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PANDORA PEREIRA APRESENTA: O NASCIMENTO DOS INTELECTUAIS POR NILDA RAMOS PEREIRA HISTORIOGRAFIA 2021 No princípio havia as cidades. O intelectual da Idade Média nasce com elas – digamos modestamente artesanal. As classes sociais enumeradas por Adalbéron de Laon, a que reza ou dos clérigos a que protege ou dos nobres e a que trabalha ou dos servos; não constituía um fim em si mesmo, mas combinado com os demais aspectos de sua vida, inclusive, estava pela regra voltada para Deus. Um homem que tenha profissionalmente uma atividade de professor e de sábio, em resumo, um intelectual, este homem somente aparece com as cidades. HOUVE UM RENASCIMENTO CAROLÍNGIO: Renascimento, portanto, para uma elite fechada, numericamente muito reduzida e destinada a dar à monarquia carolíngia um pequeno celeiro de administradores e de políticos. A velocidade de circulação dos livros é ínfima, mais ainda: eles não são feitos para serem lidos, destinam-se a engrossar os tesouros das igrejas e dos ricos. Eram um bem econômico, mas do que espiritual. Os livros não são considerados de modo diferente do que das baixelas preciosas. Os monges que os escrevem laboriosamente nos scriptoria dos mosteiros não se interessam senão muito secundariamente por seu conteúdo. O essencial para eles é a aplicação devotada, o tempo consumido, a fadiga sentida para escrevê-los. É obra de penitência que lhe valerá o céu, aliás, compensados ou inversamente, lamenta-se uma desatenção cometida. Para esses cristãos em quem dormita o bárbaro, a ciência é um tesouro que precisa ser bem guardado. Cultura fechada ao lado de uma economia fechada. MODERNIDADE NO SÉCULO XII: ANTIGOS E MODERNOS. Os intelectuais do século XII tem o sentimento vivo de construir o novo e de serem homens novos. Pode haver um renascimento sem a impressão de se renascer? Pensemos nos renascentistas do século XVI e em Rabelais. “Não se passa das trevas da ignorância para a luz da ciência”. Afirmava Pedro de Blois. “Quanto mais conhecermos as disciplinas e mais profundamente ficarmos impregnados delas, mais plenamente aprenderemos a justiça dos antigos e mais claramente os ensinamentos.” A retórica através da persuasão e brilho da eloquência, emite o faiscar da prata. O essencial (o mesmo não ocorre nas escrituras e nos padres da igreja), é também porque a Eneida e a República são para eles obras antes de tudo científicas. Matéria científica, (o Gênesis não será, por exemplo, uma obra de ciências naturais e cosmologia?) o intelectual do século XII é um profissional, com seus materiais, isto é, os antigos e cuja principal técnica é a imitação dos antigos. Tal é o sentido da famosa frase de Bernardo de Chartres. “Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes”. Assim, vemos melhor e mais longe do que eles. Não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mas porque eles nos elevam até o nível de toda sua gigantesca altura. Alcançada a vitória política da burguesia, também tinha a impressão de ter chegado ao fim da história. Os intelectuais do século XII, nesse ambiente urbano que se vai construindo e onde tudo circula e muda, repõem em marcha a máquina da história e definem primeiramente a sua missão de outrora: “Veritas, filia temporis”. Diz Bernardo de Chartres. A CONTRIBUIÇÃO GRECO – ÁRABE Filha do tempo, a verdade o é também do espaço geográfico. As cidades são centros de irradiação na circulação dos homens, tão plenas de ideias como de mercadorias. Junto com as especiarias e as sedas, os manuscritos trazem a cultura greco-árabe para o ocidente cristão. As obras de Aristóteles, Euclides, Ptolomeu, Hipócrates e Galeno seguiam no Oriente os cristãos heréticos – monofisistas e nestorianos – e os judeus perseguidos em Bizâncio. OS TRADUTORES Os tradutores são os pioneiros dessa renascença. O que Abelardo deplora e por isso exorta as religiões, e que o ocidente não ouve o grego, então exorta o Paracleto a corrigir essa lacuna. Superando assim os homens no domínio da cultura. A língua é o latim, há uma reunião de competências, uma delas se ornou célebre: a formada pelo ilustre abade de Cluny, Pedro, o Venerável. Para a tradução do Corão. Pedro, o Vulnerável, foi o primeiro a conceber a ideia de combater os muçulmanos não no plano militar, mas no plano intelectual. Para refutar sua doutrina, é preciso conhece-la: essa reflexão, que nos parece de uma simplória evidência, é uma audácia do tempo das cruzadas. “Quer se dê ao erro maometano o nome vergonhoso de heresia ou o nome infame de paganismo, é preciso agir contra ele, isso é escrever. Robert de Ketten, Hermann, o dálmata, Pedro de Toledo, o sarraceno se chamava Muhammad. Essa equipe, após ter esquadrinhado à fundo as bibliotecas, desse povo bárbaro, daí retirou um volumoso livro que publicou para os leitores latinos. Esse trabalho foi feito no ano em que fui à Espanha, onde tive uma entrevista com o senhor Afonso, imperador vitorioso das Espanhas, isto é, no ano do senhor de 1141.” Não é para o Islã a tradução, mas para os tratados científicos gregos e árabes. Os intelectuais especializados contribuem para o preenchimento de lacunas deixadas pela herança latina e mais, o conteúdo, o método, a curiosidade e o raciocínio. Outras contribuições foram a propriamente árabe como a aritmética e a álgebra, algarismos arábicos, medicina, astronomia, botânica, agronomia e a alquimia. PARIS, BABILÔNIA OU JERUSALÉM? O mais brilhante centro foi paris, favorecida pelo prestígio da monarquia dos Capeto, mestres e estudantes. Paris é a Babilônia moderna. São Bernardo brada aos mestres e estudantes de Paris: “Fujam da Babilônia, fujam e salvem suas almas. Apressem-se todos juntos em direção as cidades do reconhecimento, onde poderás se arrepender do passado, viver na graça durante o presente, e esperar com confiança o futuro (isto é, nos mosteiros). A madeira e as pedras ensinarão mais que qualquer mestre.” Pierre de Celles diz: “Ó Paris, como saber arruinar e iludir as almas! Em ti, as malhas e os vícios, as pragas dos males, as flechas do inferno põem a perder os corações inocentes.” É cristo quem ensina aos nossos corações a palavra de sua sabedoria, onde, sem trabalhos, nem cursos, nós aprendemos o caminho da vida eterna. OS GOLIARDOS O anonimato que esconde a maioria deles, as lendas que eles próprios complacentemente difundiram sobre si mesmo, as – dentre muitas calúnias e maledicências – que foram propagadas por seus inimigos, as forjadas pelos eruditos e pelos historiadores modernos, desorientados pelas falsas semelhanças e cegados pelos preconceitos. Os clérigos goliárdicos ou errantes foram tratados como vagabundos, lascivos, charlatões e bufões. Taxaram-nos de boêmios, pseudo estudantes, foram às vezes vistos com olhos enternecidos – é preciso viver a juventude – outras vezes com temor e desprezo. A vadiagem intelectual: se fazia com prazer a crítica da sociedade estabelecida, o desenvolvimento do comércio e a construção de cidades rompem com as estruturas feudais. Os goliardos são fruto dessa modalidade social, característica do século XII. São o primeiro escândalo para os espíritos tradicionais, por escaparem das estruturas estabelecidas. Às vezes para ganhar a vida se fazem jograis ou bufões. Esses estudantes pobres que não se prendam a nenhum domicílio fixo, se lança assim à aventura intelectual, seguindo o mestre que lhes tivesse agradado, procurando os mais comentados, indo catar, de cidade em cidade, os ensinamentos dados ali. Somam o corpo de uma vadiagem escolar; tem ambições diversas, e certo que escolheram o estudo ao invés da guerra, mas seus irmãos foram para a guerra pilhar Constantinopla. Não pertenceria o goliardo à grande família dos libertinos que além da liberdade de costumes e da liberdade de linguagem, visa a liberdade de espírito? A CRÍTICA DA SOCIEDADE: Na igreja, os goliardos tomam por alvo favorito aqueles que, social, política e ideologicamente, estão mais intimamente ligados às estruturas da sociedade: o papa, o bispo e o monge. Gregório VII havia declarado“Os senhor nos disse: meu nome é costume.” Os goliardos acusam seus sucessores de fazerem o senhor dizer: “Meu nome é dinheiro.” O bestiário satírico dos goliardos, dentro do espírito do grotesco romântico, engendra uma galeria de eclesiásticos metamorfoseados em bestas, faz surgir no frontão da sociedade, uma quantidade de máscaras clericais: o papa Leão que devora tudo, o bispo veado, o pastor glutão que pasta a erva antes de suas ovelhas; o arcebispo (arcediago) um lince que despedaça a presa, seu diácono, um cão que caça com a ajuda dos oficiais, caçadores do bispo, monta a armadilha e abate as presas. Tal é a regra do jogo, segundo a literatura goliárdica, no nobre, ele detesta também o militar, o soldado. Para o intelectual urbano, os combates do espírito e os torneios da dialética substituem em dignidade os feitos de armas e as façanhas guerreiras. O arqui poeta de colônia manifestou sua repulsa diante do ofício das armas (“me terruit labor militares”), exatamente como Abelardo, que foi um dos maiores poetas goliárdicos, em obras que eram recitadas e cantadas do monte de Sainte Genevieve, da mesma forma que hoje se cantarolam as canções da moda, mas que infelizmente se perderam. ABELARDO É a primeira grande figura de intelectual moderno, nos limites da modernidade do século XII; Abelardo foi o primeiro professor. Não é um libertino, mas o demônio meridional assalta esse intelectual que, aos 39 anos só conhece o amor através dos livros de Ovídio. Ele está no auge de sua glória e orgulho, encontra em Heloísa sua outra metade, e ela engravida e seu filho recebe o nome de Astrolábio (filme: Em nome de Deus), tem que reparar o que fez no casamento, mas ele receia, como casados ver sua carreira professoral entravada e se tornar escárnio do mundo escolar. NOVOS COMBATES: A paixão intelectual cura Abelardo. Recuperado de suas feridas, reencontra sua combatividade, os monges ignorantes o incomodam, e ele orgulhoso, incomoda os monges, cuja solidão além disso é perturbada pelos discípulos que o procuram sem cessar. Alcança sucesso com seu livro, mas desagrada outros, seu livro é queimado e ele condenado ao convento. Foge de sua prisão e encontra refúgio no bispo de Troyes. Constrói um santuário e oferece seu livro à Santíssima Trindade. Eleito abade, novamente começa o ciúme e tentam mata-lo, foge novamente, em 1136 volta a ensinar, mais procurado que nunca. SÃO BERNARDO E ABELARDO: À testa de seus inimigos está São Bernardo, Apóstolo de vida reclusa, está pronto a combater as inovações que lhe pareçam perigosas; um grande inquisidor antes do tempo. O LÓGICO: Abelardo foi primeiro um especialista em lógica, deu ao pensamento ocidental seu primeiro “discurso sobre o método”. O MORALISTA: Esse lógico também foi especialista em moral. Em sua “Ética ou conhece-te a ti mesmo”. Assim contribuiu Abelardo poderosamente para subverter as condições de um dos sacramentos essenciais do cristianismo: a penitência. O ILUMINISTA: Reclamou a aliança entre a razão e a fé. O NATURALISMO CHARTRIANO: Crença na onipotência da natureza, ela é uma força fecundante. O HUMANISMO: Chartres coloca o homem no centro de sua ciência, de sua filosofia e de sua teologia. O HOMEM MICRO COSMO: Acha-se desse modo situado no centro de um universo que ele reproduz em harmonia consigo mesmo. A FÁBRICA E O HOMO FABER: Artesão que transforma e cria. CONCLUSÃO: Toda a obra intelectual do século XII estava cunhada em como trazer para o ser humano daquele século conhecimento, sabedoria e vivência, mas não se podia ensinar quando havia tantas fronteiras e inimigos a vencer. Mas eles tentaram e conseguiram pelo menos mexer com a base poderosa de uma corporação que detinha com mão de ferro o querer e o poder do homem do século XII. 10