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Apostila de Curso – Aula 9 Mercado Informal no Brasil e as Mercadorias Políticas IDENTIFICAÇÃO Professor: Daniel Ganem Misse Unidade: Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos Departamento: Departamento de Segurança Pública e Social Disciplina: Criminalidades, moralidades, direitos e mercados no Brasil Carga horária: 60 horas/aula Semestre Letivo: 5º Período – Tecnólogo em Segurança Pública Curso: Tecnólogo em Segurança Pública - CECIERJ E-mail: danielmisse@gmail.com Meta: Apresentar as teias de negociação entre o legal/ilegal, formal/informal das mercadorias políticas na cidade como bazar, compreendendo o processo econômico e social que engloba essa sociedade em que os papéis sociais são tão flexíveis quanto a mão de obra assalariada. Objetivos: Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de: 1) Analisar a flexibilidade de papéis assumidos na cidade como bazar e as fronteiras entre o legal e o ilegal. 2) Analisar o conceito de mercadoria política e seus desdobramentos quando associado à sujeição criminal. 3) Desenvolver a habilidade reflexiva acerca das estratégias de sobrevivência que evidenciam a cidade como Bazar. 1. Considerações sobre a Precarização do Trabalho e as novas fronteiras entre legal/ilegal, moral/imoral e lícito/ilícito. Segundo Márcio Pochmann (2003), as modificações ocorridas no capitalismo pós-moderno não afeta o trabalhador da mesma forma em todas as partes do mundo. Dependerá do grau de industrialização do país – ou de centralidade no sistema capitalista. Para explicar como a precariedade do emprego na era da globalização está ligada ao grau de desenvolvimento das forças produtivas em cada país, Pochmann realiza um breve histórico da divisão internacional do trabalho, separando-a em três etapas. A primeira divisão internacional do trabalho era caracterizada pela dicotomia entre os produtos manufaturados produzidos nos Estados do centro capitalista e os produtos primários provenientes da periferia. Enquanto o setor agrícola era o grande empregador nos países periféricos, o setor urbano, especialmente a indústria, destacou-se no emprego da maior parte da mão-de-obra nas economias centrais. A segunda divisão internacional do trabalho se deu no segundo pós- guerra com a bipolarização do mundo entre Estados Unidos e União Soviética, que favoreceu não somente a reconstrução da Europa e Japão, mas a reformulação do próprio centro capitalista mundial, com a geração de um bloco de países semiperiféricos. A periferização da indústria foi possível nesses países sob a liderança do Estado, por meio da expansão e da proteção do mercado interno, o que permitiu a rápida passagem da fase agrária-exportadora para a de desenvolvimento industrial, um exemplo desse modelo foi adotado no Brasil por sua política de substituição de importações durante os anos 1950 a 1970. A Terceira divisão internacional do trabalho ocorre como consequência da segunda, pois empresas multinacionais se expandiram principalmente para a semiperiferia em busca de redução de custos, inclusive de mão-de-obra, e incremento na produção, tendo sido a revolução tecnológica peça chave para que essas empresas se tornassem gigantes transnacionais que pudessem melhor controlar as filiais (periferia) e concentrar conhecimento e tecnologia nas sedes (nos países centrais). Portanto, o que importa a essas empresas é o incentivo que receberão e os custos que cortarão podendo migrar sem muita dificuldade de um país para o outro em busca do que for mais vantajoso. Nessa nova etapa ocorre uma financeiralização do capitalismo, ocorrendo uma perda do valor do setor produtivo, que passa a sofrer um processo de reestruturação para se adequar à nova lógica de mercado. Desta maneira, os setores primário e secundário se tornam muito mais frágeis no processo de busca pela redução de custos, sendo que os países periféricos e semiperiféricos que passam a concentrar boa parte de seus trabalhadores nesses setores se tornam os mais vulneráveis, como afirma Pochmann: A nova Divisão Internacional do Trabalho parece referir- se mais à polarização entre a produção de manufatura, em parte dos países semiperiféricos, e a produção de bens industriais de informação e comunicação sofisticados e de serviços de apoio à produção gerada no centro do capitalismo. [...] No centro do capitalismo, a redução da capacidade de produção intensiva em mão-de-obra foi complementada, em parte, pela ampliação de fábricas intensivas em capital e conhecimento, com valor adicionado por trabalhador muito mais elevado. Por conta disso, mais de 70% do total da ocupação desses países concentram-se no setor de serviços, que é menos globalizado (e, portanto, mais protegido) que os setores industriais e agropecuários. [...] Enquanto os países ricos possuem 30% das ocupações mais expostas a concorrência internacional (indústria e agropecuária), os países pobres têm 70% das ocupações concentradas nos setores primários e secundários, que são mais objeto de competição mundial. (Idem, p.34) Ainda, Pochmann observa que: Ao mesmo tempo em que a nova Divisão do Trabalho impõe limites à dinâmica dos bons empregos aos países pobres, ocorre, paralelamente, a elevação no grau de desigualdade na distribuição da renda entre as populações dos distintos grupos de países. No centro capitalista, a diferença entre a renda dos 10% mais ricos em relação à renda dos 20% mais pobres era menos de 4 vezes nos anos 90, enquanto nos países periféricos foi quase 6 vezes e de mais de 7 vezes nas economias semiperiféricas. (p.35). Esses também foram anos em que as atividades ilícitas mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas polarizadas entre, de um lado, os empresários do ilícito, em particular do tráfico de drogas e que, a cada local irão se conectar com a criminalidade urbana comum e, de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam à margem da verdadeira economia da droga e transitam o tempo todo entre a rua e a prisão. Esses são os “trabalhadores precários” da droga, que se multiplicam na medida em que varejo se expande e se enreda nas dinâmicas urbanas, modulação criminosa do capitalismo pós-fordista – criminalidade “just-in-time”, define Ruggiero (2000), que responde a variabilidade, oscilações e diferentes territorialidades dos mercados. É justamente nesse ponto que as atividades ilícitas – e não só o tráfico de drogas – passam a interagir com as dinâmicas urbanas e compor o bazar metropolitano nos pontos de intersecção com os igualmente expansivos mercados irregulares, esse terreno incerto em que operam as “mobilidades laterais” de trabalhadores que transitam nas fronteiras borradas entre o trabalho, expedientes de sobrevivência e o ilícito. E também entre a rua e a prisão. É justamente nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal, o formal e informal que transitam, de forma descontínua e intermitente, as figuras modernas do trabalhador urbano, lançando mão das oportunidades legais e ilegais que coexistem e se superpõem nos mercados de trabalho. Oscilando entre empregos mal pagos e atividades ilícitas, entre o desemprego e o pequeno tráfico de rua, negociam a cada situação e em cada contexto os critérios de aceitabilidade moral de suas escolhas e seus comportamentos. É isso propriamente que caracteriza o bazar metropolitano: esse embaralhamento do legal e do ilegal, esse permanente deslocamento de suas fronteiras sob a lógica de uma forma de mobilidade urbana, “mobilidades laterais”, de trabalhadores que transitam entre o legal, o informal e o ilícito, sem que por isso cheguem a se engajar em “carreiras delinqüentes”. O bazar metropolitano começou a ganhar forma em meados da década de 1980. No caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, momento da virada conservadorade governos que fizeram por desmanchar direitos e garantias sociais, ponto de arranque da precarização do trabalho e redefinição dos mercados urbanos de trabalho. Em termos gerais, anos de reestruturação produtiva e da chamada flexibilização das relações de trabalho que terminou por esfumaçar as diferenças entre trabalho, desemprego e expedientes de sobrevivência, na própria medida em que o assim chamado informal instala-se no coração dos modernos processos produtivos e, no mesmo passo, se expande pelas vias de redes de subcontratação e formas diversas de mobilização do trabalho temporário, esporádico e intermitente, sempre nos limites incertos entre o legal, o ilegal, clandestino ou mesmo ilícito e delituoso (Ruggiero, 2000). Para exemplificar o caso brasileiro, em que o mercado informal sempre foi amplo, sendo largamente ampliado a partir dos anos 1990, pelos processos históricos de flexibilização da mão-de-obra assalariada, Telles e Hirata (2007) propõem uma etnografia do cotidiano de um bairro da periferia de São Paulo. Uma das personagens apresentadas nessa etnografia é Doralice, 40 anos, que mora em uma modesta casa em um bairro da periferia paulista com seu filho (16 anos) e um marido doente (problemas renais), e mais a mãe um irmão e um menino de seis anos neto do primeiro casamento do marido. Não tendo hesitado em montar uma banca de CDs piratas em um bairro próximo a sua casa quando surge a oportunidade. Doralice não consegue reconstruir os percursos que os CDs percorrem até chegar a seu modesto ponto de venda - a partir de um certo ponto o circuito fica embaçado. Ela conhece muito bem as coisas da vida e sabe que não teria condições de bancar o seu negócio em algum lugar mais disputado e mais rendoso. Enfim, ela é desprovida de cacife necessário para lidar com as "forças da ordem" que parasitam os negócios informais-ilegais com a força da chantagem e da extorsão, diferindo em grande medida os modos como esses mercados se organizam e se distribuem nos espaços urbanos. Nas horas do aperto, Doralice tampouco titubeia em mobilizar uma espantosa rede que opera o mercado de receitas médicas fraudadas para conseguir o remédio que depende a vida do marido, e que passa por dentro das farmácias de maior porte da região. Como ela diz, "não estou fazendo nada de errado, não roubo, não mato" - apenas está se virando como pode, como entre tantas outras circunstâncias de sua vida. É um jogo situado de escalas que superpõem e se entrelaçam nos agenciamentos da vida cotidiana e é isso justamente que interessa reter e, a partir daí, apreender a cidade em suas diversas modulações. Na mira dos autores Ruggiero e South (1997), está um cenário urbano no qual se expande uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as diferenças entre o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de sobrevivência e as atividades ilegais, clandestinas ou delituosas. O bazar metropolitano dizem os autores, começou a ganhar forma em meados da década de 1980. Esses, no entanto, foram anos em que as atividades ilícitas mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas valorizadas entre, de um lado, os empresários do ilícito, em particular do tráfico de drogas e que, a cada local irão se conectar (e redefinir a) com a criminalidade urbana comum e, de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam à margem da verdadeira economia da droga e transitam o tempo todo entre a rua e a prisão. Bem sabemos que, entre nós, o bazar metropolitano não é exatamente um novidade. Em outros termos, esse trânsito entre o informal e o ilegal, quiçá o ilícito,sempre esteve presente e sempre foi importante em cidades marcadas desde longa data por um hoje expansivo mercado informal, sempre próximo e tangente aos mercados ilícitos que também têm uma história que seria importante, em outro momento, reconstruir. Por outro lado, se a situação brasileira, tem que ser vista sob o ângulo dos processos transversais (e globalizados) que a atravessam, também é importante averiguar os modos de sua territorialização, em interação com contingências locais, história e tradições herdadas, assimetrias e desigualdades que lhes são próprias. Por enquanto, vale dizer que é esse o sentido crítico inscrito no empreendimento descritivo de Ruggiero, ao relançar a noção do "crime como trabalho" e discutir as proximidades e semelhanças, contiguidades e intersecções entre mercados legais e ilegais, localizando aí nessas interfaces a reposição e o engendramento de clivagens sociais, dessimetrias, discriminações diversas e também formas violentas de regulação nos seus modos de segmentação interna. Na verdade, esse jogo entre o legal e o ilegal parece hoje ser feito em termos muito diferentes do tão debatido descompasso entre a cidade legal e a cidade real. Ou melhor: será preciso se deter nas práticas, mediações e conexões que se processam justamente nesses terrenos incertos que não se reduzem às fronteiras físicas (se é que elas existem) do que chamamos periferia, pois passam por todo o entrelaçado da vida social. 2. As Mercadorias Políticas. Vimos na última aula que na favela o reforço da sujeição criminal vem da associação dos moradores com mercadorias ilícitas que carregam um forte significado de “clandestinidade” (MISSE, 1999). A transação dessas mercadorias se dá por meio de relações de poder que dependem da existência de mercadorias políticas. A variedade de mercadorias ilícitas é imensa, bem como a escala de sua criminalização. Do mesmo modo, o grau de efetiva incriminação de agentes desses mercados varia bastante e depende de uma concentração de interesse (material ou ideal) sobre determinados temas, bem como de campanhas morais, da visibilidade pública dos ganhos privados ilegais ou do montante de violências concorrentes mobilizadas. Michel Misse assim define o que seriam as mercadorias políticas: Existe um outro mercado informal cujas trocas combinam especificamente dimensões políticas e dimensões econômicas, de tal modo que um recurso (ou um custo) político seja metamorfoseado em valor econômico e cálculo monetário. O preço das mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, ganha a autonomia de uma negociação política, algo como um mercado de regateio que passe a depender não apenas das leis de todo mercado, mas de avaliações estratégicas de poder, de recurso potencial à violência e de equilíbrio de forças, isto é, de avaliações estritamente políticas. Para distinguir oferta e demanda desses bens e serviços daqueles cujo preço depende fundamentalmente do princípio do mercado proponho chamá-los de ‘mercadorias políticas’. (MISSE, 2011, pp. 219-220). Observamos que o conceito de mercadoria política depende de avaliações estritamente políticas utilizando avaliações estratégicas de poder e capacidade de coação para a obtenção de um bem econômico e mesmo político que possa ser convertido para outras trocas futuras. A “economia da corrupção” é apenas umas das formas de mercadorias políticas existentes, pois no caso da corrupção o agente utiliza o recurso político expropriando-o do Estado para poder oferecê-lo como valor de troca para a consecução de benefícios econômicos, tendo um forte caráter de privatização de bens públicos. As suas diversas formas podem ir desde o tráfico de influência até a expropriação de recursos de violência, cujo emprego legítimo dependia da monopolização de seu uso legal pelo Estado. Entretanto, o conceito de mercadoria política abrange também outras formas que o discurso da corrupção não dá conta de explicar, por ser uma noção construída no campo da moral. A questão da extorsão mediante chantagem ou mesmo do sequestro é observada como caso-limite de uma mercadoria cuja lógica econômica é baseada exclusivamente em uma relação extra-econômica, que lhe dá origem erazão de existência. Por ser uma atividade mercantil não-regulada, não se submetendo à regulação do Estado, não se desenvolve sem apelar para recursos políticos próprios. É essa dimensão de poder ilegal, semilegítima ou ilegítima, que condiciona seu desenvolvimento e que a torna passível de constituir redes de dominação não-legítima (MISSE, 2011). O que não é regulado pelo Estado, por ser considerado ilegal, passa a criar redes de auto-regulação paralela, em que os agentes desse mercado tendem a desenvolver suas próprias agências de proteção, ou a se colocarem sob a proteção de cursos de ação ilegais de agentes estatais (policiais, servidores públicos, juízes, políticos, militares etc.). As “ligações perigosas” possíveis entre a oferta de mercadorias criminalizadas abrem assim um leque de opções quanto ao emprego da violência (MISSE, 1997, 1999, 2011). Nesse sentido, a sujeição criminal vai influir diretamente no preço dessas mercadorias políticas, uma vez que o seu custo seria calculado de acordo com a maior ou menor reprovação ou desconfiança gerada pela troca dessa mercadoria, o que aumenta a possibilidade de venda das mercadoria políticas expropriadas da função pública investida nos agentes públicos. Tudo isso pode ser lido como uma dupla tragédia: uma tragédia social, que tem representado o extermínio de milhares de jovens por ano, numa acumulação macabra de cifras oficiais sombrias e desencontradas e uma tragédia institucional: pressionadas pela opinião pública, as autoridades do Estado continuam a pôr o foco na repressão aos varejistas nas favelas sem que consigam controlar os seus próprios agentes, coadjuvantes principais da reprodução ampliada da violência. Desta forma, mesmo encarcerando boa parte dos banqueiros do jogo do bicho e dos “donos” de áreas de tráfico na cidade, a troca das mercadorias ilícitas permanece normalmente, pois agora a impunidade assume uma nova face. As trocas de mercadorias políticas mantém a reprodução do mercado informal ilegal do Rio alheia a qualquer prisão ou mesmo intervenção. Nas favelas cariocas, a mercadoria ilícita que alimenta a rede de mercadorias políticas tem nas drogas ilícitas somente um de seus expoentes. Os serviços públicos também alcançaram um grau de “privatização” que ajudou a alimentar a rede do tráfico que entra em decadência na cidade a partir do início da década de 2000 e das milícias que entram em ascenção no mesmo período. A ascensão à associação de moradores de diversas lideranças do movimento1 durante as décadas de 1980 e 1990, findou por diminuir a participação política de moradores na sua comunidade ao mesmo tempo em que houve uma delegação dos serviços que o Estado prestava de forma precária na favela e que passaria mais intensamente pela intermediação da associação de moradores. Isso propiciou a produção de mercadorias políticas em torno de serviços públicos nas favelas cariocas que foram apropriados por grupos de traficantes e, mais recentemente, milicianos. Podemos observar alguns exemplos como o caso do “Gari Comunitário” da prefeitura e do “Convênio Bomba” da CEDAE. O programa “Favela Limpa”, também conhecido como Gari Comunitário, foi criado em 1993 para atender a cerca de 80 favelas da cidade onde a COMLURB teria problemas para realizar a coleta, por conta da forte presença do tráfico de drogas. Teriam sido contratados cerca de 800 garis comunitários que eram indicados pelas associações de moradores conveniadas com a Comlurb, sendo repassados mais de 23 milhões de reais por ano (dados de 2001) para executar o projeto2. Em 2005, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou Ação Civil Pública contra a Prefeitura do Rio de Janeiro, tendo no mesmo ano o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) julgado liminarmente pela suspensão do convênio, sob o argumento de que tratava-se de uma “terceirização ilícita por intermédio do programa ‘Gari Comunitário’ mantido pela Prefeitura do Rio de Janeiro”. A prefeitura (Comlurb) fez um acordo com o MPT para ir substituindo gradualmente os garis comunitários por garis contratados por meio de concurso público. 1 “Movimento” era o nome que se dava ao tráfico varejista de drogas nas favelas. Hoje em dia fala-se de “firma” (Misse, 2003; Grillo, 2013). 2 Para maiores informações, ver relatório do Tribinal de Contas do Município (TCM) do Rio de Janeiro que descreve como se estrutura, o cálculo de quantos garis por áreas populacional e quais os objetivos, detalhando também quais as 82 comunidades atendidas e o valor repassado para cada associação de moradores em 2000 para a contratação e execução do serviço. Disponível em: http://www.tcm.rj.gov.br/Noticias/414/4714-01.PDF. Acessado em: 10/08/2012. As favelas que estudamos entre 2011 e 2014, quase todas já tinham encerrado o programa Gari Comunitário, e muitos foram os relatos do seu sucesso e também dos cadastramentos indevidos realizados pela associação de moradores. Algumas das falas mais marcantes foi a de uma senhora que dizia “eles entravam na minha casa e apanhavam o lixo na minha lixeira. Agora, não tem mais gari em lugar nenhum e tenho que jogar meu lixo na rua”. De fato, é impressionante a quantidade de lixo acumulado em todas as comunidades que visitamos. Mais impressionante ainda é no Cantagalo/Pavão-Pavãozinho que fica em uma região nobre da cidade do Rio de Janeiro, entre Ipanema e Copacabana, a quantidade de lixo jogado em locais indevidos e o seu acúmulo atrás de edifícios de luxo. A principal demanda da população, mapeada por equipes de programas sociais, nessas duas favelas se refere à questão do descarte do lixo, sua coleta e reaproveitamento. Também pudemos observar casos em que Garis Comunitários iam em uma associação de moradores na Zona Norte mensalmente buscar seu pagamento, mas não prestavam qualquer serviço. Segundo relatos de moradores: “eles só aparecem no dia do pagamento”. A proposta dos Garis Comunitários foi levantada por muitos moradores em diversas reuniões de que participamos, quase todos reclamando do fim do projeto e da não substituição por garis da Comlurb em número suficiente para fazer a limpeza. Hoje, a questão relativa à limpeza urbana e coleta de lixo nas favelas é a principal demanda de serviços públicos mapeada pelos gestores sociais, juntamente com a falta d’água. O caso da Água, também é outro exemplo de terceirização e precarização da mão-de-obra para a execução de serviços na favela, reforçando a figura da associação de moradores como gestora dos serviços públicos no plano local. Na década de 1980, para dotar de saneamento básico essas localidades, bem como demais áreas do Estado ocupadas por segmentos populacionais de baixa renda, foi iniciada pela CEDAE, com a implantação do Programa de Favelas da CEDAE - PROFACE, um conjunto de ações que se desenvolveram até os dias de hoje, quando do surgimento do Programa Água Para Todos. A partir de 1990, através do Programa de Saneamento para Populações de Baixa Renda - PROSANEAR-RJ, a atuação da CEDAE nessas áreas passou a contar com um reforço substancial de recursos provenientes do Banco Mundial e da Caixa Econômica Federal, o que resultou na ampliação de sua abrangência, na diversificação de suas atribuições e na especialização de atividades. Segundo Maria Cristina Teixeira Lima Verda e Orlando de Melo Lima3, a absorção pela CEDAE da operação e manutenção dos sistemas de bombeamento de água existentes em comunidades faveladas, estabelecida como estratégia do PROFACE, foi implementada através de convênios firmados entre a empresa e as representações comunitárias locais. Esse serviço veio ao encontro das demandas dessas comunidades seriamente afetadas pelas dívidas com a concessionária de energia elétrica, decorrentes do consumo de energia das elevatórias integrantes dossistemas de abastecimento de água locais, geralmente construídos, operados e mantidos pelos próprios moradores. Através desses convênios a CEDAE passou a assumir a conta de energia emitida pela concessionária em nome da associação de moradores, a repassar para a associação de moradores local o salário e encargos pagos ao morador encarregado da operação e manutenção do sistema interno (o manobreiro), a responsabilizar-se pela manutenção dos equipamentos eletromecânicos das elevatórias, bem como a fornecer o material necessário aos eventuais reparos da rede interna. Isso ficou conhecido como Convênio Bomba. Do início da década de 1980 até meados da década de 1990, sucessivos convênios foram firmados entre a CEDAE e as associações de 3 Em seu trabalho publicado “Saneamento Básico Em Comunidades De Baixa Renda No Estado Do Rio De Janeiro - Aspectos Institucionais E Gerenciais” no XXVII Congresso Interamericano de Engenharia Sanitária e Ambiental. Disponível em: http://www.bvsde.paho.org/bvsaidis/saneab/xi-002.pdf. Acessado em: 15/10/2012. moradores, ultrapassando o número de 80 associações de moradores no fim da década de 1990. O sistema de água que fora criado em muitas localidades a partir de ligações clandestinas (“gato”) na rede d’água, sendo cobrada taxa pela associação de moradores ou até mesmo lideranças locais para a sua instalação e manutenção, com o Convênio Bomba, continuou sendo cobrada. Mesmo após o programa Favela-Bairro urbanizar e refazer a rede de água e esgoto de muitas dessas favelas, sempre foi paga a taxa de manutenção da rede pelos moradores à associação. Muitos dos argumentos que justificavam a taxa era o fato de que o Convênio Bomba não pagaria pelas peças de reposição e manutenção das redes d’água, ficando o ônus para a associação. Até maio de 2012, 39 associações de moradores recebiam repasses do Convênio Bomba (CEDAE), quando o projeto se encerrou por problemas de prestação de contas junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ). Com a interrupção do convênio, os manobreiros ficaram sem salário e começaram a cobrar para realizar manobras d’água para abastecer a favela. Em muitos lugares passou a ser cobrada uma anuidade, como no caso de uma comunidade da Grande Tijuca, de 150 reais para o morador ter água. Pudemos acompanhar também junto à associação de moradores do Morro do São João, que a CEDAE não substituía bombas queimadas e peças quebradas. Segundo o presidente da associação, teve um vez que a comunidade ficou duas semanas sem água porque a “bomba pifou”, fazendo com que ele começasse a cobrar de moradores para consertá-la. Conversamos à época com agentes da CEDAE e, segundo o que nos informaram, a empresa faz isso propositalmente, pois haveria muitos furtos de peças e bombas supostamente queimadas nas favelas. Seria uma espécie de punição pelo fato de não terem mantido a bomba a salvo de ladrões. Segundo ainda afirmaram, sempre que isso acontece em um lugar, espera-se duas semanas para resolver o problema e nunca mais o evento torna a ocorrer. Quase todas as associações de moradores cobram até hoje também pelo serviço de entrega de cartas e cadastramento para participar de programas sociais. O custo mensal pago por domicílio para se receber uma carta é em média 5 reais. Já o cadastramento em programas sociais varia. A informalidade do espaço das favelas, em que não se tem ruas, becos e vielas mapeadas, bem como a falta de um sistema de CEP para essas áreas, tende a torná-las passíveis das mais diversas formas de trocas de mercadorias políticas decorrentes de uma sujeição criminal que impede os moradores dessas áreas de se inserirem como cidadãos plenos de direitos. Trocam-se favores políticos muitas vezes por serviços públicos precários que serão geridos por associações de moradores sem capacidade de gestão e que muitas vezes acabam se tornando alvo do domínio de grupos criminosos como forma de obtenção de poder político e financeiro. O que essa questão faz transparecer é que, aparentemente, os serviços públicos no Brasil não foram feitos para serem universais e muito menos de qualidade. Na falta de serviços, paga-se por ele de outras formas. É como se a reprodução de mercadorias políticas fosse algo inerente à política pública no país, pois como os serviços não são universais, quem quiser tê-los e puder pagar por eles, o terá de qualquer forma, mesmo que ilicitamente. Outro caso emblemático é a questão do transporte público. Muitas são as favelas que são de difícil acesso para ônibus. Portanto, nessas áreas formas alternativas de transporte se desenvolveram, como as vans e moto- taxis. No caso das vans, cobra-se entre 2 e 5 reais por uma viagem de 5 a 20 minutos (dependendo do tamanho da favela). Caso não queira ir de van, que também demora para passar, pode pegar um moto-taxi, subir na garupa e pagar também mais de 5 reais em média. Em muitos dos casos, a associação de moradores cobra também uma taxa pelo serviço. No caso das vans, é mais difícil o controle, pois algumas são regularizadas, pagando pequenas taxas somente. Entretanto, no caso dos moto-taxistas, as taxas são cobradas semanalmente. Desta forma, percebemos que quanto mais irregular for o serviço maior será o seu custo enquanto mercadoria política. Com a chegada das UPPs em muitas das favelas, as cobranças feitas de cooperativas de vans e moto-taxistas pararam de ser realizadas pelas associações de moradores. Entretanto, o não reconhecimento da profissão de moto-taxista pela prefeitura torna a categoria frágil e ainda passível de extorsões, principalmente por policiais, sendo comum que o moto-taxi se torne mercadoria política em muitos lugares. Como vimos, muitos dos serviços que se sustentavam de forma ilícita, sendo explorados como mercadorias não só econômicas como políticas, passam a ser desativados por inúmeras razões, levando muitas associações de moradores a uma queda nas suas receitas, o que fez com que houvesse eleições em muitas delas, já que a sua rentabilidade não era mais tão expressiva. Com a chegada das UPPs, muitas localidades viram uma formalização da venda de gás, outra fonte de renda de traficantes e milicianos, da luz e o fim das instalações irregulares de tevê à cabo (o “gato- net”). A segurança também emerge na favela como outra forma de mercadoria política, seja em áreas de milícia, seja em áreas de domínio do tráfico de drogas. No caso das milícias a mercadoria política é a proteção, sendo cobrada financeiramente dos moradores. Apropriação dos serviços públicos de TV a Cabo, internet, distribuição de gás, vans, dentre outros, surgem como produtos a serem somados no pacote da mercadoria segurança. Muitos dos milicianos são agentes do Estado, do campo da segurança pública, que por possuírem essa função pública se valem de sua condição para vender proteção em troca de benefícios políticos e econômicos. Nos territórios dominados pelo tráfico de drogas, a mercadoria política tem seu valor relacionado à sujeição criminal que incide sobre a favela. Seu preço é fixado em observância a essa fator, impactando diretamente no valor da mercadoria droga e da mercadoria política a ser transacionada. Deste modo, se sabemos que quanto maior a reação social ao produto que está sendo vendido, mais custosa será a sua rede de proteção que envolverá agentes públicos, em especial da força policial, garantindo por exemplo o acesso a armamentos e informações sobre operações e batidas policiais, podemos concluir que quando envolve também a sujeição criminal, há um aumento ainda maior nos custos e no valor dessa mercadoria política. Por que um bairro como Copacabana tem um intenso tráfico de drogas de classe média e isso não se converte em violência da mesma forma que nas favelas? Talvezporque o lugar em que é possível de forma mais intensa a troca da mercadoria política proteção de forma mais visível sejam as favelas, as áreas em que incidem maior sujeição criminal. A sujeição criminal que incide sobre a favela torna esses espaços da cidade mais vulneráveis à exploração pública da mercadoria política proteção seja por agentes públicos, seja por traficantes. A violência acaba sendo produzida pela disputa por poder e a correlação de forças em torno do controle de mercadorias políticas, encarecidas pela incidência da sujeição criminal na favela. Não é à toa que em muitos desses lugares as associações de moradores acabam sendo dominadas pelo tráfico, tendo seus serviços apropriados e estabelecendo nova rede de trocas de mercadorias políticas para que a comunidade tenha acesso aos serviços públicos básicos. Como se vê o conceito de mercadoria política é mais amplo do que o de corrupção, pois normalmente exige uma posição de poder e de correlação de forças em que alguém (em geral um agente público) se apropria privadamente de um bem público, transformando-o em mercadoria a ser negociada em troca benefícios ou favores de qualquer ordem, política ou econômica. 3. Referências Bibliográficas. GANEM MISSE, Daniel. Políticas Sociais em Territórios Pacificados. Tese de Doutorado, PPGSD/UFF, 2013 MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese apresentada ao Instituto Universitário de. Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro. 1999. ______. Crime e Violência no Brasil Contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. In KANT DE LIMA, Roberto e MISSE, Michel. (coord.) Coleção Conflitos, Direitos e Culturas. Lumen Juris: RJ, 2011. ______. As Ligações Perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio. Idem. POCHMANN, Márcio. O Emprego na Globalização – a nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. Boitempo: SP, 2003 TELLES, V. S.; HIRATA, D. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. Trabalho publicado nos anais do 31o. Encontro Anual da ANPOCS: Caxambu, 2007. VERDA, M. C. T. L. e LIMA, O. M. Saneamento Básico Em Comunidades De Baixa Renda No Estado Do Rio De Janeiro - Aspectos Institucionais e Gerenciais no XXVII Congresso Interamericano de Engenharia Sanitária e Ambiental. Disponível em: http://www.bvsde.paho.org/bvsaidis/saneab/xi-002.pdf. Acessado em: 15/10/2012.
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