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Este e-book faz parte do programa #GWindica. Esse material é destinado para uso pessoal e sua reprodução é proibida por qualquer meio ou formato. O chapéu do Mago - Italo Marsili Impresso no Brasil. 1a edição, Novembro de 2020. Os direitos desta edição pertencem a WRL Cursos e Eventos LTDA. Av. Brasil 6141, sl. 2 - Zona 05 CEP: 87.015-280 - Maringá, PR Telefone: (44) 99129-9578 E-mail: italo@italomarsili.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M372c. Marsili, Italo. O chapéu do Mago / Italo Marsili - Maringá, PR: Real Life Books, 2020. 288 p. ISBN: 978-65-87926-19-3 I. Titulo II. Marsili, Italo CDD 150 / 155.25 / 158.1 Índices para Catálogo Sistemático: 1. Psicologia - 150 3. Auto-ajuda: Aperfeiçoamento pessoal - 158.1 Editor Luíza Monteiro de Castro Dutra Araujo Direção Geral Arno Alcântara Revisão Raíssa Prioste Matheus Bazzo Capa Vicente Pessôa Diagramação: Gabriela Haeitmann Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa da editora. SUMÁRIO Introdução ............................................................. 6 O mago ..................................................................... 24 A papisa ..................................................................... 92 A imperatriz ......................................................... 136 Mitos gregos e exílio interior ............... 196 Culpa existencial e fracasso .....................232 Posfácio ..................................................................285 INTRODUÇÃO 7 A quem este livro se dirige Não escrevi este livro exclusivamente para psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, terapeutas e coaches, mas também para leigos — pois Psicologia é um assunto tão interessante e necessário, que não deveria ser propriedade exclusiva dos profissionais da área. Conhecer Psicologia pode equipar qualquer pessoa mini- mamente interessada e capaz com um ferramental que lhe per- mitirá olhar com mais atenção para suas relações, seu mundo interior, seus projetos, enfim, para sua instalação no mundo. Além disso, muitas pessoas fazem terapia sem conhecer mi- nimamente a linha a que estão sendo submetidas, nem a visão de mundo de seu terapeuta, nem mesmo o que ele pretende com aquilo que está fazendo no setting terapêutico. Eu quero que os leigos — façam eles terapia ou não — também conhe- çam um pouco sobre as escolas de Psicologia Contemporânea, sobre as principais linhas terapêuticas. 8 Mas não só. Ao longo deste livro, farei constantes remissões às tradições hermética, simbólica e filosófica, de modo a sem- pre acrescentar referências que, infelizmente, são desconheci- das pelos homens de nosso tempo. Não estranhe, portanto, se topar com menções a Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino; sem eles você definiti- vamente não entenderá nada de Psicologia. Uma abordagem simbólica da Psicologia Eu poderia começar um curso de Psicologia de várias manei- ras; uma delas seria pela apresentação da História da Psicologia. Esta seria uma abordagem sem dúvida muito interessante, já que todos os elementos históricos são bastante envolventes. Quando uma história é bem contada, os ouvintes ou leitores conseguem entrar no cenário, examinar seus detalhes e deixar-se encantar pela vida dos homens, por seus feitos e pensamentos. Eu poderia, ainda, fazer uma abordagem técnica. De fato, ao longo deste livro, falarei de técnica várias vezes. Mas não é minha pretensão começar de nenhuma dessas duas maneiras. Optei pela via simbólica. Um eixo simbólico lhe permitirá compreender, em linhas gerais, o que entendo por Psicologia e como ela pode se transformar em uma ferramenta muito útil para que psicólogos e psiquiatras auxiliem seus pa- cientes — e as pessoas em geral auxiliem a si mesmas e aqueles com quem convivem. Se vou seguir pela via simbólica, será necessária uma matriz simbólica, e são inúmeros os edifícios simbólicos aos quais é possível recorrer. Eu poderia fazer uma Psicologia a partir das Sete Moradas de Santa Teresa D’Ávila (e não seria difícil); ou a partir das centúrias de Máximo, O Confessor; ou a partir dos trinta degraus de São João Clímaco; ou ainda a partir da sepa- ração prismática das cores do arco-íris. Se eu usasse, todavia, um dos exemplos citados, a coisa ficaria muito desconectada da compreensão dos homens de hoje. INTRODUÇÃO9 Por isso, o fio condutor simbólico que escolhi para este livro é o Tarô. Por que o Tarô? Sim, o Tarô. E você deve estar se perguntando por que, dispondo de tan- tas outras opções, eu escolhi justamente o Tarô. Eu o fiz, porque o Tarô é um fio condutor simbólico ma- ximamente profundo, que simboliza realidades complexas e difíceis — como veremos mais adiante — e que, assim como a Astrologia e a Alquimia, foi uma ferramenta amplamente utilizada pelos psicólogos contemporâneos de maior reno- me. Todo o edifício junguiano e uma boa parte do edifício freudiano (para não dizer todo ele) baseiam-se na simbólica dessas ciências ocultas. Portanto, se o sujeito que se interessa por Psicologia não conhece nem entende a base teórica des- sas ciências, ele não entenderá a própria técnica da Psicologia. Ter um conhecimento mais aprofundado sobre o ocultismo é necessário ao interessado e ao estudioso de Psicologia, seja ele já profissional ou ainda acadêmico em formação. Existem materiais realmente bons sobre a Gramática As- trológica (que não são necessariamente materiais de formação para que você aprenda a ser um astrólogo). No entanto, sobre o Tarô há pouquíssimos materiais que se pode levar a sério, em- bora tanto ele quanto a Alquimia tenham sido muito usados por Jung no desenvolvimento de seu edifício teórico. O Tarô se divide em 78 Arcanos — ou chaves de compre- ensão —, sendo 22 Arcanos Maiores e 56 Arcanos Menores. Disso derivam muitas coisas da Psicologia de hoje, como a ne- cessidade da terapia, a necessidade de um diário, como fazer para conhecer-se a si mesmo, o que é o eu, o que é o ego... E por aí vai. Aqui, importam-nos os 22 Arcanos Maiores, que serão as nossas chaves de compreensão. É como se houvesse um kit de ferramentas com 22 chaves, e cada uma delas fosse usada para 10 abrir certa realidade do mundo, oferecendo a nós a oportuni- dade de compreendê-la. Os 22 Arcanos Maiores contam a história de qualquer ini- ciativa humana, partindo do início, até o final (quando ocorre o domínio dessa iniciativa humana sobre o mundo). A pretensão do Tarô é apresentar essas chaves para que você compreenda verdades ocultas ou difíceis de ver. O maior sofrimento do nosso tempo é a perda de um cer- to olhar, é uma dificuldade de ver as coisas fundamentais. Na língua árabe, a expressão “ser humano” (insan) significa “aquele que se esquece”; mas se esquece não de qualquer coisa senão somente daquilo que é fundamental. Pagar boletos e pegar os filhos no colégio são coisas das quais não nos esquecemos habitualmente. Elas ficam registradas num lugar muito periférico do nosso eu; sempre pedem para retornar e, como estamos constantemente voltando a lhes dar atenção, jamais nos esquecemos delas. Por outro lado, esquecemo-nos do fundamental, como, por exemplo, de fazer as perguntas bá- sicas que vão nos orientar neste mundo: “De onde vim?”, “Para onde vou?”, “O que se espera de mim?”, “Quem sou eu?”, “De que sou feito?”. Dessas coisas a gente se esquece a todo instante. A primeira coisa que os Arcanos Maiores pretendem é cha- mar-nos a atenção para aquilo que é fundamental. Eles exis- tem para nos lembrar daquelas verdades fundamentais de que, habitualmente, nos esquecemos. Os Arcanos — e o Tarô como um todo — fazem parte de uma grande tradição que subsistiu ao longo dos séculos até a contemporaneidade, sobretudo na França. A Europa ainda é um lugar no qual se faz ciênciacom essa sabedoria; lá existe toda uma tradição simbólica, chamada Hermetismo, que tenta conservar esse olhar profundo para o mundo a partir da ciên- cia do Tarô. O Hermetismo é fundamental para entendermos tudo o que se faz na Psicologia Contemporânea: sem ele, não há compreensão possível dela. No Ocidente, há escolas de sabedoria simbólica que pre- tendem manter vivos esses símbolos no imaginário do homem. INTRODUÇÃO11 Como disse, uma dessas escolas é o Hermetismo, e o Tarô é uma ferramenta que condensa uma série de saberes herméticos. Precisamos falar do Tarô, porque toda a Psicologia Con- temporânea se baseia nele. Você sabia que Sigmund Freud, por doze anos, jogava Tarô todas as quartas-feiras para seus pacientes? Sua finalidade era res- ponder a uma pergunta: “Existe liberdade, ou meus pacientes estão condicionados pelo saber dos Arcanos, pelo saber das lâminas do Tarô?” Ele tinha esse olhar simbólico. Também, pudera: é dali que vem boa parte de seu edifício teórico, conceitual, prático e técnico. Muita gente também desconhece que Freud estava imerso em uma literatura de satanismo judaico; ele bebia da tradi- ção mística judaica. No fantástico livro “Sigmund Freud and the Jewish Mystical Tradition” (“Freud e a Tradição Mística Judai- ca”), ainda sem tradução para o português, David Bakan apre- senta a conversa de Freud com a literatura espiritual satânica e angélica dos judeus. Freud estava imerso nessa tradição e, se não voltarmos nos- so olhar para isso também, jamais entenderemos a Psicologia Contemporânea. Um aviso aos religiosos que se escandalizam com o Tarô Em nosso tempo, quando se fala em Tarô, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas é aquela ferramenta prática que as cartomantes utilizam para fazer previsões, como um oráculo divinatório. Vê-se o tarólogo ou a cartomante como alguém que se procura para ler o futuro; como se a sorte de cada um estivesse disposta naquelas cartas e como se, a partir de uma consulta, você pudesse entender o que vai lhe acontecer. Esse tipo de prática atenta contra a liberdade humana, é puro determinismo; e é por isso que várias tradições religio- sas condenam que se recorra não só ao Tarô, como também à Astrologia ou a quaisquer outros meios, se usados como ferra- mentas para prever ou adivinhar o futuro. 12 Há, por exemplo, uma prescrição no livro bíblico de Deu- teronômio reprovando práticas como a adivinhação e a comu- nicação com os mortos: “Não se ache no meio de ti quem faça passar pelo fogo seu filho ou sua filha nem quem se dê à adi- vinhação, à astrologia, aos agouros, ao feiticismo, à magia ou à invocação dos mortos, porque o Senhor, teu Deus, abomina aqueles que se dão a essas práticas.” (Dt 18, 10-14). A conde- nação de práticas divinatórias repete-se em várias passagens do Antigo Testamento (Lv 19, 31; Lv 20, 6; 2Rs 17, 17). De fato, não só a tradição judaico-cristã em que estamos inseri- dos, como também outras tradições religiosas condenam tais práticas. Por essa razão, católicos e evangélicos não deveriam recorrer à cartomancia, ou seja, ao uso de baralhos como o Tarô para fazer adivinhação. Contudo, eu lhe pergunto: você sabe realmente o que é o Tarô? Você alguma vez viu ou fez um curso sério sobre o Tarô? Você sabe qual é a explicação real das lâminas do Tarô? Aposto que não. O Tarô é um jogo. E, embora haja quem se utilize dele para adivinhar coisas (assim como fazem com borra do café ou bú- zios), o Tarô não se presta a isso — ele definitivamente não é um sistema de adivinhação. Portanto, quando uma pessoa usa o Tarô para adivinhar coi- sas, o problema está nela, que está buscando uma resposta fechada para um problema real. Ela está aceitando ser governada pela pretensa resposta oferecida por um punhado de cartas. A mu- lher que pergunta à cartomante, por exemplo, se encontrará um namorado esperando que as cartas respondam, está, afi- nal, deixando-se submeter por um poder tirânico. A prescrição “contra o Tarô” e “contra a Astrologia” (entre mil aspas) é, de certo modo, como a prescrição para que você não cometa a es- tultice de se submeter a um poder tirânico deste mundo. Se você, evangélico ou católico, quer atirar as lâminas do Tarô na fogueira da Inquisição, atire antes os tiranos que lhe estão mais próximos: seus vícios e más inclinações. Esses são os primeiros tiranos da nossa vida. Com o mesmo ódio, raiva e INTRODUÇÃO13 petulância com que você fala sobre Tarô e Astrologia, levante-se contra os tiranos do seu interior; depois, contra os tiranos po- líticos e sociais — jamais apoie, por exemplo, regimes tirânicos, como os comunistas. Submeter-se a uma tirania implica a perda da individua- lidade. Fomos feitos para nos individualizar maximamente, para dizermos “Eu sou”; mas todo regime tirânico nos tira essa possibilidade. A cosmovisão hegeliano-marxista consiste jus- tamente em anular essa individualização, como dizendo a todo ser humano: “Você não tem uma identidade. Ou você é proletário, ou é burguês. Funda-se a essa visão de mundo bipartida, dual.” Não há maior tirania do que essa. Se, portanto, existem condenações às práticas divinatórias, é porque elas, como os regimes tirânicos, acabam por anular o indivíduo e impedi-lo de dizer “Eu sou”, escravizando-o. Veja como, para os cristãos, isso é fatal: é a anulação da liberdade e da individualidade que o próprio Deus deu aos homens. Porém, tenha em mente que condenar a adivinhação não significa absolutamente condenar as lâminas do Tarô e as rea- lidades simbólicas nelas implicadas. De todo modo, neste livro, eu não vou lhe ensinar a jogar Tarô. Nem mesmo falarei sobre a disposição das lâminas na mesa divinatória, mas apenas sobre os símbolos inscritos nas lâminas do Tarô. É isso o que nos interessa aqui. Símbolo e Alegoria Se você olha para uma lâmina de Tarô, dela deduz um monte de coisas e nela projeta sua visão de mundo, saiba que isso é impróprio: é o que se faz com alegorias, não com símbolos. Mas qual a diferença entre símbolo e alegoria? Vou dar um exemplo de alegoria: eu, Italo Marsili, ser hu- mano, dotado de uma certa capacidade intelectual e de uma certa observação, posso, a partir dessa minha observação e des- sa minha capacidade intelectual, projetar numa tela em branco 14 uma série de símbolos. Em regra, as obras de arte são alegóricas: o artista observa a realidade e, com base nela, faz uma pintura, uma escultura, etc. Ele registra algo que está em sua cabeça de tal modo que, quando você olha para a obra, tem a intuição de que o artista tinha certa visão específica da realidade. Alegorias são geralmente construídas a partir de uma concepção frag- mentada que o artista tem de um evento qualquer. As grandes pinturas a que temos acesso, em geral, são ale- góricas. Dito de outro modo, se você vai a um museu e observa uma obra, você de fato fica mais inteligente, porque, em tese, o artista é um sujeito inteligente que deixou registrada uma im- pressão memorável. Por ter uma inteligência acima da média, ele viu uma fração da realidade do mundo sob certo ângulo, que você sozinho não observaria, e registrou essa impressão. Ao olhar para aquele quadro, portanto, é como se você, por um instante, pudesse ver a realidade com os olhos do pintor, sob o mesmo ângulo. A uma pessoa sensível e calma, o que a apreciação artística faz é deixá-la mais inteligente. A contemplação de obras de arte maravilhosas, além de lhe colocar diante da Beleza, trans- mite-lhe algo a mais: uma fração da inteligência do artista. Ao assistir a uma peça teatral como “Hamlet”, de Shakespe- are, você notará nas cenas movimentos da vingança e da inveja que foram percebidos pelo próprio Shakespeare. Isso, por si só, já fará com que você fique um pouco mais inteligente. Algo entra em você — e entra porque seus olhos viram alguma coisa. Só entra no coração aquilo que passa pelos olhos, mas o olhar do homem tosco, do homem vulgar (que, em regra, é o nosso...) é um olharpobre. Por outro lado, o olhar dos grandes artistas, dos grandes filósofos, dos grandes místicos, dos gran- des práticos, é um olhar já polido — e é disso que trataremos ao falar da Papisa, a segunda lâmina do Tarô. A arte como um todo é, via de regra, alegórica, mas não pense que a alegoria é ruim! Ela é algo de maravilhoso, mas você pre- cisa ter consciência de que ela comunica apenas uma fração da realidade, uma fração capturada pela inteligência de um homem concreto. O artista registra uma fração daquilo que ele percebeu. INTRODUÇÃO15 Se você entrar, por exemplo, na Basílica de São Pedro, um gran- de repositório de Artes, perceberá que sua manifestação artística é, sobretudo, alegórica. Gian Loren- zo Bernini é o grande artista da Basílica de São Pedro; há ali, em toda a parte, alguma de suas ma- nifestações artísticas. Dentro da Basílica, há um mo- numento funerário específico que serve de túmulo para o Papa Ale- xandre VII. Ele é formado por um lindo batente em mármore rosa, maravilhosamente esculpido e poli- do, do qual emerge um esqueleto de bronze segurando uma ampulheta. Quem quer que ali entre, pre- cisa se abaixar (uma vez que o ba- tente é baixo), como quem faz uma reverência para algo. Mesmo o sacerdote, todo paramentado para celebrar o santo sacrifício da Mis- sa, é obrigado a fazer essa vênia ao passar por ali. A vênia é uma ma- nifestação de respeito natural para quando se está diante de alguém ou algo que é grande e majestoso. Ao abaixar-se naquele lugar, faz- -se uma vênia — ainda que invo- luntariamente — para a figura de um esqueleto de bronze que segura uma ampulheta na mão (que é uma alegoria da passagem do tempo). Ali, Bernini projetou arquiteto- nicamente sua visão sobre a mor- te: mesmo o sacerdote tem de se curvar perante ela. 16 A maioria das pessoas que passa por esse monumento fune- rário, no entanto, não se dá conta desses detalhes. Em grande parte, isso se dá porque elas passam por ali apressadas, desa- tentas e agitadas — e compreender uma alegoria exige atenção, reflexão e, muitas vezes, uma explicação. Por uma razão seme- lhante, entender uma tragédia de Shakespeare, como “Hamlet” ou “Otelo”, é uma tarefa difícil para a maioria das pessoas. Jorge Luis Borges, escritor argentino, disse que, para en- tender um livro, é preciso ter lido muitos outros. Para você ler e entender um livro, é preciso que várias pessoas tenham lhe dado explicações sobre o conteúdo dele; caso contrário, você não o entenderá. Esse é um princípio da alegoria; ela precisa ser explicada por alguém. Ninguém precisou me explicar a alegoria do batente de Bernini, mas eu, ainda assim, consegui captá-la. Isso só acon- teceu porque eu já “li muitos livros”, isto é, eu tenho certos conhecimentos prévios que me permitiram compreendê-la. Eu conheço o catolicismo, sei a finalidade de um túmulo, sei o que um esqueleto representa, sei o que a ampulheta na mão do esqueleto representa... Eu sei, porque estou dentro de uma tra- dição simbólica e já analisei um monte de coisas semelhantes; então, por semelhanças e diferenças, pude chegar ao significa- do daquela alegoria. Com um símbolo, a coisa é diferente; o símbolo não é a pro- jeção do intelecto humano em uma manifestação artística, mas o contrário disso. A alegoria é uma manifestação projetiva. Um homem con- creto (em regra, um artista) projeta algo (geralmente, uma peça artística) a que chamamos alegoria. O símbolo, por sua vez, não é uma projeção. Ele tem uma característica intensiva, sai de si e nos penetra, e, assim fazendo, abre-nos uma visão mais ampla. Podemos dizer, com certa segurança, que o Tarô é simbóli- co; mas é dotado de um simbolismo diferente do Simbolismo Astrológico, que é uma sorte de simbolismo natural. INTRODUÇÃO17 Simbolismo natural e realidades simbólicas simples Mas o que é um simbolismo natural? Para entendê-lo, pense no mar. Apenas uma pessoa muito tosca pode achar que o mar está ali só para que ela se refresque, pegue umas ondas, pratique o surfe. O mar tem esse componente material também, mas não somente. Ele de fato tem uma presença aquosa, salgada e fluida. Você entra, se molha, se diverte, pode até se afogar e morrer... Mas o mar é mais do que isso: ele é a presença de uma outra coisa, de uma fluidez, de um ir e vir infinito, como na música do Lulu Santos. Quando ele fala daquele “indo e vindo infinito” das ondas, está captando a presença simbólica do mar, pois foi capaz de entender que o mar é, além de sua presença material, símbolo de algo. O símbolo nos abre uma percepção de presença, abre-nos algo a mais. O filósofo Heráclito, olhando para um rio, enunciou duas das primeiras frases registradas na Filosofia: “Tudo flui.” e “Ne- nhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio.” Ao observar um rio com muita calma, abriu-se nele uma janela de percepção: o rio pareceu a ele mais do que sua mera presença física. Muita gente se alimenta com peixes pescados de um rio; muita gente com calor se banha em um rio; muita gente lava suas roupas nas águas de um rio; enfim, muita gente olha para um rio e vê ali somente a fonte do alimento, o alívio para o ca- lor, a solução para as roupas sujas. Para Heráclito, entretanto, o rio é também a presença simbólica de uma fluidez que perma- nece — e é verdade, porque se você puser sua mão em um rio, depois retirá-la e a colocar novamente, ela já não será banhada pela mesma água; já não será, sob certo aspecto, o mesmo rio, ainda que, sob outro aspecto, se trate do mesmo rio que você tinha diante dos olhos. Temos o costume de falar do rio Nilo, do Eufrates, do Da- núbio, ou mesmo do rio Amazonas, como se eles ainda fos- sem uma coisa única e estática, embora todas as suas águas 18 estejam em constante mudança. Alguma coisa permanece; alguma coisa muda. Há um princípio de mutação e consistência no calmo observar das águas. Nesse exercício, você começa a apre- ender a presença simbólica daquele ente e deixa de se confun- dir tanto. Isso é o simbolismo natural. A lua, por exemplo, é um ente que ilumina as noites há mui- to tempo; mas ela não é apenas aquele brilho no céu. É mais do que isso: é presença de uma certa inconstância que orienta. Diz-se “inconstância”, porque a lua tem fases, e sua capacidade de iluminar não é sempre a mesma. Estar numa floresta em noite de lua cheia é melhor do que estar nessa mesma floresta em noite de lua nova: nesta mal se consegue ver um palmo do que está à frente, ao passo em que naquela tudo fica banhado de luz prateada. Se você for um pouco mais sensível e se puser a observar a lua com calma, verá que ela lhe abrirá os olhos para uma realidade que está além daquele círculo branco enfeitando as noites, verá a tal “inconstância que orienta”. Isso é o símbolo; é uma presença — não uma projeção — de algo que lhe pene- tra, abrindo-lhe horizontes de consciência. Essa é a função do símbolo. Por definição, tudo o que é é simbólico; tudo o que existe é simbólico. E, por isso mesmo, perder a visão simbólica do mundo é uma das grandes tragédias do nosso tempo. Os psicólogos, os psiquiatras e os teóricos de hoje estão olhando para o homem e perdendo essa dimensão simbólica; eles têm construído seus edifícios sobre uma fundação predo- minantemente materialista. Não nos confundamos: quando olhamos nos olhos de outro ser humano, quando conversamos com alguém, não é apenas o Fulano ou o Beltrano que temos diante de nós; eles de fato estão diante de nós, mas também são presença de uma outra coisa, apontam para uma outra coisa. Não perceber isso é já ter perdido a visão simbólica. É claro que, quando falamos de entes materiais únicos, indi- viduais — como pessoas, rios, oceanos, árvores, coelhos, leões etc. —, estamos falando de realidades simbólicas muito simples. INTRODUÇÃO19 Quando falamos de astros, então, estamos falando de realida- des simbólicas simplíssimas; e digo isso, porque podemos de- senvolver uma Simbólica Astrológicacom muita precisão, já que os astros (como Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno) estão presentes há milênios e em todas as civilizações. Todos as povos olharam para cima e viram os astros, ao pas- so que nem todos viram coelhos ou leões. Alguns deles nem sequer viram oceanos e jamais souberam de sua existência. Se uma dessas pessoas tivesse a oportunidade de ver o mar, ela provavelmente pensaria tratar-se de um rio que se mexe com mais intensidade e não tem margens (já que, em regra, todas as civilizações se desenvolvem em torno de cursos d’água, mas não necessariamente de oceanos). Essa pessoa olharia, num primeiro momento, somente o aspecto material do mar, por- que não estava inserida em uma cultura que tenha olhado para o mar e percebido sua finalidade. Com o céu, porém, não é bem assim. Tente imaginar uma civilização que não tenha visto a terra e o céu. Não há! É por isso que a simbólica terrestre dos quatro elementos, de que trato no meu livro “Os 4 Temperamentos na Educação dos Filhos”, foi desenvolvida em todas as civilizações. A Ayurveda indiana, por exemplo, conecta-se muito com os quatro elemen- tos, porque mesmo uma civilização de base completamente distinta da nossa, como a hindu, tem as mesmas referências simbólicas da terra. Ela está falando de Terra, Ar, Água e Fogo mais ou menos do mesmo modo, porque estamos olhando para as mesmíssimas realidades. Selecione uma civilização hindu, uma civilização ocidental européia e uma nativa indígena das Américas, e verá que todas elas falam do Fogo (e dos demais elementos) de maneira si- milar. Elas observaram as realidades materiais de Fogo, Terra, Ar e Água, e foram por elas preenchidas; seus horizontes de consciência foram se abrindo a partir daquelas observações. Com o céu, dá-se o mesmo. A Simbólica Astrológica é bastante simples, porque os astros não mudam. Você nunca verá um Mercúrio gordo e um Mercúrio magro; uma lua gor- da e uma lua magra; uma lua doente e uma saudável; uma lua 20 feroz e uma mansa. Até mesmo um coelho é, nesse sentido, mais complexo do que um planeta — ele é passível de muitas mudanças. Há coelhos gordos e magros, rápidos e lentos... Os animais têm uma consistência mutável, e por isso mesmo é mais difícil, para a inteligência, captar a simbólica desses entes mutáveis — “entes mutáveis” são esses que estão presentes, mas mudam e são desconhecidos por uma parte das civilizações. Quando falo em “leão”, o sujeito que acabou de visitar o zo- ológico Smithsonian, em Washington, pensará num baita leão branco, cheio de vitalidade; já o sujeito que acabou de voltar do zoológico do Rio de Janeiro pensará num bicho amarelo raquí- tico, cheio de fome, sede, berne e sarna. São visões diferentes. Quando você olha para um leão do zoológico do Rio, não é a noção de majestade que se abre em sua cabeça, pelo con- trário: você sente pena do bicho. Perceba que você olha para aquele leãozinho e sua inteligência não capta o primeiro sím- bolo dele, pois leões são corruptíveis, são bichos, são seres vivos que mudam de figura. Por outro lado, ao olhar para a lua, você pode projetar o que quiser, mas, antes da sua projeção, ela tem uma estabilidade pró- pria. A Lua está rodando daquele mesmo jeito em torno da Terra desde que o mundo é mundo. A primeira civilização da história viu a lua do mesmo modo com que nós a vemos hoje; e viu as estrelas brilhando no céu mais ou menos do mesmo modo — em- bora decerto haja projeções diferentes dessas mesmas realidades, que se devem predominantemente a diferenças culturais. A Gramática Astrológica é muito fácil de entender justa- mente porque trata de algo que está lá desde sempre. Mercúrio é Mercúrio, Sol é Sol, Saturno é Saturno. Os astros são, enfim, bons exemplos de realidades simbólicas simples, porque estão sem- pre do mesmo jeito, sendo presença de algo. É fácil olhar para um astro e ver de quê ele é símbolo, pois ele está lá do mesmo jeito desde sempre; muita gente já o viu e falou sobre ele. Os quatro elementos (Água, Terra, Fogo e Ar), assim como os astros, também são realidades simbólicas simples e fáceis: simples, porque estão lá sempre do mesmo modo; fáceis, porque não se degeneram, não se decompõem. INTRODUÇÃO21 Já um coelho é uma realidade simbólica simples, porém difícil. “Difícil”, porque cada coelho é de um jeito. Um leão também é uma realidade simbólica simples e difícil, porque cada indivíduo da espécie é de um jeito, como no exemplo que dei do leão pertencente ao zoológico de Washington e do leão pertencente ao zoológico do Rio de Janeiro. É simples falar de um astro, de um leão ou de um coelho, porque essas realidades sozinhas são presenças de si próprias. Mas... e se quiséssemos fazer simbolismo com realidades mais complexas? Tarô: simbolismo de realidades complexas e invisíveis Não é verdade que tudo o que vemos teve um início? Tudo o que faço teve um início: minha vida, minha empresa, este livro. Tudo o que vivemos tem início. E o início é uma presença, as- sim como a dificuldade. O início e a dificuldade têm presença; existem, portanto. Ora, será que o modo de existir do início e o modo de existir da dificuldade são iguais ao modo de existir da lua ou do coelho? Não. A lua tem uma presença estável e facilmente observável. Todas as civilizações a viram. O coelho tem uma presença mais difícil, mas também estável. Ele está lá, um coelho é um coelho. E quanto ao início? Como extrair simbolismo dessa realidade chamada “início”? Como extrair simbolismo da realidade cha- mada “dificuldade”? Como extrair simbolismo de realidades como intensidade, energia, generosidade? O Tarô é justamente a simbólica dessas realidades. Por isso ele é difícil e complexo, e por isso muita gente o entende como uma projeção do homem. Poderiam dizer: “Mas, Italo, essas car- tinhas foram um dia inventadas por alguém.” A verdade, porém, é que ninguém “inventou” o Tarô, porque ele é a cristalização simbólica de realidades complexas como essas que mencionei. Há, portanto, várias maneiras de falar de inícios. Uma des- sas maneiras é já estando dentro de uma tradição simbólica. 22 Nem todas as civilizações viram coelhos, ou mesmo o mar, mas todas elas viram inícios, viram dificuldades, viram atos de ge- nerosidade, atos de traição, atos de recomeço. Não é verdade? Dispondo de uma tradição simbólica, somente um homem de olhar muito pobre, padecendo da “síndrome do propriomio- lismo”, optaria por abordar essas realidades com algo tirado de sua própria cabeça. O Tarô já existe para nos contar a narrativa simbólica de realidades mais complexas. A lâmina do Mago, por exemplo, simboliza uma realidade específica: a postura diante dos inícios, a postura daquele que quer começar. As lâminas do Tarô põem-nos diante da densidade do real. Mas não seja néscio de pensar que aquelas cartinhas que você comprou na banca de jornal contêm a realidade em si. Essas lâminas apenas nos recordam que o real tem presença, e que essas realidades que você chama de “subjetivas” e de “abstratas” não são, na verdade, tão subjetivas e abstratas assim. O início não é subjetivo e abstrato, ele tem presença, e uma presença real — mas como falar dessa presença real que não se vê, diferentemente de um coelho ou da lua, por exemplo? O Tarô faz justamente isso, por meio da cristalização de símbolos complexos e “invisíveis”. Ainda sobre o Tarô... Cabe ainda um comentário breve sobre o Tarô e sua origem. Embora muitos apontem os egípcios ou os caldeus como seus “inventores”, não há como remontar às suas origens. Muitos tarólogos se apegam àquilo que aprenderam nos cursos que fizeram, mas a verdade é que, ao estudar profundamente a origem do Tarô, percebe-se que não é possível afirmar se os Arcanos surgiram antes ou depois dos egípcios, se vieram com os babilônios... Não há segurança histórica quanto à origem do Tarô. O que se sabe é que as cartas mais antigas que foram conservadas datam do final do séc.XIV. Sabemos ainda que, tanto na tradição Ocidental quanto na tradição Oriental (sim, o Tarô se desenvolveu também em boa parte da Ásia), os símbolos são coincidentes. São os mesmos INTRODUÇÃO23 símbolos, sempre presentes nas lâminas dos 22 Arcanos Maio- res e nas 56 lâminas dos Arcanos Menores. Além disso, é importante saber que não existe apenas um baralho de Tarô. Existem, porém, alguns baralhos tradicionais, como o que usaremos para a nossa explicação. Trata-se de um baralho bastante consolidado, utilizado pela maior parte das pessoas de estudos e mesmo pelos cartomantes. Ele se chama Tarô de Marselha, e é muito completo. Ali estão quase todos os elementos simbólicos que foram usados pela tradição do Tarô. Para tratar com profundidade os símbolos representados em todas as 22 lâminas dos Arcanos Maiores e relacioná-los à Psi- cologia, a autores como Jung e Freud, bem como às suas técnicas e práticas, seria necessário muito mais do que um livro como este. Por essa razão, aqui você encontrará análises e explicações fundadas no rico manancial simbólico de três dos 22 Arcanos Maiores: as lâminas do Mago, da Papisa e da Imperatriz. Os capítulos 5 e 6 parecem dar uma escapada ao fio condu- tor do livro (as lâminas do Tarô), embora haja neles constantes remissões às três cartas aqui apresentadas. Eles bebem, contu- do, de outras ricas e importantes fontes, como a poesia lírica e a mitologia grega — sem a qual boa parte da Psicologia, e parte alguma da Psicanálise, se teriam desenvolvido. Em cada capítulo, apresento uma ou mais ferramentas (ou armas). O chapéu do Mago, a tríplice tiara da Papisa, o cetro e o escudo da Imperatriz e o raio de Zeus fazem parte dessa panóplia simbólica de que você deverá se munir caso deseje, de fato, conhecer-se melhor, saber seu lugar no mundo, melho- rar seus relacionamentos e ter uma história verdadeiramente sua para contar. Aos psicólogos, psiquiatras, terapeutas e co- aches, elas servirão também como instrumentos de trabalho e “remédios” a serem prescritos.1 1 Quem assistiu às Super Live Series de Psicologia que ministrei no primeiro semestre de 2020 pelo Youtube, verá aqui organizado muito do que tratei nas primeiras lives. O MAGO 25 Oprimeiro Arcano do Tarô é o Mago. O Mago é um rapaz jovem que traja uma roupa colorida e extravagante, como o uniforme da Guarda Suíça Pontifícia (responsável pela segurança do Papa). Ele se- gura um bastão, que na maioria dos baralhos aparece na mão esquerda. Na mesa que fica à sua frente, há alguns elementos (discos, uma faca desembainhada etc.). Em todos os baralhos, o Mago é representado com algo so- bre a cabeça. Em geral, um grande chapéu. Esse chapéu tem a forma da Lemniscata de Bernoulli, curva algébrica descrita por Jacob Bernoulli em 1654, como modificação de uma elipse, e logo depois adotada como símbolo para representar o infinito. Você com certeza já viu dezenas de lemniscatas em tatuagens, bijuterias, roupas e objetos decorativos. 26 O Mago é a primeira lâmina do Tarô porque é a primeira chave de compreensão. Sem a noção do infinito, não teríamos como compreender as séries seguintes. Ele usa o chapéu sobre a cabeça para protegê-lo e proteger seus olhos, assim como um chapéu nos protege da chuva e dos raios solares que podem nos atrapalhar a visão. Diferentemente, porém, dos nossos chapéus do dia a dia, o chapéu do Mago tem a peculiar forma de lemniscata, comu- mente referida como um “oito deitado”. Mas qual é, afinal, a origem desse símbolo? Desenhe uma cruz, com seus dois eixos: um horizontal e um vertical. Feche as extremidades da cruz, ligando a esquerda à de cima e a de baixo à direita. O que resulta daí? A lemniscata, sím- bolo do infinito. A lemniscata não é, portanto, um oito deitado, mas uma cruz cujas extremidades se fecham, dando-nos a noção da totalidade do real, de todas as possibilidades do ser. O MAGO27 O princípio do tamanho do mundo O professor Olavo de Carvalho inicia seu curso de Filosofia da Ciência ensinando que há algumas coisas que estão sempre em nosso campo de percepção e das quais não podemos nos es- quecer, porque, se delas nos esquecermos ou se as deixarmos de ver, já não entenderemos mais nada e ficaremos desorientados no mundo. Essas coisas são os primeiros princípios. Um desses primeiros princípios essenciais é o princípio do tamanho do mundo. Essa é a primeira coisa em que precisamos concentrar a atenção. Para atender um paciente em consultó- rio, para orientar um filho, para fazer um projeto com o cônju- ge, para traçar as estratégias de uma empresa, para tudo isso é preciso ter uma idéia do “tamanho” do mundo. Alguém que jamais tenha refletido sobre isso poderá apres- sar-se em dizer que o mundo se limita a este lugar material onde estamos, àquilo que vemos. Mas será mesmo assim? Ou será que existe um princípio filosófico indestrutível, que não se pode negar, chamado infinitude? Qual é o tamanho do mundo? Ele é limitado ou é ilimitado? É finito ou é infinito? Responder a es- sas perguntas é fundamental para um bom exercício da Psicolo- gia e para descobrirmos quem é o homem, qual é o tamanho do homem e qual é o tamanho do mundo no qual ele está inserido. Qual é o seu tamanho e qual é o tamanho do seu projeto? Qual é o tamanho do seu coração, do seu amor? Qual é o ta- manho possível de todas as suas sensações superiores, de sua inteligência, de seu saber? É preciso descobrir. Se dizemos, de modo ingênuo e rápido, que as coisas aqui são limitadas e pequenas, então temos uma certa visão de mun- do. Se, ao contrário, dizemos que o mundo é ilimitado e possui um elemento de infinitude, temos então uma outra percepção sobre o que é o mundo. Se existe um limite para as coisas do mundo, o que é que há na fronteira desse limite? Por definição, o limite já não pode fazer parte da própria coisa, mas tem de ser uma outra coisa. 28 O limite do meu corpo, por exemplo, não é mais o corpo, é onde ele acaba e começa uma outra coisa. E, se começa uma outra coisa, isso quer dizer que obviamente existe uma outra coisa além do meu corpo. Vou dar outro exemplo, agora do campo da matemática. Não sei se você se lembra, mas a série dos números inteiros não termina, é infinita. Z = {...-3, -2, -1, 0, +1, +2, +3...}. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, mil, dois mil, vinte mil, um trilhão, um quintilhão... Pense no maior número possível: sempre dá para acrescentar mais um. É sempre possível, portanto, conceber um número inteiro posterior ao último número em que você pensou. Ao menos nesse universo matemático, a noção do infinito — de algo que não termina — é clara e óbvia. Isso, por si só, já é uma ruptura enorme com o pensamento materialista do nosso tempo, em- bora se trate apenas de um infinito potencial. Ora, até um homem vulgar contemporâneo que jamais te- nha pensado em nada metafísico é capaz de reconhecer que realmente existe algo infinito. Embora não saiba dizer exata- mente de que se trata, ele é capaz de entender que não é mais possível dizer que absolutamente tudo tem um limite e um fim. Não. Há alguma coisa que nunca termina. Partindo de uma análise muito simples da realidade, ele é obrigado a declarar que há alguma coisa que permanece, há algo que continua, que não acaba jamais. Um vislumbre da eternidade: O que aconteceu aconteceu e não pode “desacontecer” Precisamos ter noção de dois tamanhos: do tamanho do ho- mem e do tamanho do mundo no qual o homem está inscri- to. Para isso, observaremos primeiramente nossos atos. Assim ficará mais fácil, afinal, estamos constantemente pensando e fazendo coisas; ou seja, estamos agindo a todo o tempo. O MAGO29 Quero que você pense no que está fazendo concretamente neste exato momento. Agora você está lendo este texto, certo? Não há como discordar disso. Daqui a pouco você deixará de ler e irá tomar um copo d’água, dormir, fumar, trabalhar, en- contrar um amigo ou fazer alguma outra coisa. Mas éinegável que, agora, você está lendo. Amanhã, ao se lembrar do que fez hoje, você se verá obri- gado a admitir que, de fato, passou alguns minutos lendo este texto. “É, eu fiz isso mesmo. Eu li. Isso realmente aconteceu.” Faça o seguinte exercício. Amanhã, sente-se e ponha-se a pensar: “Ontem eu li um texto por algum tempo. Esse ato de ler o texto, onde é que ele está?” Talvez você se veja tentado a respon- der prontamente: “Na minha memória! O ato está guardado na minha memória.” Mas já adianto que o que estará na sua me- mória será apenas a lembrança do ato, não o ato em si. Busque uma resposta mais profunda. Onde está esse ato? Ele aconteceu. Onde está isso que aconteceu? Essa é uma pergunta que você é obrigado a se fazer caso queira levar a vida a sério, porque o que aconteceu não “desacontece”. Amanhã, se você tiver um pouco de sinceridade e sensibilida- de, terá de reconhecer que o ato de ler este texto hoje realmente aconteceu e, mesmo com o passar do tempo, não deixou de acon- tecer. Por acaso algum dia aquilo deixará de ter acontecido? Nunca. Estará registrado em algum “lugar”, isto é, continuará sendo. Eis uma declaração de suma importância: há coisas que são. Aquilo que aconteceu aconteceu. Aquilo que é é. A memória guarda ape- nas um registro do ato, mas o ato precisa existir em algum “lugar”, pois aquilo que aconteceu não pode “desacontecer”. Você, por exemplo, pode não se lembrar do que comeu on- tem no almoço, mas a falha em sua memória não apaga o ato de ter comido algo, que está registrado em um lugar maior do que a sua própria memória. Em outra ocasião, aborda- rei a questão da lembrança como ação do ego, mas agora interessa-nos o conceito de infinito. Algumas pessoas dirão: “Ora, o que aconteceu está na história”. É claro, mas a história é também uma espécie de lembrança, 30 é um registro de coisas que aconteceram, que pode ser trans- mitido oralmente ou por escrito. Não confundamos o registro da coisa com a coisa em si. Se todos os registros da guerra napoleônica forem destru- ídos, se todos os livros sobre ela forem queimados e todas as pessoas deixarem de se lembrar dela, a derrota em Waterloo deixará de ter acontecido? Não. Por mais que ninguém mais fale sobre o evento, por mais que não reste um registro sequer, ele ainda terá acontecido. Esse é um primeiro vislumbre de um lugar chamado eterni- dade; e não é preciso ter uma religião para conseguir percebê- -lo. As coisas são o que são e seguem sendo, independentemente de você se lembrar delas, registrá-las, tê-las visto; elas são inde- pendentemente do seu testemunho. Uma folhinha que balance lá fora terá balançado para sem- pre; ela não “desbalançará”, por assim dizer. Um cachorro que late não “deslate”. Um abraço dado não pode ser “desdado”, ainda que você se arrependa de tê-lo dado. Você abraçou al- guém, isso aconteceu. Existe uma consistência do mundo que está além daquilo que vemos, e há também uma série infinita de coisas, como o revela a série de números inteiros. Qualquer pretensa abordagem psicológica que esqueça o tamanho verdadeiro do mundo olha para algo que não é real. Quando se olha para alguém, inclusive para um paciente, é preciso sempre se lembrar de que esses atos permanecem — eles podem ser esquecidos, mas não deixam de ser. Ato e potência Tudo o que eu fiz é; tudo o que pensei também é — espero que ninguém mais duvide disso. Mas e aquilo que não fiz e em que não pensei? Por incrível que pareça, isso também faz parte da estrutura do mundo. Se agora estou dando uma aula, não estou jantando com meu amigo, embora pudesse estar jantando com ele. O MAGO31 A estrutura da realidade, portanto, tem de ser entendida tanto por aquilo que pode ser, que está presente em potência, quanto por aquilo que é mesmo, que está presente em ato. Você pode pegar pedaços de madeira e transformá-los em uma cadeira. Essa matéria-prima bruta não é uma cadeira, mas pode ser uma cadeira. Eles têm a possibilidade de se converter em uma cadeira se uma fonte externa de mudança agir sobre eles, ou seja, se você pegá-los, lixá-los e uni-los com pregos e cola. Nesse caso, pode-se dizer que a potência de se tornar cadeira daqueles pedaços de madeira foi atualizada — e assim deixou de existir como mera potência, como mera possibili- dade. Pois bem: essa possibilidade de converter-se em cadeira também faz parte da realidade. Mas será que as coisas têm possibilidades infinitas? Quando uma coisa não é algo em ato, será que ela sempre poderá adqui- rir aquelas formas que atualmente não tem? Será que a água de um rio poderá um dia ser transformada em cadeira? Um boi é uma girafa em potência? Eu tenho a possibilidade de me tornar uma árvore? A água jamais poderá assumir a forma de uma cadeira, um boi não tem em si a possibilidade de tornar-se girafa e eu nun- ca poderei ser uma árvore. Não podemos pensar que uma coisa é “potencialmente” qualquer coisa. Há potencialidades enrai- zadas na natureza das coisas tal como existem, e essas poten- cialidades são limitadas. Aristóteles dizia que cada semente tem dentro de si uma potência que a destina a chegar a uma determinada forma final. Hoje temos um jeito diferente de dizer algo muito similar no que diz respeito aos seres vivos. Usando o linguajar da ciência moderna, podemos dizer, por exemplo, que o código genético de uma semente de girassol programa um crescimento diferen- te daquele dado pelo código genético de um grão de feijão. Isso explica por que um girassol nunca será um pé de feijão. Eu também não posso ser tudo o que eu quiser. Não posso ser um macaco nem um búfalo, embora possa usar uma fan- tasia e fingir que sou. Também não posso voar com minhas 32 próprias forças. Posso, sim, pegar um avião, mas nesse caso o que estaria voando seria o avião e não eu. Eu mesmo não vôo nem posso voar. Posso criar dispositivos voadores, mas eu mes- mo não posso voar. Essa não é uma possibilidade minha. Tenho, por outro lado, várias outras possibilidades — e mui- to mais possibilidades do que uns pedaços de madeira. Tenho a possibilidade de ser nobre, vil, generoso, mesquinho, avaren- to, gordo, magro, forte, fraco... Por outro lado, há certas coisas que não poderei jamais ser nem desenvolver. E, ainda, mesmo tendo certas possibilidades, pode ser que eu não venha a de- senvolvê-las efetivamente; por exemplo, mesmo podendo ser magro — tendo a possibilidade de fazer uma dieta e exercícios físicos —, talvez eu continue sendo gordo. Se tomo um charuto nas mãos, posso fumá-lo ou não o fu- mar. Ambas são possibilidades do real, ambas as coisas podem acontecer. E sabemos que um charuto pode ser queimado. Não importa, agora, saber como nós o sabemos. Basta entender que um charuto pode ser queimado, ainda que não venha a sê-lo. Quando você olha para uma pessoa, você sabe que ela pode lhe dar um abraço, ainda que não o faça. Você sabe que ela pode amá-lo, ainda que não ame. Essas são possibilidades de um homem. O real, portanto, é não apenas aquilo que está acontecendo agora em ato, mas também aquilo que poderia acontecer, ou seja, que está em potência. Se só pudéssemos nos mover com base naquilo que aconte- ce, naquilo que chega a ser ato, não teríamos qualquer tipo de orientação neste mundo, e as pessoas seriam como manequins de loja, estáticos. Mas uma pessoa real não é assim, pois encerra um conjun- to enorme de possibilidades. Enquanto estou gravando uma de minhas aulas, ao olhar para minha irmã, que é quem faz a filmagem, sei que ela pode dizer uma série de coisas: “Ita- lo, essa aula está lenta.” ou, ao contrário, “Acho que você está fa- lando rápido demais.” Ela pode dizer ainda: “Essa aula está óti- ma.”, “Não estou entendendo nada.”, “Ah, agora estou começando a O MAGO33 entender.”, “Estou ansiosa.”, “Estou com dor de barriga.”, “Preciso ir ao banheiro.”, “Estou com fome.”, “Preferia estar em outro lugar.” e tantas outras coisas. O que nos orienta, enfim, é o conjunto formadotanto pelas atualidades quanto pelas virtualidades; noutras palavras, por aquilo que está sendo e por aquilo que poderia ser. Isso é o real. E é algo maravilhoso!, que joga por terra todo tipo de pensa- mento materialista. O materialismo é uma visão de mundo impossível. O cara que acorda, abre a tampa da privada e urina ali, já não pode ser materialista. Em primeiro lugar, porque esse vaso sanitário, an- tes de existir fisicamente, existiu imaterialmente, na mente de seu primeiro inventor. Além disso, chegando ao banheiro e se deparando com a tampa do vaso sanitário fechada, nem mesmo o materialista diz: “Puxa vida, a tampa está fechada. Já era. Não posso mais urinar.” Ele sabe que, embora esteja fechada, ela pode ser aberta. Ele não vê o vaso aberto, não vê o caminho livre, mas sabe que há a possibilidade de abri-lo — uma possibilidade que, até então, existe somente na mente dele. Uma vez aberta a tampa, a possibilidade deixará de ser mera possibilidade e será convertida em ato. O conjunto de virtualidades é formado por aquilo que não estou vendo, que não está acontecendo agora, mas que poderia acontecer. As possibilidades também estão contidas no con- junto do real. A realidade é tanto esse elemento material, que se apresenta para nós no imperativo da presença física, quanto aquilo que não está acontecendo, mas poderia acontecer. Mas, então, o conjunto das possibilidades universais per- manece sempre desconhecido, oculto, ou precisa ser conhecido para que seja possível? Em outras palavras, para que as coisas sejam possíveis, é necessário que alguém conheça essas possi- bilidades? Essa é uma pergunta central que iremos responder aos poucos. Não é preciso dar uma resposta agora, você terá de conviver com essa dúvida. 34 Para melhor entender o domínio do possível Um cachorro que você vê parado na rua não é apenas um ani- mal parado, mas um animal que pode morder, correr, abanar o rabo, latir e atacar. Ele é tudo isso, do contrário não seria um cachorro de verdade: seria um cachorro de madeira, um bicho empalhado, um fóssil, qualquer outra coisa que não um cachorro. Todas essas coisas pertencem ao conjunto do possível. Vou dar ainda outro exemplo: eu tenho filhos. Talvez eles tenham filhos; e talvez os filhos dos meus filhos também te- nham filhos. Nada disso está presente agora, pois esses netos e bisnetos não existem. Meu filho mais velho tem apenas nove anos e não poderia ser pai agora ainda que o quisesse — mas pode ser que, algum dia, ele se case e tenha filhos, ou que os tenha mesmo sem se casar. Pensemos, agora, nos meus bisnetos, que estão ainda mais longe da minha percepção. É mais fácil pensar nos netos, afinal, se meu filho mais velho tiver um filho, esse filho será meu neto. Mas um bisneto é algo mais distante, pois o filho do meu filho ainda nem existe. No entanto, é perfeitamente possível que eu tenha bisnetos. Não é nenhum absurdo que eu os venha a ter, pois fui pai cedo, já aos vinte e três anos. Logo, é perfeitamente possível que eu viva para ver meus bisnetos. Se o Italo, meu filho mais velho, for pai cedo, e se o filho dele também o for, verei meus bisnetos e conversarei com eles. Hoje, porém, meu filho ainda não tem filhos e nem sequer tem potência fisiológica para tê-los. Não obstante, posso desde já falar dos filhos dele, e dos filhos dos filhos dele. Por quê? Porque isso é possível. O possível, portanto, não se limita à possibilidade no pre- sente. Minha irmã pode se mexer aqui na minha frente; o mo- ver-se dela é possível agora, já a existência dos meus bisnetos é uma coisa possível remotamente. Ambas, porém, são possíveis; logo, estão dentro do quadro do real. Já conhecemos algumas possibilidades, e há ainda muitas outras, conquanto não as conheçamos, e conquanto ninguém consiga sequer imaginá-las. O MAGO35 Ser em Ato Puro O lugar daquilo que é possível (tanto daquilo que nosso co- nhecimento alcança, quanto daquilo que nem imaginamos ou conseguimos perceber) tem um nome em Filosofia: chama-se Logos (ou Verbo). O lugar do possível está contido no Logos. Ele é o tamanho do real. Religiosos, não se confundam! Falar do Logos não exige um ato de fé. Estamos apenas usando a razão e a visão (que so- zinhas já dão conta do trabalho), vendo como são as coisas e dando-lhes nome. Pois bem, a realidade na qual as coisas podem vir a ser, podem ganhar o ser, em que podem acontecer, chama-se Logos ou Verbo. Não é à toa que a Filosofia também chama esse ente (que é a totalidade do real) de Ser em Ato Puro, porque nele tudo é ato. Ele é um ser totalmente desprovido de matéria ou de potência. Tudo nele é. E é esse ato puro que dá o ser às coisas. É esse mesmo Ser que se apresenta a Moisés, dizendo “Eu sou aquele que Sou”, como quem diz “Eu sou aquele que é. Eu sou o Eu sou. Em mim, tudo é ato; nada escapa.” Para entendê-lo, não é preciso ter fé, somente razão. De volta ao chapéu do Mago Voltemos então ao chapéu do Mago que, com sua “forma de infinito”, protege a visão da cegueira da finitude: ele permite ao Mago enxergar além daquilo que é finito. Esse é o significado do chapéu em lemniscata na primeira lâmina do Tarô. Os mesmos sujeitos que se arrogam grandes professores são os primeiros a se cegarem pela finitude do método lógico — ou até pela finitude do método escolástico. Eles se pretendem sábios, magos, doutores, mas, como não vestiram o chapéu do Mago, não passam de papagaios, embusteiros, arrogantes. O chapéu do Mago é nossa entrada na Ciência Psicológica. Na verdade, ele é a epistemologia de qualquer ciência, pois temos sempre de nos proteger da finitude, do limitado, das amputações. 36 Quer um exemplo concreto dessas coisas em sua vida? Eu lhe dou: o hábito de julgar imediatamente os outros. Muitos psi- cólogos recebem um paciente no consultório pela primeira vez e, ao bater os olhos nele, já o julgam. Que loucura! Faça um exercício de ampliação do olhar: PARE DE JULGAR OS OUTROS. Essa é uma tremenda experiência! Ao ver alguém, lembre-se de que esse sujeito é — ele é um ser humano. E assim como já houve seres humanos valentes, nobres, santos, heróis, o sujeito à sua frente também pode ser tudo isso! Ele traz em si todas essas possibilidades, e você não pode tirá-las dele! Só porque alguém está com determinado traje, possui certo olhar, tem certo gestual ou usa determinadas palavras, não deduza tratar-se de alguém vil, traidor ou mes- quinho. Se você faz esse tipo de julgamento, no consultório ou fora dele, ainda não pôs na cabeça o chapéu do infinito. Você definitivamente não está exercendo a função de mago. Todos os arcanos do Tarô apontam para alguma coisa, e o primeiro deles aponta para a disposição inicial do sujeito que pretende se aventurar em uma ciência superior, em uma ciên- cia da alma, como é a Psicologia. Esse sujeito precisa vestir o chapéu do Mago imediatamente — do contrário, será cegado pelos raios da finitude. O Ser em Ato Puro é pessoa Antes de falar sobre a segunda coisa a ser observada na lâmina do Mago, farei um parêntese, que inicio com a seguinte per- gunta: qual o ápice da criação humana? O ápice não pode ser uma construção, como uma casa, um prédio, uma pirâmide ou uma catedral. Um prédio é apenas uma coisa. Um arquiteto, um engenheiro, um pedreiro e um mestre de obras podem construir o edifício mais maravilhoso do mundo, mas aquilo que construírem não passará de uma coisa. Um objeto sem vida não tem tanta dignidade quanto um ani- mal, por exemplo. Entre um cinzeiro e um cachorro, o cachorro O MAGO37 é obviamente mais digno, porque tem vida. O cachorro tem um princípio de movimento interno; ele tem alma (anima), é animado, move-se; o cinzeiro e o prédio não. Um cachorro pode atualizar as possibilidades que a natureza de sua espécie lhe permite. Ele é um indivíduo, dotado de vida e alma; contudo não é uma pessoa. Qualquer pessoa pode mui- to mais do que um cachorro, porque este, embora tenha uma individualidade, uma alma,uma interioridade, um afeto, não é uma pessoa. Um cachorro não pode dizer: “Eu sou um cachorro”. Ele pode sentir frio, mas não pode dizer: “Estou com frio.” O ápice da criação humana, portanto, é obviamente a ge- ração de um outro ser humano: a geração de um filho. O homem pode criar uma cidade inteira, com ruas bem pavi- mentadas e iluminadas, um sistema de saneamento funcio- nal e construções belíssimas, mas todas essas construções são coisas, ao passo que uma criança é uma pessoa. Mesmo que na juventude ela venha a se tornar um bruto, um bandido, um maldito, uma criança sempre será mais digna do que um edifício. Isso é evidente, afinal a criança tem mais possibili- dades, ela pode mais. Ela pode inclusive, ao crescer, participar da construção de edifícios; mas um edifício jamais construirá coisa alguma. O círculo de possibilidades de uma pessoa é maior do que o círculo de possibilidades de um cinzeiro, de uma mesa ou de um prédio. Um cinzeiro é apenas um cinzeiro. Ele pode decompor-se, ser estilhaçado, mas não pode ser um herói, não pode salvar uma vida. Entramos na existência quando o Ser nos deu o ser. Nós, no entanto, embora tenhamos mais possibilidades do que as coisas e os animais, não podemos criar a Deus; não podemos criar um Ser em Ato Puro, porque nós não somos ato puro; muito pelo contrário, temos um monte de potências. Eu, ho- mem que sou, posso, no máximo, gerar outro homem. Posso oferecer uma parte de mim a uma mulher, e ela, recebendo-a, gerará uma pessoa. Além disso, posso construir coisas inferio- res, como uma mesa, uma casa, um prédio etc. 38 Pois bem, aquele que nos deu o ser também é pessoa. Ele é pessoa porque, tendo criado pessoas, não poderia ser menos do que uma pessoa, somente mais, pois ninguém pode dar aquilo que não tem. A Tábua de Esmeralda, artefato antigo que se diz ter sido escrito por Hermes Trimegisto, traz os seguintes dizeres: Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut quod est inferius. Traduzindo: “assim como o que está em cima é o que está embaixo; e assim como o que está embaixo é o que está em cima.” Assim como o menor, o maior; e assim como o maior, o menor. Esse é um princípio hermético. Assim como o Ser em Ato Puro é pessoa, nós também o somos. Assim como somos pessoas, o Ser em Ato Puro também o é. Mas veja: o que é menor não pode dar o que é maior. Só o contrário é possível, pois só se pode dar aquilo que se tem. Relacionamentos e religião Outro dia saí para jantar com um amigo. Estávamos discu- tindo onde jantar, quando ele disse: “Podemos ir ao Shopping Leblon. Lá tem um restaurante Outback, sei que você gosta”. Como esse amigo é uma pessoa com quem tenho muita intimidade, eu imediatamente respondi, com toda a simplicidade de um irmão: “Cara, eu nem gosto mais de Outback.” Esse amigo fez uma proposta, porque acreditava que eu ain- da gostava do Outback; e eu realmente gostava, até um ano atrás. Hoje, não gosto mais. Seres humanos são assim: instá- veis. A pessoa humana é instável, imprevisível, e nisso residem as dificuldades dos relacionamentos humanos. Porque mudamos o tempo todo, é muito difícil chegar a um código duradouro de conduta que regule o relacionamento en- tre os homens. Nosso elemento pessoal não é estável; por isso é que nossos relacionamentos são dificultosos. É difícil agradar os seres humanos. Um exemplo: a maioria das pessoas gosta de chocolate, certo? Mas é possível que uma pessoa que gosta de chocolate esteja de dieta. Eu mesmo estava O MAGO39 de dieta há pouco e meus pacientes me traziam um monte de chocolates; eu não os comia. Eles me traziam um presente, mas, na verdade, estavam me atrapalhando, pois eu estava de dieta. Viu só? É difícil agradar gente. Nós tentamos, mas nem sempre conseguimos. E é claro que o próprio ato de dar revela uma preocupação que, de algum modo, já basta por si só. Em- bora esteja de dieta, quando alguém me dá um chocolate, eu não olho para o doce, mas para a intenção de quem presenteia. Nós somos instáveis, passíveis de mudança, mas o Ser em Ato Puro não tem potência nenhuma. Ele é puro ato. Ele é, nele nada falta, e por isso ele é absolutamente estável. Nada nele não é, ao contrário de nós, homens, que somos instáveis porque temos um conjunto de coisas que não são: falta-nos muita coisa. Eu ainda não sou um herói, ainda não sou um vilão comple- to, ainda não sou fortíssimo, ainda não sou obeso. Nós muda- mos, porque vamos atualizando, ou seja, vamos transformando em ato aquelas coisas que existiam apenas como potências. Não somos fixos nem estáveis, mas o Ser em Ato Puro é. E uma vez que esse Ser em Ato Puro é estável e é pessoa, ou seja, é pessoa estável, há um conjunto também estável e previsível de coisas que fazemos para nos relacionar com ele — porque pessoas pedem relacionamentos, elas precisam amar. Essas normas de conduta de relacionamento com a pessoa perfeitíssima que é o Ser em Ato Puro e que garantem sua relação pessoal com ela é o que chamamos vulgarmente de re- ligião. Religião é apenas a prática pela qual um homem se rela- ciona pessoalmente com o Ser em Ato Puro. A religião não é um freio nem um acelerador. Ela é uma prática para desenvolver sua razão, de modo que ela chegue a algo que se chama fé — que não é credulidade, não é crença idiota e não é coisa de criança. A fé é um upgrade da razão. Ter fé não significa acreditar em contos da carochinha, pois a fé se baseia em algo racional; ela é um passo a mais no relaciona- mento com a pessoa do Ser em Ato Puro. Em um texto fantástico chamado Fides et Ratio (“Fé e Razão”), escrito por um polonês chamado Karol Wojtyla (Papa João 40 Paulo II), há uma imagem perfeita para o que quero dizer. O texto inicia assim: “A fé e a razão (fides et ratio) consti- tuem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio.” Ora, sem ambas as asas, não há como alçar vôos altos. Um olhar perfeitamente desatento Voltemos à lâmina do Mago. Já disse que o chapéu encobre e protege sua visão, permitindo-lhe enxergar melhor as coisas. A segunda coisa a se observar nessa lâmina é o olhar. O Mago tem um bastão na mão esquerda e apoia a direita sobre a mesa. Ele lança um olhar meio de lado, encoberto pelo chapéu. É como se ele tivesse uma atenção — ou desatenção — perfeita. Ele não precisa prestar atenção no seu trabalho, pois seu trabalho é o jogo. Slackline é um esporte no qual o praticante prende uma fita de nylon entre dois pontos fixos (ge- ralmente, duas árvores), e tenta se equilibrar sobre ela, andando e fazendo manobras no ar. Noutro dia, eu tentei jogar e falhei mi- seravelmente. Foi muito difícil, porque não sou equilibrista, não tenho treino. Assim que subi na fita, comecei a pensar unicamente em me equilibrar, e é claro que caí O MAGO41 imediatamente, pois estava dando atenção ao meu equilíbrio com a cabeça, quando na verdade a atenção teria que ser orgânica. Se um equilibrista pára e pensa em cada movimento que faz, ele cai. O equilibrista experiente, por outro lado, não pensa cons- tantemente nos movimentos, mas deixa-se levar pelo corpo e as- sim consegue seguir em um ritmo perfeito. Esse ritmo perfeito é simbolizado pela ida e vinda do chapéu do Mago (∞). Como o equilibrista experiente, o Mago já não precisa pen- sar em cada passo que dará. Ele tem uma atenção perfeita — ou uma perfeita desatenção —, em que trabalho é jogo. A des- treza absoluta em seu ofício permite-lhe manter uma atenção perfeitamente desatenta. É dessa atenção que todas as escolas místicas falam, a aten- ção de quem lança um olhar perfeito para o mundo. A Yoga, por exemplo, nada mais é do que o “acalmar” de toda a subs- tância mental dispersa. É como Goethe disse: “Vocêquer ter sucesso nos seus atos, nos seus projetos? Concentre o máximo de força no ponto mínimo”, ou ainda, como falou o nosso jurista Ives Gandra: “Quer ter sucesso em alguma coisa? Comece cedo e faça somente aquilo.” Noutras palavras: concentre toda a sua força em uma única coisa. Dedique-se a outra só depois que dominar a primei- ra. Quando dominar a segunda, passe para a próxima e assim por diante. Quem deseja ter força em todas as áreas, sempre e logo, não consegue nunca ter força em nada. É um problema de atenção. É a mesma coisa da qual fala, por exemplo, a prática da trapa. Os monges trapistas têm um exercício de silêncio que consiste basicamente em... calar a boca. O professor Olavo de Carvalho também recomenda a seus alunos dez anos de jejum em matéria de opinião. E é também o que recomendava a esco- la pitagórica: o aluno que entrava tinha de ficar quieto, obser- vando, durante cinco anos, pois o que é disperso perde a força. Quem já vivenciou um retiro de silêncio — católico ou pro- testante — sabe do que estou falando. Esses retiros têm exer- cícios maravilhosos que permitem um aquietar constante da substância difusa psíquica. 42 Para nós, é difícil alcançar a perfeita atenção (ou desaten- ção) do Mago. Estamos sempre muito agitados, temos um de- sejo constante de dar opinião sobre tudo, de julgar os outros. Cale-se! Você já me ouviu dizer várias vezes um “Não encha o saco!” — parte do lema “Trabalhe, sirva, seja forte e não encha o saco.” Esse “Não encha o saco” nada mais é do que uma outra ma- neira de dizer “Fique quieto”, “Cale-se”. É “ficando quieto” e “não enchendo o saco” que se alcança a perfeita desatenção do Mago. O silêncio interior permite transformar o trabalho em jogo. Hoje, fala-se bastante em mindflow — e um monte de co- aches infelizmente entendeu a coisa de modo errado. Quan- do o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi fala do flow, ele dá exemplos maravilhosos. Imagine um maestro regendo uma orquestra, com todos os grupos de instrumentos (as cordas, as madeiras e os metais). Você acha que ele está pensando a todo o tempo em cada mínimo detalhe da sinfonia? Se ele pensasse, não conseguiria reger. Quando um regente move os braços, ele não está pensando em mais nada — está simplesmente re- gendo. Ele entra em um estado de flow e adquire uma postura similar à do Mago da primeira lâmina do Tarô. Quando os tenistas Roger Federer e Rafael Nadal jogam tênis, não ficam pensando no que estão fazendo; apenas fazem. O trabalho vira jogo, e isso fica muito claro, porque eles estão mesmo jogando, o jogo flui. Eles são atletas de alta performan- ce, não charlatães. Até então, falamos de atividades práticas, como a do ma- estro e a do tenista. Pensemos agora em uma atividade espiri- tual, interior. É nesse campo que se abre um grande leque de charlatanismo; e eu vi algumas pessoas na Internet caírem por isso recentemente. Elas não atingiram estado algum de flow, antes tentaram criar um estado de desconcentração absoluta. O MAGO43 Acharam que eram uma espécie de Osho. Tanto eram embus- teiros, que esses sujeitos sumiram, não estão mais por aí. A atenção/desatenção perfeita é necessária para fazer o tra- balho virar jogo, e então a morada espiritual do seu espírito passará a ser aquele lugar. Comece então fazendo um exercício muito simples: cale-se. Cale a boca e fique quieto por dez minutos, contemplando. Um praticante, no início, conseguirá manter esse estado por um minuto apenas. Depois de alguma prática, chegará aos dez minutos de contemplação. “Mas vou ficar calado contemplando o quê?” Ora, cale-se! “Mas não estou entendendo. É para contemplar o quê?”. Cale-se! Se não ficar quieto, nunca irá entender. É óbvio que alguém sem a prática desse silêncio contempla- tivo não consegue fazer uma análise sobre si nem sobre nin- guém. Não consegue ser psicólogo, pai, instrutor, patrão nem funcionário. O entendimento dos outros arcanos exige que, primeiro, a pessoa se cale. Alguns associarão o que estou dizendo ao mantra “é preciso ficar quieto para ouvir a voz de Deus.”, porém não é disso que estou falando. Você nem sabe se Deus tem voz! E, supondo que Ele tenha uma, você não conseguiria distingui-la da voz do seu próprio pensamento. O exercício que proponho é muito simples: não reclame, fique dez minutos quieto. Não é a “voz de Deus” que você deve procurar aí, até porque a voz de Deus já é uma atividade. É importante que tanto os religiosos quanto os não religio- sos se dêem conta do seguinte: só escutamos a voz daqueles de quem somos íntimos, pois conversa pressupõe intimidade. E a intimidade é uma conquista — sobretudo a intimidade com Deus, que é obtida por meio da prática da religião, que eleva sua razão até o estado de fé. Por isso é que se fala de Fé como virtude teologal. Em algum momento, a voz de Deus o alcança, e nem isso você controla, pois pode ser que Ele não queira falar com você naquele momento. 44 “Ai, Italo, mas é claro que Deus quer falar comigo”. É você quem está dizendo... Na verdade, você nem sabe qual plano Ele tem para você. Pense em São João da Cruz, por exemplo. Indepen- dentemente de sua religião, você há de convir que ele foi um sujeito grandioso, excelente. Sabe quanto tempo Deus ficou sem falar com ele? Quarenta anos. Por quarenta anos ele não ouviu a voz de Deus. Esse período, ele o chamou de “noite escura”. Se, por vezes, Deus deixa de falar mesmo com homens des- se calibre — e Ele tem suas razões para isso, ainda que não as compreendamos —, é claro que essa história de que “Deus quer me ouvir” é coisa da sua cabeça. Talvez seja algo que você está apenas repetindo, pois ouviu em uma pregaçãozinha por aí, feita por alguém que também não sabia o que dizia. No silêncio, você não necessariamente ouvirá a voz de Deus. O que o silêncio lhe proporcionará certamente é o aquietar da sua substância difusa. Quem sou eu, afinal? Chegamos a um ponto fundamental. Afinal, quem é você? O que é o seu ego, o seu eu? Primeiramente, é preciso acabar com essa idéia equivocada de que o ego é uma coisa ruim. “Meu ego está falando mais alto, tenho de destruí-lo.” “Tenho o ego muito elevado, preciso baixar a bola.” Pare com essa vulgaridade, com essa mentalidade redu- cionista que não o levará a lugar algum. O ego tem, pelo me- nos, três camadas de acepção, e precisamos conhecer todas elas para começarmos a entendê-lo. Geralmente, ao falar de ego ou eu, referimo-nos apenas à pri- meira delas: o “eu” como na frase “Eu aluguei esta casa.” Esta é a camada mais superficial do eu, a que chamamos eu narrativo — é o eu a quem você consegue se referir, aquele de quem se pode fa- lar. Esse eu é como uma camada superficial sob a qual subjazem várias outras. Ainda não chamaremos a isso inconsciente nem subconsciente. Estamos na nomina, como falou Freud. O MAGO45 As outras camadas mais profundas de que o eu é composto, por outro lado, são tudo aquilo que você de fato é, tudo aquilo que lhe aconteceu, tudo aquilo que você carrega, todas as suas percepções, embora você não seja capaz de explicá-las nem mes- mo de falar aos outros sobre elas. Esse é o eu profundo, que tam- bém podemos chamar de eu substancial. Esse, sim, é você mesmo. Você é, portanto, tudo aquilo que carrega, tudo aquilo que lhe aconteceu, que percebeu, que sabe — ainda que não con- siga se expressar sobre tais coisas nem dar razões para elas. Como veremos adiante, a terapia e a escrita de um diário se prestam a ajudar a pessoa a buscar esse eu profundo. Se eu questionar minha irmã a respeito do dia em que nosso avô morreu e do que fizemos após o velório dele (fo- mos ao Outback e ficamos lá tomando um chá gelado e conversando), ela provavelmente não se lembrará desses de- talhes, pois eles não estão na superfície do eu dela. Mas, tão logo eu os mencione, ela se lembrará do acontecido, pois é algo que estava em seu eu profundo, mas que agora, com a ajuda de algumas palavras, veio novamente à sua cons- ciência.Ela o trouxe para o eu superf icial, para o primeiro “andar” do eu. A quantidade das coisas todas que lhe aconteceram é você. Esse é o seu eu substancial, e ele permanece. Isso é incrível! Não pense que se trata de um “eu falso” e um “eu verdadeiro”. O eu narrativo e o eu substancial são, ambos, camadas do eu. Ambos fazem realmente parte do eu. Você tem um eu superficial, que é o eu narrativo. Ele existe, está presente e, em geral, quando você diz “eu”, está se referin- do a ele, ou seja, a esse andar mais aparente do eu, porque, nor- malmente, jamais nos referimos ao eu em toda a sua dimensão e profundidade. Além do eu narrativo e do eu substancial, há uma terceira acepção da palavra “eu”: refiro-me ao eu que aparece para o outro, o eu social. Quando apareço para o outro e o outro aparece para mim, criamos um conjunto de expectativas. Quando, por exemplo, 46 você discute com sua esposa, com seu marido, com seu (sua) namorado (a), com seu filho, com seu patrão, em geral, está falando desse eu social, o eu das expectativas. Esse eu social, de algum modo, é alienante — e é normal que seja assim. Quando ele entra em cena, nós tiramos do horizonte de consciência esse eu profundo, que abarca tudo. A consistência do eu, porém, não pode ser apenas a expec- tativa que os outros têm sobre mim, e a que eu tenho sobre os outros. É claro que tenho uma expectativa sobre você que lê este livro — se não tivesse, nem o escreveria. Tenho a expec- tativa de que você aprenda algo do que ensino sobre Psico- logia. Se tivesse outra expectativa sobre você, estaria falando sobre futebol ou sobre qualquer outra coisa, mas existe afinal um ajuste de expectativa social, então eu lhe apareço com esse eu social. Embora seu eu social esteja saliente em muitas situações, é preciso lembrar que você não se limita a ele. Você é o eu pro- fundo — do qual, aliás, procedem o eu narrativo e o eu social. A maior parte das coisas que lhe acontecem, acontecem não por circunstâncias do ambiente nem porque o outro acha isso ou aquilo de você, mas porque você é esse eu profundo. Você, na verdade, é muito mais profundo e complexo do que seu eu social e seu eu superficial podem aparentar. Quando nos desligamos do eu profundo (e esse desligamen- to é generalizado), surge a necessidade de terapia. Na terapia habilmente conduzida, o terapeuta ajuda uma pessoa a se lem- brar daquilo que ela é de fato — não superficialmente ou con- forme as expectativas alheias. A terapia, sozinha, não dá conta de tudo, mas já é um bom início do processo. A escrita de um diário é um outro elemento do processo. Ao escrever um diário, você tenta tanger seu eu profundo. Ob- viamente não será possível abrangê-lo em sua totalidade, pois o ser humano é uma criatura complexa e maravilhosa e o eu profundo é todo um universo do qual geralmente não falamos. Agimos, o mais das vezes, a partir do eu narrativo ou a partir do eu social. E isso é especialmente verdade para as pessoas que O MAGO47 ainda não transformaram seu trabalho em jogo, ou seja, que ainda não adquiriram a capacidade de dar atenção às coisas mais fundamentais. O olhar do Mago na primeira lâmina do Tarô indica tudo isso que acabei de descrever. O Mago age a partir daquilo que é, e não a partir da expectativa alheia ou de uma narrativa. Ele não lança seu olhar sobre o eu social, não lhe importa o que os outros vão dizer, não lhe importam os juízos alheios (ob- serve que ele não está olhando para ninguém). Ele tampouco tem os olhos postos sobre o eu narrativo — ele nem sequer está olhando para as próprias mãos. Mas, afinal, o que diabos ele está olhando? Perceba que o Mago está de lado, com a mão direita posta sobre a mesa, segurando o bastão com a mão esquerda e mi- rando outro lugar... Mas não sabemos exatamente qual. Seu olhar não é propriamente um olhar perdido, mas está posto no horizonte; nesse horizonte que abarca seu ser, que abarca aquilo que ele é. Como vimos, o chapéu do Mago em forma de lemniscata simboliza a proteção necessária para que mantenhamos o olhar voltado para o infinito, pois quando os raios de sol batem em nosso rosto, baixamos os olhos e, assim fazendo, deixamos de contemplar o infinito. Não confunda esse olhar para o horizonte com uma ten- tativa de acesso ao inconsciente. Ainda não falamos sobre ele, ainda não sabemos se se trata de consciente ou inconsciente. Trabalharemos essas noções em outro momento. Por ora, con- centremos a atenção em duas coisas: na disposição a deixar-se proteger pelo chapéu do Mago e no olhar atentamente desa- tento, na atenção perfeitíssima àquilo que realmente se é. Uma semente grega Se você investigar as primeiras conferências de Jung, na Suíça, descobrirá que ele passava de quatro a cinco horas falando sobre 48 mandalas. É sério: muitos tomavam um trem para assisti-lo falar durante horas sobre mandalas e a formação do universo a partir delas. Essa é uma das coisas de que a Psicologia é feita. Só hoje, em uma sociedade e um tempo bastante esquisitos como os nossos, é que praticamente tudo aquilo que é amplo, profundo, simbólico e penetrante, fica perdido — e daí é que surgem essas pessoas que acham que a Psicologia é feita de meia dúzia de técnicas. Não! A Psicologia não é a maleta de ferramentas com as quais o psicólogo aperta os parafusos sol- tos da cabeça do paciente. Ela não é um amontoado de técnicas exaustivamente descritas em tratados e artigos científicos. Ela lida com algo tão complexo e profundo, que não poderia esgo- tar-se aí. Exige uma linguagem e uma percepção simbólicas e filosóficas, e é disso que tratarei aqui. Certa vez, fui jantar na casa de um amigo de longa data, padrinho de um dos meus filhos. A esposa dele, exímia cozi- nheira, na época cursava Gastronomia, e seus jantares eram sempre ótimos (ainda são). Em um deles, ela me mostrou al- guns azeites que havia trazido de uma viagem, e me convidou a experimentar um azeite grego com pão. Foi então que eu descobri que azeites gregos são excelentes; na verdade, são uma das melhores coisas que a Grécia produz há milênios. Lá, eles têm por tradição a arte do cultivo de azeitonas. Um tempo depois, assisti a uma aula do Julián Marías na qual ele comenta a origem da Filosofia na Grécia e, de passa- gem, observa como é estranho que a Filosofia tenha surgido em um país de agricultores, pobre e pequeno, onde não havia mais que quatro gatos pingados pastoreando cabras e cultivan- do azeitonas. A imagem daquele fruto tradicional grego não saiu mais da minha cabeça. A azeitona dá origem ao azeite, que é empregado em nossa cultura com uma série de finalidades: como tempero culinário, como medicamento, como combustível para lamparinas... Pe- los antigos, ele também era empregado para besuntar o corpo de atletas e lutadores, diminuindo o atrito durante os exercí- cios ou combates. O azeite simboliza esse elemento que, ao mesmo tempo, conserva e prepara para a batalha. O MAGO49 Há um outro fruto tradicional e que também nos chama muito a atenção: o figo. A pessoa com um mínimo de cultura “escriturís- tica” e de sensibilidade estética, ao olhar para um figo, haverá de se lembrar daquela passagem emblemática das Escrituras. (Se você não tem religião, não seja um implicante quando eu falar do Cristo. A religião é uma prática e a Sagrada Escritura é um registro simbólico e histórico dos eventos que iluminam a nossa existência. O próprio Jung fez uma análise arquetípica de vários elementos escriturísticos. Então, se isso lhe confortar, entenda as Escrituras como Jung as entendeu, mas saiba que haverá uma perda.) Cristo andava à beira da estrada, quando sentiu fome e avistou uma figueira junto do caminho. Ao aproximar-se dela, porém, percebeu que só havia folhas e nenhum figo. Ora, uma árvore frutífera deveria dar frutos. Uma figueira deveria dar figos! Ele então amaldiçoou a figueira, dizendo: “Nunca mais alguém coma fruto de ti!” A árvore secou imediatamente. (Mt 21, 18-22;
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