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ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU SUMÁRIO Prefácio 4 Introdução 8 1. História da alfabetização 11 2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35 3. Avaliação, promoção, planejamento 61 4. O método das cartilhas 79 5. Panorama do processo de alfabetização 103 6. A decifração da escrita 119 7. Procedimentos para o estudo das letras 133 8. Sugestões de atividades na alfabetização 163 9. A produção de textos espontâneos 197 10. As hipóteses por trás dos erros 241 11. Ditado e cópia 287 12. Leitura e interpretação de texto 311 13. Ortografia da língua portuguesa 341 Apêndice — A categorização gráfica das letras 359 Bibliografia 389 Índice de tópicos por capítulo 397 PREFÁCIO Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é, sem dúvida, um livro pioneiro. O próprio título já evidencia o seu pioneirismo: uma nova proposta de metodologia da alfabetização, totalmente liberta do método silábico, cartilhesco ou não. Ao contrário do que se pode imaginar, não é apenas quando nos utilizamos da cartilha que o método silábico do bá-bé-bi-bó- bu se encontra subjacente à prática de ensinar a ler e escrever. Como bem mostra o autor, mesmo em práticas consideradas inovadoras e bem distantes da cartilha, a única tábua de salvação, para muitos professores, é voltar ao antigo bê-a-bá. Outra grande inovação (diríamos até "evolução") trazida por este livro é colocar no centro da discussão da aquisição da leitura e da escrita a noção de ortografia, ausente de qualquer outra abordagem do assunto já conhecida. Não nos referimos à ortografia apenas como uma meta a ser atingida no final do processo, mas como a noção fundamental que sustenta o nosso sistema de escrita. O autor nos mostra que, ao contrário do que comumente se pensa, nosso sistema de escrita não é apenas alfabético (o que o tornaria uma mera transcrição fonética), mas ortográfico (servindo a ortografia, entre outras coisas, para anular a variação lingüística no nível da palavra). Assim, a partir de considerações a respeito da própria natureza do nosso sistema de escrita, e de como isto interfere no processo de alfabetização, vemos como a ortografia deve ser considerada desde o início do processo e não como objetivo final — como o fazem tanto os métodos tradicionais baseados no bá- bé-bi-bó-bu, como também os ditos construtivistas, que dividem a aquisição da linguagem escrita em níveis (pré-silábico, silábico e alfabético), os quais não encontram correspondência exata em qualquer sistema de escrita conhecido, menos ainda em um sistema de escrita ortográfico como o nosso. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é uma obra voltada para a formação do professor alfabetizador. Discute a teoria da aquisição da linguagem escrita e fornece subsídios ao professor que tiver coragem, vontade, ou simplesmente necessidade, imposta pelo seu cotidiano de alfabetizador, de mudar. É o resultado de quase vinte anos de dedicação do autor à causa da alfabetização e de seus mais de trinta anos como lingüista. ~, <4> Representa, pois, a visão de um lingüista sobre o processo de aquisição da leitura e da escrita e a sua contribuição, como professor, para a educação do país, de um modo mais geral. O autor afirma que um professor que tenha os conhecimentos apresentados neste livro consegue conduzir com calma e segurança o processo de alfabetização e tem chances de alfabetizar uma criança a partir dos cinco anos ou um adulto em dois ou três meses — o que significa uma enorme conquista, dados os alarmantes níveis de analfabetismo no Brasil. Isso porque os conhecimentos apresentados independem do tempo histórico e do espaço geográfico, já que dizem respeito diretamente à natureza, função e usos da linguagem oral e escrita e não estão subordinados a métodos pedagógicos. As estratégias de ensino podem variar de professor para professor, mas o conhecimento da linguagem oral e escrita é uma aquisição da ciência e, desse modo, depende única e exclusivamente do progresso da ciência. E nesse sentido, a ciência Lingüística já tem um conjunto considerável de conhecimentos solidamente estabelecidos, dos quais uma parte é colocada aqui à disposição para uma aplicação à educação. Na sua carreira acadêmica, Luiz Carlos Cagliari tem trabalhado com três linhas de pesquisa: fonética e fonologia, sistemas de escrita e alfabetização. Nas três áreas, além de ter produzido muitas pesquisas, que resultaram em várias publicações, seu percurso como professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp inclui cursos na graduação em Letras e Lingüística e na pós-graduação em Lingüística, além de comunicações em reuniões científicas importantes, dentro e fora do país. No entanto, este livro não pode ser considerado apenas o resultado de uma pesquisa desenvolvida do lado de dentro dos portões da universidade, desvinculada da realidade de sala de aula dos professores alfabetizadores do país. O contato e trabalho conjunto do autor com os professores alfabetizadores vêm já de longa data. O ano de 1980 é uma data-chave para a compreensão do seu envolvimento com os estudos de alfabetização. Nessa ocasião, uma equipe da CENP o convidou para ministrar um curso de fonética acústica para professores alfabetizadores, uma vez que, segundo os especialistas, os erros de troca de letras cometidos pelos alunos eram devidos ao fato de os professores não conhecerem o assunto, não tendo, portanto condições de resolverem o problema quando ele se manifestava. ~, <5> Analisando a questão, ele concluiu que os problemas não se restringiam à fonética acústica, mas envolviam falhas sérias no processo de alfabetização, devido à falta de conhecimento lingüístico. Esse curso, realizado com a colaboração de uma de suas colegas de departamento na Unicamp, a Drª Maria Bernadete Abaurre, e do Dr. Márcio Silva, foi o início de um longo caminho de pesquisa e de cooperação com órgãos públicos, faculdades e, sobretudo, com professores alfabetizadores, que forneciam ao autor material produzido pelos alunos. Começou a organizar assim um enorme arquivo de produções infantis. No ano seguinte, a convite da equipe pedagógica da Secretaria de Educação de Alagoas, juntamente com Maria Bernadete, Luiz Carlos Cagliari ministrou um curso para professores alfabetizadores. Na ocasião, foi possível pôr em prática as novas orientações propostas no curso da CENP, sobretudo, convencendo os professores a deixar seus alunos produzirem textos espontâneos. O que parecia a eles uma loucura logo se revelou uma grata surpresa. A evidência dos fatos mostrou a dimensão da capacidade dos alunos e que seus erros, mais do que "falhas", revelavam hipóteses que os levavam a fazer opções diante da escrita. No ano de 1983, destaca-se sua participação no I Seminário Multidisciplinar: Alfabetização, realizado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nessa ocasião, apresentou um trabalho intitulado A formação do professor alfabetizador, em que já aparece um esboço de suas principais idéias sobre o processo de alfabetizar. Neste mesmo ano, outra colega sua do departamento de Lingüística da Unicamp, a Drª Cláudia Lemos, organizou um encontro sobre Linguagem, Aprendizagem e Interação. Ela já conhecia o trabalho do autor na área de alfabetização e achava que correspondia em grande parte ao que faziam os construtivistas, sobretudo uma psicóloga que tinha encontrado na Europa, chamada Emília Ferreiro. Nesse encontro foram apresentadas as idéias do construtivismo, que, a partir daí, invadiram os programasde alfabetização. Para esse evento, o autor levou os textos espontâneos dos alfabetizandos de Alagoas e de Campinas com os quais ele havia trabalhado, expondo-os em dois varais que acompanhavam toda a extensão do corredor do pavilhão dos professores. Todos ficaram impressionados, e os textos forneceram material para muita discussão.~, <6> Em 1984, o autor já, havia juntado grande quantidade de trabalhos sobre os mais variados tópicos da alfabetização relacionados com a fala, a escrita e a leitura. Esse material iria formar, mais tarde, o livro Alfabetização e lingüística, publicado pela Scipione em 1989. Um dos trabalhos que não entrou naquele livro foi o "Roteiro de sugestões para professores alfabetizadores", que serviu de embrião para esta obra que ora prefaciamos, cuja versão preliminar foi escrita nos dois primeiros meses de seu estágio de pós-doutoramento em Londres, em 1987, e depois foi intensamente discutida e levada à sala de aula por professores alfabetizadores de várias regiões do país. Já em 1985, Luiz Carlos Cagliari participou do Projeto Ipê, coordenado pela CENP Nessa ocasião, publicou o artigo "Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na escola", que teve enorme repercussão. Com o material desse artigo, foi feito o roteiro para um programa da TV Cultura relacionado com o Projeto Ipê. Paralelamente a isso, começaram a ser publicados no Brasil artigos de Emília Ferreiro e suas idéias apareceram também no Projeto Ipê. A pesquisadora Telma Weisz, discípula de Ferreiro passou a liderar a divulgação do construtivismo no estado de São Paulo, com o apoio da CENP e, sobretudo depois, com a FDE. Nessa época, já era notória a discordância do autor (ver o artigo "O príncipe que queria ser sapo") e de outros lingüistas com relação às interpretações de Emília Ferreiro a respeito do processo de letramento. A opção pelo construtivismo e, de certo modo, sua imposição às atividades da rede pública deixaram em um plano secundário as críticas e outras formas de pensar e de fazer o processo de alfabetização. Apesar disso, Luiz Carlos Cagliari continuou pesquisando com empenho e profundamente, até a formação de um conjunto de idéias sólidas, bem fundamentadas, que explicam não só como alguém se alfabetiza, mas também como tirar alguém do "mau caminho" e fazer com que supere seus obstáculos e consiga se alfabetizar. São estas as idéias apresentadas no presente livro. Atualmente, seus olhos voltam-se para um novo horizonte: a alfabetização de adultos. Continua sua luta incansável contra o analfabetismo e por rumos melhores para a alfabetização dos que efetivamente conseguem chegar até a escola. Gladis Massini-Cagliari. ~, <7> INTRODUÇÃO Em 1981, baseando-me na experiência de alfabetização de meu filho Daniel na Escócia (1976), disse para muitos professores (em cursos e palestras) que as crianças podiam escrever textos já no início da alfabetização, passando da capacidade de produzir textos orais para a representação escrita, mesmo sem saber bem a grafia das palavras. Fui então considerado um maluco, que nunca tinha alfabetizado alguém. Bastou a coragem de alguns professores, já no ano seguinte, para que todos descobrissem que isso era possível. Com o trabalho de colegas como Maria Bernadete Abaurre e João Wanderley Geraldi e com a divulgação das idéias de Emília Ferreiro, o que era medo de ensinar tornou-se procedimento comum com relação à produção de textos espontâneos na alfabetização e de livrinhos de classe em todas as séries iniciais. Neste livro, há um outro desafio: ensinar a ler a partir da reflexão sobre o processo de alfabetização, tornando conscientes para o professor e o aluno as regras de decifração da escrita. As crianças gostam de aprender coisas sérias, ensinadas com seriedade — e é isto o que mais falta hoje na escola. Esse desafio é fruto de extenso estudo sobre o processo de alfabetização, ponderando as implicações dos estudos da linguagem no modo como as crianças usam a fala, a escrita e a leitura. Além disso, leva-se em consideração uma investigação profunda da história da escrita, da natureza e usos dos sistemas de escrita. Sem esse suporte lingüístico e esse conhecimento dos sistemas de escrita, grande parte da problemática do processo de letramento fica distorcida, não raramente levando os estudiosos por caminhos sem saída. A simples aplicação de um método ou de uma teoria conduz facilmente o processo pedagógico a reproduzir um modelo. Nesse contexto, os alunos precisam se virar com os recursos do modelo. E se não der certo, se o aluno, apesar das repetições a que é submetido, não conseguir se alfabetizar? Essa preocupação sempre foi a central de todos os meus estudos. A única saída para impasses como esse — e, por que não, para conduzir tranqüilamente um processo de letramento — é o conhecimento sofisticado e correto das questões lingüísticas relacionadas à alfabetização, bem como do funcionamento dos sistemas de escrita. Idéias simples, porém, fundamentais, como a variação lingüística e o fato de a ortografia ter modificado ~, <8> profundamente o sistema alfabético, quando ausentes ou mal interpretadas na escola, podem criar grandes embaraços para a aprendizagem do aluno e um quebra-cabeça extremamente complicado para a ação do professor. Tenho certeza (pois também já constatei na prática) de que os professores irão descobrir nos procedimentos sugeridos neste livro uma forma nova e segura de alfabetizar. Não basta deixar de lado o livro das cartilhas; é preciso deixar de lado o método das cartilhas, o ensino centrado na noção de sílaba como unidade privilegiada da escrita e da leitura. Ensinar as crianças a tornar conscientes os procedimentos de decifração da escrita é uma estratégia que as agrada mais do que ficarem repetindo coisas aparentemente sem sentido, ou ser largadas à própria sorte, esperando que saiam de dentro de si os conhecimentos que a escola exige para ler e escrever. A proposta deste livro é ensinar de maneira clara e com precisão como se faz para aprender a ler e a escrever — o que corresponde exatamente às expectativas das crianças. O fato de ser este livro volumoso, abrangendo um assunto complicado, não deve ser motivo de receio para os professores, que sentirão seu trabalho facilitado e valorizado com a adoção de uma nova postura em sala de aula. As crianças vão se sentir valorizadas também em suas descobertas, ganhando maior segurança ao observarem seu próprio progresso. Para o professor, no começo, talvez esta apresentação do processo de alfabetização possa parecer muito técnica e fora da realidade pedagógica e psicológica das crianças. Lembro que o mesmo me diziam quando afirmava que as crianças eram capazes de produzir textos espontâneos, passando dos conhecimentos que tinham da linguagem oral para a forma escrita. Hoje, todos concordam que produzir textos é algo que as crianças fazem com facilidade, criatividade e prazer. Com o tempo, mesmo problemas altamente complexos passam a ser vistos como desafios comuns quando se familiariza com eles e com as soluções necessárias. Um bom exemplo disso no mundo moderno é a maneira como as crianças lidam com os jogos de vídeo games. Depois de certa prática, aprendendo uma quantidade enorme de regras, jogam com facilidade, para espanto de quem não é capaz. Outro exemplo mais próximo de nosso assunto está no próprio fato de as pessoas que aprenderam a ler e a escrever (e isso se constata já nas primeiras séries) tiveram de passar por todas essas regrase por todos os ~, <9> conhecimentos "técnicos" que constituem o objetivo deste livro. Na verdade, não há outra saída. O que existe são os caminhos diferentes para se obter um resultado. Como costumo dizer, alguém pode ir de São Paulo ao Piauí andando a pé, a cavalo ou de avião. Há muitas escolhas, mas nem todas têm o mesmo valor. Para juntar conhecimentos teóricos com metodologias ou estratégias de ação, foi preciso me alongar no assunto, dado o volume de informação e a necessidade de clareza na exposição. O livro está dividido em treze capítulos e um apêndice. Para auxiliar na pesquisa do professor que está em busca dos conhecimentos básicos há uma breve história da alfabetização, uma sucinta apresentação da história da ortografia da língua portuguesa e o apêndice, no qual as letras são estudadas individualmente, mostrando as facilidades e dificuldades de seu ensino e aprendizagem. O método das cartilhas mereceu um estudo à parte, para contrastar com o que se propõe: deixar de lado o bá-bé-bi-bó-bu e partir para um trabalho de pesquisa envolvendo professor e alunos. Algumas questões pedagógicas, como a avaliação, a promoção e o planejamento escolar, tiveram de ser abordadas em vista de suas conseqüências para a ação do professor e do aluno. O que se propõe é que a escola ensine os alunos a estudar, a trabalhar com os conhecimentos, e não com o objetivo menor de ganhar nota e passar de ano. A parte principal do livro concentra-se nos procedimentos para o estudo das letras, com sugestões de atividades e destaque especial para a produção de textos espontâneos. Os problemas que o aluno e o professor encontrarão são analisados e discutidos em detalhes, mostrando, por um lado, o que é preciso saber para decifrar a escrita e, conseqüentemente, ler e escrever, e, por outro, quais as hipóteses que os alunos apresentam quando erram e como não cair em impasses que impedem o progresso desses alunos. Outras atividades importantes foram também consideradas, como o ditado, a cópia e a interpretação de textos. Este livro pretende ser uma contribuição a mais (há tantas coisas interessantes e importantes que têm sido apresentadas aos professores alfabetizadores nas duas últimas décadas...) para que se entenda melhor o processo de alfabetização. O objetivo não foi fazer um livro teórico nem um manual do professor, mas apresentar, discutir e sugerir idéias que o autor pesquisou, que foram amplamente discutidas com pesquisadores e, sobretudo, com professores alfabetizadores. ~, <10> Gladis Massini-Cagliari é professora assistente doutora de língua portuguesa do Departamento de Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara. É mestre e doutora em lingüística pelo Departamento de Lingüística da Unicamp e autora de trabalhos publicados na área de alfabetização, fonologia, lingüística histórica e lingüística textual. Interlocutora privilegiada do autor por ser sua mulher e tê-lo conhecido como professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, vem acompanhando seu percurso como lingüista e, a partir de 1991, passou a colaborar ativamente em seus trabalhos na área de alfabetização. 1 História da alfabetização Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras da alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o sistema de escrita funciona e saber como usá-lo apropriadamente. A alfabetização é, pois, tão antiga quanto os sistemas de escrita. De certo modo, é a atividade escolar mais antiga da humanidade. Para que os sistemas de escrita continuem a ser usados, é preciso ensinar às novas gerações como fazê-lo. Quando esse elo se rompe, por abandono ou porque é trocado por outro modelo, a escrita antiga passa a ser um sistema sem decifração. Nesses casos, só com muito estudo, e também com um pouco de sorte da parte dos decifradores dessas escritas abandonadas, as regras que envolvem tais sistemas voltam a ser conhecidas, permitindo assim que os textos antigos sejam lidos e que a escrita possa ser novamente utilizada. Na história da escrita, registram-se apenas dois casos de povos que empregavam um sistema de escrita e que, por alguma razão estranha e desconhecida, deixaram de fazê-lo, ficando por um longo tempo sem utilizar qualquer sistema. Isso aconteceu com os gregos e com os indianos. A escrita cretense minóica (Linear B) foi usada pela cultura grega micênica até 1250 a.C., quando Micenas foi destruída. Os gregos voltaram a escrever somente 500 anos mais tarde, usando o alfabeto semítico. No vale do rio Indo, houve um sistema de escrita ainda não decifrado que só foi empregado por volta de 2500 a.C. Naquela região, a escrita só ressurgiria muito tempo depois, no século III a.C., com a escrita brãmane. Curiosamente, esses dois tipos de escrita, ao que tudo parece, tiveram um uso muito popular, ou seja, não ficaram restritos a atividades religiosas ou científicas. Mesmo guerras muito violentas nunca interromperam o conhecimento da escrita, razão pela qual esses dois casos são considerados hoje misteriosos. ~, <12> Estudando atentamente os sistemas de escrita, percebe-se que quem os inventou sempre teve a preocupação de fornecer a chave da decifração juntamente com o próprio sistema. Os sistemas de escrita nunca tiveram nada de muito estranho ou misterioso em si, pelo contrário, sempre foram simples e práticos. Por essa razão, ensinar as novas gerações a usar o sistema de escrita sempre foi uma tarefa fácil e de certa forma banal. < CAGLIARI, 1996b,p. 106-24. A antiga civilização da ilha de Creta usou dois sistemas de escrita que os estudiosos chamaram de Linear A e B. O primeiro representara uma língua desconhecida e foi decifrado somente em parte. O segundo representava a língua grega arcaica e foi decifrado. A LEITURA E A ESCRITA NA ANTIGUIDADE HAMURABI, da Babilônia entre os anos de 1792 e 1750 a.c., fundador do Império Babilônico. Seu código é o mais extenso conjunto de leis conhecido da Antiguidade. Os sistemas de escrita estabelecidos na história dos povos nunca foram privilégio de ninguém. É falsa a idéia de que na Antiguidade somente os sacerdotes, os reis ou pessoas de grande poder dominassem a escrita e a usassem como um segredo de Estado. Essa é uma idéia errada e estranha, que não faz sentido algum, bastando lembrar como argumento que a escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche todas as paredes e até colunas com escrita e exibe isso publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor maneira de guardar um segredo de Estado. Ao ler o que ele mandou escrever, ficamos sabendo que, às vezes, o texto tem como interlocutor o próprio povo, súdito do monarca. Na Mesopotâmia, Hamurabi mandou publicar em praça pública um código de leis para que o povo soubesse sob quais leis vivia e como deveria se portar em sociedade. O que tem perturbado aqueles que acreditam ser a escrita um privilégio das pessoas poderosas é o fato de terem chegado até nós grandes obras da Antiguidade. Certamente essas obras foram feitas por especialistas, assim como, hoje em dia, um livro de engenharia é escrito por um engenheiro, um livro de medicina por um médico, um livro de religião por um teólogo e assim por diante. Isso não significa que somente engenheiros, médicos e teólogos conheçam a escrita no mundo moderno. Costumo dizerque quem inventou a escrita foi a leitura: um dia, numa caverna, o homem começou a desenhar e encheu as paredes com figuras, representando ~, <13> animais, pessoas, objetos e cenas do cotidiano. Certo dia recebeu a visita de alguns amigos que moravam próximo e foi interrogado a respeito dos desenhos. Queriam saber o que representavam aquelas figuras e por que ele as tinha pintado nas paredes. Naquele momento, o artista começou a explicar os nomes das figuras e a relatar os fatos que os desenhos representavam. Depois, à noite, ficou pensando no que tinha acontecido e acabou descobrindo que podia "ler" os desenhos que tinha feito. Ou seja, os desenhos, além de representar objetos da vida real, podiam servir também para representar palavras que, por sua vez, se referiam a esses mesmos objetos e fatos na linguagem oral. A humanidade descobria assim que, quando uma forma gráfica representa o mundo, é apenas um desenho; mas, quando representa uma palavra, passa a ser uma forma de escrita. A partir dessa descoberta, criar um sistema de formas gráficas, figurativas ou não, para representar palavras ou frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado. A história contada acima é obviamente fantasiosa e não corresponde aos fatos reais, mas revela algo importante, que não pode ser captado pelos documentos materiais da história, porque pertence ao reino do pensamento. Provavelmente, a necessidade de um sistema de escrita veio de situações vividas. De acordo com fatos comprovados historicamente, a escrita surgiu do sistema de contagem feito com marcas em cajados ou ossos, e usado provavelmente para contar o gado, numa época em que o homem já possuía rebanhos e domesticava os animais. Esses registros passaram a ser usados nas trocas e vendas, representando a quantidade de animais ou de produtos negociados. Para isso, além dos números, era preciso inventar símbolos para os produtos e para os nomes dos proprietários. Nessa época de escrita primitiva, ser alfabetizado significava saber ler o que aqueles símbolos significavam e ser capaz de escrevê-los, repetindo um modelo mais ou menos padronizado, mesmo porque o que se escrevia era apenas um tipo de documento ou texto. Com a expansão do sistema de escrita, a quantidade de informações necessárias para que alguém soubesse ler e escrever aumentou consideravelmente, o que obrigou as pessoas a abandonar o sistema de símbolos para representar coisas e a usar cada vez mais símbolos que representassem sons da fala, como, por exemplo, as sílabas. Como há cerca de 60 tipos de sílabas diferentes ~, <14> por língua, em média, o sistema de símbolos necessários para representar as palavras através das sílabas ficou muito reduzido, fácil de ser memorizado e conveniente para a difusão da escrita na sociedade. O longo processo de invenção da escrita também incluiu a invenção de regras de alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito e saber como o sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente. A escrita, pelo que se sabe hoje, começou de maneira autônoma e independente, na Suméria, por volta de 3300 a.C. É muito provável que no Egito, por volta de 3000 a.C., e na China, por volta de 1500 a.C., esse processo autônomo tenha se repetido. Os maias da América Central também inventaram um sistema de escrita independentemente de um conhecimento prévio de outro sistema de escrita, num tempo indeterminado ainda pela ciência, que talvez se situe por volta do início da era cristã. Todos os demais sistemas de escrita foram inventados por pessoas que tiveram, de uma maneira ou de outra, contato com algum sistema de escrita. Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler algo já escrito e depois copiando. Começavam com palavras e depois passavam para textos famosos, que eram estudados exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da alfabetização. Note que essa atividade está diretamente ligada ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar, escrevendo para a sociedade e a cultura da época. Muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que não pretendiam tornar-se escribas. A curiosidade, certamente, levava muita gente a aprender a ler para lidar com negócios, comércio e até mesmo para ler obras religiosas ou obter informações culturais da época. A alfabetização, nesses casos, dava-se com a transmissão de conhecimentos relativos à escrita de quem os possuía para quem queria aprender. Aprender a decifrar a escrita, ou seja, a ler, relacionando os caracteres às palavras da linguagem oral, devia ser o procedimento comum. Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber ler. Para quem sabe ler, escrever é algo que vem como conseqüência. Com a escrita semítica aconteceu algo muito curioso e que, sem dúvida alguma, foi proposital para facilitar o uso do sistema de escrita e sobretudo o seu aprendizado, ou seja, o processo de alfabetização. <15> Ao formar seu sistema de escrita, os semitas escolheram um conjunto de palavras cujo primeiro som fosse diferente dos demais. Como nenhuma palavra naquelas línguas começasse por vogal, a lista ficou apenas com consoantes. Essa escolha foi urna decisão muito importante porque reduziu os modelos de silabários da época, da escrita cuneiforme, por exemplo, de cerca de 60 elementos para apenas 21 consoantes. Para representá-las graficamente, foram escolhidos hieróglifos egípcios cujo aspecto figurativo lembrava o significado das palavras daquela lista. Por exemplo, a primeira palavra da lista era 'alef, que significava "boi", e o hieróglifo escolhido foi o que representava a cabeça de um boi. Dessa maneira, a figura da cabeça do boi passou a representar o som inicial da palavra 'alef, que era oclusiva glotal. E assim com as demais palavras e suas respectivas consoantes. Uma outra novidade decorreu desse fato: as palavras da lista passaram a ser os nomes das letras que representavam a consoante inicial dessas palavras. Além disso, esse nome passou a ser a chave para se saber que som a letra representava: aief representava a oclusiva glotal, por exemplo. A escolha de uma lista de palavras como essa constitui o que se chama de princípio acrofônico, ou seja, o som inicial do nome das letras é o som que a letra representa: o desenho da cabeça de boi representa o som da oclusiva glotal, porque o nome dessa letra é 'alef A segunda letra era Beth, representada por um hieróglifo que retratava a figura de uma casa; era usada para o som de B e significava "casa". A terceira letra era o Daieth, que significava "porta" e representava o som de D; tinha a forma gráfica da figura de uma porta, tirada também de um hieróglifo egípcio, e assim por diante. O princípio acrofônico foi uma das melhores idéias que apareceram nos sistemas de escrita: além de permitir uma grande simplificação no número de letras, trazia de forma óbvia como se devia proceder para ler e escrever. Uma vez identificada a letra pelo nome, já se tinha um som para ela. Juntando os sons das letras das palavras em seqüência, tinha-se a pronúncia de uma dada palavra — o que, feitos os devidos ajustes, dava o resultado final de sua pronúncia; e, pronunciando, o significado vinha automaticamente. Para se alfabetizar nesse sistema de escrita, bastava a pessoa decorar a lista dos nomes das letras, observar a ocorrência de consoantes nas palavras e transcrever esses sons consonantais, usando o princípio acrofônico.Para escrever David, por exemplo, bastava identificar as consoantes DVD, procurar, na lista de letras, aquelas que começam com sons de D e V e escrevê-las. Já os gregos, como precisassem fazer alguns ajustes nas próprias consoantes, uma vez que, em grego, o conjunto de consoantes era diferente daquele das línguas semíticas, resolveram escrever não apenas as consoantes, mas também as vogais, mantendo o mesmo princípio acrofônico. Assim, por exemplo, a letra egípcia que representava pictograficamente a cabeça de um boi foi usada, como vimos, pelos semitas para representar uma consoante oclusiva glotal, e a letra recebeu o nome da palavra que significava boi, ou seja, 'alef. Como em grego não houvesse consoante oclusiva glotal, a letra 'alef passou a representar a vogal A, agora denominada alfa. Apesar de manter o princípio acrofônico, os gregos adaptaram os nomes das letras semíticas para a sua língua. Para eles, a alfabetização acontecia de maneira semelhante à dos semitas, com a única diferença de que os gregos tinham de detectar na fala não apenas as consoantes, mas também as vogais, para escreverem alfabeticamente. Como sempre, a ortografia fixou a forma de escrita das palavras, para evitar que falantes de dialetos diferentes escrevessem as mesmas palavras de maneiras diferentes, seguindo apenas a observação da própria fala e o valor fonético das letras. Quando os gregos passaram a usar o alfabeto, aprender a ler e a escrever tomou-se urna tarefa de grande alcance popular. De fato, pode-se mesmo dizer que na Grécia antiga havia as escolas do alfabeto. Os romanos assimilaram tudo o que puderam da cultura grega, inclusive o alfabeto. Práticos como sempre, acharam interessante o princípio acrofônico do alfabeto grego, mas perceberam que não precisavam ter nomes especiais para as letras: era mais simples ter como nome da letra apenas o próprio som dela. Dessa forma, mantinha-se o princípio acrofônico e ficava ainda mais fácil usar o alfabeto e se alfabetizar. Foi assim que alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc. transformaram-se em a, bê, cê, dê, e, etc. Os semitas, os gregos e os romanos nos deixaram alguns "alfabetos": tabuinhas ou pequenas pedras ou chapas de metal onde se encontravam todas as letras, na ordem tradicional dos alfabetos. Na verdade, serviam ~, <17> de guia para as pessoas aprenderem a ler e a escrever, ou mesmo quando fossem escrever. Tais documentos foram, por assim dizer, as mais antigas "cartilhas" da humanidade: uma cartilha que continha apenas o inventário das letras do alfabeto. A alfabetização, na Idade Média, em geral ocorria menos nas escolas do que na vida privada das pessoas: quem sabia ler ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das letras do alfabeto em determinada língua, a forma ortográfica das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas variações. Aprender a ler e a escrever não era uma atividade escolar, como na Suméria ou mesmo na Grécia antiga. Nessa época, como as crianças já não iam mais à escola, as que podiam eram educadas em casa pelos pais, por alguém da família ou até mesmo por um preceptor contratado para essa tarefa. Isso se estende desde a época clássica latina até o século XVI d.c. Como o alfabeto tinha no nome das letras o princípio acrofônico, que é a chave de sua decifração, bastava o aprendiz decorar o nome das letras para ter condições de iniciar a decifração da escrita, a qual se completava quando, somando-se os valores das letras, descobria-se que palavra estava escrita. Isso era altamente facilitado pelo fato de os aprendizes serem falantes da língua que estavam decifrando, o que ajuda em muito as tentativas para descobrir, entre as várias possibilidades, a leitura correta. O contexto lingüístico e as ilustrações sempre ajudaram com informações complementares, facilitadoras do processo de decifração. Vê-se, pois, que a alfabetização pode perfeitamente acontecer fora da escola e do processo escolar, podendo ser feita em casa se a isso as pessoas se dedicarem. Ainda hoje, muitas pessoas aprendem a ler em casa: algumas porque decidiram não esperar a escola chegar, outras porque foram expulsas da escola e resolveram aprender fora da tradição escolar. Um exemplo famoso desse último caso é Thomas Edison. Com o uso cada vez maior da escrita na sociedade e com a produção crescente de livros escritos à mão (e depois impressos), o alfabeto passou a ter um problema a mais: foram surgindo formas variantes de representação gráfica das letras (sem modificar o inventário do alfabeto). Isso fez com que uma letra passasse a ser apenas um valor abstrato do alfabeto, que podia ser representado por muitas formas gráficas, as quais, agora, o usuário do sistema de escrita tinha de conhecer. <18> A primeira manifestação desse fato aconteceu quando das letras capitais (as maiúsculas — que eram as únicas do sistema de escrita latina) surgiram as letras minúsculas com forma gráfica diferente das antigas, que passaram a chamar-se maiúsculas. Isso aconteceu sem que as letras perdessem seu valor fonético e sem que a ortografia das palavras mudasse. Agora, o usuário da escrita precisava saber que 'A" e "a" são a mesma letra e, portanto, "CASA' equivale a "casa". Isso trouxe um problema novo e complicado para a alfabetização e para os leitores, em geral. Não bastava saber o alfabeto, seu princípio acrofônico e a ortografia: era preciso, ainda, saber fazer a categorização correta das formas gráficas, reconhecendo a que categoria pertence cada letra encontrada nas diferentes manifestações gráficas da escrita. Nesse caso, a ortografia mostrou uma vantagem a mais: além de servir para neutralizar a variação lingüística na escrita, do ponto de vista fonético, passou a ser o guia interpretativo do valor da variação gráfica das próprias letras. Este último aspecto pode ser observado ainda hoje, quando descobrimos (ou desconfiamos) que letra está escrita, ao analisar o todo. Como sabemos, ainda através da ortografia, quais letras devem compor aquela palavra, acabamos nos convencendo de que determinada forma gráfica está representando uma letra e não outra. Na escrita cursiva, esse princípio é posto em prática a todo instante. Notas Thomas Alva Edison (1931), considerado um dos maiores inventores do milênio, era americano de Milan Obio. Patenteou 1093 inventos, inclusive a lâmpada elétrica o gravador o microfone e o projetor de cinema. Freqüentou a escola por apenas três meses, sendo dispensado por ser "confuso de cabeça e não conseguir aprender". Nunca mais voltou para a escola tornando-se um autodidata com a ajuda da mãe, uma es- professora. O APARECIMENTO DAS CARTILHAS Com o Renascimento (séculos XV e XVI) e, sobretudo, com o uso da imprensa na Europa, a preocupação com os leitores aumentou, uma vez que agora se faziam livros para um público maior, e a leitura de obras famosas deixou de ser coletiva para se tornar cada vez mais individual. Por isso, a preocupação com a alfabetização passou a ter uma importância muito grande. A primeira conseqüência disso foi o aparecimento das primeiras "cartilhas". Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das línguas neolatinas, e esse foi outro motivo que levou os gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim. <19> A seguir apresentamos um breve apanhado das primeiras obras de alfabetização que surgiram na Europa entre osséculos XV e XVIII. Jan Hus (1374-14 15) propôs uma ortografia padrão para a língua tcheca e, juntamente com este trabalho, apresentou o ABC de Hus: um conjunto de frases de cunho religioso, cada qual iniciando com uma letra diferente, na ordem do alfabeto. Essa obra era voltada para a alfabetização do povo. Em 1525, foi publicada na cidade de Wittenberg uma cartilha do ABC intitulada Bokeschen vor leven ond kind, que continha o alfabeto, os dez mandamentos, orações e os algarismos. Em 1527, Valentim Ickelsamer incluiu, numa obra semelhante, listas de sílabas simples. Esse tipo de obra permanece com esquema semelhante até o século XVII. Somente no século XVIII, apareceram as primeiras gravuras das letras iniciais, por exemplo, a letra S com o desenho de uma cobra, a letra A com a figura de uma escada, etc. O educador tcheco Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comênius (1592- 1670), fez de sua obra Orbis sensualispictus ("O mundo sensível em gravuras"), publicada em 1658, um livro de alfabetização em que as lições vinham acompanhadas de gravuras para ajudar e motivar as crianças para os estudos. São João Batista de la Salle escreveu, em 1702, um regulamento para as escolas que fundara, chamado "Conduite des é coles chrétiennes" ("Conduta das escolas cristãs"), publicado em 1720. Com essa obra, pode-se ter uma idéia bem detalhada de como eram as aulas naquela época, inclusive as de alfabetização. O ensino era dividido em "lições", cada uma tendo três partes, uma destinada aos alunos principiantes, outra aos médios e a terceira aos avançados. A primeira lição era a "tábua do alfabeto"; a segunda, a "tábua das sílabas"; a terceira, o silabário; a quarta, o segundo livro, para aprender a soletrar e a silabar; a quinta (ainda no segundo livro) cuidava da leitura para quem já sabia silabar perfeitamente, etc. No terceiro livro, os alunos aprendiam a ler com pausas. Para ensinar ortografia, o professor mandava os alunos copiarem cartas- modelo e documentos comerciais para aprenderem, ao mesmo tempo, coisas úteis para a vida. Nesse modelo de ensino, aparece uma distinção clara entre ler e escrever. A leitura era dirigida para as coisas religiosas; a escrita, para o trabalho na <20> sociedade. Esse modelo de escola partiu da França e teve grande repercussão nas escolas dirigidas por religiosos em outros países. Após a Revolução Francesa, surgiu o Ensino Mútuo, que se espalhou sobretudo entre povos anglogermânicos. O pedagogo alemão José Hamel, em sua obra Ensino Mútuo, descreve o método de alfabetização em detalhes. Os alunos aprendem em aulas de 15 minutos, estudando exercícios fáceis e em coro ao redor de lousas colocadas nas paredes da sala. O ensino é nitidamente coletivo, sendo dado para classes e não mais com atenção individual. O ensino com muitos alunos numa classe acabou criando um tipo de escola para as crianças, as escolas infantis, jardins de infância ou escola maternal, iniciadas por Robert Owen (1771- 1858) em 1816 para os filhos dos operários de sua fábrica têxtil de New Lanark, na Escócia. Essas escolas logo se espalharam e passaram a cuidar da alfabetização das crianças. O pedagogo alemão Friedrich Froebel (1782- 185 2) fundou o primeiro jardim de infância (Kindergarten) em 1837. A Revolução Francesa trouxe grandes novidades para a escola: uma delas foi a responsabilidade com a educação das crianças, introduzindo a alfabetização como matéria escolar. Alfabetização popular nessa época significava a educação dos ricos que não tinham ligação com a nobreza, ou seja, membros da burguesia. Diante dessa nova realidade, as antigas cartilhas sofreram uma modificação notável. Com a escolarização, o processo educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário escolar. Como as antigas cartilhas fossem simples esquemas, passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em lições, cada uma enfatizando um fato. O ensino silábico passou a dominar o alfabético. O método do bá-bé-bi-bó-bu começava a aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de cartilha iria ser o modelo dos livros de alfabetização. A moda das escolas que ensinavam as crianças a ler e a escrever espalhou-se pelo mundo. Apesar de a escola se encarregar da alfabetização, os alunos que freqüentavam essas escolas pertenciam a famílias com certo status na sociedade. O povo simples e pobre continuava fora da escola. No Brasil, até as primeiras décadas deste século, a escolarização da maioria das <21> pessoas que iam à escola pública não passava do segundo ou do terceiro ano. Alguns documentos do final do Império mostram que as Escolas Normais não tinham alunos e o governo era obrigado a dar vantagens extras àquelas pessoas que trabalhavam com alfabetização. Naquela época, os professores das escolas públicas eram em geral eleitos pela comunidade e tinham um mandato determinado. Muitos professores queixavam-se dos baixos salários, razão pela qual as poucas escolas públicas lutavam para conseguir quem desse aulas. CARTILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA João de Barros (1496-1571) escreveu a gramática portuguesa mais antiga, publicada em 1540. junto com a gramática, publicou a Cartinha, que é um outro diminutivo de "carta", ao lado de "cartilha". O nome "cartinha" ou "cartilha" tem a ver com "carta", no sentido de esquema, mapa de orientação. A Cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois, vinham as "taboas" ou "tabelas", com todas as combinações de letras, que eram usadas para escrever todas as sílabas das palavras da língua portuguesa. Em seguida, havia uma lista de palavras, cada uma começando com urna letra diferente do alfabeto e ilustrada com desenhos (como: nau, tesoira, etc.). Por último, vinham os mandamentos de Deus e da Igreja e algumas orações. João de Barros incluiu também um gráfico que permitia fazer todas as combinações de letras das "taboas". A Cartinha de João de Barros não era um livro para ser usado na escola, uma vez que a escola naquela época não alfabetizava. O livro servia igualmente para adultos e crianças. Para se alfabetizar, a pessoa decorava o alfabeto, tendo o nome das letras como guia para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto, e depois punha-se a escrever e a ler, interpretando, nas "taboas" (ou tabuadas), as sílabas da fala com a correspondente forma de escrita. Notem que a ortografia não tinha vez, O método estava mais voltado para a decifração da escrita do que escrever corretamente. <22> A cartilha do ABC, que há poucos anos se podia comprar até em alguns supermercados ou em certas lojas de estações de trem e rodoviárias, segue o mesmo esquema da cartinha de João de Barros. Muitas pessoas que não podem ir à escola, ou que saíram dela porque foram consideradas "burras" demais para aprender, acabam aprendendo a ler através de livrinhos como esse. Uma cartilha famosa foi a de Antonio Feliciano de Castilho, chamada Método portuguez para o ensino do ler e do escrever, publicada em 1850. Essa obra merece um estudo detalhado. Uma de suas características mais importantes é o emprego dos chamados "alfabetos picturais ou icônicos", já usados na Grécia antiga e muito em voga durante o Renascimento — na verdade, até hoje aparecem nas cartilhas modernas. Castilho apresentava também "textos narrativos" para ensinar o uso das letras, fazendo urna lição para cadauma delas e para os dígrafos. A segunda edição, de 1853, intitula-se Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever Obra tão própria para as escolas como para uso das famílias. <23> Além do método de Castilho, outra cartilha portuguesa que ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de João de Deus (1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura. Utilizava um modo de escrever letras com destaque dentro das palavras, desenhando-as com hachuras; dessa forma, o aprendiz se concentrava no que de novo era apresentado. A cartilha de João de Deus apresentava já uma forte tendência para o privilégio da escrita sobre a leitura, embora, no título da obra, haja um destaque à leitura. Essa cartilha foi, sem dúvida, o modelo para muitas outras que vieram depois e que chegaram até os nossos dias. Entre os livros que pertenceram a D. Pedro II, encontra-se, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, uma cartilha intitulada: Manual explicativo do método de leitura denominado escola brasileira, organizada por Francisco Alves da Silva Castilho (e dedicada à classe dos professores de primeiras letras), publicada no Rio de Janeiro em 1859. Já pelo título pode-se notar que essa cartilha opõe o método do Castilho brasileiro ao do Castilho português. O autor foi professor em Campo Grande e alfabetizava as crianças pobres, passando depois a se dedicar à alfabetização de adultos. Ele chama a atenção para o fato de que se devem ler palavras inteiras e não letras ou sílabas. Seu método começa sempre com urna leitura coletiva, depois individual e, então, vêm os exercícios de escrita, seguindo o método que ele denomina "sintético/analítico". <24> No Brasil, depois da grande influência da Cartilha maternal (1870), de João de Deus, apareceram inúmeras outras. Entre elas há quatro tipos bem marcantes, com métodos e estratégias diferentes de conduzir o processo de alfabetização. O mais antigo (até a Cartilha maternal) foi chamado de método sintético. Partia-se do alfabeto para a soletração e silabação, seguindo uma ordem hierárquica crescente de dificuldades, desde a letra até o texto. Com a Cartilha maternal, começa o método analitico, que vai assumir importância maior na década de 30, quando a psicologia passa a fazer testes de maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados obtidos nesses estudos. Um exemplo típico desse caso é a Cartilha do povo (1928), de Lourenço Filho, e o famoso Teste ABC (1934), do mesmo autor. Com o passar do tempo, apareceram mais obras que seguiam o método misto, ou seja, cartilhas que misturavam estratégias do método sintético e do analítico. A cartilha Caminho suave (1948), de Branca Alves de Lima, com o período preparatório, é um bom exemplo. No final dos anos 90, têm surgido obras que se classificam como construtivistas e que se propõem a aplicar os ensinamentos da psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro e Ana Teberosky ao processo de alfabetização programada através de livro didático. Um livro como Primeira leitura para crianças, de A. Joviano, é um tipo de cartilha. Na introdução, o autor traz muitas considerações a respeito da forma de alfabetizar. Nota Primeira leitura para crianças, de A. Joviano João de barro leva no bico uma bola de barro para fazer o ninho João leva uma bola de barro leva uma bola para seu ninho uma bola vai no seu bico fazer bola de barro com o bico vai uma bola no bico de João de barro Leva João, o barro para fazer bola! <25> AS CARTILHAS E A ALFABETIZAÇÃO As primeiras cartilhas escolares até cerca de 1950 ainda davam ênfase à leitura. Achavam importante ensinar o abecedário. A leitura era feita através de exercícios de decifração e de identificação de palavras, por meio dos quais os alunos aprendiam as relações entre letras e sons, seguindo a ortografia da época. Havia um cuidado com a fala (e sobretudo com a pronúncia), voltado para o padrão social, trazido para a escola a partir de textos de autores famosos. Copiava-se muito, e os modelos eram sempre os bons autores, ou seja, autores famosos da literatura. Como acontecia com as gramáticas, a norma de bem escrever era a imitação dos bons escritores. A cartilha dá ênfase à escrita A cartilha baseada na leitura passou, em seguida, por uma modificação radical, já na década de 50, quando a escola começou a se dedicar à alfabetização dos alunos pobres, carentes de recursos materiais e culturais na vida familiar, que empregavam dialetos diferentes da fala culta. A ênfase passou a ser dada à produção escrita pelo aluno e não mais à leitura. O importante, agora, era aprender a escrever palavras. A atividade escolar deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar quase que exclusivamente do ensino — aquilo que o professor deveria fazer em sala de aula. Em lugar do alfabeto, apareceram as palavras-chave, as sílabas geradoras e os textos elaborados apenas com as palavras já estudadas. As famílias de letras passaram a ser estudadas numa ordem crescente de dificuldade. Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de leitura, agora também programado de maneira a ter dificuldades crescentes, libertando aos poucos o aluno da cartilha e levando- o a ler autores de textos infantis. Essa cartilha já trazia em si o esquema de todas as outras cartilhas que apareceram depois, até recentemente, caracterizando a alfabetização pelo estudo da escrita e usando como técnica o monta-e-desmonta do método do bá-bé-bi-bó-bu. Parecia que ia dar certo, mas não foi bem assim. A cartilha parecia um caminho suave, mas não era. E a escola percebeu logo de início que muitos alunos tinham dificuldade em seguir o processo escolar de alfabetização. E as reprovações na primeira série tornaram-se freqüentes. <26> Até o advento do ciclo básico na década de 80, a média de reprovação na primeira série era de cerca de cinqüenta por cento. Apesar de todos os esforços para superar essa situação, a média de reprovação sempre se manteve por volta de cinqüenta por cento. Diante dessa realidade, muitos alunos abandonavam a escola, não conseguindo superar essa barreira inicial; outros desistiam logo depois, e apenas uns poucos, cerca de dez por cento, conseguiam concluir a última série do ginásio (na época, o correspondente à oitava série do primeiro grau, ou seja, do ciclo II do ensino fundamental). O manual do professor Pode-se dizer que a experiência escolar da alfabetização com cartilhas foi desastrosa. Os dados estatísticos mostram que a escola não consegue alfabetizar mais de cinqüenta por cento de seus alunos. A repetência e a evasão escolar foram sempre um monstruoso fantasma para as crianças, pais e professores. Diante de um quadro desolador e perturbador, a escola começou a investigar mais uma vez o que estava errado com a alfabetização escolar. A primeira coisa que saltava aos olhos era o fato de as cartilhas serem livros esquemáticos demais, o que podia dificultar a sua aplicação. Alguns professores podiam não saber exatamente como usar aquele tipo de livro, comprometendo assim o processo educativo. Era necessário, pois, dar uma ajuda especial aos professores, uma orientação mais pormenorizada, subsídios mais práticos para uso em sala de aula. Foi assim que a cartilha ganhou um companheiro: o manual do professor. As cartilhas que sobreviveram passaram a ter seu manual do professor, com raríssimas exceções, como a Cartilha Sodré. Mesmo assim, o índice de repetência continuouassustador. Onde será que residia o segredo de tanta reprovação na primeira série? A cartilha era "logicamente" perfeita, o professor tinha todos os subsídios necessários e prontos para aplicar o método das cartilhas; então, a dificuldade deveria residir nas crianças. Devia haver "algo" em certos alunos que não permitia que aprendessem adequadamente. Os manuais do professor apostam na ignorância deste e por isso não passam de verdadeiros scrzpts para serem representados nas salas de aula. Em vez de ensinar os conteúdos básicos do trabalho do professor, partem ~, <27> de considerações muito vagas a respeito do valor da educação, e vão, em seguida, dizendo o que o professor e o aluno devem fazer, passo a passo. Num certo manual encontra-se até um diálogo que o professor deve promover com seus alunos, sendo determinada a fala de cada um. Se o aluno responder diferente, o professor precisa ensiná-lo a responder o que está no manual, senão a lição não funciona. Nenhum diálogo. porém, ensina o que o professor deve fazer se não der certo. A única saída que se pode imaginar é repetir tudo de novo, para ver se o aluno aprende, o que é, obviamente, uma estultícia. Como o manual do professor não resolveu o problema da repetência e a evasão de grande parte dos alunos, a escola foi buscar socorro nas universidades. O período preparatório A partir dos anos 50, a psicologia começou a fazer um enorme sucesso nas universidades do Brasil. Muitos alunos pesquisavam para teses, aplicando teorias que, muitas vezes, nem eles próprios tinham entendido muito bem. E a escola tornou-se um bom laboratório para esses pesquisadores. Sem formação pedagógica, sem formação lingüística, os psicólogos começaram a aplicar uma variedade de testes e chegaram à conclusão de que a grande dificuldade de aprendizagem das crianças na alfabetização devia-se ao fato de essas crianças repetentes serem pessoas carentes. Carentes de alimentação na infância, carentes de estímulos ambientais, necessários para que pudessem desenvolver o conhecimento, carentes de emoções que as motivassem para aquisição de cultura, enfim, carentes de praticamente tudo. Assim, não podiam aprender. Para resolver o problema, já que não era conveniente deixar essas crianças fora da escola, foi inventado um período que precedesse a alfabetização, o chamado período preparatório, no qual as crianças seriam treinadas nas habilidades básicas até ficarem "prontas" para se alfabetizarem. Sem "prontidão" não se podia realizar um processo de alfabetização eficiente. Os psicólogos inventaram, então, uma série de coisas estranhas para as crianças fazerem antes da alfabetização: fazer curvinhas para cá e para lá, completar figuras, fazer bolinhas, dizer se uma caixa de sapato é maior do que uma caixa de fósforos ou não, localizar o gatinho à direita e à esquerda da menina numa figura cm que ela aparece de frente e de costas, fazer o ~, <28> coelhinho ir da esquerda para a direita numa linha curva até chegar à toca, etc. Além da cartilha e do manual do professor, surgiu agora o livro de "exercícios de prontidão". CAGLIARI, 1997c, p. 193224. > Num artigo intitulado "O príncipe que virou sapo", discuti alguns aspectos mais importantes da teoria do "déficit" das crianças ou, como alguns chamam, "a síndrome da dificuldade de aprendizagem". A discussão é longa, mas as conclusões são muito evidentes. A universidade foi responsável pelo mal que causou à educação com o período preparatório e os exercícios de prontidão, convencendo os professores de algo que a academia achava cientificamente correto, mas que era um grande equívoco. Os testes aplicados às crianças foram mal elaborados, envolvendo questões de linguagem, sem levar em conta o conhecimento dos conceitos lingüísticos envolvidos, sobretudo da noção de variação lingüística. O que aqueles psicólogos pensavam da linguagem era algo muito diferente do que os lingüistas dizem a respeito da linguagem. Em meio a tantos equívocos, os resultados só podiam ser igualmente equivocados. Por trás de tudo, o que se nota é um grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos favorecidas. Os assim chamados "pré-requisitos lógico-formais" da teoria da prontidão são semelhantes aos argumentos de preconceito racial, baseados na teoria da carência sociocultural e na teoria da superioridade racial. Mais antigamente, as mulheres tinham sido discriminadas de maneira semelhante, com mil teorias acadêmicas, que pretendiam provar que a mulher era um ser inferior porque tinha um volume de massa cerebral menor do que o homem. As crianças pobres têm mais coisas para aprender, ao entrar na escola, do que as crianças ricas, por causa da história de vida de cada uma e da natureza das nossas escolas. Isso, no entanto, não deve ser confundido com falta de capacidade mental, perceptiva, motora, psicológica, ou seja lá o que for. As crianças pobres passaram a ser tachadas de deficientes, excepcionais e carentes, simplesmente porque falavam ou escreviam errado, segundo a opinião desses acadêmicos. A questão central desse problema é essencialmente lingüística. Ao analisar com os devidos cuidados lingüísticos os fatos de linguagem que a escola diz que atrapalham o progresso dos alunos na alfabetização, logo se verifica que esses alunos "incapazes" são, na verdade, falantes de variedades lingüísticas estigmatizadas pela sociedade. <29> Como a escola não aceita isso e não pode dizer que tem preconceito contra a pobreza, começou a achar razões mais sutis para disfarçar seus preconceitos. Fazendo curvinhas, ninguém aprende a escrever nem a ler. Para não escrever espelhado, de nada adianta ficar fazendo exercício sobre coordenação motora direita e esquerda. Aliás, algumas pessoas se confundiram com relação a isso, justamente por causa dos exercícios de prontidão, uma vez que nunca sabiam se direita e esquerda era para ser respondido em função de quem vê ou do objeto visto: a direita de quem vê é a esquerda do objeto visto, e vice-versa. Perguntar a uma criança se uma caixa de sapato é maior ou menor do que uma caixa de fósforos é uma ofensa. As crianças respondem a perguntas dessa natureza porque, apesar de acharem a brincadeira de mau gosto, são sempre muito dóceis e condescendentes. Perguntar a uma criança: "O que é dentro?" é uma maldade, porque o próprio professor não sabe responder e, quando responde, simplesmente exemplifica, o que, sem dúvida alguma, não é uma resposta à pergunta que fez à criança. Se um professor disser a uma criança: "Dentro da cozinha que fica dentro da escola tem uma geladeira e dentro do congelador tem um sorvete dentro de uma caixa amarela... você pode pegar que é todo seu" e deixar, de fato, a criança fazer o que lhe foi dito, não há criança que não saiba o que quer dizer "dentro de". Por coisas como essas (e tantas outras...) é que o período preparatório não passa de um grande equívoco pedagógico e psicológico. Está tudo tão errado, que a melhor solução é abandona-lo por completo. Apesar do enorme esforço em aperfeiçoar a "prontidão" nos mínimos detalhes, o índice de cinqüenta por cento de reprovação na primeira série manteve-se mais ou menos inalterado. Aquela imensa parafernália não servia para resolver o mais importante, que era a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças. Em vez do período preparatório e dos tradicionais exercícios de prontidão, o professor pode fazer inúmeras outras atividades mais inteligentes, que contribuam de fato para o processo de alfabetização. Umadelas, de valor inestimável, é propor aos alunos que façam muitos desenhos livres. A sofisticação e a riqueza dessa atividade são tantas que por si só valem tudo o que se pensava alcançar com o tradicional período preparatório. <30> Nota De acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação (1997), cabe aos estados decidir pela forma de promoção dos alunos: com ou sem reprovação. Os estados de Minas Gerais e São Paulo pretendem abolir a reprovação e introduzir a promoção automática no ensino fundamental. Algumas idéias, mesmo plenamente justificáveis, demoram a ser absorvidas pelos órgãos oficiais, por causa muitas vezes de uma discussão mal conduzida. No Brasil é evidente a confusão que se costuma fazer entre avaliação (necessária sempre) e promoção (que deveria ser automática). Veja a respeito as entrevistas A escola não deve reprovar ninguém" (CAGLIARI, 1988b) e Avaliação e promoção" (CAGLIARI, 1 996e). ALFABETIZAÇÃO HOJE Apesar de todas as interferências recentes no processo de alfabetização, a prática escolar mais comum em nossas escolas ainda se apóia na cartilha tradicional (a cada ano com nova roupa e maquiagem). Quando o professor diz que não adota a cartilha, continua usando o método da cartilha, fazendo ele próprio o que antes vinha nos livros didáticos. Contudo, há cada vez mais um número crescente de professores que estão conduzindo um processo de alfabetização diferente do método das cartilhas, procurando equilibrar o processo de ensino com o de aprendizagem, apostando na capacidade de todos os alunos para aprender a ler e a escrever no primeiro ano escolar e desejando que essa habilidade se desenvolva nas séries seguintes, até chegar ao amadurecimento esperado pela escola. Cada vez mais professores estão se dedicando seriamente ao próprio objeto de estudo e ensino, que é a linguagem. Velhas idéias, porém básicas, como ensinar o alfabeto, as relações entre letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no mundo em que vivemos, a ortografia, estão voltando a ter importância na alfabetização. Por outro lado, o "entulho" que se acumulou com o tempo, enchendo a alfabetização de ridículos exercícios de prontidão e coisas semelhantes, está sendo eliminado aos poucos da prática escolar. Mesmo o "entulho gramatical" que se cristalizou na primeira série, como o estudo de categorias gramaticais, número, gênero, grau, etc, tem sido removido, trazendo para o trabalho de alfabetização um esforço concentrado na aprendizagem da escrita e da leitura como decifração da escrita e do mundo através da linguagem. Num esforço de muitas pessoas, a começar pelo estado de São Paulo, conseguiu-se introduzir na escola o "ciclo básico", juntando a primeira e a segunda série. A idéia inicial era ter mais dois ciclos posteriores, um incorporando a terceira, a quarta e a quinta série, e outro, a sexta, a sétima e a oitava série. Desse modo, o aluno seria submetido a uma avaliação de promoção ao final de cada ciclo. Infelizmente, só foi posto em prática o cicio básico, o que deu a entender a muita gente que o objetivo era apenas mudar as estatísticas de reprovação dos alunos da primeira série, uma vez que agora a promoção era automática. Muitos outros equívocos apareceram juntamente com o ciclo básico, alguns ~, <31 > motivados pelos próprios órgãos oficiais da educação. Apesar disso tudo, com ele foi possível realizar uma grande discussão sobre a situação da alfabetização em nossas escolas e introduzir novos estudos e novos modos de trabalho, com grandes vantagens para a educação como um todo. Além disso, foi possível tratar a alfabetização sem o medo da reprovação, levar adiante um trabalho de ensino e de aprendizagem que não tinha mais a nota como objetivo a ser alcançado, mas a formação, a instrução, enfim, a educação. ALFABETIZAÇÃO E ESCOLA A história da alfabetização e das cartilhas fala por si. Aqui, como em outros campos, vemos como a escola veio para complicar tudo. A alfabetização que poderia (e deveria) ser um processo de construção de conhecimentos que se faz com certa facilidade, tornou-se um pesadelo na escola. A razão principal é a atitude autoritária da instituição escolar. A autoridade escolar funciona melhor depois que os alunos estão "domados". Porém, nas primeiras séries, as crianças resistem mais porque ainda não aprenderam a se submeter a tudo o que ouvem e vêem. A individualidade ainda é uma marca forte da personalidade das crianças, mas, infelizmente, já não se pode dizer o mesmo dos alunos das últimas séries e sobretudo de níveis mais altos de escolaridade. Enquanto a alfabetização escolar ficou presa à autoridade de mestres, métodos e livros, que tinham todo o processo preparado de antemão, constatou-se que muitos alunos que não trabalhavam segundo as expectativas dos mestres, métodos e livros eram considerados incapazes e acabavam de fato não conseguindo se alfabetizar. Por outro lado, as propostas de alfabetização que começaram a valorizar a criança e seu trabalho criaram um clima mais calmo e tranqüilo em sala de aula, uma melhor interação entre professor e aluno, proporcionando condições mais saudáveis para que o processo de alfabetização se realizasse. Os órgãos da administração pública encarregados da educação interferiram muito no trabalho escolar, quer ditando as regras da burocracia, quer, sobretudo, ditando ~, <32> as normas pedagógicas. Este é o país onde tudo é feito por meio de leis e decretos e, desse modo, todo o mundo tem uma escusa para o próprio fracasso, achando que tudo está bem e correto quando a burocracia está em dia. Como as escolas de formação de professores para o magistério, guiadas por estranhas idéias oriundas das faculdades de educação, não conseguem dar a formação necessária para os professores, os órgãos públicos encarregados da educação passaram a dar periodicamente "pacotes educacionais", de acordo com os modismos da época; é o método sintético, analítico, fônico, global, lúdico, psicopedagógico, freinet, semiótico, construtivista, lingüístico, etc. Os professores, atormentados com tantas mudanças, vítimas da própria incompetência, foram experimentando todos os "pacotes". Essa loucura serviu mais para criar nos professores uma aversão a tudo o que é novo, mesmo que traga contribuições realmente importantes para seu trabalho. Houve tantos "pacotes" e tantas decepções em tão curto prazo, que hoje muitos professores já não sabem mais distinguir o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é duvidoso, o que é verdade e o que é engodo. Se sua competência já era muito limitada, agora além de tudo ficou confusa, diante de tantas "experiências educacionais". Alguns, novatos no trabalho ou ingênuos por natureza, ainda acham que a última moda é a panacéia para todos os males do passado e a esperança do futuro. CAGLIARI, 1992c, MAGNANI, 1993. e O que de fato está por trás de toda essa história é a presença de um grande número de professores alfabetizadores que nem sequer são capazes de avaliar o que vêem diante de seus olhos, quer se trate de um "pacote educacional, quer se trate de um aluno que não aprende o que eles ensinam. Um professor que não sabe avaliar com precisão se um método é bom ou não, dando as razões de sua conclusão, é um professor mal- preparado, incompetente. A culpa em grande parte vem das escolas de formação e dos "pacotes" educacionais mas em parte vem também da atitude comodista do próprio professor, que não se interessou pessoalmente em estudar o que nãolhe foi ensinado. Essa competência está ligada ao conhecimento de muitos aspectos da sua atuação como educador e como professor alfabetizador. Estudar pedagogia, metodologia psicologia é importante. Mas ninguém se forma um bom alfabetizador só com essas disciplinas. O fundamental é saber como a linguagem oral e escrita são e <33> os usos que têm. Resumindo, a competência técnica do professor alfabetizador se apóia em sólidos e profundos conhecimentos de lingüística e dos sistemas de escrita (de matemática e de ciências inclusive...). Esses conhecimentos, aliados aos de pedagogia e psicologia, fazem dele um profissional que sabe exatamente o que faz e por que faz de um jeito e não de outro. Se formássemos de maneira correta nossos professores alfabetizadores, teríamos, neste país, em pouco tempo uma outra realidade em termos de analfabetismo. Hoje, não só existem milhões de pessoas analfabetas, como também pessoas que foram, de fato, mal alfabetizadas. Nenhum método educacional garante bons resultados sempre e em qualquer lugar; isso só se obtém com a competência do professor. O Brasil precisa de uma modificação profunda na educação e, em especial, na alfabetização. Para isso necessita de professores com melhor formação técnica. As escolas de formação dedicam muito tempo às matérias pedagógicas, metodológicas e psicológicas e não ensinam o que devem a respeito da linguagem; nem sequer têm cursos de lingüística (ou de aritmética). Como um professor pode lidar corretamente com o fenômeno lingüístico, se ele nunca estudou lingüística? Ninguém alfabetiza só com metodologia e psicologia, como também não alfabetiza somente com lingüística. A escola precisa saber dosar todos esses conhecimentos para poder atuar de maneira correta. Nada substitui a competência do professor e, enquanto nossas escolas continuarem a formar mal nossos professores, a alfabetização e o processo escolar como um todo continuarão seriamente comprometidos. Nota Não se pode encerrar mesmo um sucinto relato da história da alfabetização sem mencionar a importância da figura de Paulo Freire. O chamado Método Paulo Freire dirigido sobretudo para a alfabetização de adultos — foi aplicado em larga escala em outros países, além do Brasil como outros grandes educadores que se dedicaram à alfabetização. Paulo Freire trabalhou mais com a intuição o bom senso e menos com rigor científico ao tratar de fatos da linguagem. Sua obra mais importante está voltada principalmente para questões ligadas à política educacional e à pedagogia em geral. <34> 2 O ensino e a aprendizagem: os dois métodos A questão metodológica não é a essência da educação, apenas uma ferramenta. Por isso, é preciso ter idéias claras a respeito do que significa assumir um ou outro comportamento metodológico no processo escolar. É fundamental saber tirar todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as limitações de cada um. Como o assunto é muito vasto e complexo, e sobre ele já existe considerável literatura, apresentaremos apenas um esboço geral dos pontos mais importantes para a discussão que faremos em seguida. Existe, no mercado, uma quantidade enorme de livros e publicações a respeito de métodos de ensino (raramente de métodos de aprendizagem) que, num esforço para defender ou atacar certos procedimentos adotados pelas escolas, acaba confundindo seus leitores, os quais, em meio a tantas posições diferentes, ou mesmo contraditórias, já não sabem mais no que acreditar. Daí o descrédito de alguns professores na educação, fruto da indignação metodológica, oriunda dos pacotes educacionais e das contradições metodológicas a que são submetidos. Às vezes, é preciso voltar às origens, aos princípios básicos, às coisas mais simples e claras, rever a história, retomando uma visão correta do fenômeno. Para isso, é preciso rever alguns pontos gerais a respeito de ensino, aprendizagem e métodos. Por incrível que pareça, existe uma confusão muito grande entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas que lidam com educação. O mais comum é se levar em consideração apenas o ensino, supondo que a aprendizagem ocorre automaticamente, como fruto inevitável do ensino, o que é um erro grosseiro. Muitos aceitariam a diferença sem problemas, na teoria, mas a prática mostra que a confusão é visível e está presente a cada passo. CAGLIARI, 1990; PATTO, 1990; PATTO 1997 O QUE É ENSINAR, O QUE É APRENDER Ensinar é um ato coletivo: pode-se ensinar a um grande número de pessoas presentes numa aula ou numa conferência, etc. Quem ensina procura transmitir informações que julga relevantes, organizadas do modo que lhe parece mais razoável, para que seus ouvintes aprendam algo que deseja transmitir. <36> Aprender é um ato individual: cada um aprende segundo seu próprio metabolismo intelectual. A aprendizagem não se processa paralelamente ao ensino. O que é importante para quem ensina, pode não parecer tão importante para quem aprende. A ordem da aprendizagem é criada pelo indivíduo, de acordo com sua história de vida e, raramente, acompanha passo a passo a ordem do ensino. No ensino, é muito importante o que se diz; na aprendizagem, o que se faz, mesmo quando o fazer significa dizer. Aprender não é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante, a partir da iniciativa individual de quem aprende. Quando simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma aprendizagem. Ela vai aparecer somente quando a pessoa, por ação própria, conseguir realizar algo de acordo com as expectativas alheias. A aprendizagem é sempre um processo construtivo na mente e nas ações do indivíduo. O ensino não constrói nada: nenhum professor pode aprender por seus alunos, mas cada aluno deverá aprender por si, seguindo seu próprio caminho e chegando onde sua individualidade o levar. Por isso, a aprendizagem será sempre um processo heterogêneo, ao contrário do ensino, que costuma ser tipicamente muito homogêneo. Escolas que se apegam demais ao processo de ensino, em detrimento do processo de aprendizagem, gostam de manter classes homogêneas, fazendo remanejamentos, sempre que oportuno e possível, para facilitar o processo de ensino, desconsiderando totalmente a natureza do processo de aprendizagem, entre outros fatores pedagógicos. Não é porque o professor ensina, que um aluno automaticamente aprende. Aprender depende muito da história de cada aprendiz, de seus interesses, de seu metabolismo intelectual. A maneira como aquilo que é ensinado passa a ser algo aprendido é do foro íntimo de cada indivíduo. Obrigá-lo a agir diferentemente é uma violência contra sua liberdade e racionalidade. Obrigar alguém a aprender alguma coisa é "lavagem cerebral". A aprendizagem precisa partir de uma opção individual. O fato de se ter um professor, uma classe, uma turma de alunos não significa que se tem uma escola. É essencial saber o que faz o professor e o que fazem os alunos, o que compete a cada um, o que cada um espera do outro. Sem uma visão clara e correta da atividade escolar, corre-se o risco <37> de se colocar em prática um processo de educação totalmente equivocado como, aliás, vem acontecendo muito freqüentemente neste país. Por outro lado, não é porque um professor não ensina algo, que um aluno necessariamente não aprende tal ponto. Há muitas maneiras de aprender: ir à escola é uma forma prática e organizada (pelo menos deveria ser) de aprender "as coisas da escola". Nada impede, todavia, que se aprenda com os pais, com
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