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Teoria Avançada das Relações Internacionais Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Carlos Henrique Canesin Revisão Textual: Prof.ª Dra. Selma Aparecida Cesarin O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo • Discutir as bases do debate entre as perspectivas racionalistas e reflexivistas e a transição epistemológica positivista para o Pós-positivismo nas Relações Internacionais, enfocando a posição intermediária do Construtivismo e aprofundando as perspectivas pós-positivistas como a Teoria Crítica, o feminismo e a Teoria Queer. OBJETIVO DE APRENDIZADO • O Quarto Debate; • As Perspectivas Pós-Positivistas. UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo O Quarto Debate Os grandes debates nas Relações Internacionais parecem ter uma característica cíclica, alternando discussões de natureza ontológica e, em seguida, expressando divergências epistemológicas no campo. Conforme discutimos, o primeiro debate teve caráter eminentemente ontológico, opondo duas visões distintas da natureza da Política Internacional e sendo travado, de um lado, por realistas clássicos, e de outro, pelos liberais clássicos. Por sua vez, esse debate foi superado com a prevalência da posição realista clássica, a qual viria a ser antagonizada posteriormente, principalmente pelos neorrealistas, du- rante o segundo debate. O segundo debate não tem, portanto, natureza ontológica. Muito contrariamente, como ressaltado, as construções ontológicas realistas e neorrealistas nos apresentam um mundo muito similar e competitivo. O segundo debate foi travado a partir de diferenças epistemológicas, e suas metodo- logias associadas, entre visões clássicas da produção do conhecimento e a nova norma- tividade positivista das ciências humanas e sociais, às quais o neorrealismo professava adesão na busca da construção de uma explicação “científica” da política internacional. Progressivamente, o positivismo se tornaria o paradigma central das Ciências Hu- manas e Sociais na segunda metade do século XX. No campo da Teoria das Relações Internacionais não seria diferente. Assim, a partir de uma perspectiva epistemológica positivista comum, o terceiro grande debate seria travado entre neorrealistas e neoliberal, que divergiam não acerca de como chegar ao conhecimento sobre os fenômenos da Política Internacional, mas sim, retomavam o debate ontológico fundador do campo entre realistas e liberais clássicos. O terceiro debate tem, assim, caráter ontológico. Embora ambas as Escolas advoguem a adesão aos corolários positivistas, procurem dar ênfase ao Empirismo e à Racionalidade do comportamento dos atores, a própria lógica da anarquia do Sistema Internacional, que definirá o comportamento dos Estados, é distinta em cada construção. O mundo da política internacional neorrealista e o mundo neoliberal não é o mesmo. Esse debate, embora aprofundasse as divergências ontológicas que separam realistas e liberais, ajudou a consolidar o positivismo como mainstream do diálogo e da produção teórica no campo. Parte do antagonismo entre distintos esquemas teórico-interpretativos das Relações Internacionais do período frequentemente recorriam, como forma de crítica, a apontar a pretensa falta de cientificidade de seus antagonistas ou detratores. Dessa forma, o terceiro debate viria a ser superado nas Relações Internacionais não pelos desenvolvimentos teóricos próprios das perspectivas positivistas, mas a partir da contestação das validades dos próprios pressupostos sobre os quais as Teorias de pers- pectiva positivista se assentavam. 8 9 O quarto grande debate das Relações Internacionais surge, assim, a partir do desen- volvimento de novas perspectivas teórico-interpretativas que buscavam atacar a centra- lidade do próprio positivismo como paradigma do debate e da construção teórica no campo. Essas perspectivas ficaram conhecidas em conjunto como póspositivistas. O debate entre positivistas e pós-positivistas reacende, em novas bases, o debate episte- mológico no campo da Teoria das Relações Internacionais que parecia superado com a vi- tória do Positivismo sobre o Tradicionalismo ao final do segundo grande debate. Portanto, o quarto debate parece se localizar na conclusão de um novo ciclo de evolução teórica no campo, que alterna discussões de natureza ontológica com divergências epistemológicas: • Ciclo 1: Primeiro debate ontológico, segundo debate epistemológico; • Ciclo 2: Terceiro debate ontológico, quarto debate epistemológico. O quarto debate não está superado e persiste nas discussões contemporâneas do campo, onde coexistem interpretações positivistas e pós-positivistas da Política Interna- cional, incluídas no rol das últimas interpretações de natureza pós-modernista, que serão discutidas em outra Unidade. Para compreender o quarto debate, é necessário reconstruir suas bases epistemoló- gicas, avançado na sequência para sua penetração nas Relações Internacionais a partir da década de 1980. O Positivismo, conforme discutimos, propõe uma visão unificada de toda a Ciência, partindo da premissa de que é possível adaptar e aplicar as Metodologias das Ciências Naturais para explicar as Ciências Humanas e Sociais. Para isso, teóricos positivistas veem o conhecimento como algo objetivo e acessível externamente, dissociado dos valores e das crenças do observador, posição sintetica- mente resumida na ideia de neutralidade científica. Dessa forma, a partir de uma posição de neutralidade e com o emprego de métodos empíricos, seria possível mediar e analisar os fenômenos, de forma a explicar as cadeias causais por trás deles, ou seja, separar causas e efeitos, ainda, de outra forma, conforme discutido em outra Unidade, descrever as variáveis dependentes e independentes, bem como sua relação entre si. Esse é o paradigma de Ciência Positivista. Por sua vez, essa visão epistemológica empirista radical do Positivismo começa a ser erodida nas Ciências Humanas e Sociais a partir da influência em maior ou menor grau de uma nova perspectiva epistemológica distinta das discutidas em Unidades anteriores. Trata-se da visão que na Filosofia convencionou-se denominar fenomenologia. A fenomenologia contesta a possibilidade de geração de conhecimento objetivo ou neutro sobre a realidade. É a consciência humana, incluindo seus processos subcons- cientes, que dá sentido ao mundo. Logo, não pode existir algo como fatos objetivos ou, no jargão científico-popular, “os fatos falam por si só”. Parte central do entendimento sobre o mundo, sobre os fatos observados, depende da interpretação dos observadores, quer estejam ou não eles mesmos cientes disso. 9 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo A interpretação é um processo reflexivo e intuitivo, que depende das bases sobre as quais se assentam os mecanismos mentais da consciência humana. O conceito kantiano de fenômeno, disseminado nas Ciências Humanas e Sociais, tem sentido circunscrito à observação intelectual, a aquilo que se observa diretamente, ou em outras palavras, à observação pura. Tomando esta ideia, o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), cuja obra prin- cipal foi A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental [Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzentale Phänomenologie: Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie] (2012 [1936]), estabeleceria as bases da Escola da Fenomenologia. A Fenomenologia enfatiza a distinção entre a natureza do ser como ser, como a si próprio (sua ontologia); dos fenômenos ou da observação deles. Os fenômenos observados não são o ser em si. Entre o ser e o fenômeno, opera a consciência humana. A fenomenologia privilegiaria, portanto, o estudo da consciência e de seus objetos em relação ao mundo, dissociadas da busca de uma verdade ontológica sobre os seres em si próprios. Dessa forma, todo oconhecimento possível sobre o mundo, o que caracteriza sua epistemologia, decorre dos fenômenos, que devem ser entendidos e estudados em si mesmos, na impossibilidade de uma verdade ontológica sobre os seres. A produção do conhecimento sobre os fenômenos observados no mundo, e na Política Internacional não seria diferente, dependeria, portanto, de um processo de re dução fenomenológica. O mero fato de observarmos um determinado fenômeno requer que o observador esteja consciente dele, o que, por sua vez, depende dos processos mentais da nossa consciência, muitos dos quais operando no subconsciente. A consciência sobre um fenômeno não é informada, portanto, diretamente a partir da observação dos seres ou do fenômeno, nem diretamente pelos nossos sentidos em interação com eles, mas sim a partir de uma experiência da consciência. Toda a apreensão que nós fazemos sobre a realidade comporta tanto seres/objetos materiais quanto nossas ideias, sentimentos e até memórias e se configuram como expe- riências de nossa consciência. E de forma bastante sintética, não é possível a nós mesmos, como observadores, vislumbrar a partir de nossos estados de consciência sobre os fenômenos no mundo, ou seja, externos à nossa própria consciência ou mente, a aderência ou a correspondência ou não da forma como esses se apresentam em nossa consciência em relação à forma como se apresentam no mundo externo a nós, ou seja, sua ontologia. Não é possível, assim, construir conhecimento sobre o mundo que existe. O mundo real, externo a nós, mas tão somente sobre a forma como viemos a conhecer o mundo, sobre como o conhecimento sobre o mundo se apresenta a cada observador. 10 11 A realidade de cada observador existe apenas em sua própria consciência, o que não implica que a perspectiva fenomenológica seja cética sobre a possibilidade de se vir a conhecer o mundo, conforme a epistemologia ceticista discutida em outra Unidade, mas sim que todo conhecimento é contingente aos mecanismos pelos quais ele se forma ou é estruturado e à forma como seu observador apreende o mundo em sua mente. A fenomenologia procura derrubar as bases de qualquer conhecimento universal. O mundo existe para cada um de nós de formas diversas, pois a forma como apreen- demos o mundo depende de nossa consciência sobre o que existe e como existe. Em última análise, a perspectiva epistemológica empirista radical da Ciência Positivista, Neutra e Normativa é apenas a forma como homens brancos europeus, em geral de origem aristocrática e formação intelectual academicista formalista, escolheram, mesmo que inconscientemente, tomar consciência do mundo. No campo das Relações Internacionais, a influência da Fenomenologia contribui para a construção de esquemas teórico-interpretativos que, a partir da década de 1980, pas- saram a ser denominados reflexivistas. O quarto grande debate seria travado a partir de 1988, entre reflexivistas de um lado e racionalistas, ou positivistas, de outro. O ano de 1988 é emblemático como lançamento do presente debate a partir do discurso presidencial de Robert Keohane como presidente da Associação de Estados Interna- cionais (International Studies Association – ISA) naquele ano, intitulado International Institutions: Two Approaches (KURKI, 2008). As duas diferentes abordagens da Teoria das Relações Internacionais e, em especial, das Instituições internacionais, segundo Keohane, à época, agrupariam de um lado (neo) realistas, (neo)liberais, a Economia Política internacional, bem como todos os teóricos que adotariam modelos de escolha racional e métodos empíricos, sendo estes denomi- nados racionalistas. Por sua vez, do lado dos reflexivistas, estariam aqueles que enfatizam os aspectos intersubjetivos do conhecimento, ou seja, do entendimento que os atores tem ou cons- troem sobre as Instituições, a Política Internacional e, em última medida, seu próprio comportamento. Dessa forma, extrapolando a definição do papel das Instituições proposto por Keohane, Nye e os Teóricos neoliberais, os reflexivistas propõem que, em qualquer nível de análise, dos indivíduos aos Estados, e até a constituição do próprio Sistema Internacional, as Instituições não são apenas um reflexo da distribuição de poder relativo e das preferências dos atores, sendo construídas por estes de acordo com arranjos que dependem daqueles. As Instituições são constitutivas dos próprios atores, não apenas construídas por eles. E vice-versa. Os atores constroem as Instituições e elas moldam os próprios atores, bem como sua visão de mundo e suas preferências. As preferências, ou interesses, não são, portanto, externas, elas dependem das próprias instituições. E do que os atores consideram que as instituições sejam (DUNNE; HANSEN; WIGHT, 2013). 11 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo Embora, naturalmente, as preocupações de Keohane tenham se centrado na discussão sobre as Instituições internacionais, o quarto debate claramente não se resume a elas, sendo travado sobre a forma como os atores conhecem e dão sentido ao mundo da política inter- nacional e como este dá sentido aos seus atores (BENNEYWORTH, 2011). As Perspectivas Pós-Positivistas A influência da perspectiva epistemológica da Fenomenologia é pervasiva nas cons- truções teórico-interpretativas reflexivistas do Construtivismo, do feminismo, da Teoria Queer e da Teoria Crítica nas Relações Internacionais. Figura 1 Fonte: Getty Images No entanto, muito embora essas perspectivas contestem o dogmatismo positivista da Teoria das Relações Internacionais, e mesmo sua ingenuidade e falta de criticidade sobre o mundo, elas não rompem completamente com o racionalismo e o Empirismo, isto é, apesar de contestarem as bases pelas quais o conhecimento sobre a Política Internacional é produzido a partir da experiência empírica. E como os atores constroem e são construídos por essas noções, cada qual a seu modo, essas perspectivas ainda procuram construir um conhecimento sobre o mundo em bases mais ou menos racionais e empíricas, embora a racionalidade seja sempre contingente e os fenômenos empíricos apreensíveis apenas pela nossa consciência. O Construtivismo pode ser compreendido, portanto, como uma via epistemológica intermediária do entendimento sobre a Política Internacional, que avança o debate a partir de uma epistemologia própria, mantendo os pés firmas em uma base racionalista, promovendo aberturas na carapaça hermética da Ciência moderna no campo. 12 13 Por sua vez, o feminismo, a Teoria Queer e a Teoria Crítica operarão progressiva- mente um rompimento ainda mais radical com o mainstream da Teoria das Relações Internacionais. O rompimento definitivo no debate das Relações Internacionais, abandonando quaisquer bases modernas, ou seja, racionalista ou empirista, adentrando a seara das interpretações eminentemente pós-modernas, será discutido na em outra Unidade. Construtivismo A Escola Teórica Construtivista ou do Construtivismo Social, nas Relações Interna- cionais, passa a se consolidar a partir da década de 1990. Seu teórico mais influente é o cientista político alemão radicado nos EUA, Alexander Wendt, que, a partir da obra Teoria Social da Política Internacional [Social Theory of International Politics] (2014 [1999]) alçou o construtivismo à posição de uma das Teorias contemporâneas mais influentes sobre a Política Internacional, ao lado do Neorrealismo e do Neoliberalismo. Figura 2 Fonte: Getty Images Na obra, Wendt avança e refina as bases lançadas em seu também Artigo seminal de 1992, intitulado Anarchy is What States Make of It. Pertence, portanto, ao autor, a célebre afirmação, tantas vezes repetida depois, seja com reconhecimento, seja com crítica, de que a anarquia é o que os Estados fazem dela. Para Wendt, a anarquia não possui qualquer lógica própria, pois não existe indepen- dentemente e de forma autônoma em relação aos Estados, sendo, ao contrário, construída por eles, apartir de suas próprias ações, que dependem, por sua vez, de como eles veem o mundo. De acordo com a perspectiva epistemológica construtivista, as ideias precedem a nossa interação com o mundo, ao mesmo tempo em que são também formadas ou modi- ficadas a partir de nossa experiência no mundo. 13 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo Somos capazes de conhecer a realidade a partir do uso da razão e da experiência. Cada uma delas desempenha um papel diferente no processo de produção do conhecimento. No entanto, não existe conhecimento universal ou verdadeiro. Todo conhecimento de- pende dos indivíduos e da forma como eles assimilam o mundo, as experiências, a partir de sua própria cultura, que determina como eles enxergam o próprio mundo. O conheci- mento será, portanto, sempre relativo e condicionado ao seu próprio ethos de produção. Os Estados, como quaisquer outros atores no mundo social, estão condicionados pelo mesmo processo. Portanto, a forma como os Estados veem o mundo e, como conse quência, a anarquia, depende da cultura na qual estão inseridos. Assim, Wendt identifica o que chama de as três culturas empíricas da anarquia, ou seja, observáveis sobre o comportamento dos Estados na política internacional: a hobbesiana, a lockeana e a kantiana. A primeira estaria associada ao pensamento de Thomas Hobbes, a segunda ao de John Locke e a última à obra de Immanuel Kant, que discutimos Em Unidades anteriores. A cultura hobbesiana é baseada em uma construção do estado de natureza pré estatal caracterizado pela anarquia como causa de uma “guerra de todos contra todos”. Os Estados, nessa perspectiva, são construções sociais que visam a solucionar o dilema de segurança no âmbito das Sociedades domésticas, mas o transferem para a política internacional. Essa cultura da anarquia colocaria os Estados em uma situação de antagonismo contínuo no Sistema Internacional, no qual os Estados se veem como inimigos, pois o que está ameaçado, em última instância, é sua própria sobrevivência no Sistema Internacional. Por sua vez, a construção lockeana parte da premissa de que o estado de natureza é caracterizado por relações pacíficas entre os indivíduos, nas quais cada um é livre naquilo que não ferir os direitos naturais de outros indivíduos, para buscar seus próprios interesses. O Estado é uma construção social consciente dos indivíduos, formado por meio de um Pacto ou Contrato Social, e seu objetivo é facilitar a cooperação e a resolução pací- fica de conflitos na Sociedade. A cultura da anarquia introduzida pela visão lockeana, assim, implica um espaço não de antagonismos em que os Estados enfrentam inimigos, mas sim um espaço de competição no qual existem rivais. Trata-se, portanto, não de uma cultura de antagonismo como na perspectiva hob- besiana, mas sim de rivalidade na busca, cada Estado, de seus interesses, o que abre a possibilidade de cooperação na busca de interesses comuns. Por fim, a construção kantiana da anarquia enfatiza o papel dos indivíduos e da ação humana em uma perspectiva cosmopolita. Os seres humanos são seres racionais e morais. Os Estados, como construções sociais coletivas, devem responder aos verdadeiros inte- resses de seus cidadãos, que seriam refletidos na busca da paz e da harmonia entre os povos, na construção de uma verdadeira civilização humana cosmopolita, a civitas maxima. 14 15 A cultura da anarquia kantiana, portanto, não considera os Estados nem como ini- migos, nem como rivais. Pelo contrário, enfatiza que todos os povos, organizados em quaisquer Estados, partilham dos meus interesses básicos. Aos Estados, cabe promover a amizade entre os povos. Para Wendt, a cultura da anarquia pode, portanto, colocar os Estados na posição de inimigos, de rivais ou de amigos. Os Estados continuam a ser os principais atores das Relações Internacionais e a unidade de análise para explicar a Política Internacional, mas a sua identidade não está dada previamente. A identidade dos Estados, como inimigos, rivais ou amigos, depende da estrutura do Sistema Internacional, que depende, por sua vez, da cultura da anarquia na qual eles estão inseridos. E essa estrutura não é de natureza material, baseada em poder, capacidades ou interesses, mas sim intersubjetiva, isto é, formada pela própria visão dos Estados em relação a si mesmos e em relação aos outros Estados (sua cultura). A natureza humana e a Política Internacional são apenas rótulos em branco, não têm ne- nhuma característica intrínseca. Quem dá conteúdo e sentido a esses rótulos são os atores. Consequentemente, ao dar sentido a essas categorias, a partir de distintas culturas possíveis da anarquia, os Estados definem não apenas o que são para estes o Sistema Internacional, mas definem também a si próprios, suas identidades nesse sistema. E, ao definirem suas identidades (inimigos, rivais, amigos), definem também seus interesses (segurança, maximização de benefícios, paz). O Construtivismo é um arranjo teórico-interpretativo das Relações Internacionais de natureza estruturalista. A estrutura que compõe o Sistema Internacional é, no entanto, deslocada das bases materiais apontadas por neoliberais e, especialmente, pelos neorrealistas, para bases ideacionais, ressaltando que elas não são definidas a priori racional ou metafisicamente, mas sim, são produções empíricas das próprias práticas dos Estados em conjunto ao longo do tempo, em um processo de construção social contínua. Os Estados formam a sua própria cultura, da mesma forma que distintas Sociedades domésticas formam as suas na perspectiva construtivista. Faria pouco sentido, portanto, do ponto de vista construtivista, falar em uma lógica da anarquia. A cultura contém tanto elementos racionais baseados na experiência (o que não deve ser confundido com a verdade ontológica sobre estes fenômenos) quanto não racionais, baseados em valores, ideias, crenças etc. A anarquia não tem, assim, uma lógica própria. A anarquia é experimentada ou vivenciada pelos Estados de acordo com a cultura na qual eles estão inseridos. O significado da anarquia é, portanto, construído socialmente e não existe de forma exógena aos atores. Ademais, sendo os próprios Estados construções sociais, o princípio da soberania, instituto basilar na relação entre os Estados no Sistema Internacional, é igualmente parte dessa construção. 15 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo A construção histórica do princípio da soberania não é um elemento novo, sendo estudado tradicionalmente na Disciplina de História das Relações Internacionais, e remonta ao século XVII na chamada Paz de Westfália. O Construtivismo nos chama a atenção, no entanto, para o fato de que esse é um processo social. A construção histórica da soberania não é meramente produto do interesse dos Estados. É parte de um processo de mudança social da comunidade de Estados europeus do período. É parte da mudança da cultura desses Estados. Essa nova cultura levaria à formação do moderno Sistema Internacional, constituído por unidades soberanas. Paz de Westfália: É o termo utilizado para denominar o conjunto de Tratados que põe fim às guerras europeias do século XVII, como a Guerra dos Trinta Anos, a Guerra dos Oitenta Anos, a Guerra franco-espanhola e as rebeliões separatistas que levaram ao reconhecimento das Províncias Unidas (Países Baixos) e da Confederação Suíça. O principal desses Tratados foi o Tratado de Westfália, de 1648. Além de organizar o Sistema europeu interestatal, são introduzidos princípios de seus ordenamentos como a soberania, o Estado-nação e o equilíbrio de poder (LESSA; GONÇALVES, 2007). Nem a cultura da anarquia e nem os próprios Estados são fatores estáticos na visão construtivista. Os Estados podem modificar, ao longo do tempo, a cultura e a si mesmos (sua identidade). Destacam-se duas principais razões para o desencadeamento do processo de mudança: mudanças sociaise o balanço de custos e benefícios no Sistema Internacional. A primeira fonte de mudança tem a ver com a reconfiguração de fatores estruturantes da identidade do Estado em seu ambiente doméstico ou no internacional. Essas mudanças podem tornar anacrônica ou obsoleta a identidade do Estado, que se vê obrigado a reconstruir sua imagem a partir delas. Já a segunda fonte de mudança decorre da interação com os outros Estados no Sis- tema Internacional. A depender dos incentivos e ou dos custos impostos pelos demais Estados ao comportamento de um determinado Estado, ele pode se ver compelido a rever sua própria identidade no Sistema. Em um ambiente cooperativo, por exemplo, comportamentos desviantes, Estados párias, são punidos. Isso pode impulsionar uma mudança de identidade, pois, em geral, nenhum Estado que ser um pária. Existem, portanto, determinantes domésticos e sistêmicos da identidade dos Estados e, da mesma forma, a mudança dessas identidades pode levar à produção de diferentes estruturas de relacionamento entre os Estados. Assim, culturas negativas ou antagônicas podem ser superadas por culturas mais positivas e cooperativas. Quanto maiores as similaridades entre as identidades dos Estados, maior será a sua propensão a compartilhar uma identidade comum, institucionalizando e internacionali- zando parte desse relacionamento. 16 17 Dessa forma, se um conjunto de Estados compartilham uma identidade comum em aspectos como suas visões sobre a segurança, a Economia, a Sociedade e o Direito, eles produzem uma identidade coletiva capaz de institucionalizar normas, regras e princípios comuns de sua relação no Sistema Internacional. A institucionalização dessa ação coletiva dos Estados dá maior eficiência ao cumpri- mento de sua identidade, porém, requer que sejam desenvolvidos mecanismos para evitar ou punir os atores com comportamentos desviantes que perturbarem o desempenho dessa função. A progressiva internacionalização da identidade e das funções do Estado, apesar de cumprirem um papel, levaria uma reconstrução social do Sistema Internacional. Nessa nova construção, o Sistema de Estados soberanos que teve origem em Westfália seria substituído por um Sistema Neomedieval, ou seja, um Sistema em que a autoridade é exercida não apenas por atores estatais, mas também por atores não estatais, como Organizações Internacionais e Blocos de Integração Regional, que comporiam identi- dades comuns e desempenham funções coletivas pelos Estados. Esse processo de reconfiguração da identidade dos Estados não viria sem custos. E o custo é a construção de uma governança global que carece de representatividade demo- crática, o chamado deficit democrático. Ao transferir parte da identidade do Estado e, assim, se suas funções para um corpo técnico-burocrático externo, essa parcela das funções do Estado escapa às influências e controles diretos de suas Sociedades domésticas. Feminismo A perspectiva feminista das Relações Internacionais, quando analisada em seu con- junto, apresenta-nos arranjos teórico-interpretativos de difícil classificação ou conci- liação. Coexistem com abordagens racionalistas, principalmente, liberais e marxistas, perspectivas absolutamente disruptivas e radicais, ou pós-modernas, não apenas sobre os domínios da política internacional, mas o mundo em si. Figura 3 Fonte: Getty Images 17 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo No entanto, independentemente da maior ou menor transição que cada postulação teórica específica tenha feito. Nesse domínio, rumo a abordagens epistemológicas mais radicais, e menos racionalistas, todas elas partilham de uma lente comum para reinterpretar a Política Internacional e o mundo que nos cerca, a perspectiva de gênero. Em conjunto, as perspectivas feministas das Relações Internacionais desafiam a norma- tividade das Teorias Positivistas, contestando o lugar de fala que enseja a construção delas. Conforme apontado, as Teorias Positivistas, em geral, são empreendimentos teórico- interpretativas construídos por homens (brancos, heterossexuais, de descendência euro peia, de nações ricas etc. – esses são outros eixos de discussão que abordaremos mais adiante). Lugar de Fala: É um conceito utilizado aqui a partir de sua interpretação dada pela Escola Francesa de Análise do Discurso, cujos expoentes são, por exemplo, Pierre Bourdieu (1930-2002) e Michel Foucault (1926-1984). De forma sucinta, o conceito evoca a noção de que o discurso, como uma construção sobre o mundo, não é axiologicamente neutro. O discurso representa uma relação de poder exercida por seus enunciadores a partir do local ou posição da qual constroem e comunicam suas falas (RIBEIRO, 2017). De acordo com a interpretação feminista, o grande problema das Teorias Positivistas é confundir a experiência masculina sobre o mundo com a própria experiência humana. Do ponto de vista estatístico, os homens são apenas metade da Humanidade. E se delimitarmos a ideia de masculino aos arquétipos de masculinidade socialmente constru- ídos, composta por atributos de uma Sociedade patriarcal como virilidade, força, poder e coragem, um número ainda menor de seres humanos teria sua própria visão e experi- ência de mundo representadas pelas construções masculinas sobre ele. Dessa forma, as Teorias das Relações Internacionais seriam expressões de interpre- tações sobre o mundo construídas a partir de uma posição de poder masculina em Sociedades hierarquizadas. A hierarquia de gênero é parte da construção social na qual estamos inseridos e permeia nossas estruturas materiais, ideacionais e cognitivas. Essa estrutura categoriza e divide os seres humanos a partir de seu gênero e atribui a eles papéis sociais distintos, de acordo com essa categoria inata. Os atributos e os comportamentos valorizados socialmente passam a estar associados à ideia de masculinidade. Da mesma forma, a Sociedade patriarcal projeta-se nas Relações Internacionais construindo conceitos e práticas que representam e reproduzem a visão mas- culina do mundo. O Estado, o poder militar, a competição, a rivalidade e a dominação econômica são expressões de uma política internacional masculina. 18 19 O feminismo assevera, portanto, que há uma falha ou lacuna basilar na construção das Teorias das Relações Internacionais positivistas. Essa falha não é saneável pela aber- tura para maior participação feminina ou com o resgate dessa participação histórica. As próprias categorias e o discurso que cercam as Teorias das Relações Internacio- nais positivistas, mesmo quando procuram falar do outro, trazem a normatividade e a centralidade do pensamento masculino. Seria necessário, assim, a construção de uma visão genuinamente do lugar de fala do outro, da mulher, dos pobres, do mundo em desenvolvimento e dos excluídos, nas Relações Internacionais. Apenas aí poderíamos realmente enxergar um mundo diferente, a partir de lentes não masculinas. O papel das Teorias Feministas das Relações Internacionais é, portanto, independentemente de suas epistemologias e metodologias particulares, construir uma visão das Relações Internacionais a partir de uma visão de gênero. O gênero para o feminismo não é, portanto, uma categoria empírica, biológica – masculino x feminino, mas sim uma categoria analítica e socialmente construída. Ao mesmo tempo em que nossas estruturas sociais associam atributos positivos e uma po- sição de poder à masculinidade, atributos femininos são associados àqueles que são objeto desse poder, isto é, não estamos falando apenas das mulheres do ponto de vista biológico, mas também dos dominados, dos explorados, dos oprimidos, dos colonizados, das minorias. As vítimas do poder (político, econômico, militar) masculino são feminilizadas. O ho- mem colonizado, o homem vítima da exploração, é desconstituído de sua masculinidade, é feminilizado. A categoria do feminino, portanto, é a das vítimas, daqueles que não são objeto do poder (masculino).Uma das primeiras obras a propor uma análise feminista de um tema central das Relações Internacionais, a guerra, é da teórica norte-americana Jean Bethke Elshtain (1941-2013) com a obra Women and War (1995 [1987]). Na obra, parte relevante da história belicista humana é revista, confrontando as narra- tivas masculinas consagradas com perspectivas não convencionais que reconstroem como as mulheres apreendem o sentido desses conflitos, suas visões, seus papéis, muito dife- rentes de meras vítimas ou de suporte ao homem protagonista. Não somente a perspectiva masculina sobre a guerra, mas a própria ideia masculina de segurança é contestada pelo feminismo. O que é segurança afinal? E talvez, mais importante, a quem serve a segurança? Segurança para quem? São algumas das perguntas levantadas pelas interpretações feministas. Quando as teorias positivistas das Relações Internacionais falam em segurança, em geral e de forma quase inescapável, estão abordando exclusivamente a segurança do Estado contra um inimigo externo. 19 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo Garantir a segurança seria, portanto, necessário para garantir a sobrevivência do Estado e, como consequência, a segurança e a posição daqueles que exercem o poder no Estado e na Sociedade, os homens. Mas o que essa segurança do Estado, do poder masculino, representa para os explo- rados e oprimidos dentro do Estado? A pobreza, a falta de saneamento básico, a falta de acesso à Educação, a violação de direitos humanos, a degradação ambiental, as disparidades e a discriminação de gênero e de minorias não comprometeriam, também, a segurança e a vida dos cidadãos? Não seriam tão ou, inclusive, mais importantes do que a segurança do Estado contra uma agressão externa? Explorando essas questões em um ambiente de transformações estruturais do Sistema Internacional pós-guerra fria, podemos destacar o trabalho da teórica norte-americana Cynthia Enloe, cuja obra mais influente é Bananas, Beaches, and Bases (2014 [1990]). Enloe procura reconstruir a narrativa sobre o funcionamento de aspectos que temos como dados do mundo moderno, da diplomacia e do poder militar, ao turismo e à força de trabalho feminina. As lentes de gênero de Enloe na obra enfocam sete áreas que conectam a política doméstica e a internacional: diplomacia, nacionalismo, poder/bases militares, turismo e a força de trabalho preponderante feminina em três setores – agricultura, produção têxtil e serviços domésticos. Enquanto o equilíbrio ou a estabilidade, ideias em si masculinas, do Sistema Interna- cional estão ligados à estabilidade dos atributos políticos e militares dos Estados, esses próprios atributos dependem de comunidades domésticas estáveis. Por sua vez, as bases dessas comunidades militares e políticas são mantidas e geridas pelas mulheres: esposas, namoradas, prostitutas e outras figuras. Seja em casa, seja nas bases militares, as mulheres proveem o suporte necessário aos homens em suas Campanhas Militares e são a base da comunidade que permite o exercício e a projeção externa do poder masculino. Já do ponto de vista econômico, as mulheres estão em ambas as pontas das ca- deias produtivas. Na figura de consumidoras, são disputadas e almejadas pelo Mercado. Na roupagem de operárias, desempenham funções que estão na base da Economia, respondendo pela maior parte da força de trabalho em Setores como a agricultura e a produção têxtil, além de desempenharem o papel virtual de únicas provedoras de serviços domésticos – servindo de mantenedoras das unidades básicas do Capitalismo moderno, as famílias burguesas patriarcais. Até mesmo na indústria do entretenimento e, em especial, no turismo internacional, a figura feminina é utilizada e explorada como produto de consumo para vender viagens e, não raro, a exploração sexual direta que enseja a dominação masculina. As mulheres seriam, portanto, os pilares que sustentam o comércio internacional e as relações políticas e militares entre os Estados. 20 21 Teoria Queer O termo Teoria Queer remete ao jargão “queer” que, em Língua Inglesa, era utili- zado para designar a comunidade homossexual na década de 1980 e 1990. Enquanto o termo gradativamente foi perdendo a maior parte de sua conotação negativa e se popularizando, do ponto de vista acadêmico, a ideia de uma Teoria Queer nas Ciências Humanas e Sociais seria cunhada no ano de 1990. Figura 4 Fonte: Getty Images Foi a historiadora e teórica do cinema italiana, radicada nos EUA, Teresa de Lauretis, em uma conferência na Universidade da Califórnia, naquele ano, quem propôs o conceito. Mais tarde, os Anais dessa Conferência seriam publicados em uma edição especial da Revista Acadêmica Differences (1991), tornando-se referência para a denominação dessa perspectiva particular das ciências humanas e sociais em geral. No campo da Teoria das Relações Internacionais o reconhecimento da Teoria Queer como uma perspectiva legítima de interpretação da Política Internacional é bastante tardio. Essa perspectiva ganha maior abertura na Academia e penetração apenas a partir do início do século XXI. O que não quer dizer que não houvesse teóricos no campo produzindo a partir dessa perspectiva pluralista (SJOBERG; WEISSMAN, 2016). Podemos apontar como exemplo, nessa direção, os trabalhos da internacionalista norte-americana Spike Peterson ao longo dos anos 1990, os quais a tornariam uma das principais referências contemporâneas nessa perspectiva. Marcos importantes do pensamento de Peterson e da Teoria Queer nas Relações Internacionais estão em sua obra de 1993 Global Gender Issues (PETERSON, RUNYAN, 1999), reeditada no ano de 2010 sob o título de Global Gender Issues in the New Millennium (PETERSON, RUNYAN, 2014), bem com o artigo Sex Matters: A Queer History of Hierarchis (2014). A Teoria Queer das Relações Internacionais revisita o programa feminista e absorve dele a ideia de que o gênero é uma categoria analítica nas Relações Internacionais. No entanto, a própria perspectiva feminista estaria presa à armadilha da construção das narrativas masculinas do mundo e da Política Internacional. A própria ideia de que o gênero seja uma categoria binária que divide o mundo em masculino e feminino é, em si própria, uma construção masculina (THIEL, 2018). 21 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo O feminismo não poderia, portanto, libertar-se dessas amarras que cerceiam formas pluralistas de se ver e compreender a realidade que nos cerca a partir da operacionalização analítica de um conceito construído pela própria normatividade masculina. Dessa forma, para a Teoria Queer, não apenas o papel do masculino e do feminino são socialmente construídos, mas a própria identidade de gênero é uma construção social e não está restrita ao binarismo biológico macho-fêmea imposto pela normatividade masculina. O gênero não seria, portanto, uma categoria binária, mas sim pluralista, o que abre a possibilidade de diferentes formas de se ver o mundo, como a partir de perspectivas lésbicas, gays, bissexuais, transgênero ou até mesmo assexuais. Para dar lugar de fala a cada uma dessas perspectivas, não podemos reduzir todos a perdedores, vítimas e oprimidos. O fato de fazê-lo cerceia por si só sua diversidade e visões de mundo distintas. De forma mais geral, com maior ou menor ênfase, as perspectivas queer procuram apontar e desconstruir também outros binarismos das categorias sociais, construídos pela mesma estrutura de poder masculina. Assim, devem ser quebradas as aparentes oposições não apenas entre categorias de gênero (masculino – feminino), mas também de sexualidade (heterossexual – homossexual), raça (branco – não branco) e classe (rico – pobre), dentre outras. A sexualidade, portanto, não é uma questão privada, mas sim pública, e parte de uma construção social. Na verdade, todas essas categorias seriam amarras que gessam até mesmo a forma como nóspensamos e compreendemos o mundo e a nossa própria identidade nele, reproduzindo uma estrutura de poder masculina. Teoria Crítica A Teoria Crítica é a abordagem da Política Internacional que melhor representa a fronteira epistemológica entre o Modernismo, representado pelo Positivismo, e o Pós-modernismo. Figura 5 Fonte: Adaptada de Freepik 22 23 Da mesma forma que as demais perspectivas epistemológicas pós-positivistas abordadas nesta Unidade, a Teoria Crítica pretende superar o Positivismo como paradigma domi- nante da Ciência, ao mesmo tempo em que não abandona a possibilidade de produção de conhecimento científico sobre o mundo, a partir de novas bases epistemológicas. Em grande medida, a Teoria Crítica está associada ao desenvolvimento da chamada Escola de Frankfurt, ligada ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, a partir da década de 1930, sendo os principais expoentes da escola os filósofos e sociólogos alemães Herbert Marcuse (1898 – 1979), autor dentre outros de Eros e Civilização (2017 [1955]) e O Homem Unidimensional (2015 [1964]) e, mais tarde, Jurgen Habermas (1929) com uma obra bastante prolífica da qual destaca-se, para nossos propósitos aqui, Teoria da Ação Comunicativa (2012 [1981]). Embora intimidante, ligada ao Marxismo ou Neomarxismo em seu nascedouro, as pos- tulações pós-positivistas da escola e o desenvolvimento de uma epistemologia própria, que fundiria também bases kantianas, não permite sua redução às perspectivas neomarxistas contemporâneas, que retém sua vinculação ao positivismo em sua adoção do materialismo histórico e na sua dialética. Contrariamente aos pressupostos positivistas, adeptos dessa linha de interpretação teórica assentam suas construções na premissa de que os fatos, conceitos e as próprias Teorias não podem ser dissociados dos valores, crenças e ideias. Para eles, o que vemos, ou melhor, o que escolhemos ver e/ou medir, bem como os métodos que empregamos para isso, fazem parte de uma construção humana. São dependentes, portanto, da percepção e de processos cognitivos influenciados, por sua vez, por entendimentos e significados anteriores à própria observação dos fenômenos. Dessa forma, a própria linguagem que utilizamos para construir nossas explicações sobre o mundo é parte integrante da cultura na qual estamos inseridos e constitui um con- junto de signos ou significados indissociável dos valores dela. O que escolhemos observar, seja nas Ciências Naturais ou nas Ciências Humana e Sociais, é orientado pela compreensão e pela interpretação que temos dos próprios conceitos, a Linguagem, que utilizamos. Assim, a explicação oferecida para os fenômenos em uma construção teórico-inter- pretativa positivista que estabelece relações causais entre variáveis, depende do próprio contexto cultural no qual os agentes estão inseridos. A pretensão positivista de uma unificação de todo o conhecimento em bases empí- ricas, neutras e universalistas, portanto, é apenas parte da cultura na qual as práticas “científicas” no campo estão inseridas. Indo ainda mais longe, correntes da Teoria Crítica postulam que as próprias crenças e valores dos teóricos constituem vieses insanáveis de qualquer explicação sobre a reali- dade que, em geral, ensejam parte de esquemas ideológicos para legitimar um deter- minado arranjo social. No campo oposto, teorias contra-hegemônicas, ou seja, que se opõem a essas ordens particulares, da mesma forma procuram estabelecer ideologias alternativas para justificar outros arranjos. 23 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo Dessa forma, a Teoria Crítica não rejeita completamente a Ciência ou o Método Cientí- fico, mas sim um modo particular de produção do conhecimento, o Positivismo. Portanto, quaisquer afirmações teóricas sobre o mundo devem ser submetidas a intenso escrutínio. Um dos principais objetivos da Teoria Crítica seria desmascarar os significados mais profundos escondidos nas Teorias, revelando enganos, interesses ou ideologias aos quais elas serviriam. O poder é, consequentemente, um elemento pervasivo da construção social e da própria prática científica. De forma semelhante às demais perspectivas pós-positivistas, a Teoria Crítica devotará foco privilegiado à compreensão do conceito em sua relação com aquelas que o exercem. A Teoria Crítica, como as demais perspectivas pós-positivistas discutidas nesta Uni- dade, deve ser vista separadamente do pós-modernismo, porque a maioria dos teóricos críticos utiliza critérios metodológicos formais na produção de suas análises sobre a Política Internacional. Não obstante, determinadas correntes se sobrepõem ou podem ser entendidas, de forma mais ampla, como parte de uma compreensão pós-moderna. No campo da Teoria das Relações Internacionais, a Teoria Crítica tem no cientista político canadense Robert Cox (1926-2018) um de seus principais expoentes. São referências do pensamento no campo a obra Production, Power and World Order (1989 [1987]) e o Artigo Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory (1981). De acordo com Cox, as Teorias são sempre para alguém e para algum propósito. Não há teoria fora de seu contexto social de produção no tempo e no espaço. A neutra lidade científica não passa, portanto, de discurso. O papel da Teoria Crítica nas Relações Internacionais é o de desnaturalizar ou des- construir as explicações tradicionais sobre a Política Internacional, ressaltando os as- pectos sociais e humanos de sua construção. Os fenômenos observados na vida política e social não são naturais e nem decorrem de forças imutáveis. O papel da Teoria Crítica seria apontar, assim, as alternativas à ordem vigente e desmascarar seus discursos. Isso não quer dizer que, em oposição a uma Ciência Positivista não neutra, a própria Teoria Crítica pretenda ser neutra. Isso é uma impossibilidade em si para essa perspec- tiva. Toda Ciência é engajada. Não existe neutralidade. Por essa razão, os pressupostos sobre os quais se assenta o Processo de Construção Teórico-interpretativa devem ser expostos com transparência e expostos à crítica. A Teoria Crítica pretende construir não apenas uma alternativa de discurso, mas, com base nele, uma ordem social alternativa. É nesse ponto que a Teoria abandona a pretensão de organização social comunista- -marxista em prol de uma posição kantiana. Uma ordem social ética e justa é possível e seu objetivo deve ser a emancipação dos seres humanos, desatando as amarras de poder socialmente construídas, no pleno do- méstico e internacional, que impedem a plena fruição da liberdade humana e de sua capacidade de autodeterminação de seu destino. 24 25 De acordo com Cox, para desconstruir o discurso sobre a ordem e a própria ordem internacional, é preciso compreender que existem três forças que interagem para pro- duzir essa ordem ou estrutura: materiais, ideacionais e institucionais. As forças materiais são representadas pelas capacidades materiais ou produtivas. Por sua vez, as ideacionais são formadas pelas ideias, hábitos, cultura e significados intersubjetivos definidos socialmente. Por fim, as forças institucionais dizem respeito à institucionalização da ordem criada pelas forças materiais e ideacionais. As Instituições, em sentido sociológico similar ao da Teoria Neoliberal, são responsáveis por estabilizar ou cristalizar relações de poder e de privilégio construídas a partir de imagens coletivas sobre o mundo. Essas forças se codeterminam mutuamente. Assim, a ordem mundial, ou ordens mundiais em uma perspectiva histórica, dependem das forças sociais (materiais e idea- cionais) e das instituições, especialmente, das formas de Estados. Alterações da ordem implicam alterações estruturais nesses elementos componentes. Na ordem internacional, a hegemonia é, então, caracterizada como um processo code- terminado pelo poder, pela ideologia e pelas Instituições. Nenhuma dessas dimensões pode explicarsozinha a ordem, como pretendem, por exemplo, (neo)realistas, liberais e neoliberais, respectivamente. 25 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Bananas, Beaches and Bases ENLOE, C. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Po- litics. USA: University of California Press, 2014. (e-book) Global Gender Issues in the New Millennium PETERSON, S; RUNYAN, A. S. Global Gender Issues in the New Millennium. USA: Westview Press, 2014. (e-book) Production, Power and World Order: Social Forces in the Making of History COX, R. W. Production, Power and World Order: Social Forces in the Making of History. USA: Columbia University Press, 1989. (e-book) Teoria Social da Política Internacional WENDT, A. Teoria Social da Política Internacional. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014. Filmes Mera Coincidência (Wag the Dog) Em meio a um processo eleitoral, o presidente norte-americano é envolvido em um escân- dalo sexual. Para desviar a atenção social sobre ele, um especialista em situações de crise decide fabricar uma guerra na Albânia. O filme ilustra bem a visão construtivista estrutu- ralista, demonstrando como identidades, interesses e instituições são intersubjetivamente constituídos (WEBER, 2005); https://youtu.be/thdZ_VOlN3I Atração Fatal (Fatal Attraction) É contada a história sobre um relacionamento extraconjugal, heterossexual, que se dete- riora com graves consequências. O que talvez passe despercebido para a maior parte da audiência é a premissa oculta do filme sobre o risco do gênero para a organização social, simbolizada no filma pela família tradicional. O protagonista e a audiência só podem escapar a esse risco negando à “perseguidora” sua posição de gênero e a colocando “em seu lugar” na ordem social. O gênero não pode ser isolado de como alguém vê o mundo e das identidades dos atores no mundo (WEBER, 2005); https://youtu.be/sh02ZsuajX0 A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl) Assistimos à vida de um casal heterossexual de artistas em que, a partir de determinado momento, o parceiro masculino começa um processo transgênero, até finalmente realizar uma cirurgia de redesignação sexual. Mais tarde, o casal se torna um triângulo amoroso. O drama chama nossa atenção para o papel fluído das identidade e, além de ressaltar que o gênero é uma variável chave para a definição das identidades sociais, ajuda a quebrar a pretensão de uma visão binária dele; https://youtu.be/vjq2FgjpXow 26 27 Fahrenheit 11 de Setembro (Fahrenheit 9/11) Nesta obra documental, é explorado o discurso construído pelo governo norte-americano do então presidente americano George W. Bush em relação à guerra do Iraque e Afeganistão, além da atuação da administração Bush durante os incidentes do 11 de Setembro. É um lembrete, em sintonia com uma perspectiva crítica, de que as TEORIAS e o discurso servem a alguém e a algum objetivo, em especial àqueles em posição de poder. https://youtu.be/yg-be2r7ouc 27 UNIDADE O Quarto Debate nas Relações Internacionais e o Pós-Positivismo Referências BENNEYWORTH, I. J. The Great Debates in international relations theory, E-International Relations, may 20, 2011. Disponível em: <https://www.e-ir.info/ pdf/8821>. Acesso em: 20/01/2021. COX, R. W. Production, Power and World Order: Social Forces in the Making of History. USA: Columbia University Press, 1989. (e-book) COX, Robert W. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory, Millennium, Canada, v. 10, n. 2, p. 126-155, 1981. DIFFERENCES. Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities – Special Issue, Differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, United States, v. 3, n. 2, 1991. DUNNE, T; HANSEN, L; WIGHT, C. The end of International Relations theory?, European Journal of International Relations, United States, v. 19, n. 3, p. 405-425, 2013. ELSHTAIN, J. B. Women and War. Chicago: University of Chicago Press, 1995. (e-book) ENLOE, C. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. USA: University of California Press, 2014. (e-book) HABERMAS, J. Teoria do Agir Comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012. HUSSERL, E. A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental: Uma Introdução à Filosofia Fenomenológica. São Paulo: Forense Universitária, 2012. KURKI, M. Causation in International Relations: Reclaiming Causal Analysis. UK: Cambridge University Press, 2008. LESSA, M. L; GONÇALVES, W. S (org.). História das Relações Internacionais: Teo- ria e Processos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007. MARCUSE, H. Eros e Civilização: Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. São Paulo: LTC, 2017. (e-book) ________. O homem unidimensional: Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015. (e-book) PETERSON, S. Sex Matters: A Queer History of Hierarchies, International Feminist Journal of Politics, London, v. 16, n. 3, p. 389-409, 2014. ________; RUNYAN, A. S. Global Gender Issues in the New Millennium. USA: Westview Press, 2014. (e-book) ________. Global Gender Issues. USA: Westview Press, 1999. (e-book) RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. SJOBERG, L; WEISSMAN, A. L. The Queer in/of International Relations. In: JAMES, P. Oxford Bibliographies in International Relations. Nova Iorque: Oxford University Press, 2016. (e-book) 28 29 THIEL, M. Introducing Queer Theory in International Relations, E-International Relations. jan. 7, 2018. Disponível em: <https://www.e-ir.info/pdf/72252/>. Acesso em: 20/01/2021. WEBER, C. International Relations Theory: A critical introduction. 2.ed. USA: Routledge, 2005. (e-book) WENDT, A. Anarchy is what States Make of It: the Social Construction of Power Politics. International Organization, New York, v. 46, n. 2, p. 391-425, 1992. WENDT, A. Teoria Social da Política Internacional. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014. 29
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