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Rejane Arruda (org.) DESLIZES DO DESEJO em Políticas de Acolhimento e Encenação Vila Velha SOCA 2020 Deslizes do Desejo em Políticas de Acolhimento e Encenação Desfrutado entre bichos, raízes, barro e água o homem habitava sobre um montão de pedras. Dentro de sua paisagem - entre ele e a harpa crescia um caramujo. Da-vam flor os mus-gos... Subiam até o lábio depois comiam toda a boca como se fosse uma tapera. Convivên-cia de murta e rãs... A boca de raiz e água escorria barro... (...) Bom era ser bicho que rasteja nas pedras; ser raiz de vegetal ser água. (Manoel de Barros) SUMARIO APRESENTAÇÃO 6 Rejane Arruda CPÍTULO I: RELATOS DE TRANSMISSÃO EM ARTES FOGO-FÁTUO: UMA EXPERIÊNCIA EM TRANSVERSALIDADE POÉTICA 8 Iasmim Santos Silva, Maria Carolina de Andrade Freitas, Miguel Levi de Oliveira Lucas, Renata Gonçalves de Melo e Thauany Duarte Diniz O ENSINO DE PRÁTICAS ARTÍSTICAS NO CONTEXTO DO COVID-19 22 SOB A ÓTICA DE LYGIA PAPE Erani Ferreira Soares A POTÊNCIA DE AFETO NO TEATRO: CORPO CÊNICO COMO FORMA 33 DE ATRAIR O OLHAR DA CRIANÇA Letícia Almeida Dias TEATRO SAGRADO: ATOR DEVOTO 51 Marina Castro de Mello “REGISTROS” NA ATUAÇÃO PARA CINEMA: UM EXERCÍCIO DE 77 ESPONTANEIDADE VERSUS INTENCIONALIDADE Paula Santos Calasans CAPÍTULO II: CRIAÇÃO TEATRAL EM PESQUISA DIALOGOS AFE(c)TIVOS: PROCESSOS DE COMPOSIÇÃO 112 DE “ENSAIO PARA UM DISCURSO” Ananda Lugon Bourguignon AS POTENCIALIDADES CRIATIVAS ADVINDAS DAS INTERSECÇÕES 136 ENTRE RPG E TEATRO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Rafael Teixeira Ciríaco de Souza TEATRO CONTEMPORÂNEO NO ESPÍRITO SANTO: ÍNDICES DO 150 TEATRO PÓS-DRAMÁTICO NAS PRODUÇÕES DA CIA TEATRO URGENTE Maria Helena Costa Signorelli “VÍRUS”: TEATRO NOS TEMPOS DE PANDEMIA 179 Marcelo Ferreira CAPÍTULO III: EXPERIÊNCIAS DE CUIDADO E ACOLHIMENTO PONTO POR PONTO, PALAVRA POR PALAVRA. TECEDURAS 187 NO ENCONTRO COM UM SERVIÇO DE SAÚDE MENTAL DA CIDADE DE VITÓRIA Randra Souza Feitoza Machado Gondouin, Luiza Helena de Castro Victal Bastos e Maria Carolina Andrade Freitas “ONDE CAIBO QUANDO ME TRANSGORDO?” CLÍNICA DECOLONIAL 202 E O PARADIGMA ÉTICO, ESTÉTICO E POLÍTICO. Marina Fortunato Gomes Pereira A CAVERNA DOS BRINQUEDOS: EXPERIÊNCIA E APRENDIZAGENS 226 ARTÍSTICAS Maria Riziane Costas Prates, Edna da Silva Pereira e Ester Zappavigna Monteiro Costa SOBRE COMO O CÉU ESCREVE POSSIBILIDADES... ENCONTROS 246 E REVERBERAÇÕES DE UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO EM UM CAPS Sarah de Souza Cardoso e Cleilson Teobaldo dos Reis A FLOR QUE BROTA NO CONTRETO: A LOUCURA COMO AFIRMAÇÃO 268 DE VIDAS E (R)EXISTÊNCIAS Thais Andriolo Tesch e Cleilson Teobaldo dos Reis SOBRE OS AUTORES 289 6 APRESENTAÇÃO “Deslizes do Desejo” porque acredito que é com isso que inventamos a nossa prática e conquistamos caminhos; na medida em que deslizamos pelas cadeias do significante e nos encontramos sempre em falso. Se o desejo desliza, nós também, como seu efeito; e se não o fazemos estagnamos. Este livro se constrói como testemunho de muitos deslizes; de sujeitos empenhados no seu deslizar: para o CAPS, para a cena teatral, para as oficinas de cinema, para o exercício da escrita e para a colaboração entre as áreas da Psicologia, Pedagogia e Artes Cênicas. Somos multiplos, mas parece que há algo “por trás” que orquestra nossas ações. Só que não, porque isso não existe; e, ao mesmo tempo em que desliza para outras mãos e olhos, esta compilação é tecida por um corte que se situa bem no cruzamento da trajetória de cada um que escreveu. Nestes multiplos deslizamentos, nos agarramos nos entrecruzes e, então, percorremos juntos um certo pedaço do caminho. Em se tratando do ultimo livro articulado à trajetória do curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha, que teve o seu fim decretado em 2018 e chega ao seu ponto final em 2021, eu paro por aqui. Sou grata aos leitores que permitirão novos deslizes do desejo. Rejane Arruda. CAPÍTULO I: RELATOS DE TRANSMISSÃO EM ARTES 8 Fogo-Fátuo: uma experiência em transversalidade poética Iasmim Santos Silva Maria Carolina de Andrade Freitas Miguel Levi de Oliveira Lucas Renata Gonçalves de Melo Thauany Duarte Diniz Fogos-fátuos que a nossa podridão gera são ao menos luz nas nossas trevas. (Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego) Uma flânerie remota Uma experiência feita por pontos. Costura ziguezagueante por condição. Arremata conexões-sementeiras aguardando o curso dos fluxos explodir acontecimentos, frente ao abismo, na abertura ao mar-horizonte. Produção de novos relances. É preciso navegar. Procura de aventura polifônica, que ressoe outras melodias, que encare a estridência da catástrofe e a contorne até onde possível, invertendo-a a direção e implodindo-a. Torcer. Feituras de avesso, torceduras, aposta (Ginzburg, 2001). Fogo-fátuo situa uma experiência em meio a pandemia de Covid-19 de produção de saraus poéticos e diários de quarentena como uma ação do projeto de extensão: Estudos Transversais em Educação: arte, memória e criticidade, da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Divinópolis. A iniciativa envolve o curso de História e de Psicologia em trabalho interdisciplinar. Percorre e conclama a comunidade acadêmica e a comunidade externa para, em comunhão, implementar um fazer que extrapole o golpe político e a crise sanitária que experimentamos, a fim de enfrentar o distanciamento social imposto pela pandemia e as dificuldades de trabalho remoto encontradas diante das urgências em curso. Potência afirmada não como a designação de uma instituição, estrutura, mas como potencial: um devir – como afirma Viveiros de Castro (2018), um elemento mágico-real do devir. Na perspectiva do dom do desejo: roubar e compor em trocas aliançadas perspectivas invisíveis que comutem dar, receber e retribuir. Ações possíveis somente em esforço de produção de gesto poético, aquele que tenta – ainda que de forma imperfeita (Vilela, 2008) – 9 certa imagem do mundo, a insistir em transduções e transposições insuspeitas e repletas de porvir (Agamben, 2005; 2007; 2013). Dimensão de Fora, singularidade pura, que situada em relação e em pertencimento, invoca um limiar, uma passagem, um espaço e ponto de contato externo, vazio, por onde transmuta-se o acontecimento à porta: aquela que inclui uma soleira, caminho, acessos. (Agamben, 2013). Donde o simples fato de existência apresenta-se como possibilidade ou potência. Registro, portanto, ético e estético. Inseparáveis. Uma experiência em feitura, assim, não se detém em patrimônio de qualquer interioridade. Não admite ser de algo ou de alguém. Antes, vincula-se a uma lacuna, a um espasmo, uma brecha, a uma falta como potência, uma ética, contanto. Preferimos o limbo profano. De não pertencer a reino definível. A criar algum tipo de pertencimento que seja apenas aquele de comungar com espaços, palavras, coisas, agentes, estéticas, mistérios, fendas. Afinal, nossos lamentos não são queixas, são incompletudes, possíveis, que nos esgarçam em todas as direções. Relançam-nos ao Fora. Metem-nos frente a frente à decidibilidade ética inesgotável e inexorável, pungente, da qual não podemos escapar. Não arredamos pé. Ficamos em meio às forças, como testemunhas (Gagnebin, 2015; 2006; 2008; 2009; 2014; 2017). Insistimos. Arrancamos dos entre dentes da primavera as flores do mal. Como fez Baudelaire, em insubmissão e rebeldia (Benjamin, 2010). Porque há experiência a realizar! Contentamentos a produzir. Redes quentes de conexão sensível, em fomento e ousadia (Teixeira, 2004). Recusamos cumprir tarefas. Obedecer enquadres. Exercícios de rasgar verbos e tecer oferendas de alegria e força-ofertório. Assim, conexões se criam, se desfazem, esvanecem, voltam a contornar a dor, com mirra, incenso e flor. Ato de produzir o pensar em redes, ação e paixão. Potência de tocar. Potênciasde não tocar (Agamben, 2013; 2015a; 2015b). No lugar da mestria, tessituras artesanais, em forma de vaso de argila com as marcas impressas das mãos do oleiro (Benjamin, 1992; 2009; 2010; 2011; 2013a, 2013b, 2015a, 2015b). Desfazimento de lugares epicêntricos. Perseguimentos das bordas. Queremos bordas, fendas, fraturas, entre palavras nas pontas dos dedos e vozes roucas e epifânicas (Barthes, 2011;2004a;2004b). 10 Lugares para amores. Para sustentação de insistências teimosas, que reabram o obtuso em filetes e façam vazar os fluxos de revoluções em curso. Sustentação de revezes. Agio, um terminus technicus de poética, que designe o lugar mesmo do amor. (Agamben, 2013). “A possibilidade da salvação começa somente nesse ponto – é salvação da profanidade do mundo (...)” (Agamben, 2013, p.83). No limiar o que se vê não está contido dentro dele. Procurar os modos, as modalidades. Não o contido. Nada é em si mesmo, irreparável. Irreparável “não é assim, mas o seu assim” (Agamben, 2013, p.85). Daqui provém nossa aposta no mundo. Esse terrível estado de coisas, não é. Está sendo. Mas o estar é modo. Podemos apostar na fabricação de outros. Configurar o mundo, ou melhor, os modos de outras formas, provisórias, sempre. Acatar o transitório. O mistério. “Então as coisas estão assim” (Agamben, 2013, p. 87). A experiência dos saraus de poesia e modos de criação sensíveis portou germes de revoluções miúdas. Gestação do tempo em outras frequências vibratórias, outros fluxos- passagens, menores, reuniões inusitadas de camaradagem. Ontologia, política e poesia. Todo pensamento é reiterada tentativa de revolução (Agamben, 2013, 2015a, 2015b). Fazer emergir um gesto de resistência, configuração do atual em outro registro contemporâneo, que faça brecar a catástrofe paralisante e totalitária, ao levantar faíscas incendiárias que demonstrem outras urgências e apostas, de produção de palavra viva, itinerante e solidária. Com as trocas dos encontros, outros encontros, por dentro, costuravam outros pontos, saídas múltiplas, experimentações de redes minúsculas. Como entrar por dentro, sair por fora, entrar por fora, sair por dentro, drapear, entretelar, pespontar, casear, alinhavar até produzir o corte. Exercícios de delicadeza e corte. “Não se abre o amanhecer com faca” lembra-nos Manoel de Barros (2010). Nossas armas são palavras quentes, que como indicava-nos Belchior, são navalhas. Ou como sugere-nos Klossowski (1964), são as palavras que sangram, não as feridas. Nossa urgência é a intempestividade que nos causa em fenda com o tempo, uma fissura inconciliável, para que sejamos capazes de entrever a luz e também a sombra do firmamento que olhamos a noite. Impedir que sejamos tragados pela proximidade excessiva e estúpida da visão cega. Cindir a experiência, o tempo, a palavra. Dar lugar ao indeterminado, ao híbrido, a entretempos. 11 Raízes aéreas e táticas urgentes É bom renovar o espanto da gente, diz o filósofo. (Matilde Campilho em Jóquei) O projeto de extensão e a proposta dos saraus visam contribuir para a construção de novas linguagens sensíveis que aumentem os graus de transversalidade das experiências e acontecimentos junto à comunidade acadêmica e à comunidade externa, por meio da invenção de modos de sensibilidade, dispositivos de criação estética e intervenções artísticas e debates que articulem a educação, a arte, a memória e a crítica, como elementos de enfrentamento à situação de distanciamento social imposto pela COVID-19. Por entender a necessidade de produção de novos dispositivos semióticos, articulam à produção científica, o valor das expressões estéticas como ferramentas de aglutinação de fazeres e saberes transversais. O projeto executa-se por meio de dispositivos e plataformas gratuitas virtuais e com a participação de alunos a ele vinculados. Os saraus reúnem, de forma virtual, alunos e docentes de graduação da Universidade proponente, professores de outras IES, Universidades Federais e a Universidade de Vila Velha, profissionais da saúde (psicólogos), alunos de institutos federais, artistas e interessados nas temáticas debatidas. Os temas dos encontros já realizados mapearam uma série de questões sociais em jogo, no acontecimento da Covid-19 e, de forma crítica, intercambiaram reflexões políticas, estéticas e éticas sobre os panoramas históricos vividos na atualidade. A efetuação dos encontros remotos e virtuais concorrem para produção de agenciamentos semióticos que disponham – como a arte – de qualidades de ser inéditas. Aposta-se que novos agenciamentos semióticos façam eclodir acontecimentos. Acontecimentalizar. Perseguimos os afetos, o campo intensivo de uma experimentação prudente a fim de fazer da superfície do encontro, suporte para a expressão acontecimental (Deleuze, 1974). Como as palavras do filósofo que induzem a recompor a vida em forma de arte. De obra. Não a obra estancada que serve para expectadores desavisados. Mas a obra infinita do movimento de dobras. Dobrar-se, recurvar-se, desdobrar-se. Foucault (2011) propõe a construção da vida como obra de arte. Uma estética da existência: 12 Criar alguma coisa que aconteça entre as ideias, e ela deve ser feita de modo a tornar impossível dar-lhe um nome, cabendo então a cada instante dar-lhe uma coloração, uma forma e uma intensidade que nunca dizem o que ela é. Essa é a arte de viver. A arte de viver implica em matar a psicologia, criar consigo mesmo e com os outros individualidades, seres, relações, qualidades inominadas. Se não pudermos chegar a fazer isso na vida, ela não merece ser vivida (...) fazer de seu ser um objeto de arte, isso é o que vale a pena.” (Foucault, 2011, p. 107 – 109). Experimentações que alargam os graus de transversalidade dos acontecimentos. Da vida. De forma a exercer simpatia. Simpatia, aqui, retoma a proposição deleuziana de agenciamento e articula-se à uma ideia de produção de cuidado pela via da criação de modos de sensibilidade. A aposta num novo trabalho. Constituído por leituras. Modos de ler e partilhar a vida e as produções de educação, cultura e saúde. Leituras que produzam diversas vozes, fazeres, saberes, montagens, desejos, uma aventura polifônica de vontade de potência! Itinerante e solidária. Intentamos romper com a produção da impotência e do medo, experimentadas frente a situação pandêmica pela Covid -19, por meio da invenção de modos de sensibilidade. Audaciosamente, instaurar dispositivos de singularização que coincidam com o desejo, agenciando outros modos de produção semiótica (Guattari, 2005). Todos os elementos que possam abrir vistas ao movimento, à leveza e ao contentamento sensível. Nosso empreendimento é confiar na produção política de forças de enfrentamento e de criação de outros possíveis, como compromisso ético e inventivo. Nessa perspectiva, o sarau empreende- se como força de enfrentamento ao que experimentamos diante das aglutinações de diferença adoecedoras, por constituir-se como um meio da sustentação do novo, do relançamento da processualidade da vida, irrompendo na invenção de outros modos e mundos. Este sentido traduz a estética proposta: a potência estética do sentir, como afirma Guattari (2008), ocupa uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de enunciação de nossa época. Apontar a estética não como arte institucionalizada, mas como uma dimensão de criação em estado nascente. O exercício de compor com participantes e envolvidos, por meio de encontros de conversação, sustenta a perspectiva de que as redes de diálogo constituem em complexo processo interacional. A conversação, dada sua natureza dialógica e pelo seu caráter interventivo, destaca a dimensão inter-relacional dos encontros e de suas forças variadas. Remete aos exercícios de criação realizados à esfera de composição das diferentes vozes 13 agenciadas e partícipes doprocesso. O outro com o qual estabelecemos a conversação, não é apenas um interlocutor virtual. É agenciamento dinâmico. A língua, como nos sugere Bakhtin (1997), é concreta e viva, e não se reduz a um mero objeto linguístico. Assim, a linguagem guarda uma atividade responsiva. Constitui-se como gestos de respostas aos movimentos dos quais se efetiva (Bakhtin, 1992). Partimos da direção de que produzir conhecimento é também produzir interesse e controvérsias que constituam questões políticas e enfatizem a reinvenção de sentidos, criação de histórias, vínculos e relações de força favoráveis à sustentação da produção de diferença e engendramento de multiplicidades (Stengers, 1990). Nesse sentido, os saraus poéticos reúnem participantes diferentes em debate e em torno de temas e criações de modos de sensibilidade. As linhas de ações e suas ferramentas específicas possibilitam a sustentação de uma rede de conversação transversal que debata permanentemente os entrelaçamentos entre educação, memória, arte, cultura e criticidade. Construindo um novo olhar: Possibilidades através da cartografia social Todo ato de conhecer traz um mundo às mãos, [...] todo fazer é conhecer, todo conhecer é fazer. (Maturana e Varela em El árbol del conocimiento) Transformar para conhecer. Pelo caminho, novas experiências. Assim é a pesquisa cartográfica. É dissolver formas impostas. É a realidade que interfere na gênese do objeto e gera novas formas. E novas realidades. Transversalização como força, não como um corte vertical. Nem sequer imposição. É preciso ampliar a comunicação, diz Guattari (1981). É preciso ampliá-la entre sujeitos, e entre grupos, na ligação entre componentes e fluxos (heterogêneos, materiais e imateriais). É preciso relações entre relações. Linguagem é a amarração da implicação e da transversalidade. Ruptura das formas: momento de força, que diz dos apegos a quem segue sem questionar. A linguagem como vontade de ordem ou como delírio do Verbo (Barros, 2010) criam processos diferentes. Isso pode ser caótico - em situações disruptivas - visto que as formas, temporárias que são, organizam o caos. As experiências, contudo, ligam-se à 14 transversalidade. A transversalidade quebra classificações, hierarquizações, dicotomias - que as formas engendram em instituições. Vincula-se a um agir singular, proposto pela ética do cartógrafo que não se sustenta em organizações ditadas por formas a priori. Conhecer a realidade é delinear seu processo permanente de produção. Constata-se: os atos dos cartógrafos – parte do coletivo de forças – pode inserir e intervir nas mudanças. Remete a uma ética de conectividade (Simondon, 1981) nos processos, numa busca de superação das lógicas comunicacionais verticalizadas ou horizontalizadas, elas próprias, individualizantes. (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009, p. 104). O Fogo-Fátuo, sarau poético, abre espaço para os diários de quarentena que se manifestam através de diferentes expressões artísticas, declamação de poemas; escritos dos mais diversos gêneros: relatos, crônicas, poesias; palhaçaria; performances de cunho interpretativo e teatral que são frutos da experiência sensível de cada um de seus integrantes diante de um cenário incerto e instável instalado pela pandemia da Covid-19. A proposta surge em âmbito acadêmico em forma de extensão, portanto, indo para além dos muros da universidade, nos traz um convite de nos lançarmos na experiência de forma conjunta se permitindo afetar e sermos afetados. Nos é ofertado a possibilidade de compreender o momento vigente sob a ótica da cartografia social: (...) uma cartografia social faz diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade. (PRADO & TETI, 2013, p.45) A análise cartográfica se constituiria assim, como ferramenta para interpretação do momento presente, ensejando uma crítica ao nosso tempo e daquilo que somos. Paisagens psicossociais também são cartografados. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos (...). Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos 15 possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. (ROLNIK, 1989, p.15-16). Se opondo a metodologia tradicional, que reflete uma lógica de caráter estático, neutro e descritivo onde se instaura a posição de observador, indo para além de testar hipóteses ou propor soluções, o Fogo-fátuo propõe uma dissolução do ponto de vista do observador, superando a dicotomia sujeito/objeto e a imposição de um manual interpretativo que se faz distante da experiência e escuta. A construção de reflexões e transmissão são feitas de forma conjunta possibilitando a cooperação e interação entre saberes múltiplos. Deixa-se penetrar pela emergência e demandas manifestadas permitindo abertura, o que proporciona liberdade. Somos coproduzidos: o que se processa é genuinamente a elaboração, participação de cada integrante que nos leva a voltar a atenção à abertura, perspectivas - isso Guattari instituiu de quantum mais amplo de transversalidade. A estratégia cartográfica permite escapar ao decalque, à cópia, à reprodução e à repetição de si mesmo, tornando possível a singularização, a produção de si mesmo a partir de novas estéticas da existência. (PRADO & TETI, 2013, p.57). A proposta inspirada também na pedagogia freireana, de construção compartilhada do conhecimento, levanta pontos importantes que podem ser observados e serem transpostos em nossa experiência, nos fazendo entender que a construção do saber se faz com o outro, e não, para o outro, partindo do pressuposto que todos têm construções a serem compartilhadas, o que valoriza a troca de narrativas e práticas. A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. (FREIRE, 1987, p.77-85). É estabelecido uma rede de troca, comunicação, nenhum tipo de vivência ou saber se sobrepõe ao outro. São pautados interesses coletivos. Temas que nos incomodam, mas também 16 movem e fazem caminhar. Fazendo surgir novas reflexões, dando fôlego para o surgimento de intervenções que ecoam, germinando sementes de transformações subjetivas. Incendiária O que é o fogo-fátuo, senão a maior prova da vontade e capacidade de vida? É uma chama azul que aparece em campos, pântanos e cemitérios, geralmente associado ao processo de decomposição. Seria então a morte, não? A morte é a maior comprovação da vida. Para morrer, basta estar vivo. E se se morre, seja céu ou inferno, continua-se de alguma forma. Seja em lembranças, seja através dessa chama que não se apaga. Saudade. Essa chama azulada é a persistência da vida sobre a morte. É a combustão do desejo que ri em cima da degradação, dos momentos de choro e transforma a realidade da morte em possibilidade de luz. O homem, sem poesia nada é. Uma vela acessa que nada ilumina. Desde a sua domesticação, o fogo tem sido um dos maiores instrumentos do homem. De vida e morte. Espantava animais, aquecia os corpos esfriados pelas baixas temperaturase ventos. Secava peles úmidas e impedia doenças. Assava carnes. Qual é, ou deveria ser, o novo fogo a ser domesticado? Não sei. O incêndio vem aí. E tudo bem. O fogo persiste, na verdade até insiste em nos lembrar da sua importância. Esquenta a pele, assa a carne. Chama. E a alma fica fria? Aí não pode. Por isso a poesia, chama da alma, pedaço de tição que em contato com as cinzas das tristezas que a vida deixa, traz luminescência e esperança. Fogo-fátuo em tempos de fim de mundo, crise política e absurdos é um bacanal poético da conjunção de vozes múltiplas dissonantes e consoantes em coro e cor afinados. Trata de mais do que a junção da necessidade pela arte, mas da necessidade pela vida. Que apesar das mortes, infelizmente não parou. Enquanto resistência, a única atitude possível é a de viver. Viver de verdade, escapando do absurdo da sobrevivência. Sobrevivemos iluminando uns aos outros, mesmo que pela luz putrefata, mas poética de nossas aflições compartilhadas. À guisa de (in)conclusão: A saúde como a literatura, como a escrita, consiste em inventar um povo que falta. (Deleuze em Crítica e Clínica) 17 Fogo-Fátuo: sarau poético e diários de quarentena, apontam para uma política do acontecimento e do desejo, que situe a dignidade dos encontros, das trocas e dos exercícios de sustentação da memória e da palavra como fonte para uma cartografia social que intervenha na produção de modos de sensibilidade e dispositivos semióticos. Há uma preocupação evidente manifesta neste projeto em construir, urgente e coletivamente, ações educacionais sensíveis que sejam democráticas e plurais, que afirmem o caráter público e político das ações humanas em suas montagens de redes de sustentação e transformação. A necessidade de ações transversais, que instiguem nos participantes do projeto a criação de pertencimentos, engajamento, solidariedade e modos sensíveis e inéditos de composição, concorrendo, portanto, para o enfrentamento às forças mortificadoras do estado atual de pandemia por Covid-19. A possibilidade de conexão transdisciplinar e interinstitucional alarga a intervenção crítica para além do corpo acadêmico, alcançando a comunidade interessada e as parcerias estabelecidas. A sustentação dos saraus e compartilhamentos dos diários de quarentena, desenvolvem dispositivos semióticos e tecnologias para a produção de novas linguagens e expressões sensíveis, estéticas, artísticas e críticas. Concorrem para a criação de formas de enfrentamento à situação experimentada, frente à pandemia por Covid-19, envolve tanto a mobilização de repertório teórico, alcançada através do movimento permanente dos grupos de estudos, como pelos encontros e reuniões realizadas nas edições de Fogo-fátuo: sarau poético e diários de quarentena. Os encontros realizados por meio de videoconferências se dedicam a criar redes de conexões e conversações temáticas que debatem temas específicos e apresentam as intervenções artísticas que alimentam a criação de novos modos de sensibilidade, uma vez que partimos do princípio de que pensar, agir e saber são ações entrelaçadas e intercambiantes, que não se separam e afirmam a dimensão política e de criação da vida. Referências bibliográficas: AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. 18 AGAMBEN, Giorgio. 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São Paulo: N-1 edições, 2018. 22 O ensino de práticas artísticas no contexto do Covid-19 sob a ótica de Lygia Pape Eraní Ferreira Soares A arte: hibridismo e linguagens Este texto surgiu da reflexão sobre a arte, hibridismo e suas linguagens, quando comecei a trabalhar no curso de Artes Cênicas ministrando as disciplinas de Figurino e Cenografia, de 2011 até 2020, na Universidade de Vila Velha. Atuei como professora, dando suporte no processo de criação de figurino e cenografia para os alunos do curso de artes cênicas. No curso, pude evidenciar o que relata SANTAELLA (2003, p. 135) sobre linguagem e hibridismo: “São consideradas híbridas as produções artísticas que utilizam “linguagens e meios que se misturam, compondo um todo mesclado e interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada”. Fig. 1. Aula de Cenografia. Laboratório de Gravação e Vídeo. Universidade de Vila Velha. 2014. No curso, os alunos faziam estágio em escola particular ou pública sob minha supervisão via Projeto de Extensão, no qual eu auxiliava o desenvolvimento de seus trabalhos de estágio. 23 Naquele interim, eu participava do processo de criação de figurinos e de cenários para outras disciplinas do curso. Minha função como docente foi inicialmente na disciplina de Indumentária e Caracterização de Figurino e Cenografia. Posteriormente, com a mudança da grade curricular do Curso de Artes Cênicas, passei a ministrar as disciplinas de Figurino I e Figurino II que dava suporte para outras disciplinas do curso. Isso muito contribuiu no desenvolvimento do meu trabalho como docente em uma área nova, bem como o despertar meu desejo de cursar o mestrado na busca por novos conhecimentos. Apesar de minha formação ser em Artes, até então, não havia lecionado como professora em curso de Licenciatura para teatro. O que, no início, foi muito difícil por não conhecer os fundamentos teóricos dessa área nem as práticas ligadas à cenografia. Fig. 2. Aula de Cenografia. Laboratório de estamparia. Universidade de Vila Velha. 2014. Na graduação em Artes, as disciplinas de teatro I e Teatro II foram apenas uma introdução, não houve um aprofundamento, nem da parte teórica nem da prática, por isso, não me sentia totalmente habilitada para desenvolver tais atividades. Então, para o planejamento das aulas, pesquisei a respeito dos principais cenógrafos no Brasil e do exterior. Na época, aprendi muito com os alunos que já atuavam como atores, os quais buscavam no curso uma formação acadêmica em Artes Cênicas, assim como adquirir maior conhecimento na área. Estes alunos eram verdadeiros professores-atores. 24 Como parte da pesquisa para elaboração das aulas, contei com a ajuda e a participação de outros professores do curso e, principalmente, da coordenadora, Rejane Arruda, a qual sempre me incentivou e me desafiou a pesquisar, cada vez mais, a respeito de cenografia, figurino e suas relações com outras linguagens artísticas. Figurino foi mais fácil, por já ministrar a disciplina de História da Indumentária no curso de Design de Moda, onde realizo pesquisa desde 2002, quando iniciei no curso como docente, na disciplina História da Indumentária. Penetrar nesse fascinante universo da História da Moda, que também se relaciona com o contexto artístico e social, abriu-me diversas possibilidades, tanto na área profissional como pessoal. Para a disciplina de Figurino e Cenografia foi necessário articular a teoria com a prática, frente ao que era proposto. Fig. 3. Aula de História da Indumentária. Universidade de Vila Velha. 2017. Diante das possibilidades disponíveis ao trabalhar em uma área onde se misturam linguagens artísticas variadas, como artes plásticas, cênicas e design, e na qual se mesclam pintura, desenho, dança, design gráfico,filmes, performances e instalações, sempre foi muito enriquecedor lidar com tantas perspectivas. Quando não tínhamos um espaço físico e materiais adequados, improvisávamos no anfiteatro da universidade, no laboratório de estamparia, no laboratório de vídeo, entre outros. Eu e os alunos caminhávamos pela universidade com sacos 25 de tecidos e outros materiais, isso causava certa curiosidade entre os acadêmicos, tanto os discentes quanto os docentes. Fig. 4. Aula de História da Indumentária. Universidade de Vila Velha. 2017. A partir destas experiências obtive a base para desenvolver com maior habilidade minhas atividades dentro do curso juntamente com os alunos. A esse respeito, Viola Spolin (2010, p. 34) explica que: “Experimentar é penetrar no ambiente, é envolver-se total e, organicamente com ele. Isso significa envolvimento em todos os níveis: intelectual, físico e intuitivo”. 26 Fig. 5. Apresentação “Alice Uma quase ópera Ópera punk- rock contemporânea”. Teatro Municipal de Vila Velha. Performa-ES. Artes e suas funções sociais no contexto atual De acordo com FISCHER (1987, p. 51) “o artista continua sendo o porta voz da sociedade”. Ademais, FISCHER (1987, p.51-52) declara que: “ a tarefa do artista é expor ao público a significação profunda dos acontecimentos, fazendo-o compreender claramente a necessidade e as relações essenciais entre o homem e a natureza, e entre o homem e a sociedade”. O autor demonstra como é importante compreender o Outro, aderir à empatia. Foi exatamente isso que encontrei nos alunos e professores do Curso de Artes Cênicas. No período em que ministrei aulas no curso de Artes Cênicas, cursava a disciplina de Arte Moderna como aluna especial no Mestrado em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Logo após, não tive condições de fazer o mestrado por incompatibilidade de horários e também não ter tempo para estudar e elaborar meu projeto de pesquisa. Esse fato ocorre com a maioria dos profissionais da área de educação: trabalhar em várias instituições, com carga horária oscilante e não ter salário definido. Devido a esse panorama, de acordo com HORKHEIMER (2002, p.145): Assim o sujeito da razão individual tende a tornar-se um ego encolhido, cativo do presente evanescente, esquecendo o uso das funções intelectual pelas quais outrora era capaz de transcender a sua real posição na realidade. Essas funções são hoje assumidas pelas grandes forças sociais e econômicas da época. O futuro do individuo depende cada vez menos da sua própria prudência e cada vez mais das disputas 27 nacionais e internacionais entre colossos do poder. A individualidade perdeu a sua base econômica. Ou seja, o educador, muitas vezes, precisa abandonar projetos pessoais e acadêmicos para cumprir as exigências do trabalho, o que compromete a sua qualificação profissional. Mesmo assim, atualmente, estou matriculada como aluna regular de mestrado na turma 2019/1 e finalizarei o curso de pós-graduação em dezembro de 2020. O divisor e a atualidade Entre as pesquisas para a disciplina mencionada, conheci o trabalho da artista plástica Lygia Pape (1929-2004), seu trabalho é conhecido internacionalmente. Apesar de ser uma das principais representantes do Neoconcretismo no Brasil em seu período, é pouco conhecida por aqui em comparação com outros artistas do mesmo período, tais como Lygia Clarck (1920- 1988) e Hélio Oiticica (1937-1980). Fig. 6. Lygia Pape, 1960.1 Alice Brill (1988) nos revela: “O que define o homem como ser racional, é a sua capacidade de codificar, isto é, de simbolizar a sua experiência vivida”. Por isso, nota-se como 1 Fonte: https://i1.wp.com/arteref.com/wp-content/uploads/2016/10/Lygia-Pape. Acesso em 15/08/2020. https://i1.wp.com/arteref.com/wp-content/uploads/2016/10/Lygia-Pape 28 principal característica da obra de Lygia Pape a integração das esferas estética, ética e política, sua produção artística é marcada pela preocupação em relacionar os principais temas da humanidade, como tempo, o espaço, a violência e a sexualidade. Nesse sentido: A função simbólica dá ao homem a possibilidade de captar sua vivência, expressando-a, a fim de memorizá-la para si mesmo ou transmiti-la aos outros. É, portanto, a comunicação entre os homens que está na base da função simbólica, possibilitando a troca de ideias entre indivíduos do mesmo grupo social, através de códigos tais como a linguagem escrita e falada e as artes (BRILL, 1988, p. 35). Ao considerar o momento atual, este ano de 2020 incita novas reflexões a respeito das “funções simbólicas”, afinal, com a COVID-19, há uma pandemia do corona vírus que se alastrou pelo mundo, causando efeitos devastadores em todos os setores da sociedade, inclusive e devastadoramente, na classe artística, pois teatros, cinemas, museus e instituições deste gênero estão fechadas. Aos artistas, resta tentar sobreviver com leis de incentivo a cultura, lives e outras formas de se apresentação de seus talentos. Fig. 7. “Divisor” (1968)2 Aliado ao descaso com a arte e com classe artística pelos governantes do nosso país, a obra O Divisor foi escolhida para fazer um paralelo com o contexto político social atual com o período em que foi criada, a década de 1960, o qual também foi um período muito conturbado política e socialmente, conforme afirma FREIRE (2006, p. 21): 2 Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14848/divisor. 2020. Verbete da Enciclopédia. Acesso: 09/08/2020. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14848/divisor 29 Em dezembro de 1968 foi promulgado a Ato Institucional n°5, que recrudesceu a ditadura militar no Brasil, levando à perseguição e prisão de artistas e intelectuais. No ano seguinte seria proibida, no Museu de Moderna no Rio de Janeiro, a exposição dos selecionados para participar da VI Bienal de Paris, o que provocou um enérgico protesto da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Denise Mattar (2003) nos lembra que, à época: “A obra de Lygia é um experimentar constante, é a busca do novo, o eterno devir. A artista transita do negro para a cor da palavra para a luz, da imagem para o som”. Os trabalhos da artista são conhecidos pela liberdade em ensaiar várias linguagens e interagir a obra com o público, que é uma das características da Arte Contemporânea: saber olhar para todas as épocas, enxergar erros e incertezas, olhar para as luzes e perceber as incertezas de todas as fases. AGABEM (2009, p. 165), desse modo, esclarece que: Ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz, que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar. No período da produção de “O Divisor”, o Brasil passava pelo regime político da ditadura militar. A crítica, a ironia e o humor negro fez parte deste trabalho de Lygia Pape como forma de protesto, de tomada de posição diante daquele contexto. A obra é formada por um tecido de 30 por 30 metros com buracos preenchidos por pessoas. Neles, ficavam à mostra somente as cabeças, todo o resto do corpo dos participantes permaneciam sob o pano. Lygia, assim, quebrou o limite entre observador e participante ao criar um público novo, pois convidado a completar lúdica e presencialmente a obra. Quando criou “O Divisor”, a artista queria uma arte/ação coletiva, na qual as pessoas pudessem experimentar estruturas e ações performáticas sem que a artista estivesse presente. “Ideologicamente este tipo de proposta seria uma coisa muito generosa, uma arte pública da qual as pessoas poderiam participar, atualmente são chamadas de performances” (Pape apud Carneiro, 1998 p. 45). A arte sempre foi considerada privilegio da elite, em O Divisor são rompidas todas as barreiras que separamo artista e sua obra do espectador. 30 Esta análise demonstra como a artista se portava em relação ao contexto político e estético de seu tempo. Em Lygia Pape, também é possível encontrar as evidências tanto do passado quanto do presente, pois “O Divisor” representa um espírito coletivo, mesmo em isolamento social devido à pandemia. Mantemo-nos unidos ao nosso meio social por meio de uma conexão extra corporal, remota, mas definitivamente dinâmica e compartilhada. Didi- Huberman (2006) nos ajuda a entender as forças simbólicas que unem o tempo pretérito com a atualidade: O conhecimento por montagem está por intervir a lógica de uma construção temporal da história da arte, pelo contrário, pode haver elementos presentes nela que rementem a outros tempos, muito parecido com o atual contexto político pelo qual nosso país está passando na atualidade. Fig. 8. Performance de estudantes da Faculdade de Música e Belas Artes, UFMG, em frente ao Palácio das Artes. 2019. A obra de Lygia Pape já foi exposta no Museu Reina Sofia, Espanha, em 2012; em 2017, foi apresentada em Nova York; em julho de 2020, terminou a retrospectiva da obra de Lygia Pape novamente no Museu reina Sofia, na Espanha, na Fondazione Carrieiro, em Milão até julho de 2020. Segundo Paula Pape, sua filha “todos são um só no Divisor, as pessoas esquecem quem são e se deixam levar pelo coletivo”. O Divisor foi usado em 2019 por estudantes em Belo horizonte, em manifestação contra a reforma da presidência. Em “O Divisor” nota-se a massificação do homem, cada um no seu lugar, com pouca distinção pessoal. Também é possível observar que, mesmo instalados em suas próprias fendas, 31 uns conversavam com o outros, o que se torna um paralelo com o contexto atual. Afinal, mesmo confinadas aos seus lares, as pessoas não deixaram de se comunicar. Contudo, há um outro viés, se antes da pandemia grande parte das pessoas já viviam em um “quase” isolamento, agora isso está mais que evidente. Segundo BAUMAN (2001), isso mostra que os indivíduos querem liberdade para tomar um lugar para si e se isolarem: Na modernidade liquida, as relações humanas são voláteis, e podem ser interrompidas a qualquer momento, o que pode ocasionar uma predisposição ao isolamento social, onde os indivíduos optam por viver sozinhos, e como consequência enfraquece a solidariedade, com isso estimula a insensibilidade em relação ao sofrimento do outro. Ao cabo, não poderia deixar de citar o pensamento de Bertold Brecht (1898-1956), um dos principais pensadores do teatro e da arte em geral do século XX. O conjunto de sua obra visa a arte como instrumento de transformação social, convidando o público a agir de modo a transformar sua história. Segundo Fernando Peixoto (1980), “Brecht recusa o espetáculo como hipnose ou anestesia: o espectador deve conservar-se intelectualmente ativo, capaz de assumir diante do que lhe é mostrado a única atitude cientificamente correta - a postura crítica”. Os pressupostos estéticos da obra de Brecht percorrem todos os campos artísticos e nos remete ao teatro épico que, para o dramaturgo, é pensar a obra racionalmente sem se desfazer da emoção. Conclusão Por fim, meu trabalho como docente no curso de Artes Cênicas me levou ano de 1968, ocasião na qual foi criado “O Divisor”. O curso de Artes Cênicas da Universidade de Vila Velha é o único no Estado com Licenciatura, por isso é importante para fomentar a cena artística local. Enquanto ministrava as aulas do curso, promovíamos espetáculos gratuitos e oficinas, convidando as pessoas para participar, incentivando a interação, que é um dos papéis da Arte Contemporânea. Artistas locais e alunos mostraram seus trabalhos, porém, como acontece no nosso país, e não poderia deixar de ser diferente no nosso Estado, a cultura e a arte não são valorizados. Mesmo a preços irrisórios, ou até gratuito, o público foi pequeno. 32 Fundamental para minha vida profissional e pessoal, no curso fui acolhida com carinho e respeito pelos corpos discentes e docentes, ainda mantemos contato via encontros virtuais, conhecidos como lives. A obra “O Divisor”, de Lygia Pape, foi um trabalho de suma importância para a arte brasileira na década de 1960, por causa do contexto político e cultural no qual estava inserido, a ditadura militar. Também é obra relevante para período atual, pois dialoga com o que vivemos, as diatribes políticas e a pandemia. Ambos nos convidam a nos posicionarmos, afinal a arte não deixa de ser uma forma de manifestação em relação ao que acontece no cenário político e cultural do nosso país. Referências bibliográficas AGABEM, Giorgio. 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Por outro lado, os atores também afetam o público a partir das intensidades das suas ações. Gilles Deleuze contribui para essa análise com a seguinte ideia: Se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e de ser afetado, muitas coisas mudam. Definiremos um animal, ou um homem, não por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o definiremos pelos afetos de que ele é capaz (DELEUZE, 1981/2002, p. 129). Existe uma relação entre o corpo exagerado dos atores e a forma como as crianças são afetadas durante o espetáculo teatral. Este efeito reverbera na vida delas. Como afirma Spinoza (2009, p. 99). “O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída.” O memorial que trago expressa o meu interesse de apresentar como isto aconteceu no decorrer dos anos de experiência com o Teatro para Crianças, através dos quais observei um dispositivo que suporta o corpo do ator e a relação de afeto com a criança-espectador. 34 Neste memorial também problematizo a dilatação corporal como forma de atrair a atenção das crianças e exponho a capacidade transformadora do Teatro no que diz respeito à prática pedagógica cotidiana. Onde tudo começou Nasci em Vitória da Conquista (BA), onde morei grande parte da minha vida. A cidade possui grande carência teatral, então as únicas apresentações que eu assistiaeram vistas no YouTube e tentava reproduzi-las na igreja, dirigia, preparava os atores, atuava mesmo sem conhecimento teórico nem muitas referências para isso. Quando completei 18 anos, fiquei sabendo de um grupo teatral local e que haviam encontros todos os sábados. O nome é “Apodío”. Fui a uma aula experimental e quando me dei conta, já estava montando uma peça e indo a todas as oficinas que tinham relação com o teatro. O grupo utilizava exercícios de Jogos para atores e não atores de Augusto Boal. Interessada em conhecê-los ainda mais, eu participei de uma oficina com o tema “Teatro do Oprimido”, baseada em seu livro, cujo intuito é libertar as pessoas das opressões impostas por outras e até por si próprias. Nesta oficina foram vivenciadas dinâmicas, que buscavam relembrar memórias e sentimentos de opressão e expressá-los através do corpo. As pessoas que viam precisavam adivinhar a história apenas olhando as expressões corporais. Sempre considerada tímida, percebi a potencialidade do corpo com esse exercício. Mesmo sem precisar de diálogo, o ser humano pode ser compreendido, ou seja, há outras formas de se expressar além da voz. Diante disso, passei a me compreender mais; notei opressões que me limitavam a expor opiniões e sentimentos guardados, por medo de críticas. Estas limitações refletiam em meu modo de agir. Assim, foi através do teatro que encontrei uma forma de me libertar, não apenas com a voz, mas com o corpo. Aprendi a observar o movimento corpóreo das outras pessoas e a querer estudar sobre isso, tema tão amplo que continuo estudando. A minha primeira apresentação com o grupo “Apodío” foi com a peça “O Silêncio” de Peter Handke. Minha paixão por teatro crescia cada vez mais, porém por motivos pessoais 35 precisei me mudar para Vila Velha (ES). Logo comecei a pesquisar as companhias teatrais locais e descobri o Curso de Artes Cênicas da Universidade Vila Velha (UVV). Diante de tantas matérias, o que sempre me chamou mais atenção foi a dilatação corporal (Barba, 1995). No decorrer do curso, realizei trabalhos que me mostraram a potência do corpo humano e a sua contribuição para a arte da cena. Desenvolvi peças voltadas ao Teatro para Crianças, com o foco na criação de um corpo extracotidiano. As técnicas cotidianas do corpo tendem à comunicação, as do virtuosismo tendem a provocar assombro. As técnicas extracotidianas tendem a informação: estas, literalmente, põem-em-forma o corpo, tornando-o artístico/artificial, porém crível. Nisto consiste a diferença essencial que o separa das técnicas que o transformam no corpo "incrível" do acrobata e do virtuoso. (BARBA, 1994, p. 31) Vale destacar aquelas que são relevantes para a análise em questão, são elas: “Peter Pan: Encontre seu caminho” (2017), com direção de Rejane Arruda; “O Mágico de Oz” (2017), com direção de Marthins Machado e Elisa Oliveira; “O Casamento de Maria Flor” (2018), com direção de Marthins Machado; “Os Saltimbancos” (2018), com direção de Letícia Dias e Filipe Sousa. “Teatro Vai à Escola” A Secretaria Municipal de Educação de Vila Velha (SEMED) possui um projeto do setor de Arte e Cultura chamado “Teatro Vai à Escola”. Este projeto foi criado por Peterson de Castro3 e Karla Pio. Este termo já era utilizado por outros grupos teatrais, porém a proposta inovadora foi atribuir aos estagiários do setor à criação do espetáculo, atribuindo a eles a responsabilidade pelo roteiro, atuação, sonoplastia, figurino, cenografia, direção, entre outras funções. Com o objetivo de levar entretenimento e aprendizagem de forma lúdica para as escolas UMEIs e UMEFs de Vila Velha, o projeto de inicio supriu a demanda do “Programa de Saúde nas Escolas” (PSE), de conscientizar os alunos sobre temáticas recorrentes na 3 Peterson de Castro professor de artes, coordenador do setor de arte e cultura da SEMED a oito anos. Karla Pio professora de artes, exerce a função de técnico pedagógica no setor de arte e cultura da SEMED a nove anos. 36 sociedade como, por exemplo, uso de drogas, gravidez na adolescência, saúde bocal, entre outros. Diante dessa demanda, houve a necessidade de se obter pessoas qualificadas para a execução das atividades teatrais. O PSE e o setor de Arte e Cultura conseguiram os primeiros estagiários de Artes Cênicas da SEMED, também alunos da Universidade Vila Velha. Atualmente, essas vagas são constantemente preenchidas por outros estudantes e os temas sociais não são mais prioridade. A forma de administrar o projeto “Teatro vai à escola” fica sob autonomia dos estagiários. Quando passei a estagiar na SEMED, em 2018, o grupo era formado por três estagiários estudantes de Artes Cênicas na UVV e uma estudante de outra instituição. Assim que iniciamos o trabalho no setor de Arte e Cultura, começamos o processo de criação do espetáculo “Os Saltimbancos”. Todos nós dávamos ideias para a construção das cenas e trama, que ocorre de forma lúdica, envolvendo a participação das crianças. Estas por sua vez, expressavam suas opiniões e ajudavam na continuação do espetáculo. Os personagens são bem humorados e cada um com uma personalidade própria: jumento, cachorro, galinha e gata. É um musical com músicas do Chico Buarque que retrata a história de cada animal, adaptado com referências musicais da atualidade, como “Dançando com o Txutxucão” da Xuxa e “A Galinha Magricela” da Fazenda do Zenon. As referências foram utilizadas para criar maior envolvimento das crianças com os personagens. Muitas vezes elas conheciam a coreografia e as músicas e, assim, dançavam e participavam da história. A estreia do espetáculo “Os saltimbancos” foi à primeira experiência dos atores com esse projeto para público infantil das escolas. No decorrer das apresentações, a peça foi se modificando, até finalmente amadurecer. Com a vivência nesse projeto, percebi que mesmo que ensaiarmos como se estivéssemos em frente ao público, é notória a diferença que sua presença trás para o espetáculo. Percebi a necessidade das crianças de fazer parte da história e interagir com os personagens. Mesmo sabendo que se trata de uma peça teatral, elas encaram como real. Assim, fazemos perguntas e lançamos proposições para elas, deixando-as escolher o rumo da história. 37 Durante a trama, os animais estão fugindo da fazenda à procura da idealizada cidade grande, e para isso questionam diversas vezes para as crianças onde fica a cidade. Cada uma aponta uma direção diferente. Assim, termina o espetáculo sem os animais encontrarem o caminho da cidade grande. Em algumas apresentações, mesmo depois de ter acabado, elas insistem em ajudar os animais a chegarem à cidade.4 Cada momento como esse é único. O projeto se tornou conhecido nas escolas municipais de Vila Velha, com uma demanda cada vez maior. Mais de quarenta apresentações foram realizadas em um ano e meio. De acordo com a “Base Nacional Comum Curricular” (BNCC), as crianças devem ser protagonistas do próprio aprendizado; e ter cada vez mais voz e participação nesse processo. Acredito que este projeto é uma forma de dar voz a estas crianças e contribuir para que tenham uma participação ativa no seu processo de aprendizado. Em uma apresentação feita na UMEI Basilio Costalonga, a professora após a ter assistido o espetáculo, comentou sobre o comportamento das crianças da seguinte forma: O que me chamou atenção foi que vocês não exigiram o silêncio das crianças, que muitas vezes quando tem atividade artística na escola, as pessoas pedem o tempo todo para elas não conversarem e ainda assim elas ficam de conversa paralela. Já com vocês, o que me impressionou que o tempo inteiro interagem com elas e pedem opinião, deixam elas falarem e elas ficaram vidradas em vocês, todas as crianças, até as mais hiperativas e sem precisar pedir, fizeram silêncio no momento certo e quando conversavam, foi para interagir com vocês.²Aprendemos que, quanto maior o exagero ao narrar à história, utilizando recursos corporais e vocais, mais prendemos a atenção delas. Trata-se de um momento de troca com as crianças. Esta troca ocorre desde o momento que entramos no palco. Acontece grande produção de energia e a expansão corporal é conquistada através do experimento com o público. É visível a diferença da expansão de energia quando entra em jogo a inserção desse corpo energético. Certo dia, nós estávamos na escola e tínhamos duas apresentações, pela manhã e pela tarde, sendo a primeira no turno matutino e a segunda no turno vespertino. Pela manhã, tivemos dificuldades com o som, estávamos cansados e resolvendo problemas em cena, o que limitou 4 Comentário feito pela professora no dia 12 de Novembro na UMEI Basília Costalonga. 38 os movimentos corporais. Houveram também falhas no microfone e as crianças ficaram dispersas. Mas algo ainda as encantou e muitas nos procuraram para abraçar e fazer elogios. Já na segunda apresentação, com outro público, decidimos utilizar maior energia, principalmente corporal. Após o termino, uma professora, nos falou “Quanta diferença da outra apresentação. A do turno vespertino foi bem melhor. Parecia que estavam mais alegres e as crianças se comportaram muito bem. Essa apresentação foi ainda melhor que a primeira”. O corpo tem um papel fundamental no processo de decifração de sensações, de criação e de comunicação com o público. O corpo é suporte, cenário, linguagem – gestos, movimento, ritmos, pausas (espaço e tempo). E é na relação com outros que ele se faz. (FERLA.A; ÁVILA. M. 2015, p.738) Como a demanda do projeto é muito grande, tentamos contemplar o máximo de escolas possíveis, indo pelo menos uma vez por semana em cada uma. A diretora da “UMEI Pedro Pandolfi” nos convida diversas vezes e somos sempre bem recebidos, com presentes e conforto. Uma dessas vezes, ela nos falou: Sempre tento recebê-los da melhor forma possível, na esperança de voltarem mais vezes. Muitas dessas crianças nunca foram no cinema, muito menos no teatro. Para a maioria, o espetáculo de vocês é o primeiro contato delas com o universo teatral e entendemos que agrega na vida delas. É um dia diferente na escola como um dia de festa e voltam pra aula, desenhando o rosto de vocês e alvoroçados para contar para os pais dessa experiência e não deixa de ser um momento educativo também. 5 Já fizemos muitos espetáculos e cada um é único. Os públicos são sempre diferentes, assim como o local e até nós mesmos, nos modificamos constantemente. Muitas vezes fomos apresentar cansados, com problemas pessoais e sentimentos negativos. Mas, ao entrar em cena, o público torna toda a energia positiva. Trabalhar e estudar o corpo sempre foi uma prática prazerosa no meu cotidiano. Desde o momento em que notei a potência de afeto existente entre o ator-personagem e a criança- plateia, passei a utilizar o dispositivo corporal para potencializar essa relação. Cada corpo é afetado de maneiras múltiplas, isto é, nenhum corpo é afetado da mesma forma que outro corpo, pois o que toca e leva um indivíduo a pensar sempre se 5 Conversa feita com a diretora no dia 11 de Abril na UMEI Pedro Pandolfi 39 expressa de maneira singular e não genérica, embora as ideias possam ser compreendidas e compartilhadas entre muitos corpos-mentes. (NOVIKOFF.C; CALVALCANTI. M, 2015, p. 91) Inspirada nas teorias de Spinoza pude notar a relação afetiva entre os corpos durante o espetáculo. Vale ressaltar, que cada um reage de forma única. Assim como cada ator é a afetado de maneiras diferentes, isso também ocorre entre as crianças. Ao analisar o público em geral, notei que, em algumas regiões, existe uma maior carência afetiva. Em certos momentos, mais de cem crianças queriam me abraçar ao mesmo tempo, algumas não queriam me soltar de maneira alguma. Foi preciso que eu fosse puxada pelo professor ou funcionário da instituição. Assim como também tiveram escolas onde não fui abraçada, apenas recebi alguns sorrisos e cumprimentos de despedida. Se o corpo do ator é, já em si mesmo, território cênico, onde o movimento dos gestos e dos olhares e as máscaras naturais do rosto são dança de afetos e jogo de emoções na lúdica construção da personagem, o espaço do palco é um prolongamento do corpo do ator e se o corpo do ator é um corpo vivo e dinâmico também o espaço do palco em que esse corpo se movimenta é um espaço vivo e dinâmico, habitado por tensões, forças, conflitos, com múltiplos centros correspondentes ao corpo dos atores. (FERLA.A; ÁVILA. M, 2015, p.736) Filipe Sousa, integrante do espetáculo, contribui para a reflexão, com o seguinte relato. Vejo a criança como uma impulsionadora do meu monólogo inicial e da peça inteira, esse monólogo só dá certo quando a criança reage e utilizo gestos bem exagerados nesse momento, chega a parecer esquisito, mas faz toda diferença, muitas vezes nós chegamos à escola desanimados, mas a energia delas quando entramos em cena contagia. Em cada escola apresentamos em um local diferente, com públicos diferentes, entretanto por mais cansados que estejamos, a criança nos impulsiona através da energia positiva independente do local e do dia. 4 40 Fig 1.: EMEF São José, Cariacica, 2019 Fig. 2: EMEF São José, Cariacica, 2019 Fig. 3: UMEF Antônio Bezerra Farias, 2019 41 “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho” O início da minha trajetória com o Teatro para Crianças foi com “Peter Pan: Encontre Seu Caminho”. Com direção da Profa. Dra. Rejane Arruda, o espetáculo foi montado em 2017, no 2º período do Curso de Artes Cênicas, com o objetivo de utilizar os aprendizados das matérias de Jogos Teatrais, Corpo e Interpretação Teatral. O meu personagem foi Firula, um dos meninos perdidos. Com a junção dos aprendizados teóricos e experimentos práticos ao longo do semestre, o resultado foi um corpo ágil, muito agitado, a dilatação das ações físicas. Vale destacar o jogo “Exagero”, de Augusto Boal (1982), realizado durante reuniões de orientação de Estágio. Os atores exageram todas as emoções, movimentos, conflitos, etc., sempre dentro do rumo certo, mas ultrapassando o limite aceitável. Não se trata de substituir uma coisa por outra, mas apenas de exagerar: quando se odeia exagera-se o ódio, quando se ama exagera-se o amor, quando se grita, exagera-se o grito, etc. (BOAL, 1982, p. 117). Diante da montagem dessa peça, percebi que o diretor pode encontrar dificuldades em fazer com que os atores cheguem a um resultado desejado e para isso, é preciso buscar soluções. Em relação a este processo criativo, deparamo-nos com uma ausência de dilatação corporal em alguns atores. A utilização de Jogos Teatrais nas reuniões de orientação de Estagio abria espaço para os alunos experimentarem dinâmicas corporais. Algumas dentre estas eram utilizadas para as cenas de “Peter Pan” e, também. O jogo “Exagero” de Boal foi utilizado. A regra era clara: exagerar todas as emoções e movimentos. Alguns gestos que foram produzidos durante o exercício, enraizaram nos personagens e se tornaram marcação corporal. O processo de criação de um espetáculo implica modificações até seu amadurecimento, o que acontece após apresentações com diferentes públicos. No entanto, o período anterior à estreia consiste em um jogo de experimentações e proposições, para selecionar materiais que funcionam, colocá-los em cena (e retirar aqueles que necessitam ser cortados). Na estreia de “Peter Pan”, o espetáculo ainda estava fragilizado, atores inseguros e o público de grande maioria jovens e adultos. Começamos então a nos apresentar para crianças, 42 levando o espetáculo para as cidades de Vila Velha. Com o apoio da UVV, em 2018, iniciamos o projeto “Circulação Peter Pan: Encontre o Seu Caminho”. Com objetivo formativo, estas apresentações foram realizadas em dias de semana, para facilitaro acesso dos estudantes e professores. Durante esse período, notei a forma como os personagens afetam as crianças e como esse efeito reverbera na vida delas. Após o espetáculo, essa afecção se torna presente, de modo que não esquecem com facilidade, pois deixamos marcas. Vale destacar o relato de uma criança de três anos feito dias após ter assistido a “Peter Pan”. Mãe: Você lembra qual era o barulho do Jacaré? Menino: Sim, era “tic tac, tic, tac, tic tac” Mãe: E na peça, você ficou com medo? Menino: Não, eu só fiquei muito feliz Mãe: E você gostou dos piratas? Menino: Sim e eles corriam muito e muito rápido.6 Fig. 4: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, São Roque do Canaã 6 Filho de uma das integrantes do coletivo “Elas Tramam”, o relato foi passado através do Whatsapp da diretora Rejane Arruda e postado na página da peça no facebook e instagram. 43 É notório observar na fala da criança a forma como ficaram vivos na memória dele os momentos de correria em cena, ou seja, a ampla movimentação corporal, e o sentimento positivo marcante durante o espetáculo. Fig. 5: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, São Roque do Canaã 44 Fig. 6: “Circulação Peter Pan: Encontre Seu Caminho”, 2018, Vitória Projeto de Arte e Cultura Em 2017, recebi o convite dos estagiários do setor Arte e Cultura da SEMED para interpretar a personagem Dorothy na peça teatral “O mágico de Oz” que estava sendo montada para o “Arte na Vila”. O projeto “Arte na Vila” consiste em uma semana com atividades educativas e culturais para as escolas. Peterson de Castro, coordenador do setor conceitua o projeto da seguinte forma: É a possibilidade de contemplar diversas manifestações artísticas e culturais desenvolvidas nas escolas, com a participação de alunos e profissionais das 98 unidades da rede municipal de ensino de Vila Velha (UMEF’s e UMEI’s) convidadas para participar da mostra. 7 Iniciei a construção de minha personagem. A movimentação corporal era toda marcada, cada gesto, além da inserção de elementos infantis da atualidade, como a música de abertura do desenho animado “Incrivel Mundo de Bobby” e uma sátira, muito popular nas redes sociais, em cima da música “Turn Down for Whats”. As ações dos personagens tinham sempre uma intencionalidade. Diante disso, vale ressaltar o conceito de ação física e como os externos tem uma intenção baseada no interior da personagem: “(...) o ponto principal das ações físicas não está nelas mesmas, enquanto tais, e sim no que elas evocam: condições, circunstâncias propostas, sentimentos. (STANISLÁVSKY, 1997, p. 3, apud BOTELHO, 2013, p. 4). Outra problemática encontrada na construção das cenas foi a expressão corporal. Apesar de todas as marcações dos movimentos estarem prontas, faltava energia. A solução encontrada pelo diretor Marthis Machado foi fazer um ensaio mais conhecido como “FF” 8. Esse procedimento foi incialmente proposto pela professora Rejane Arruda nas aulas de 7 Em entrevista concedida ao jornalista Jô Amado e divulgada no site da Prefeitura Municipal de Vila Velha, em Outubro de 2017. 8 A Sigla “FF” significa Fast Forward, ou seja, avanço rápido, utilizado para avançar uma gravação de áudio ou de vídeo em velocidade mais rápida. Essa função teve origem nos antigos aparelhos de som que rodavam fitas cassetes, ou em aparelhos de vídeo com as fitas VHS. Como haviam pouco espaço nos controles para a escrita, eles precisavam abreviar os textos e como o padrão era inglês, surgiu a sigla “FF”. 45 Interpretação Teatral no curso de Artes Cênicas e utilizado na montagem de Peter Pan. Ele implica em dar velocidade às cenas, como se faz com um filme quando se coloca a função FF no controle remoto. O procedimento tornou-se essencial para a minha construção corporal, a hiperatividade deu a energia que faltava e enraizou na minha personagem, de modo que pude encontrar o estilo de movimento da Dorothy. No ano de 2018, o mesmo grupo foi convidado para mais uma apresentação teatral. Eu participei novamente como voluntária, mas com a proposta de futuramente ser contratada para trabalhar na SEMED. A sugestão da peça teatral foi definida por Peterson de Castro, inicialmente chamada de “O casamento de Maria Feia” que teve que ser adaptada para “O casamento de Maria Flor”, por questões pedagógicas. A peça é uma comédia nordestina: o típico pai bravo que procura um pretendente para a filha. Quando encontra Zé das Baratas, tenta realizar o casamento mesmo que seja sem o consentimento dele (a recusa é devido à falta de beleza em Maria). De modo que a trama traz um foco na aparência da personagem. Não foi o suficiente colocar roupas feias e desenhar uma monocelha. A construção corporal foi essencial para enfatizar a comicidade da aparência de Maria Flor. Esta construção corporal foi difícil de encontrar. Passei por um processo de experimentação constante, até certo ensaio, quando estávamos conversando e eu fiz uma brincadeira com um corpo estranho. O diretor Marthins Machado pediu para experimentar para a personagem e fui aprimorando cada vez mais. A sua movimentação era com as pernas tortas, coluna curvada e expressão facial com várias caretas. Ou seja, utilizei todo o meu corpo, dos pés à cabeça, para transmitir o contrário do que é “belo”. 46 Fig. 7: “Arte na Vila”, 2018, Vila Velha. Fig. 8: “Arte na Vila, 2018, Vila Velha. O impacto da personagem é o corpo estranho e, no final do espetáculo, quando ela se torna “bonita”, a sua movimentação é totalmente o oposto: a postura ereta, sem os trejeitos antigos. Quando a personagem passa “de feia para bonita”, as únicas coisas que aparentemente 47 modifico são: a remoção da maquiagem borrada e a troca de roupa. Mas na verdade é a mudança na postura que dá o contraste entre as duas caracterizações. Em 2019, já trabalhando no “Arte na Vila” como estagiária, fui abordada por uma criança acompanhada da mãe, que me falou dessa personagem. Sua filha se chama Maria Flor e diz ser minha fã, por ter se divertido muito na peça. Diante desse relato, cabe reforçar a forma como o teatro afeta as crianças e esse efeito reverbera na vida delas. Mesmo depois de um tempo. Corpo-Arte O que é um corpo dilatado afinal? Por que é tão importante para o teatro? Como o próprio nome diz, dilatação significa largo, extenso, aumentado. No livro “A Arte Secreta do Ator”, Eugenio Barba conceitua a dilatação corporal da seguinte forma: “As partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um incremento de movimento, separam-se mais, atraem-se e opõem-se com mais força, num espaço mais amplo ou reduzido.” (BARBA, 1995, p. 55). É essa energia produzida que tende a extravasar sentimentos, expressá-los a ponto de hipnotizar o espectador. Apesar do foco da pesquisa ser a expansão do corpo, isso não quer dizer que a mente não influencia nos movimentos, pois a forma de agir é um reflexo dos pensamentos e o trabalho do ator com o personagem é a união da dilatação corporal e mental. Como detalhei nos personagens que criei, desenvolvia o corpo baseado em suas características internas, diante das criações. Primeiro, penso nas características pessoais e experimento o movimento próprio para a personagem que, só depois de um tempo, consigo definir. Os exercícios físicos de treinamento permitem desenvolver um novo comportamento, um novo modo de se movimentar, de atuar e reagir: assim se adquire uma habilidade específica. Mas esta habilidade se estagna e se torna unidimensional se não aprofunda, se não consegue chegar ao fundo da pessoa, constituída do seu processo mental, de sua esfera psíquica, seu sistema nervoso. A ponte entre o físico e o mental 48 provoca uma ligeira mudança de consciência, que permite vencer a inércia, a monotonia da repetição. (BARBA, 1995, p.59) Os bons encontros
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