual nos mantemos em-o-
ser e tornaremos o mundo habitável, tal qual nos 
11 
 
exemplos: fabricação de vacinas e encontros via 
Zoom. 
 
Compreendo o cuidado através de uma narrativa: 
Fábula Latina de Cura 
Um dia em que preocupação (Cura / Sorge) atravessa um 
rio, vê um lodo argiloso: pensativa, pega um tanto e 
começa a modelá-lo. Enquanto reflete sobre o que fizera. 
Júpiter intervêm. ‘Preocupação’ lhe pede que empreste 
espírito ao modelo, no que Júpiter consente de bom 
grado. Mas, quando preocupação quis impor-lhe seu 
próprio nome, Júpiter a proíbe e exige que seu nome lhe 
deveria ser dado. Enquanto ‘Preocupação’ e Júpiter 
discutiam sobre o nome, a terra (Tellus) surge também a 
pedir que seu nome fosse dado a quem ela dera seu 
corpo. Os querelantes tomaram, então, Saturno para 
juiz, o qual profere a seguinte decisão equitativa: ‘Tu, 
Júpiter, porque deste o espírito deves recebê-lo na sua 
morte; tu, Terra, porque o presenteaste com o corpo, 
deves receber o corpo. Mas, porque ‘Preocupação’ foi 
quem primeiro o formou, que ela, então, o possua 
enquanto viver. Mas, porque persiste a controvérsia 
sobre o nome, ele pode ser chamado homo, pois é feito 
de humus – terra. (ST, Ser e Tempo, § 42, p. 551). 
 
 
O que a fábula significa? 
 A fábula de Cura é significativa, não-apenas 
por designar a constância do cuidado na totalidade 
da vida do Dasein, mas, sobretudo, pela afirmação 
da precedência do cuidado na clássica relação 
entre corpo e espírito. O Dasein não é abandonado 
por sua origem, mas por ela albergado durante 
toda a sua existência sobre a face-da-terra. O 
Dasein, conforme a fábula, não recebe o nome do 
seu ser, mas, do material de que é confeccionado, 
pois, homem deriva de humus, terra. 
 
CONCLUSÃO: FRAGMENTAÇÃO DA EXISTÊNCIA, O 
SEM SENTIDO E AS ESPERIENCIAS LÍQUIDAS 
 
 A fragmentação da existência, o sem-
sentido e as experiência liquidas 
 
 O ser humano, compreendido como 
anthropos pelos helênicos, por pessoa pelos padres 
da Igreja e pela escolástica, res cogitans por 
Descartes e Dasein por Heidegger indagou, indaga 
e indagará o sentido de estar- aí-no-mundo. Haverá 
sentido à existência? Onde encontrá-lo? Tendemos 
– nos tempos de onipotência da técnica – a viver 
desde as possibilidades dos magníficos utensílios 
tecnológicos, isolados ou a procura de sensações 
agradáveis que nos contentem. Existimos 
artificialmente – ‘Ilhados’ em ‘nossas fronteiras’ – 
como se não pertencêssemos ao chão-do-mundo, 
como não fôssemos ser-com. Após Descartes, 
dominando e transformando o mundo segundo 
interesses mercantis, manipulando as energias 
ocultas da natureza, via técnica, nos 
transformamos em insaciáveis consumidores que, 
freneticamente, de novidade em novidade, ao 
consumir, nos tornamos, igualmente, objetos. A 
consciência de que pertencemos ao planeta foi 
substituída por um ‘culto’ à ‘natureza’ como 
entidade externa e estranha, que precisa ser 
protegida [Vide ecologia rasa ou superficial x 
ecologia profunda]. 
 A ânsia descontrolada e insaciável de 
novidades nos faz transitar de objeto em objeto, 
tão freneticamente, que não mais sabemos quem 
somos. Já não nos encontramos face-a-face com-o-
outro, isto sim, inúmeras vezes, via comunicação 
eletrônica, estabelecemos contacto com perfis ou 
similares substitutivos. Se já não somos próximos, 
pois não vencemos distâncias e não vivenciamos o 
face-a-face satisfatoriamente, quem somos? Se 
nossas experiências escorrem através de pixels e 
megapixels, o que somos? Se para além do 
pensamento instrumental raramente exercemos o 
pensamento que medita para onde vamos? Somos 
seres humanos, pois indagamos, mesmo que por 
descaminhos, pelo sentido. Ainda que não 
utilizemos com prudência os utensílios técnicos, 
constatamos, somos seres em transcendência. 
 Se via pensamento instrumental ou 
Ciência aplicada pelo qual, via domínio tecnológico, 
experimentamos incontáveis comodidades e 
satisfação, entretanto, é urgente superar a 
sensação ‘embriagadora’ que nega a finitude. É 
preciso exercer o pensamento que medita, 
permanecendo junto às coisas e às pessoas – 
indagando pelo sentido de tudo o que é. 
 Por que não lidamos com prudência com os 
utensílios técnicos? Por que ainda não 
encontramos um modo livre e tranquilo de lidar 
com os utensílios técnicos. Somos convocados, em 
resumo, a pensar o sentido da técnica moderna – 
a procurar modo adequado de incorporá-la às 
nossas existências, permitindo que nos 
destinemos. 
 O filósofo e sociólogo Bauman, formulador 
da noção de liquidez aplicada às relações nas 
sociedades tecnológicas e mercantis, propõe o 
diálogo como base para, via reconhecimento do 
outro, reconhecer a si mesmo. Uma educação para 
o diálogo permitirá que recuperemos a tarefa do 
cuidado e percebamos a magnitude e beleza do 
estar-aí-no-mundo-com. 
 
12 
 
Breves conclusões 
 O ser humano [pessoa / ser-aí-no-mundo] é 
ser em processo de transcendência. Transcender é 
ultrapassar-se no amar, no criar, no estudar, no 
procurar a verdade, na realização da fraternidade / 
solidariedade. Transcendemos quando, desde o 
mundo, a partir das situações-limites, acolhemos o 
outro. Transcendemos quando tocamos no 
Mistério da Vida, no divino que se manifesta na 
sacralidade da existência. Transcendemos quando 
perguntamos: quem sou, por que estou no mundo, 
qual é o sentido presente e derradeiro da vida? 
 A vivência religiosa dá-se desde o mundo. 
No transcender, amamos, construindo o mundo. 
Acolhendo o outro, acolhemos o Totalmente outro. 
Na abertura que somos, pondo entre parênteses 
nossos pré-conceitos, ao acolher o mundo, a vida, 
o outro e o Absoluto, somos transformados. A 
vivência religiosa nos torna autenticamente 
humanos quando nos encaminha à 
responsabilidade: para comigo, para com o outro, 
para com um mundo. Precisamos contribuir à 
gestação da Paz via solidariedade através da 
edificação do mundo. Sim, a vida tem sentido. Vale 
a apostar na Paz e no Bem. É muito bom amar 
nossos familiares, colegas, amigos. É vital nos 
solidarizarmos com os que sofrem injustiças e não 
têm o direito à vida e ao viver assegurados. Sou 
parte da vida planetária, sou responsável pela 
defesa e promoção da vida. A religação religiosa 
efetiva-se quando, me importo. Nem é preciso 
definir a religação. Dá-se quando me torno, desde 
minha solidão e abertura, sempre mais solidário. 
 E o sentido último da existência? Haverá 
vida pós morte? Eis indagação importante. Se o 
amor é a experiência fundante da existência, a 
fonte do amor não permitirá que a vida termine, 
que relações sejam cortadas. O amor em suas 
radicais, gratuitas e amplas possibilidades é 
resposta adequada à decisiva indagação sobre a 
vida após a presente existência. O amor é a 
derradeira resposta. 
 Nessa direção esclarece C.G. Jung: “Tudo o 
que podemos dizer é que existe alguma 
probabilidade de existir para além da morte física” 
[Memórias, sonhos e reflexões, Nova Fronteira, 
p.318]. O que Jung experimentou como viável 
desde a exploração do inconsciente / consciência,inúmeras tradições religiosas confirmam. Com 
Jesus de Nazaré aprendemos que a vida e o amor 
têm a última resposta. Mas, se vivermos 
intensamente, aqui e agora, segundo a ordem do 
amor, reconciliados, já não experimentamos a 
eternidade? Vale a pena pensar. 
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