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O QUE É O MARXISMO? Notas de iniciação marxista Miciades_miolo.indd 1 30/04/2015 15:30:32 Miciades_miolo.indd 2 30/04/2015 15:30:32 Milcíades Peña O QUE É O MARXISMO? Notas de iniciação marxista São Paulo, 2014 Miciades_miolo.indd 3 30/04/2015 15:30:32 Editora Sundermann Avenida Nove de Julho, 925, Bela Vista, São Paulo, SP. Telefone: 11 – 4304 5801 vendas@editorasundermann.com.br www.editorasundermann.com.br 2015, Editora José Luís e Rosa Sundermann A editora autoriza a reprodução de partes deste livro para fins acadêmicos e/ou de divulgação eletrônica, desde que mencionada a fonte. Coordenação Editorial: Henrique Canary Jorge Breogan João Simões Martha Piloto Revisão e edição: João Simões Tradução: Paula Maffei Diagramação e capa: Martha Piloto Revisão final: Henrique Canary e João Simões © Peña, Milcíades O que é o marxismo? Notas de iniciação marxista. [1. reimpr.]. São Paulo: Sundermann, 2015. 112 p. ISBN: 978-85-99156-63-6 1ª edição mimeografada data de 1958. 1.Marxismo - iniciação. 2. Marxismo – conceitos básicos. 3.Curso introdutório - marxismo I. Título. CDD: 335.4 Dados internacionais de catalogação (CIP) elaborados na fonte por Iraci Borges – CRB-8 - 2263 1ª edição: setembro de 2014; 1ª reimpressão: maio de 2015. Miciades_miolo.indd 4 30/04/2015 15:30:32 SUMÁRIO Nota dos editores, 7 Notas de iniciação marxista - I, 13 [O processo de aprendizado], 13 [O processo de conhecimento], 14 [Esquema do curso: concreto, abstrato, concreto], 16 O que é e o que propõe o marxismo?, 18 [A alienação], 21 [A concepção marxista de liberdade], 27 [Conclusão], 31 Notas de iniciação marxista - II, 33 [A alienação nos textos da maturidade de Marx], 33 [Marxismo e filosofia], 41 [A dialética], 43 [O materialismo], 52 Miciades_miolo.indd 5 30/04/2015 15:30:32 Notas de iniciação marxista – III, 57 [A consciência e a “teoria do reflexo”], 57 [Necessidade do socialismo], 61 [A práxis], 63 [O marxismo, totalidade aberta], 64 Notas de iniciação marxista – IV e V, 67 [Marxismo e ciências sociais], 67 [Marxismo e economicismo], 73 [Concepção materialista das ideologias], 80 [Teoria das classes sociais], 82 Notas de iniciação marxista – VI, 85 [Teoria das classes - continuação], 85 [Sobre a fórmula estrutura/superestrutura], 98 Bibliografia, 103 Miciades_miolo.indd 6 30/04/2015 15:30:32 NOTA DOS EDITORES O presente livro busca suprir uma demanda frequente- mente manifestada por nossos leitores: a de bons materiais de introdução ao marxismo. Das obras hoje disponíveis ao público brasileiro, a maior parte peca por apresentar o pen- samento de Marx ou de forma excessivamente acadêmica, portanto sem conexão com a realidade concreta dos traba- lhadores e jovens que despertam para as lutas sociais e se in- teressam pelos ideais socialistas, ou por reduzir o marxismo a um mero aglomerado de conceitos, de maneira mecânica, linear, simplista e antidialética. A riqueza deste trabalho de Milcíades Peña vem justamente da preocupação do autor em apresentar o marxismo de maneira ampla e aberta, como uma visão de mundo, sem deformá-lo no esforço de simpli- ficação. Para que o socialismo científico possa ser uma arma nas mãos dos trabalhadores na luta por sua libertação, é pre- ciso que ele seja encarado como uma teoria viva, uma ciên- cia aberta, que permita compreender a sociedade capitalista em todas as suas contradições. Miciades_miolo.indd 7 30/04/2015 15:30:32 8 Milcíades Peña Esta importante tarefa, de escrever uma apresentação do marxismo que una a simplicidade na forma e a profundidade no conteúdo, é, na verdade, bastante difícil. Para realizá-la, foi necessário um autor com grande domínio da teoria, mas também de raro talento como escritor e professor, além de uma sólida experiência prática revolucionária. Infelizmente, Milcíades Peña permanece um autor quase desconhecido no Brasil. Esta obra, datada de 1958, é fruto das anotações mimeografadas de um curso introdutório ao marxismo, aplicado por ele a militantes de uma pequena or- ganização argentina chamada MAR (Movimiento de Acción Reformista). Apesar da juventude do autor, que então tinha apenas 25 anos, a solidez de seu marxismo já é evidente. Em sua apresentação do pensamento de Marx, Milcíades Peña vai recusar a noção que vê a teoria marxista como uma caixa cheia de respostas prontas para os problemas da luta de classes. Para ele, esta concepção é a própria negação da dialética e do marxismo. Mas tampouco o marxismo é “ape- nas uma teoria” ou mais um método sociológico. É “uma concepção geral e total do homem e do universo”. E, insepa- rável desta visão de mundo, o marxismo traz consigo uma crítica do capitalismo e um programa para a criação de uma nova sociedade. No marxismo, o programa de transforma- ção e a concepção de homem e de universo são inseparáveis. Para o autor, o marxismo é portanto uma totalidade aberta, ou seja, uma visão global de mundo, em permanente aper- feiçoamento e alteração. Junto com o mecanicismo do “marxismo de manuais”, Milcíades Peña recusa também o determinismo economi- cista, que, durante boa parte do século 20, o stalinismo pre- tendeu apresentar como sendo o único marxismo possível. Neste livro veremos como Peña tem grande cuidado em evitar simplificações redutoras da complexa síntese entre as Miciades_miolo.indd 8 30/04/2015 15:30:32 9O que é o marxismo? determinações econômicas, sociais e culturais da realidade. Ao recolocar no centro das preocupações do marxismo a questão da alienação e da consciência (recusando sua lei- tura como mera derivação da economia), o autor vai recu- perar a centralidade do conceito de liberdade para o mar- xismo. Um marxismo que não seja vivo e em permanente desenvolvimento não serve para a luta pela transformação da sociedade. Um marxismo engessado e estagnado nunca vai servir para compreender e desvendar uma realidade so- cial extremamente dinâmica e contraditória, e menos ainda para transformá-la. Milcíades Peña foi um homem de trajetória singular e um dos grandes historiadores argentinos. Nascido em 1933 na cidade de La Plata em uma família problemática (sua mãe, esquizofrênica, foi internada logo após seu nascimento), foi criado pela tia materna e seu marido, funcionário público de uma universidade. Durante os estudos secundários (que nun- ca concluiu), entrou em contato com o movimento trotskista, se aproximando da corrente dirigida por Nahuel Moreno (na época, o Grupo Obrero Marxista, ainda um embrião de parti- do). Nunca cursou a universidade, mas aos 17 anos começou por conta própria a estudar a história argentina. Se aplicou a fundo sobre o tema, com o fervor de quem via na história uma arma de combate, e apesar de seu isolamento (o mundo acadêmico, sempre hermético, fez o que pôde para ignorá-lo), logo se destacou pela originalidade de seu pensamento e esti- lo. Destes estudos sairiam diversos escritos que, postumamen- te, foram organizados em nove livros, quantidade impressio- nante se levarmos em conta a curta duração de sua vida. Em seus trabalhos sobre a história da Argentina, Milcíades Peña põe seu estilo agudo, por vezes irônico, veloz, a serviço de uma cuidadosa análise marxista da história de seu país, buscando entender as particularidades da organização social Miciades_miolo.indd 9 30/04/2015 15:30:32 10 Milcíades Peña e econômica da Argentina desde suas origens coloniais até sua inserção na economia mundial do século 20. A análise das especificidades da história argentina não serve aqui para fazer nenhum discurso excepcionalista, mas, ao contrário, para entender a localização precisa e as relações estabelecidas entre esta parte do mundo e a totalidade da sociedade capitalista. Através da relação entre economia nacional e mundial, entre os interesses das diversas classes e seus setores nas condições locais, Peña busca compreender o sentido maisprofundo da vida política argentina, das mudanças de governos, crises e reviravoltas. É através de uma profunda compreensão da dinâmica da economia argentina e da composição de suas classes sociais que ele vai propor uma das melhores interpretações do peronismo, um movimento altamente contraditório, mas central para a vida política argentina. Precoce na elaboração de sua obra histórica e em sua formação marxista, infelizmente foi também cedo demais que Milcíades Peña nos deixou. Afastado da militância partidária, desmoralizado com a situação política de seu país e se sentindo deprimido, se suicidou em 1965, aos 32 anos. Vítima das angústias de uma geração profundamente marcada por essa era de guerras e revoluções e pelo poder destrutivo do capital, seguiu reivindicando o trotskismo e a organização onde começou a militar até o final de sua vida, mesmo tendo tido diversas e por vezes duras polêmicas com Nahuel Moreno e com os herdeiros do GOM (o grupo ao redor do jornal Palabra Obrera). Apesar de nunca ter participado do mundo acadêmico, sua obra chegou a ter um relativo reconhecimento em círculos acadêmicos e políticos dentro e fora da Argentina, e é ainda hoje um marco na historiografia daquele país, por seu aporte original e lúcido à compreensão da realidade nacional. Baseamos o presente trabalho em uma edição crítica pu- blicada pelo Colectivo Editorial “Ultimo Recurso” em 2007, na Miciades_miolo.indd 10 30/04/2015 15:30:32 11O que é o marxismo? Argentina. Também desta edição, adotamos as subdivisões (apresentadas entre colchetes), que não constam do manus- crito original, mas facilitam o estudo temático. Optamos por substituir as traduções de Milcíades das obras citadas por tra- duções consagradas e de fácil acesso em língua portuguesa (salvo quando a obra em questão não foi publicada em nossa língua), para facilitar a consulta por aqueles interessados em aprofundar seus estudos. Apresentamos ao público brasileiro pela primeira vez em português estas anotações de introdução ao marxismo, na esperança de que sirvam de ponto de partida e de apoio às novas gerações que se agregam à luta revolucionária. Miciades_miolo.indd 11 30/04/2015 15:30:32 Miciades_miolo.indd 12 30/04/2015 15:30:32 [O processo de aprendizado] O marxismo recusa a concepção tradicional do ensino como um processo em que uma pessoa ativa ensina e muitas pessoas passivas aprendem. Esta concepção, que se baseia na divisão entre teoria e prática, entre o trabalho manual e o traba- lho intelectual, deve ser trocada por uma que vê o ensino como um processo criador, no qual todo o grupo - o que ensina e os que aprendem - trabalham ativamente, confrontando seus co- nhecimentos e suas ideias, e, através deste confronto, aquele que aprende consegue partilhar de um novo conhecimento e o que ensina aprofunda seus conhecimentos. Engels disse a seus alunos: “a primeira coisa que devem aprender aqui é a estar de pé”. Quer dizer, em tensão, alertas e em atividade, em atitude criadora. “Se o aprender se limitasse simplesmente a receber, não daria resultado muito melhor que escrever em água”. Aquele que estuda algo deve recriar esse algo dentro de si mesmo. Não é questão de receber algumas noções de marxismo. É preciso investigar o marxismo, enfrentá-lo, pe- NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA I Miciades_miolo.indd 13 30/04/2015 15:30:32 14 Milcíades Peña netrar intensamente na matéria que se requer aprender e dei- xar que essa matéria penetre profundamente no intelecto e na emoção daquele que aprende. Caso contrário, não é possível a aprendizagem. Só se aprende através da investigação. De modo que nossa tarefa será investigarmos juntos o marxismo. Juntos teremos que descobrir e redescobrir o marxismo, começando por sua essência, que é o mais difícil de se captar, e fugindo das vulga- rizações e simplificações de estilo de alguns manuais, como o chamado Manual de Filosofia de Politzer, que se parecem tanto com o marxismo quanto uma folha seca se parece com uma rosa recém-colhida. [O processo de conhecimento] Há algumas fórmulas básicas e elementares do marxismo, tais como a luta de classes, a importância da estrutura econô- mica da sociedade, o materialismo etc., que foram as mais po- pularizadas pelos divulgadores e vulgarizadores do marxismo, que escreveram manuais para uso das grandes massas. Estas fórmulas, que não são nada mais que elementos do pensamento marxista, parecem à primeira vista oferecer explicações maravi- lhosamente simples e finais para os problemas mais complexos. E claro, as mentalidades semi-intelectualizadas se agarram com unhas e dentes a essas fórmulas, que lhes permitem a explica- ção de todos os problemas, isto é - eles assim o creem - sem nenhum esforço mental. Infelizmente, o movimento revolucio- nário, assim como todos os grandes movimentos de massa e os grandes aparatos burocráticos da classe operária estão cercados por inúmeros semi-intelectuais, operários e pequenos burgue- ses semi-intelectualizados que tomam o marxismo como meio que substitua o trabalho de pensar e dê resposta a todos os pro- blemas. Para estas pessoas o marxismo é uma espécie de má- quina de calcular: aperta-se o botão e sai uma resposta para o Miciades_miolo.indd 14 30/04/2015 15:30:32 15O que é o marxismo? problema a ser solucionado. Pois bem, o marxismo não é isso, e isso é a negação do marxismo. Pois o marxismo exige um sério e intenso esforço do pensamento. Labriola disse: Os doutrinadores e teóricos de todo tipo, que necessitam de ídolos in- telectuais, os criadores de sistemas que continuariam bons por toda a eternidade, os compiladores de manuais e enciclopédias, buscarão em vão no marxismo pelo que este nunca ofereceu a ninguém. Estas pessoas imaginam o pensamento e o conhecimento como coisas que têm existên- cia material, mas não entendem que o pensamento e o conhecimento são atividades em processo de construção1. O pensamento popular - disse Hegel - acredita que o verdadei- ro e o falso são entidades imóveis, coisas com existência própria, uma das quais se alcança do lado de lá, e outra do lado de cá, cada uma delas isolada e fixa, sem contato com a outra. Este também é o modo de pensar do marxismo popular, do marxismo dos bu- rocratas, que querem converter o pensamento marxista em um dicionário onde está classificado tudo o que é verdadeiro e tudo o que é falso, tudo o que se deve conhecer e tudo o que não se deve conhecer. Frente a isto, o pensamento dialético, o autêntico pen- samento marxista, afirma com Hegel que: “a verdade não é uma moeda forjada que pode ser dada e embolsada banalmente”2. A verdade se alcança por esforço contínuo do pensamento, e se alcança através do erro, do permanente confronto entre a verdade e o erro. O marxismo não é uma moeda cunhada que se toma e se dá. O marxismo é o pensamento vivo e vívido, que está em permanente confronto com a realidade e consigo mes- mo, se afirmando e negando a si mesmo a cada instante para poder afirmar-se novamente em um nível superior. O marxismo é implacável consigo mesmo porque o mar- xismo vai contra os mitos e a falsidade, contra a mistificação. 1 LABRIOLA, Antonio, Discorrendo di socialismo e di filosofia em Scritti fi- losofici e politici, vol. II, Turim, Einaudi, 1973, capítulo II. 2 HEGEL, Georg, Fenomenologia do espírito, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 41. Miciades_miolo.indd 15 30/04/2015 15:30:32 16 Milcíades Peña O marxismo quer tirar os disfarces, impor a clareza. Disse Lukács: “Para o proletariado a verdade é uma arma portadora da vitória e o é tanto mais quanto mais audaciosa for”3. Tudo o que afirmamos até então nos leva a tomar em con- sideração o seguinte: aqui não vamos dar nem tomar o mar- xismo em pílulas. Mas sim, conheceremos as linhas funda- mentais do marxismo, para depois investigá-lo, cada qual com seu pensamento. Além disso, levemos em consideração que esta sala, este grupo de pessoas do qual fazemos parte,constitui um sistema social que reflete a sociedade na qual vivemos. A sociedade, suas diferenças de classes, suas facções mate- riais e ideológicas, estão já aqui neste grupo, dentre nós, nos conhecimentos, nos hábitos, na personalidade que cada um carrega ao cruzar esta porta. E a sociedade também está neste pequeno sistema social constituído pelo nosso grupo porque desde o momento em que nos reunimos para estudar o mar- xismo, todos estamos assumindo um conceito a respeito de cada um dos demais: estamos tendo e iremos ter diferenças e agrupamentos, simpatias e antipatias, prestígios e falta de prestígio. Isto é, todas as categorias da sociedade e dos con- flitos existentes na sociedade estão já representados em nosso grupo, como em todo grupo de trabalho. E nós, diferente- mente do que ocorre no ensino tradicional, que finge ignorar estes problemas, temos que estar conscientes disso, torná-lo explícito, e aproveitar as tensões e conflitos que surgem para tornar mais penetrante e mais profundo o nosso estudo do marxismo. [Esquema do curso: concreto, abstrato, concreto] Entendo que o objetivo a que nos propomos, tomar os fios condutores fundamentais do pensamento marxista, que de- 3 LUKÁCS, Georg, História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 171. Miciades_miolo.indd 16 30/04/2015 15:30:32 17O que é o marxismo? pois nos permitirão uma investigação pessoal do marxismo, pode ser alcançado em oito reuniões básicas4. Na primeira, trataremos de responder a esta pergunta: o que é e o que propõe o marxismo? Esta é a pergunta chave com a qual se deve iniciar e encerrar todo estudo do marxis- mo. Dentro de alguns instantes vamos enfrentar esta pergun- ta. E em nossa última reunião vamos discutir novamente so- bre “o que é e o que propõe o marxismo”, porém em um nível mais elevado, mais rico em conteúdo. Assim sendo, partimos de um enfoque sintético e concre- to do marxismo, que teremos hoje, até um enfoque analíti- co abstrato, ou seja, considerando não só a totalidade, mas elementos isolados que obteremos nas próximas reuniões. E finalmente, voltaremos a realizar um informe sintético e con- creto, porém muito mais concreto que o obtido hoje, porque teremos à nossa disposição, então, um conteúdo mais rico: teremos o conhecimento conceitual e o conhecimento inter- pessoal que iremos obtendo em nossas sucessivas reuniões. A sequência dos problemas que estudaremos nas próxi- mas reuniões está estabelecida pela seguinte consideração: existem três categorias (ou seja, três pontos de vista) para se estudar a realidade que são básicas para a compreensão do marxismo. Estas categorias são: a natureza; o trabalho; a sociedade. A natureza é a realidade fundamental de onde provém a vida em geral, a vida do homem em particular e os elementos básicos para a perpetuação desta vida. A sociedade é a realidade propriamente humana, inse- parável do homem, porque jamais existiu o homem como indivíduo isolado, e ao dizer homem, implicamos socie- dade. 4 Das oito aulas originais, só foram preservadas as anotações das seis aqui publicadas (N. do E.). Miciades_miolo.indd 17 30/04/2015 15:30:32 18 Milcíades Peña O trabalho é a atividade criadora mediante a qual o ho- mem, isto é, a sociedade, atua sobre a natureza, modificando o próprio homem e a sociedade. Pois bem, a concepção das relações entre sociedade, natu- reza e trabalho é o abecê da filosofia marxista, e a este assunto nos dedicaremos na próxima reunião. A concepção marxista da relação entre trabalho e socie- dade, e da relação da sociedade consigo mesma é o tema do que podemos denominar sociologia marxista, e a veremos na terceira reunião. O problema da evolução da sociedade no tempo é a te- mática da concepção marxista da história e será estudado na quarta reunião. Dessa crítica da sociedade capitalista se desprendeu um prognóstico marxista sobre a evolução do capitalismo e sobre a nova sociedade que nasceria da sociedade capitalista. E se desprendeu também uma política marxista que tende a des- truir a sociedade capitalista. O problema do prognóstico mar- xista, isto é, a teoria do socialismo, será visto na sexta reunião. E o problema da política marxista será estudado na sétima. Finalmente, na última reunião veremos quais são os proble- mas atuais, os novos problemas e os novos enfoques para os velhos problemas com que se enfrenta hoje em dia o marxismo. E assim responderemos novamente, porém dispondo de novos elementos, à pergunta que vamos enfrentar pela primeira vez agora mesmo. O que é e o que propõe o marxismo? O marxismo é uma concepção geral e total do homem e do universo. Em função dessa concepção de mundo, é uma crítica da sociedade em que nasceu o marxismo, isto é, uma crítica da sociedade capitalista. Em função dessa crítica, e como resultado dessa crítica da sociedade capitalista, o marxismo é uma política, é um pro- Miciades_miolo.indd 18 30/04/2015 15:30:32 19O que é o marxismo? grama de ação para a transformação revolucionária da socie- dade, para a criação de uma nova sociedade, isto é, para a cria- ção de um novo tipo de relação entre os homens. Em geral, para o público, inclusive para o público que supõe ser marxista, o marxismo é apenas uma crítica da so- ciedade capitalista e um programa de luta pelo socialismo. Contudo, na realidade, estas são apenas partes do marxismo, e partes subordinadas à concepção marxista do homem, que é a essência e o ponto de partida do marxismo - lógica e crono- logicamente. Por isso, para responder à pergunta feita acima, é preciso começar, imprescindivelmente, pela parte essencial e menos conhecida - mais oculta, poderia ser dito - do marxis- mo, que é a concepção marxista do homem. O marxismo afirma que não há nada na terra e seus ar- redores superior ao próprio homem. O único criador que o marxismo reconhece é o homem. O homem, que com seu trabalho cria um novo mundo, modifica a natureza e a si mesmo. O marxismo rejeita o conceito de Deus e de qual- quer força extra ou sobre-humana colocada acima do ho- mem e que o domine, seja ela chamada de Deus, ou história, ou destino, ou Espírito Santo5. O marxismo afirma que todo o poder que as religiões atribuem aos deuses não é mais que poder humano que o homem, por diversas circunstâncias, projetou fora de si mesmo e atribui a seres ou coisas exis- tentes fora dele6. O marxismo crê que o paraíso e o inferno 5 “A história”, segundo Marx, “não faz nada, não possui riqueza alguma, nem empreende nenhuma luta. O homem real e vívido é quem faz, possui e luta. Não é a história que emprega o homem como meio para desfrutar de seus fins, a história não é nada mais que a atividade do homem que persegue seus fins”. O homem é o autor e o ator de sua história. Em outra parte Marx assinala tam- bém: “Toda a pretensa história do mundo não é outra coisa senão a produção do homem obtida pelo trabalho humano, e por conseguinte, o surgimento da natureza por obra do homem” (N. do A.). 6 O marxismo quer reivindicar para o homem, como propriedade do homem, “os tesouros antes desperdiçados no céu” (Hegel) (N. do A.). Miciades_miolo.indd 19 30/04/2015 15:30:32 20 Milcíades Peña não estão fora do mundo, mas aqui na terra, e que o cria- dor e o senhor do paraíso e do inferno é o homem, que os cria com seu trabalho7. O marxismo não crê que a história se deterá um dia, que virá um dilúvio e então a humanidade se precipitará em um inferno eternamente cheio de torturas ou em um paraíso onde não haverá problemas de nenhuma natureza. O marxismo crê que sempre haverá problemas, lutas e con- flitos, porém o marxismo é profundamente otimista, porque crê que o homem é capaz de produzir um destino cada vez mais humano, isto é, um destino no qual o homem não explore ou- tro homem, no qual o homem possa utilizar o máximo de sua capacidade criadora, não para lutar contra outros homens para se alimentar e vestir, mas sim criar uma vida mais cheia de con- fortoe beleza, de solidariedade e de liberdade, isto é, uma vida propriamente mais humana. Sendo assim, o marxismo fixa so- bre a terra o futuro venturoso que as religiões preveem para o céu. Ao futuro sem exploração e lutas entre as pessoas que as religiões prometem para o céu, após a morte, o marxismo loca- liza mais próximo, aqui na terra, e não como produto da morte, mas como produto da vida criadora do homem. O marxismo é profundamente otimista, e somente esta característica basta para torná-lo irredutivelmente inimigo de toda forma de religião. No entanto, atenção! O otimismo revolucionário do marxismo não tem relação alguma com o “progressivismo”. Esta doutrina crê que as contradições se resolvem por si mesmas ao longo do tempo. Lukács vai criti- car a concepção “que via na técnica o princípio objetivamente motor e decisivo do desenvolvimento das forças produtivas. 7 O marxismo nega o além e por consequência afirma a capacidade criadora deste mundo. O marxismo nega uma vida melhor no céu, pois crê no seguinte: a vida deve e tem que melhorar na terra. O futuro melhor, que é para as religiões o objeto de uma fé ociosa no que virá após a morte, se transforma com o marx- ismo no objeto do dever, da atividade humana (N. do A.). Miciades_miolo.indd 20 30/04/2015 15:30:32 21O que é o marxismo? [...] Evidentemente, isso conduz a um fatalismo histórico, à eliminação do homem e da práxis social”8. A confiança cega no ilimitado progresso do “campo da URSS e do socialismo”, por exemplo, é a réplica pseudomarxista da confiança que tinham os liberais spencerianos9 do século pas- sado na paz perpétua e no mundo de fraternidade livre-cam- bista que se alcançaria pelo comércio universal. O marxismo tem otimismo e confia no porvir. Mas seu otimismo não é o otimismo cego e complacente do “progressivismo”. O marxismo sabe que a categoria de perigo é essencial, é parte integrante e fundamental de todo processo de avanço e desenvolvimento, e também do processo de desenvolvimento da humanidade. E, por isso, o marxismo sabe que o término desse processo pode ser catastrófico, e que as maiores possibilidades de se criar um melhor destino humano são incessantemente acompanhadas pelas mais tremendas possibilidades de se voltar atrás e anular todo o futuro da humanidade. E o único que tem a chave para a troca, para indicar o caminho que será tomado é o homem, e somente a vontade ativa e consciente do homem decidirá, por exemplo, se construiremos um novo mundo com o átomo, ou se destruiremos o mundo também com o átomo. [A alienação] As religiões pregam que os sofrimentos do homem, a ex- ploração do ser humano por outro ser humano, existem por- que o homem é homem e só poderão deixar de existir quando este morrer. Por isso falam da salvação do homem postmor- tem, no além. O marxismo, pelo contrário, afirma que o sofri- mento humano e a exploração do ser humano existem porque 8 LUKÁCS, Georg, História e consciência de classe. op. cit., p. 41. 9 Spencerianos são os seguidores das ideias do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903). Filósofo de tendência positivista e liberal clássico, foi o fundador do “darwinismo social”, que pretendia aplicar mecanicamente a teoria de Dar- win às sociedades humanas (N. do E.). Miciades_miolo.indd 21 30/04/2015 15:30:33 22 Milcíades Peña o homem não é plenamente homem, porque se alienou, e só deixarão de existir quando o homem se tornar plenamente homem e se desalienar. Por isso, o marxismo fala não de sal- vação no além, mas sim do resgate do homem, do reencontro do homem com suas novas qualidades. Utilizamos as palavras alienação e desalienação. Estas duas palavras sintetizam os conceitos fundamentais do marxismo. O conceito de alienação e de luta pela desalienação são a es- sência, o coração do pensamento marxista. Alienação quer dizer que o homem está dominado por coisas que ele mesmo criou. Alienação quer dizer que o ho- mem projetou para fora de si partes de si mesmo, que partes dele próprio se transformaram em coisas, e que essas coisas dominam o homem10. Desalienação quer dizer que o homem põe sob seu controle essas coisas que o oprimem e que são partes dele mesmo, produtos de seu trabalho. Desalienação quer dizer que, ao dominar essas partes de si mesmo que se converteram em coisas que hoje o oprimem, o homem se reencontra consigo mesmo, resgata a si próprio. Como se produz a alienação do homem? Desde que o homem existe, está ligado a três realidades que se vinculam intensamente entre si; elas são: o trabalho, a produ- ção de novas necessidades e a família. 10 A alienação é o definido por Heine na Inglaterra: “onde as máquinas se com- portam como seres humanos e os homens como as máquinas”. Diz Marx: “A ação conjunta dos indivíduos cria mil forças produtivas. Mas, uma vez criadas, estas forças deixam de pertencer aos seus criadores, tornam-se hostis a eles e os tiranizam”. “Assim como na religião o homem é dominado pelo produto de sua própria cabeça, na produção capitalista ele o é pelo produto de suas próprias mãos” (O Capital, livro I). “[Os preços das mercadorias] variam constantemente, independentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca. Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de eles as controlarem” (O Capital, livro I) (N. do A.). Miciades_miolo.indd 22 30/04/2015 15:30:33 23O que é o marxismo? O trabalho é a soma de todos os esforços, antes de tudo práticos, e depois também teóricos, que o homem tem que realizar para poder sustentar sua vida em geral. A produção de novas necessidades é produto do trabalho realizado para sa- tisfazer as necessidades primárias, porque para satisfazer uma necessidade, o homem cria um instrumento, e este por sua vez origina uma nova necessidade, e assim por diante. Todavia, os homens não só trabalham para satisfazer suas necessidades elementares, não só criam novas necessidades, mas também fazem outros homens, isto é, se reproduzem. En- tra-se assim na relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, ou seja, na família. Pois bem, nestas três realidades - trabalho, produção de necessidades novas e produção de homens, isto é família - es- tão dados todos os elementos que originam a alienação do ho- mem ao longo da história até nossos dias. Pelo trabalho, nascem objetos que possuem uma espécie de existência independente a respeito de seu criador, que é o ho- mem. Nas sociedades primitivas, onde o produtor consome seus próprios produtos, a independência do objeto se esgota rapida- mente, no momento em que seu criador os consome. Mas quan- do começou a produção de mercadorias, sobretudo na sociedade capitalista, os objetos, convertidos em mercadorias, escapam ao controle do produtor - que já não os consome, adquirem inde- pendência e dominam o homem através da lei do valor, do di- nheiro, do preço e demais categorias e leis econômicas. Por outro lado, tanto a produção de objetos como a produ- ção de outros homens só podem ser feitas pela cooperação de indivíduos distintos. Desta cooperação, surge uma rede de rela- ções sociais e de instituições que vão aumentando em extensão e complexidade e terminam por dominar o homem, dando-lhe a aparência de serem coisas naturais, tão distantes de seu controle como os astros ou os outros planetas. Miciades_miolo.indd 23 30/04/2015 15:30:33 24 Milcíades Peña No que diz respeito à produção dos outros homens, existe uma situação que cada vez se desenvolve mais, à medida que aumenta o domínio da humanidade sobre a natureza. Trata-se da divisão do trabalho. Homem e mulher têm distintas fun- ções no trabalho da reprodução, e esta é a primeira divisão de trabalho conhecida pelo homem. Mas depois surgem novas divisões. Surge a tremenda divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. E surge a possibilidade - e logo a reali- dade - de que uma parte da humanidade se convertaem bene- ficiária do trabalho da outra parte. Surge a possibilidade para alguns homens de apropriar-se do produto do trabalho alheio. E com a divisão do trabalho começa o desenvolvimento unilateral do homem. Desde o começo da divisão do trabalho cada um tem uma função determinada e exclusiva que lhe é imposta e da qual não se pode sair. O homem já não é mais primordialmente homem: é, antes de tudo, operário, campo- nês, burguês ou artesão, e tem que continuar sendo assim se não quiser perder o seu meio de subsistência. A divisão do trabalho, o trabalho produtivo e a produção de novas necessidades se desenvolvem através da história. E com eles crescem os objetos produzidos pelo homem, mas que o homem não domina; crescem as instituições criadas pelo homem, mas que o homem não domina. O homem se aliena no que diz respeito às suas obras, às coisas que ele criou, isto é, estas lhe parecem como objetos estranhos re- gidos por leis próprias que são impostas mesmo contra sua vontade. E, finalmente, ao se dividir a sociedade em classes, o homem se aliena de si mesmo e se produz a alienação entre o homem e o homem. Isto é, assim como os produtos de seu trabalho lhe dão “coisas” cujo controle lhe escapa, o homem começa a utilizar outro homem como um meio ou um ins- trumento, como uma coisa para a satisfação de suas próprias necessidades. Miciades_miolo.indd 24 30/04/2015 15:30:33 25O que é o marxismo? O homem se converte em coisa, em mercadoria que outros homens compram para seus fins. E tudo o que o homem tra- balhador produz já não só lhe parece como uma coisa estra- nha que ele não domina. Agora esse produto de seu trabalho se converte em um poder estranho, no poder de outra classe, de outros homens que se encontram sobre ele. E, desde então, ao ficar alienado, o homem torna alie- nado seu trabalho. Já não só os produtos de seu trabalho parecem, ante o homem, coisas e poderes estranhos. Agora é seu próprio trabalho que lhe parece estranho, externo. O homem já não trabalha porque trabalhar é a essência hu- mana e somente no trabalho ele se realiza. Agora o homem alienado trabalha para viver. Isto é, o trabalho já não é a condição e o pressuposto superior de vida, mas simples- mente um meio, um instrumento, não para realizar a vida, mas para poder satisfazer as mais importantes necessidades biológicas. Este é o panorama geral - num passar de olhos - do que o marxismo chama de alienação do homem, e que podemos resumir em uns poucos pontos. A alienação se revela em que: • Os produtos do trabalho do homem têm existência in- dependente; o mundo das coisas criadas pelo homem se move independentemente da vontade humana; • As relações sociais entre os homens aparecem como coisas que escapam também ao controle do homem e parecem ser regidas por leis próprias, quase “naturais”; • O homem já não existe como homem, mas sim como homem parcial: como trabalhador ou lojista, como inte- lectual ou pedreiro, como parte de homem, nunca como totalidade humana; Miciades_miolo.indd 25 30/04/2015 15:30:33 26 Milcíades Peña • O próprio homem se converte em coisa, em instrumento que outros homens utilizam para seus próprios fins; • E por fim... o próprio trabalho se separa do homem e se converte em coisa. Já não é a realização da capacidade cria- dora do homem, mas uma coisa, um meio para satisfazer suas necessidades. E em que consiste a alienação do trabalho? Segundo Marx, consiste em que: Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruina o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortifi- cação. […] Sem dúvida. O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador11. Isto disse Marx em 1844. Pois bem, em nossos dias os me- lhores sociólogos norte-americanos estão, por via empírica, chegando às mesmas conclusões e redescobrem o problema da alienação do homem12. 11 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo, 2004, pp. 83; 82 (na ordem de aparição). 12 CHINOY, Eli, Auto mobile Workers and the American Dream, Nova Iorque, Miciades_miolo.indd 26 30/04/2015 15:30:33 27O que é o marxismo? [A concepção marxista de liberdade] Propondo-se chegar às massas mais atrasadas, e precisamen- te para poder chegar a estas massas, o marxismo se simplificou, se vulgarizou. Pagou um preço tremendo, pois se desnaturalizou e perdeu sua riqueza, chegou a ser confundido com uma sim- ples interpretação econômica da história, ou com um simples programa de melhorias para a classe trabalhadora. A isto foi re- duzido. E então, os aparatos burocráticos que se erigiram sobre a classe operária e que adotaram o marxismo como um instru- mento para a justificação de sua política, ajudaram com todo seu poderio material a manter as noções vulgares do marxismo e a ocultar a essência do marxismo, isto é, a luta contra a alienação, a luta para desalienar o homem. Claro, os aparatos burocráticos têm que ocultar isso, porque revelar isto equivale à sua própria liquidação. Se o marxismo fosse só lutar por melhorias econô- micas, ou pela reorganização da economia, os aparatos burocrá- ticos não correriam nenhum perigo, e até poderiam apresentar- se como camadas executoras do marxismo. Mas se o marxismo é - e efetivamente o é - a luta permanente contra a alienação, isto é, contra todas as potências materiais e místicas que oprimem o homem, então os aparatos burocráticos estão absolutamente con- denados e não há convivência possível entre eles e o marxismo. Explica-se, assim, que no chamado Dicionário Filosófico Marxista de M. Rosenthal e P. Yudin, o conceito de alienação não apareça de nenhuma forma, nem explícita ou implicita- mente, nem direta ou indiretamente. Em um texto de 1842, Marx escreveu que “a liberdade é a essência do homem”. Lefebvre retomou esta citação esquecida e afirma com profunda razão que “o marxismo nasce de uma 1955. WALKER, Charles, The man on the Assembly Line, Massachussetts, 1952. MILLS, C. Wright, Las clases medias en Norte América, Madrid, 1957 (N. do A.). Miciades_miolo.indd 27 30/04/2015 15:30:33 28 Milcíades Peña aspiração fundamental para a liberdade, de uma exigência im- paciente, do desejo de um florescimento”13. Um crítico stalinista o reprova, dizendo que com isto Lefe- bvre quer fundamentar o marxismo “não sobre o materialismo e a ciência, mas sobre uma exigência moral ...”. Na realidade, o conceito de desalienação, de liberdade do homem, é a essência do marxismo, tendo Lefebvre razão. Em 1857, enquanto prepara O Capital, Marx escreve um trabalho sobre economia política que foi publicado em Mos- cou em 1939. Nesse trabalho, Marx disse que até então a his- tória registrara dois tipos de sociedade: uma na qual existem relações pessoais de dependência; outra, como o capitalismo, na qual existe a independênciapessoal fundada na depen- dência material. A próxima etapa, o socialismo, será aquela, segundo Marx, na qual existirá “a livre individualidade fun- dada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos e a subordinação de sua produtividade coletiva, social, como seu poder social”14. Desta forma, a missão da sociedade socialista é inaugurar o reino da individualidade humana livre sobre a Terra. Disse Marx: O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios ho- mens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza. A figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado15. 13 LEFEBVRE, Henri, Problèmes actuels du marxisme. Paris, PUF, 1958. 14 MARX, Karl, Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da crítica da economia política, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 106. 15 MARX, Karl, O Capital: crítica da economia política – Livro I, São Paulo, Boitempo Editorial, 2013, p. 154. Miciades_miolo.indd 28 30/04/2015 15:30:33 29O que é o marxismo? Observe-se: homens livremente associados. Por sua vez, Engels afirma no Anti-Dühring: Cessa a luta pela existência individual e, assim, em certo sentido, o Homem sai definitivamente do reino animal e se sobrepõe às con- dições animais de existência, para submeter-se a condições de vida verdadeiramente humanas. As condições que cercam o homem e até agora o dominam colocam-se, a partir desse instante, sob seu domí- nio e seu comando e o homem, ao tornar-se dono e senhor de suas próprias relações sociais, converte-se pela primeira vez em senhor consciente e efetivo da natureza. As leis de sua própria atividade social, que até agora se erguiam frente ao homem como leis naturais, como poderes estranhos que o submetiam a seu império, são ago- ra aplicadas por ele com pleno conhecimento de causa e, portanto, submetidas a seu poderio. A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentada como algo imposto pela natureza e a história, é de agora em diante obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na História colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a pro- duzir, predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade16. O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção17. E Lenin diz que: Mas, em nossa aspiração ao socialismo, temos a convicção de que ele tomará a forma do comunismo e que, em consequência, desaparecerá 16 ENGELS, Friedrich, Do socialismo utópico ao socialismo científico, São Pau- lo, Editora Sundermann, 2008, 2ª edição, pp. 122-123. Na edição existente em português do Anti-Dühring (Editora Paz e Terra, 1979) esses capítulos finais, por vezes publicados em separado, foram omitidos. 17 LENIN, Vladimir, O Estado e a Revolução, São Paulo, Expressão Popular, 2010, 2ª edição, p. 36. Miciades_miolo.indd 29 30/04/2015 15:30:33 30 Milcíades Peña toda necessidade de recorrer à violência contra os homens, à submissão de um homem a outro, de uma parte da população sobre a outra18. Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capi- talistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes [...] só então é que “o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade”19. Como se vê, os clássicos marxistas insistem decisivamen- te que a liberdade do homem é a aspiração fundamental do marxismo. O marxismo quer homens plenamente humanos, homens livres de coisas e fetiches opressores. Melhorar o nível de vida é um passo absolutamente necessário, e o primeiro passo em dire- ção a esta liberação do homem, mas é apenas o primeiro passo. O marxismo compreende que a produção da vida material e a satisfação das necessidades são atividades naturais indis- pensáveis. Comer, beber e procriar são funções autenticamen- te humanas. Mas, segundo Marx, nelas não se revela o que especificamente há de humano no homem. Porque também o animal come e se reproduz. De modo que se as satisfações materiais são separadas do resto da atividade humana, e con- vertidas em propósito único e último, então essas funções são próprias do animal e não têm em si nada de humano. Por isso, acrescenta Marx, enquanto existir um regime social no qual comer, beber e se reproduzir apareçam para o homem como os propósitos exclusivos de seus desejos, enquanto isto ocorrer, o homem será pouco superior a um animal e estará verdadeiramente distante de alcançar seu verdadeiro estado humano. Uma violenta elevação do salário (abstraindo de todas as outras dificul- dades, abstraindo que, como uma anomalia, ela também só seria man- 18 Ibid., p. 101. 19 Ibid., p. 109. Miciades_miolo.indd 30 30/04/2015 15:30:33 31O que é o marxismo? tida com violência) nada seria além de um melhor assalariamento do escravo e não teria conquistado nem ao trabalhador nem ao trabalho a sua dignidade e determinação humanas20. Isto em 1844. Em O Capital, Marx disse que “à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua re- muneração alta ou baixa, tem de piorar”21. O marxismo não é simplesmente materialismo, ainda que o ignore o crítico stalinista de Lefebvre. O marxismo nega que o homem seja produto direto das circunstâncias e do meio. O marxismo reivindica a autonomia criadora do homem. Tanto a burocracia dos partidos da II Internacional social-demo- crata como a burocracia soviética praticavam e praticam esta redução do marxismo a um materialismo de fácil acesso. Este é o conceito das burocracias porque reduz a nada a iniciativa criadora do homem, e portanto eleva aos céus o conservado- rismo dos aparatos burocráticos, caracterizados por seu apego e submissão total às circunstâncias, rejeitando a luta para mo- dificar as circunstâncias. Marx explicou tudo isto muito nitidamente nas Teses sobre Feuerbach (Tese 3): A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da edu- cação esquece que as circunstâncias têm de ser transformadas pelos homens, e que o próprio educador tem que ser educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em duas partes – a primeira das quais está colocada acima da sociedade22. [Conclusão] Pois bem, o que então é o marxismo, o que pretende? O marxismo é, como já dito, uma concepção de mundo, é 20 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 88. 21 MARX, Karl, O Capital, op. cit., pp. 720-721. 22 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 533. Miciades_miolo.indd 31 30/04/2015 15:30:33 32 Milcíades Peña uma critica à sociedade capitalista e um programa de luta para transformá-la. E como chave destes três aspectos do marxismo, como ob- jetivo único e decisivo do marxismo, está a luta para desalie- nar o homem, a aspiração de resgatar a plenitude humana do homem. No marxismo, todas as outras questões são apenas meios para este fim. O desenvolvimen to material das forças produ- tivas e a elevação do nível de vida são importantes porque constituem a base material para a desalienação do homem. A liquidação do capitalismo é fundamental, pois constitui, por sua vez, a condição básica para um maior desenvolvimento das forças produtivas. A ascensão da classe operária ao poder é imprescindível, pois constitui o requisito básico para a liqui- dação do capitalismo. Tudo isto é fundamental e é importante, como também o são os satélites, as grandes centrais hidrelé- tricas, os tratores etc.Mas para o marxismo esses são meios e nada mais. Pois o que o marxismo quer - a essência do mar- xismo - é um novo tipo de relação entre os homens, na qual os homens não sejam dominados por coisas nem fetiches; na qual o homem seja o senhor absoluto, dono soberano de suas faculdades e seus produtos, e não escravo da mercadoria e do dinheiro, da propriedade e do capital, do Estado e da divisão do trabalho. Miciades_miolo.indd 32 30/04/2015 15:30:33 Analisamos os questionários recolhidos na reunião anterior. Desta pequena amostra, percebe-se que embora este grupo te- nha, em sua totalidade, uma ideia geral correta do marxismo, cada um de seus integrantes, individualmente, tem apenas uma visão parcial e, portanto, deformada do marxismo. É preciso so- mar-se as respostas individuais para nos aproximarmos do que é realmente o marxismo. [A alienação nos textos da maturidade de Marx] A respeito da alienação, problema sobre o qual tanto discutimos na reunião passada, assinalamos o seguinte: a alienação também se revela no fato de que o indivíduo pertencente a uma sociedade capitalista não possui uma personalidade integrada: sua personalidade é um conjunto de facetas - pois ele é uma pessoa ao tratar com seus superiores no trabalho e outra ao tratar seus subordinados; é uma pessoa quando está no cabeleireiro e outra quando se encontra em uma reunião social. O indivíduo é um querido pai de família durante a noite e um perfeito burguês durante o dia. Ou seja, NOTAS DE INICIAÇÃO MARXISTA II Miciades_miolo.indd 33 30/04/2015 15:30:33 34 Milcíades Peña toda a série de contradições e aberrações que Charles Chaplin descreveu perfeitamente no filme Monsieur Verdoux no qual um homem respeitável, querido pai de família, sustentava-se explorando e assassinando mulheres. Outro aspecto da alienação é assinalado por Marx nos se- guintes termos: O homem se torna cada vez mais pobre enquanto homem, carece cada vez mais de dinheiro para se apoderar do ser hostil, e o poder de seu di- nheiro cai precisamente na relação inversa da massa de produção, ou seja, cresce sua penúria à medida que aumenta o poder do dinheiro. A carência de dinheiro é, por isso, a verdadeira carência produzida pela economia nacional [a economia política – N. do E.] e a única carência que ela pro- duz. A quantidade de dinheiro se torna cada vez mais seu único atributo poderoso [do homem]. [...] A imoderação e o descomedimento tornam- se a sua verdadeira medida... Em parte, este estranhamento [alienação] se mostra na medida em que produz, por um lado, o refinamento das carên- cias e dos seus meios; por outro, a degradação brutal, a completa simpli- cidade rude abstrata da carência. […] Mesmo a carência de ar livre deixa de ser, para o trabalhador, carência; o homem retorna à caverna, que está agora, porém, infectada pelo mefítico [ar] pestilento da civilização, e que ele apenas habita muito precariamente, como um poder estranho que dia- riamente se lhe subtrai, do qual ele pode ser diariamente expulso, se não pagar. Tem de pagar esta casa mortuária.[...] A imundície, esta corrupção, apodrecimento do homem, o fluxo de esgoto (isto compreendido à risca) da civilização torna-se para ele um elemento vital. […] [Isto quer dizer] não apenas que o homem deixa de ter quaisquer carências humanas, [mas que] mesmo as carências animais desaparecem. […] O selvagem, o ani- mal, ainda têm a carência da caça, do movimento etc., da socialidade23. Apenas na teoria da alienação encontramos o motivo da in- sistência marxista em ver no proletariado a raiz da emancipa- ção humana. Como explica Marx, A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoa- lienação humana. Mas, a primeira das classes se sente bem e aprovada nes- sa autoalienação, sabe que a alienação é o seu próprio poder e nela possui 23 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., pp. 139-141. Miciades_miolo.indd 34 30/04/2015 15:30:33 35O que é o marxismo? a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. […] Em seu movimento econômico-político, a propriedade privada se impulsiona a si mesma, em todo caso, à sua própria dissolução […], enquanto engendra o proletariado enquanto proletariado, enquanto engendra a miséria consciente de sua miséria espiritual e física, enquanto engendra a desumanização consciente – e portanto suprassun- sora24 - de sua própria desumanização. Se os escritores socialistas atri- buem ao proletariado esse papel histórico-mundial, isso não acontece, de nenhuma maneira […] pelo fato de eles terem os proletários na condição de deuses. Muito pelo contrário. Porque a abstração de toda humanidade, até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já é completa en- tre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do proletariado estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no prole- tariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúria absoluta- mente imperiosa - a expressão prática da necessidade -, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas de- sumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas próprias condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias con- dições de vida sem suprassumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação25. Por outro lado, sem compreender a teoria da alienação, não se pode entender o pensamento econômico de Marx, porque todo O Capital não é mais do que um desmascaramento da alie- nação humana tal qual aparece escondida nas categorias e leis econômicas da sociedade capitalista. A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade priva- da. Não nos explica o mesmo.[...] Nós partimos de um fato nacional-eco- 24 Suprassunção é uma das traduções possíveis do termo alemão aufheben, palavra que tem, ao mesmo tempo, o sentido de superação, incorporação e destruição (N. do E.). 25 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A sagrada família, São Paulo, Boitempo, 2011, pp. 48-49. Miciades_miolo.indd 35 30/04/2015 15:30:33 36 Milcíades Peña nômico, presente. O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e exten- são. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. […] Este fato nada mais exprime, senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. […] A vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha. […] A economia nacional oculta o estranhamento na essência do trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção26. Na reunião anterior houve aqui certas dúvidas e sorrisos cé- ticos sobre o caráter marxista da teoria da alienação. Pois bem, como já dissemos, a teoria da alienação não é uma ideia da juven- tude de Marx, que ele depois deixou de lado. A teoria da aliena- ção impregna todo o pensamento de Marx, todo o tempo. Em O Manifesto Comunista, Marx afirmou: Estes trabalhadores, que são obrigados a se vender diariamente, se compor- tam como uma mercadoria, como qualquer outro objeto de comércio. Eles estão consequentemente expostos a todas as mudanças da competição, a todas as flutuações do mercado. Devido ao uso extensivo da maquinaria e à divisão do trabalho, a ativida- de dos proletários perdeu todo o seu caráter independente, e consequen- temente, todo o encanto para o trabalhador. Ele torna-se um apêndiceda máquina e exige-se dele apenas a operação mais simples, mais monótona e mais fácil de aprender. […] Assim, à medida que o caráter enfadonho do trabalho aumenta, o salário decresce. […] Massas de operários, amon- toados na fábrica, são organizados como soldados. Como soldados indus- triais, eles são postos sob o comando de uma perfeita hierarquia de oficiais e sargentos. Eles não são apenas escravos da classe burguesa, e do Estado burguês. Diariamente e a cada hora, eles são escravizados pela máquina, pelo supervisor, e acima de tudo, pelo próprio manufatureiro burguês indi- vidual. Quanto mais abertamente este despotismo proclama o ganho como seu fim e objetivo, mais mesquinho, odioso e amargo ele se torna27. 26 MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., pp. 79-82. 27 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Manifesto do Partido Comunista, São Miciades_miolo.indd 36 30/04/2015 15:30:33 37O que é o marxismo? Isto em 1848; em 1856 Marx disse: Achamo-nos na presença de um grande fato, característico deste nosso século 19, um feito que nenhum partido se atreve a negar. Por um lado despertaram para a vida algumas forças industriais e científicas de cuja existência nenhuma das épocas históricas precedentes poderia sequer suspeitar. Por outro lado, existem alguns sintomas de decadência que su- peram de muito os horrores que registra a história dos últimos tempos do Império Romano. Hoje em dia, tudo parece levar em seu seio a sua pró- pria contradição. Vemos que as máquinas dotadas da propriedade mara- vilhosa de reduzir e tornar mais frutífero o trabalho humano provocam a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recém-des- cobertas se convertem, por artes de um estranho malefício, em fontes de privações. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao custo de qualidades morais. O domínio do homem sobre a natureza é cada vez maior; mas, ao mesmo tempo, o homem parece se tornar escravo de outros homens ou de sua própria infâmia. Mesmo a pura luz da ciência parece só poder brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossas inven- ções e progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nível de uma força material bruta28. É a mesma linguagem dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, onde se formula a teoria da alienação. Finalmente, é em O Capital, obra que coroa o pensamen- to marxista, escrito não na juventude mas na maturidade de Marx, que sai à luz em 1867, 23 anos depois dos Manuscritos econômico-filosóficos, que encontramos uma crítica detalhada à alienação e o incentivo à desalienação do homem, motor do pensamento marxista. Vejamos: O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simples- mente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do tra- balho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total Paulo, Editora Sundermann, 2008, 2ª edição, pp. 46-47. 28 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Textos escolhidos, v. 3, São Paulo, Alfa- omega, 1980, p. 298 Miciades_miolo.indd 37 30/04/2015 15:30:33 38 Milcíades Peña como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos pro- dutores. [...] É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma re- lação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras inde- pendentes que travam relação umas com as outras e com os homens. […] Estas [grandezas de valor das mercadorias] variam constantemente, inde- pendentemente da vontade, da previsão e da ação daqueles que realizam a troca. Seu próprio movimento social possui, para eles, a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de eles as controlarem.[...] O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza. A figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encon- tra-se sob seu controle consciente e planejado29. Desde já, é evidente que o trabalhador, durante toda sua vida, não é se- não força de trabalho, razão pela qual todo o seu tempo disponível é, por natureza e por direito, tempo de trabalho, que pertence, portanto, à auto- valorização do capital. Tempo para a formação humana, para o desenvol- vimento intelectual, para o cumprimento de funções sociais, para relações sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o tempo livre do domingo [...] é pura futilidade30! Os meios de produção convertem-se imediatamente em meios para a suc- ção de trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega os meios de produção, mas os meios de produção que empregam o trabalhador31. A divisão manufatureira do trabalho supõe a autoridade incondicional do capitalista sobre homens que constituem meras engrenagens de um mecanismo total que a ele pertence; […] a mesma consciência burguesa que festeja a divisão manufatureira do trabalho, a anexação vitalícia do trabalhador a uma operação detalhista e a subordinação incondicional 29 MARX, Karl, O Capital, op. cit., pp. 147; 150; 154. 30 Ibid., p. 337. 31 Ibid., p. 382. Miciades_miolo.indd 38 30/04/2015 15:30:33 39O que é o marxismo? dos trabalhadores parciais ao capital como uma organização do trabalho que aumenta a força produtiva denuncia com o mesmo alarde todo e qualquer controle e regulação social consciente do processo social de produção como um ataque aos invioláveis direitos de propriedade, liberdade e à “genialida- de” autodeterminante do capitalista individual. É muito característico que os mais entusiasmados apologistas do sistema fabril não saibam dizer nada mais ofensivo contra toda organização geral do trabalho social além de que ela transformaria a sociedade inteira numa fábrica32. [A manufatura] aleija o trabalhador, converte-o numa aberração, promo- vendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, do mesmo modo como, nos Estados de La Plata [a Argentina], um animal inteiro é abatido apenas para a retirada da pele ou do sebo. Não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial, conferindo assim realidade à fábula absurda de Menênio Agripa, que re- presenta um ser humano como mero fragmento de seu próprio corpo 33 . Os conhecimentos, a compreensão e a vontade que o camponês ou arte- são independente desenvolve, ainda que em pequena escala, assim como aqueles desenvolvidos pelo selvagem, que exercita toda a arte da guer- ra como astúcia pessoal, passam agora a ser exigidos apenas pela ofici- na em sua totalidade. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores indivi- duais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciên- cia comopotência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital. Na manufatura, o enriquecimento do trabalhador coletivo e, por con- seguinte, do capital em sua força produtiva social é condicionado pelo empobrecimento do trabalhador em suas forças produtivas individuais34. 32 Ibid., p. 430. 33 Ibid., p. 434. 34 Ibid., p. 435. Miciades_miolo.indd 39 30/04/2015 15:30:33 40 Milcíades Peña Da especialidade vitalícia em manusear uma ferramenta parcial surge a es- pecialidade vitalícia em servir a uma máquina parcial. Abusa-se da maqui- naria para transformar o trabalhador, desde a tenra infância, em peça de uma máquina parcial. […] Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina. Lá, o movimen- to do meio de trabalho parte dele; aqui, ao contrário, é ele quem tem de acompanhar o movimento. Na manufatura, os trabalhadores constituem membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, tem-se um mecanismo mor- to, independente deles e ao qual são incorporados como apêndices vivos. [...] Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele reprime o jogo multilateral dos músculos e consome todas as suas energias físicas e espirituais. Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu traba- lho de conteúdo. Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tec- nicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de traba- lho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o traba- lho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa dimi- nuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da na- tureza e do trabalho social massivo que estão incorporadas no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder do “patrão”35. [...] Assim como a reprodução simples reproduz continuamente a própria relação capitalista - capitalistas de um lado, assalariados de outro - a re- produção em escala ampliada, ou seja, a acumulação, reproduz a relação capitalista em escala ampliada - de um lado, mais capitalistas, ou capi- talistas maiores; de outro, mais assalariados. A reprodução da força de trabalho, que tem incessantemente de se incorporar ao capital como meio de valorização, que não pode desligar-se dele e cuja submissão ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais aos quais se vende, 35 Ibid., pp. 494-495. Miciades_miolo.indd 40 30/04/2015 15:30:33 41O que é o marxismo? constitui, na realidade, um momento da reprodução do próprio capital. […] Sob as condições de acumulação até aqui supostas como as mais fa- voráveis aos trabalhadores, a relação de subordinação destes ao capital aparece sob formas toleráveis ou, como diz Eden, “tranquilas e liberais”. Ao invés de se tornar mais intensa com o crescimento do capital, essa relação de dependência torna-se apenas mais extensa, quer dizer, a esfera de exploração e dominação do capital não faz mais do que ampliar-se juntamente com as próprias dimensões desse capital e com o número de seus súditos. Do próprio mais-produto crescente desses súditos, crescen- temente transformado em capital adicional, reflui para eles uma parcela maior sob a forma de meios de pagamento, de modo que podem ampliar o âmbito de seus desfrutes, guarnecer melhor seu fundo de consumo de vestuário, mobília etc. e formar um pequeno fundo de reserva em dinhei- ro. Mas assim como a melhoria de vestuário, alimentação, tratamento e um pecúlio maior não suprimem a relação de dependência e a exploração do escravo, tampouco suprimem as do assalariado. O aumento do preço do trabalho, que decorre da acumulação do capital, significa apenas que, na realidade, o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o trabalhador forjou para si mesmo permitem tomá-las menos constringentes. […] Por- tanto, as condições de sua venda, sejam elas favoráveis ao trabalhador em maior ou menor medida, incluem a necessidade de sua contínua revenda e a constante reprodução ampliada da riqueza como capital36. [Marxismo e filosofia] Vale a pena estudar a filosofia marxista - o que significa estudar toda a filosofia, antes e depois de Marx? Uma anedota pode nos orientar: Lenin começou a ler a Ciência da Lógica de Hegel logo após o começo da 1ª Guerra Mundial, entre setem- bro e dezembro de 1914. É que Lenin era um homem de ação, mas não de ação sem verdade. Para ele - e para o marxismo - a ação não se opõe ao pensamento; a ação exige o pensamento. Para o marxismo, a prática política é uma prática consciente. E para o marxismo, a prática não significa apenas adaptar-se ao existente, mas sim ter habilidade técnica para atuar sobre o existente. Para o marxismo, prática significa conhecimento profundo da realidade e ação plenamente consciente, ou seja, baseada no conhecimento. 36 Ibid., pp. 690; 694-695. Miciades_miolo.indd 41 30/04/2015 15:30:33 42 Milcíades Peña Por outro lado, sem compreender o pensamento filosófico, particularmente sem compreender a filosofia de Hegel, é im- possível compreender Marx. Com toda a razão disse Lenin em seus comentários sobre a Ciência da Lógica de Hegel: Não se pode compreender plenamente O Capital de Marx, e particular- mente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, meio século depois de Marx, nenhum marxista o compreendeu!37 Na linguagem popular falamos de “ser filosófico com as coi- sas”. Com isto queremos dizer que se deve encarar as coisas com paciência. Mas nesta frase vulgar há um núcleo de verdade que nos ajuda a entender o que é a filosofia. Pois ao dizer que “há que ser filosófico com as coisas” ou encará-las “filosoficamente”, fazemos um convite à reflexão, a empregar a própria capacidade racional para entender os problemas. E a filosofia é precisamen- te isso: enfrentar-se de uma maneira reflexiva com a realidade, incluindo nela o próprio pensamento; ir mais além dos primei- ros dados obtidos e extrair deles todas as implicações, todas as fases, todos os momentos e as relações que neles estão contidos. Nós vamos encarar agora alguns problemas e teses fundamen- tais da filosofia marxista. Ao fim desta reunião ninguém vai sair daqui “sabendo” fi- losofia marxista. Mas todos sairão sabendo, em termos gerais, que a filosofia marxista enfrenta tais e quais problemas, que os aborda de tal e qual modo, e que, para conhecer esse tema em profundidade, é indispensável ler as obras fundamentais do marxismo. Estas obras são, creio eu, A ideologia alemã de Marx e Engels, Lógica formal e lógica dialética de Henri Lefebvre, as Teses sobre Feuerbach de Marx e Filosofia e Socialismo de Antonio Labriola. E creio que há que lê-las nesta ordem, para 37 LENIN, Vladimir, Cadernos sobre a dialética de Hegel, Rio de Janeiro, UFRJ, 2011, p. 157 Miciades_miolo.indd 42 30/04/2015 15:30:33 43O que é o marxismo? captar com clareza o que é a filosofia marxista (bem entendido que se trata de um plano básico). [A dialética] Vamos encarar agora o problema da dialética. A dialética é um enfoque que trata de captar toda a realidade exatamente como é, e ao mesmo tempo como deveria ser, de acordo com o que ela mesma contém como potência. A dialética significa conhecer as coisas concretamente, com todas assuas caracte- rísticas, e não como entes abstratos, vazios, reduzidos a uma ou duas características. Por isso, a dialética significa ver as coisas em movimento, ou seja, como processos; por isso a dialética desvela e estuda a contradição que há no seio de toda unidade, e a unidade à qual tende toda contradição. O pensamento formal comum, que tem seu coroamento na ló- gica formal, tende a despojar da realidade a sua imensa riqueza de conteúdo, de sua infinita complexidade, e reduz tudo a esquemas e fórmulas vazias de conteúdo. Por isso a lógica formal diz: “Toda coisa é igual a si mesma” e diz também que “uma coisa é, ou não é”. Assim, se poupa o trabalho de ter em conta que na realidade viva todas as coisas ao mesmo tempo são e não são, posto que em tudo há movimento; e toda coisa é igual a si mesma, mas por vezes é diferente de si mesma, porque em seu seio há diferenças, e ao haver diferenças, há o germe das contradições. Levar em conta essa realidade; não renunciar a seu conhecimento nem falsear seu conhecimento, esquecendo a riqueza de conteúdo do real, con- tentando-se em conhecer partes isoladas e dissociadas de todas menos uma ou duas características; ao contrário, penetrar a fundo na realidade, captá-la tal como é, com sua infinita complexidade, com sua inesgotável riqueza de conteúdo - isso é dialética. No tempo que dispomos para nossos trabalhos não pode- remos estudar a dialética. Para isto – ou antes, para uma intro- dução ao estudo da dialética – necessitaríamos pelo menos da Miciades_miolo.indd 43 30/04/2015 15:30:33 44 Milcíades Peña mesma quantidade de reuniões como as que dedicaremos ao estudo de todo o marxismo. Mas o que é importante é deixar claro o seguinte: A realidade é maravilhosa e infinitamente rica em complexi- dade, em contradições, em movimento. Há dois enfoques para conhecê-la; • Um enfoque mais elementar, mais simples: o enfoque do pensamento comum. Esse enfoque diz: a realidade é excessi- vamente complexa; não posso captá-la tal como é, pois desse modo não entenderia nada. Para entendê-la tenho que to- mar as coisas uma de cada vez, separando-as, colocando-as uma ao lado da outra, evitando que se misturem ou mudem de lugar, ou que se transformem. Esse pensamento, que é abstrato, ou seja, que separa, que reparte o que na realidade está unido, é o pensamento formal abstrato. • Ao contrário, há um enfoque que tenta captar a realida- de como ela é: rica, contraditória, móvel. Este enfoque não se conforma em entender a realidade em partes e esvaziada de conteúdo; ao contrário, exige apreender a realidade com tudo aquilo que ela tem. Esse enfoque é, precisamente, o pensamento dialético. Com isto, fica dito que a dialética não se reduz de modo algum à série de leis que os manuais apresentam como dialé- tica: a transformação da quantidade em qualidade, a unidade dos contrários etc. Estas são apenas algumas das partes da dialética, que é a lógica, e nada além de partes. Colocá-las em separado do conjunto, como receitas a serem aplicadas à rea- lidade, é o mais antidialético que se pode conceber. Somente adentramos no terreno da dialética quando nos esforçamos em entender quando, onde e em que condições uma quanti- dade se transforma em uma qualidade, ou um polo se trans- Miciades_miolo.indd 44 30/04/2015 15:30:33 45O que é o marxismo? forma em seu oposto etc. Ou seja, só entramos no terreno da dialética quando nos esforçamos por captar a realidade viva, em sua totalidade, com seu movimento, suas contradições e suas mutações. Nas sociedades primitivas o homem pensava concretamen- te. Para o homem primitivo, em cada elemento da realidade se encontram o uno e o múltiplo, o quietismo e o movimento, a identidade e a diferença. O homem primitivo pensava dialetica- mente porque pensava em concreto, ou seja, via as coisas como totalidades, no conjunto, com toda a riqueza de seu conteúdo. Por isso a linguagem do homem primitivo pinta e descreve a realidade em toda a sua riqueza: o primitivo não diz “isto” em abstrato, diz “isto que toco”, “isto que está muito perto”, “isto que está de pé” ou “isto que está ao alcance da minha visão”. O primitivo não entende coisas isoladas, vê situações, conjuntos, totalidades. Do mesmo modo, as crianças muito pequenas não entendem as letras, mas entendem as palavras, ou seja, conjun- tos concretos que têm um sentido. Mas quando a humanidade começou a dominar a natureza e a conhecê-la melhor, podia e devia criar para si uma formidá- vel ferramenta intelectual, que é o conceito abstrato. O homem pôde deixar de ver as coisas em sua totalidade, pôde decom- pô-las em partes, pôde analizá-las, pôde fazer a abstração. O homem aprendeu a dizer “esse” em abstrato e “essa árvore” sem dizer “esta árvore verde aqui, nesta colina” como dizia o primi- tivo. O conhecimento apensa pode avançar assim, esmiuçando a realidade em partes. Assim avançaram as ciências naturais. A lógica formal, com sua afirmação de que uma coisa é ou não o é, coroou esta aspiração do pensamento abstrato e foi um for- midável avanço... mas foi, ao mesmo tempo, um enorme passo para trás também. Foi um avanço, pois ela possibilitou aplicar- se a uma análise minuciosa dos elementos e partes integrantes da realidade; permitiu o estudo intensivo dos mesmos e contri- Miciades_miolo.indd 45 30/04/2015 15:30:33 46 Milcíades Peña buiu para a imensa massa de conhecimentos que constituem as ciências naturais. Mas o pensamento abstrato e a lógica formal significaram também um formidável passo para trás, no senti- do que, por muitos séculos, se perdeu essa riqueza que carac- terizava o pensamento do homem primitivo, esse frescor da capacidade de apreender a realidade como é, como um todo complexo e em mudança, cheio de qualidades e atributos. A dialética recupera para o pensamento essa riqueza de conteúdo, essa criação, esse frescor do pensamento do ho- mem primitivo, mas incorpora nele o rigor, a precisão, a exa- tidão que foram obtidas por séculos de pensamento abstrato e lógica formal. Como disse Lefebvre, a dialética é a plena captação pelo pensamento humano de toda a efervescência tumultuosa da matéria, a ascensão da vida, a epopeia da evolução, inter- rompida repentinamente por catástrofes, enfim, todo o dra- ma cósmico. “A verdade está na totalidade”, disse Hegel, ou seja, a ideia verdadeira é a superação das verdades limitadas e parciais, que se transformam em erros ao serem considera- das estáticas. Apenas a captação da totalidade, onde se unem o igual e o distinto, o repouso e o movimento, o singular e o múltiplo, ou seja, apenas a captação do concreto pode nos dar a verdade. Nestas fórmulas - que não são fórmulas, mas a síntese de toda a prodigiosa evolução do pensamento hu- mano - está contido todo o pensamento dialético e esta é a genial contribuição de Hegel ao pensamento humano. A lógica formal diz que toda coisa é idêntica a si mesma. Mas para isso é preciso que seja diferente de todas as demais, de modo que a igualdade mais pura já supõe a diferença. No entanto, a lógica formal não considera isto. Por outro lado, o fato de que a igualdade, mesmo a mais abstrata, contenha em si a diferença, se revela em todo con- ceito no qual o predicado seja distinto do sujeito. Por exem- Miciades_miolo.indd 46 30/04/2015 15:30:33 47O que é o marxismo? plo, ao dizer a rosa é vermelha, dizemos que a rosa, sem deixar de ser uma rosa, é vermelha, ou seja, algo diferente de rosa. Se quiséssemos evitar esta diferenciação no seio da unidade, se desejássemos cumprir, rigorosamente, com o principio lógico formal, de que toda coisa é idêntica a si mesma e não pode ser idêntica e diferente, então o pensamento seria algo completa- mente vazio e os únicos conceitos seriam aqueles próprios de tolos, no estilo: a rosa é ... a rosa, a vida é... a vida etc. Enquanto quisermos criar conceitos inteligentes, conhecer as qualidades do real e captar sua complexidade, então fatalmente rompere-
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