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DA POÉTICA DO ATOR TEATRO & CINEMA Rejane Arruda Rejane Arruda DA POÉTICA DO ATOR Teatro & Cinema Vila Velha SOCA 2019 Rejane Arruda Da Poética do Ator: Teatro & Cinema 2019 Sou todas essas palavras, todos esses estranhos, essa poeira de verbo (S. Beckett). Prefácio por Eduardo De Paula De longe surgem alguns vestígios de memórias sobre o trabalho criativo dessa atriz perspicaz que é Rejane Arruda. Ainda nos tempos da graduação – e isso significa os bons anos da década de noventa passados no Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (USP) –, lembro-me de um exercício cênico chamado, se não me engano, “Lalarolirando Larai”1, no qual ela atuava de modo a explorar uma linguagem corpóreo-vocal que era já uma espécie de trânsito entre jogo lúdico e lalação (para utilizar um conceito presente neste livro e caro à pesquisatriz2), performatividade e teatralidade. Dos inúmeros trabalhos no teatro, na televisão e no cinema que tenho ciência de a Rejane ter se envolvido, me restrinjo apenas a este “Lalarolirando Larai” por nele reconhecer algumas das questões relevantes para a cena contemporânea – em especial os conceitos que os teóricos das artes da cena nomeiam como performatividade e teatralidade. Podemos nos referir, ao primeiro, a partir da compreensão ampliada sobre a perspectiva de jogo – o que nos permite considerar que tanto as micro quanto as macro relações nas quais o caráter do imprevisível como elemento operacional que subverte regras prévias e a ordem dos resultados esperados, age de modo casual, determinante e nos recolocam frente à compreensão de que “isto ou aquilo” é jogo, ou seja: a ordem do performativo é a do jogo. O segundo conceito pode ser considerado como qualidade daquilo que é próprio ao universo teatral, pois ainda que a noção acerca de teatralidade possa ser empregada para além do teatro, acho pouco relevante para artistas, pesquisadores e interessados sobre este campo, problematizar e utilizar tal conceito que não para problematizar os processos produtivos das artes da cena. E hoje, me dou a liberdade de analisar aquele precioso “Lalarolirando Larai” à luz destes conceitos codependentes sobre teatralidade e performatividade, chegando a uma resposta-indagação nada simples que em tal processo de 1 Exercício de direção teatral de Elton Wagner e atuação de Rejane Arruda (década de 1990; CAC-ECA/USP). 2 “Pesquisator” foi um termo cunhado no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator, pelo Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva (CEPECA-ECA/USP). Neste texto me dou a liberdade de se referir à Rejane Arruda como “pesquisatriz” – dado a coerência entre os sentidos que este conceito porta e a atitude eloquente desta atriz & pesquisadora. pesquisa e criação tais questões já estavam presentes nas atenções desta pesquisatriz e operacionavam suas ações artísticas. Nas trilhas de suas pesquisas, acompanhamos neste “Da poética do ator: teatro e cinema”, o esforço prazeroso da pesquisatriz por enquadrar – outra vez utilizando um conceito aqui bastante presente – os estudos sobre a arte de ator ao acompanhar, detalhar e recortar não apenas as proposições mais relevantes observadas nos principais nomes da cena teatral do Século XX, mas principalmente aquelas mais pertinentes para o desenvolvimento deste trabalho e o que dele acredito ser o legado mais importante: os rastros metodológicos e procedimentais para o desenvolvimento dos processos de preparação e criação do ator – esteja este sujeito frente à câmera ou a uma plateia. Nesta esteira, aos poucos vamos nos deparamos com as principais referências do Século XX relacionadas aos encenadores-pedagogos – Stanislavski, Meierhold, Brecht, Grotowski e Barba – e suas inquietações sobre os processos criativos e formativos do ator em busca de uma certa “autonomia nos processos de criação”. Outros homens do teatro europeu figuram no texto, como Piscator, Artaud e Kantor – e do continente americano, como dois expoentes, observamos, no Brasil, a atuação de Eugênio Kusnet e, nos EUA, do Living Teatret nas figuras de Julian Beck e Judith Malina. Para além destas referências, também nos deparamos com o terreno as vezes bastante escorregadio relativo às teorias teatrais, suas conceitualizações e tentativas de categorização. Daí as problematizações e as incongruências sobre “teatro pós-dramático” e/ou “teatro performativo”, consecutivamente nas figuras exponenciais de Hans-Thies Lehmann e Josete Feral. O recorte de ambos está ligado à cena teatral do último ¼ do século XX, destacando por um viés, as características presentes na cena teatral, como sua independência da estrutura fabular, do texto concebido a priori como matéria fundante do fazer teatral e da incompletude como elemento que obriga o espectador a “fazer funcionar” os sentidos possíveis da cena. Por outro lado, uma cena que passa a revelar os processos de sua produção como material espetacular – além da presença das novas mídias, da colagem, do tempo dilatado, das biografias transformadas em textualidades, do estabelecimento de uma espécie de tempo-espaço para um jogo que embaça o campo perceptivo do espectador ao inseri-lo em um jogo de cena fronteiriço entre ficção e realidade. Ao passo que a pesquisatriz vai verticalizando tais questões e transformando-as em caminhos e proposições pessoais, nos deparamos com a abordagem do procedimento “Corpus Subject Investigation”, um momento de precioso compartilhamento pedagógico que revela os caminhos de preparação e criação dos atores durante a montagem de cenas da peça “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos. Tal procedimento parece agregar as metodologias centrais presentes em sua pedagogia, como a memorização pela escrita, a improvisação e a construção de partituras de ações físicas, o jogo de regras e suas subversões, além das noções próprias do cinema que passam a colaborar com a feitura da cena teatral como suportes para o desenvolvimento criativo do trabalho do ator, são elas: enquadramento, incidência e arranjo. Entre tais questões, Rejane ainda encontra espaço para colocar em jogo algumas provocações criativas de fazedores das artes da cena contemporânea: Pina Bausch e a dança-teatro, Robert Wilson e seu teatro de imagens, Anne Bogart com os viewpoints e Marcelo Lazzaratto com o “campo de visão” – ambas referências fundamentais para o campo da pedagogia teatral. O salto final nos transporta ao território do cinema, apresentando um estudo minucioso sobre o rosto, o olhar, a luz, a direção de ator – mas mais justo seria utilizar “direção de atriz” devido o contexto e os exemplos utilizados: Anna Magnani, Lynn Carlin a Clarissa Kiste e a própria pesquisatriz Rejane Arruda, entre outras –, até chegar à questão importante relativa aos cineastas em formação e a necessidade de afinação do olhar para a condução de atores – questão de suma pertinência à pedagogia do teatro em relação à formação de diretores. Por fim, encerra analisando alguns filmes e refletindo sobre as questões da recepção a partir da posição própria à esta figura que frui e se coloca em jogo com os afetos presentes no confronto de si mesmo com as imagens sobre ela projetadas. “Da Poética do Ator: Teatro & Cinema” é mais um dos envolvimentos criativos e provocantes desta pesquisatriz irrequieta, atualizada com seu tempo e em busca pela organização de caminhos pessoais na vereda não apenas relativa às artes da cena, mas principalmente aquela especialmente ligada ao seu prazer maior: a Arte de Atriz. Boa leitura, Eduardo De Paula, 22/05/18,Bologna/Itália. Prefácio por Suely Aires O escritor Jorge Luis Borges dizia que um livro era uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente universo, até o momento em que ele encontre seu leitor. De certo modo, podemos dizer que Rejane Arruda, em seu livro, provoca e desafia um leitor, produz desassossegos e segue, apresentando autores, conceitos e incitando à invenção. Entre arte e psicanálise, entre texto e corpo, entre voz e enunciação, as ideias contidas em “Da Poética do Ator: teatro & cinema” impedem a tranquilidade de um ponto seguro e preciso, exterior ao texto, que permita ao leitor uma apreensão totalizante deste ensaio. Há efeitos dissonantes do livro que incidem sobre aquele que se dispõe a acompanhar seus argumentos e descaminhos e, como resultado desse percurso, esse prefácio traz as marcas de uma afetação, de um desconserto interpretativo, que se sustenta em minha posição de leitora: sigo rastros e pistas. Já de início, na Parte I, a escolha por uma apresentação entre teoria psicanalítica, teorias da linguagem e práticas autorais, por meio de certa homologia, desalinha o que parece, por vezes, tão habitual nas produções de arte e psicanálise. Há, na escolha por um paralelismo entre planos enunciativos, um tensionamento que impede a aplicação de uma teoria, conceito ou campo sobre o outro. Dito de modo mais claro, não há um uso da teoria psicanalítica para pensar a função do ator ou seu papel na encenação. Tampouco há esclarecimento ou formalização da teoria psicanalítica a partir do teatro, da concretude das ações do ator ou das imagens e cenas no palco. Há, sim, certa performatividade entre modos de enunciar e afirmar hipóteses que provoca o pensamento, fazendo deslizar o seu ponto de apoio. Nesse sentido, o texto desloca o leitor, pois parece transitar em um caminho já trilhado, quando, em verdade, inventa o seu caminhar ao propor que o ator seja um agente de produção poética no processo de sua construção. É por meio desse desconserto, das diferenças que saltam à vista e embaralham o olhar, das palavras já conhecidas que se colocam em novo contexto, que se abre o campo da invenção. Cabe destacar que esse movimento só se torna possível em função da manutenção de um espaço vazio, intervalo que permite criação, tanto no texto teórico agora apresentado, quanto na experiência cênica promovida pela autora em seu trabalho como atriz e professora, cujo percurso traz as marcas da relação entre psicanálise e teatro. Na argumentação desenvolvida ao longo do livro, a homologia entre as práticas cênicas e a teoria psicanalítica revela-se, de um lado, como um método de apresentação do problema central da pesquisa e, de outro lado, como um estilo que permite transmissão. Efeito moebiano de uma posição enunciativa. Ao leitor, que segue as indicações da autora, cabe equilibrar em cada uma das mãos um objeto e, em certo esforço de malabarista, fazer girar os elementos que compõem uma das hipóteses do texto: a resistência à técnica faz do sujeito um artista, pois a partir de sua dificuldade criam-se caminhos singulares. A resistência à técnica deve aí ser entendida não como recusa, mas como um fazer com, um tensionamento que se constitui como espaço de subjetivação. São necessários, portanto, o confronto entre o leitor e aquilo que o provoca no texto, entre o ator e as estruturas cênicas, para que advenham soluções singulares como ato de insistência diante do furo, tempo de invenção e reinvenção. Trata-se do encontro com uma estrutura – cênica, de procedimentos, preparatória, tal como ilustrada pela autora em diferentes contextos – que deve ser contemplada, descoberta e provocada em seus limites. Como dar “o pulo do gato” da arte para a ciência? Essa é uma das perguntas instigantes que lançam o texto para diante de si mesmo. A resposta da autora surge poucas linhas depois: não me parece ser a técnica o que garante o estatuto da arte. Resposta sutil que sustenta-se em uma afirmação leve, quase uma opinião – não me parece... Mas o que o leitor encontra, sob essa aparente simplicidade, é uma questão delicada entre técnica e método, entre arte e ciência. E, no texto de Rejane Arruda, é a noção de dispositivo, em seu caráter tensional e performático, que ocupa o palco, costurando ideias, dando ao argumento seu lugar: entre arte e ciência, entre técnica e método, performa-se a poética do ator. Solução singular que se produz a partir do encontro com a contingência e a exclusão: nem técnica nem método, entre arte e ciência, modos de figuração do objeto a. Como consequência, não é um savoir-faire ou savoir-y-faire que se destaca da cena enunciativa que a autora propõe; não se trata de um saber, mas de um ousar, de permitir-se o risco dos caminhos ainda não trilhados, dos corpos ainda em construção, do abandono dos espectros de diferentes autores e teorias, da elaboração e composição de novas possibilidades, da subversão do instituído. É nessa direção que a invenção se coloca como artifício, como engenho e realização, no justo momento do acontecimento em cena: posição do ator. Ou poética, diria a autora. Mas isso não se faz sem o encontro com o imprevisível, com o que do corpo escapa, com isso que para de não se escrever. Como afirma Lacan, a arte está sempre às voltas com o real – declaração da qual decorre a principal hipótese da autora: a obra de arte afeta o espectador justamente por figurar algo que não se consegue traduzir (em palavras), mas que funciona como causa de seu desejo. É o conceito de objeto a que embasa a proposta teórica e cênica de Rejane Arruda, mas apenas na condição de reconhecer a especificidade desse objeto: não especularizável, não nomeável – em uma desiginação estável – e hipótese de trabalho. Seguindo os passos de Lacan, a autora concebe a centralidade do real e seus diversos tratamentos pela arte, na composição de bordas e figurações – vazio, excesso, anamorfose e descrença no olhar. E no corpo dessa experiência – de escrita, de leitura, de interpretação – insiste um núcleo ou ponto de resistência que situa aquilo que o espectador não consegue capturar, aquilo que o leitor entrevê pela voz da autora e que o ator transmite. Resistência formal entre experiência do espectador e do ator, entre expectativa do leitor e enunciação do autor, que abre espaço para o que insiste: ponto de real. A transmissão que opera no texto parte de fragmentos de teorias e de experiências cênicas, ocupa-se de restos, constitui-se como operação de perda que se refaz na escrita e que permite a inclusão de um. Eis o leitor, atrás das cortinas, de volta aos palcos. Eis o ator, dentro de um dispositivo, às voltas com a invenção. O recurso às fotografias, os fragmentos de filmes, as cores, cortes e planos – em sua beleza desconcertante no capítulo 16 – possibilita que o leitor siga as pistas interpretativas lançadas por Rejane Arruda: o que se dá ver é um lugar de atravessamentos, de reverberações, de efeitos; lugar onde se pode vislumbrar uma impressão de vida – expressão da autora – em uma cena que é construída por um outro, por diferentes outros, e que parece determinar o enquadramento. Mas esse enquadramento não é único: ele é tão fragmentário e díspare, numeroso e variado, quanto os autores e diretores que comparecem ao espetáculo. Polifonia de vozes, miríade de olhares em que se encontra o leitor – labirinto. Com um fio em mãos, é possível percorrer o emaranhado de possibilidades interpretativas, transformando o labirinto em um espaço de encontros e perdas, em um jogo de espelhos e de linguagem. Cada leitor pode, então, seguir em seu estranhamento tão familiar. Mas isso não se dá senão ao preço de produzir uma passagem do comum ao próprio, de aí incluir algo de seu na interpretação. Somente ao lançar-se na aventura da leitura, ao permitir-se prosseguir, mesmodiante dos pontos difíceis do texto, é que o leitor poderá produzir um lugar que acomode suas questões e, talvez, poderá recolher algumas respostas – experiência dramática. No entanto, a passagem do comum ao próprio – percurso do leitor – tangencia um ponto muito específico: a experiência da atriz Rejane Arruda permite o trajeto oposto, que do próprio se chegue ao comum, ao compartilhável, à possibilidade de teorizar sobre o tema, de produzir conhecimento e disso fazer escrita. Desse modo, pode lançar as bases para um laboratório onde a poética se apresente como modos de figurar o objeto a e em que os atores manejem os arranjos e os limites do dispositivo teatral. Há aí uma fronteira e uma mudança de registro produzidas pela autora: diante de uma questão, uma vez apresentadas as abordagens conhecidas, os caminhos já trilhados – e as referências no campo da arte, do teatro e do cinema são abundantes –, ela buscará, ao longo do livro, dar forma ao que ainda não tem forma. É nesse contexto que a hipótese quanto aos modos de figuração do objeto a no campo do teatro e do cinema mostra-se ainda mais provocativa, pois permite que seu objeto de investigação e inquietação seja mantido e insista, sem redução ao campo do já conhecido: a teoria e a prática são continuamente interrogadas. Poderíamos dizer que entre imaginário, real e simbólico, um enodamento é proposto: da passagem do próprio ao comum e ao compartilhável se constitui um espaço de re-invenção. Saber-fazer com o real. Ousar simbolicamente. Performar imaginariamente. Em decorrência dessa operação de enodamento, uma das hipóteses de trabalho de Rejane Arruda ganha maior consistência: a poética do ator é experiência de um semblante e dispositivo de atuação. Ora, o semblante a ser construído deve necessariamente levar em consideração as diferentes roupagens do objeto a, elemento essencial no dispositivo de atuação. Mas tal consideração só se faz pertinente se, em consonância com Lacan, indicarmos a natureza não especular e não nomeável do objeto em causa. Ao considerar a proposta geral do livro, podemos supor que o caráter ensaístico escolhido pela autora dá a ver um dispositivo em ação, maquinaria de práticas, discursos e corpos, que atualiza o encontro com as contigências, que provoca um leitor. Só-depois o leitor poderá reconhecer o que foi produzido em seu efeito de verdade; verdade semi-dita e ficcionalizada, cujo objeto central insiste: novo filme, nova montagem, nova experiência de corpo, voz e olhar. Ironicamente, ao longo do texto, um destino anunciado – a hipótese de Rejane Arruda quanto às figurações do objeto a – só será constituído posteriormente, pelo leitor, personagem lançado para o tempo futuro, que ocupará o papel de destinatário deste livro-carta, às voltas com o objeto. Nesse sentido, é interessante considerar que um leitor se constitui desde fora, mas no interior do texto, e que, a cada instante, ele é confrontado, deslocado, refeito pelo gesto de leitura e pela enunciação da autora: nova volta moebiana. E nesses volteios, mais uma vez, Jorge Luís Borges surge em cena, agora, sob a pena de Foucault: em seu prefácio de “As Palavras e as Coisas”, o filósofo refere-se ao riso e ao desconserto produzidos pelo texto borgiano, afetações que perturbam as familiaridades do pensamento e os planos sensatos. Só depois de ler Borges, Foucault poderá rir e embaralhar as posições de autor e leitor: não, não, eu não estou lá onde você me espia, mas aqui, de onde te olho rindo. Armadilha para o olhar, fuga do enquadramento, efeito de surpresa. É, portanto, ao fim desse percurso, após seguir rastros e pistas, que posso testemunhar um lugar de afetação e indicar que a possibilidade de surgimento de um leitor implica deixar-se provocar pela autora e manejar vazios e excessos em “Da Poética do Ator: teatro & cinema”. Proponho, então, que os curiosos levantem as cortinas, adentrem nas salas, invadam as telas, experimentem o texto e se deixem simplesmente levar. Aventura poética. Suely Aires, 15/03/2018, Salvador/Brasil. Apresentação por Rejane Arruda Contemplando a perspectiva de certa diversidade de poéticas, situo primeiramente uma reflexão sobre o Teatro, trazendo traços da sua trajetória no Século XX, até o Pós-dramático, mostrando que é no hibridismo que o ator contemporâneo precisa se situar. Para isto, apresento, como norte, uma ideia instrumental do que seja “poética”, utilizando-me do arsenal conceitual da psicanálise lacaniana. Em um segundo momento, a reflexão se estende para o Cinema, com proposições pontuais, que se alongam para o desenvolvimento de “figuras do ator” na Linguagem Cinematográfica. Assim, respondo a demandas específicas da prática atoral, na medida em que a cinefilia e as aulas de Atuação para Cinema e Direção de Atores (ministradas na Academia Internacional de Cinema, Escola Superior de Artes Célia Helena, Oficina de Atores Nilton Travesso e Universidade Vila Velha), além da prática como atriz em cinemas independentes e autorais, me dão subsídios. O que proponho, tanto no Cinema quanto no Teatro, é uma estrutura de trabalho para o ator. Que este se reconheça como agente da produção poética e perceba o manejo do processo de sua construção. Se o ator está inscrito na estética do diretor X, do grupo de teatro Y ou no dispositivo de produção teatral ou cinematográfica Z, os arranjos serão diferentes, o discurso e os materiais com os quais joga e, também, as resultantes. Assim, pretendo contribuir com um olhar que se traduz como “Política do E”: dialética suportada por princípios opostos (ao invés da exclusão), em um dispositivo onde as diferenças fazem o ator produzir. Isto para que o manejo contemple as contingências: o que escapa ao esperado e à sistematização (em outras palavras ao controle) - e atualizações (o que volta pelo corpo, se impondo como sintoma e estilo). Quanto às escolhas estéticas, as marcas do que nestes textos proponho para a atuação estão relacionadas a certa performatividade da construção dramático-realista, que por sua vez se traduz como modalidade possível do Teatro Contemporâneo. São reflexões forjadas ao longo de dez anos, a partir de práticas sucessivas; questões, trocas, diálogos imbuídos de problemas do nosso campo, aos quais procuro responder; ou de dicotomias que procuro ultrapassar. Por um lado, me posiciono frente a procedimentos e o desenvolvimento de conceitos, para a circulação em campos diferentes (Teatro e Cinema); por outro lado, trago propostas para o ator. Evidentemente, muitos objetos ficaram de fora e poderão ser futuramente abordados. Atenho-me, aqui, a princípios formadores. Rejane Arruda, 29/05/2019, Vila Velha/Brasil. Sumário Introdução 14 Parte I: Corpo, Linguagem, Enquadramento. 1. Outro conceito de corpo 19 2. Função do arranjo 25 3. Enquadre, incidência e atualização 34 4. A Incorporação do pré-jogo: tentativas de formalização de um procedimento estranho 43 Parte II: Por um Jogo de Enquadramentos Híbrido. 5. Arranjos paradigmáticos como campo de extração 52 6. Traços do contemporâneo: autonomia da poética teatral 68 7. Realismo e vanguardas: uma tensão que faz mover 77 8. A teatralidade enquanto choque de visualidades85 Parte III: Interrogando o Arranjo Dramático-Realista 9. Performando a teatralidade no jogo de enquadramentos, repensando a tessitura do dramático 94 10. Modalidades de jogo em um dispositivo complexo: ainda o texto 106 11. Elemento atrapalhador e outros princípios: a performatividade na poética dramático-realista 120 12. Por uma poética realista estranhada 137 Parte IV: Ator, Cinema e Estranhamento. 13. Figuras de uma poética do ator no cinema 152 14. O Ator no contexto da direção cinematográfica: atuação como território de estranhamento 171 15. A criação do corpo em articulação com a estética fílmica: modalidades de agenciamento da poética cinematográfica pelo ator 178 16. Um fora do quadro: o que brilha no rosto? 183 17. Diversidade no campo da direção de atores: uma estrutura da prática da atuação para a orientação de cineastas em formação 194 Parte V: Espectador, Estética, Recepção. 18. Ruptura e deslocamento: o espectador em ato 200 19. A indeterminação como figura da poética fílmica 204 20. Pedro Costa: “revolutio” na tessitura “real” 210 Considerações Finais 219 Referências Bibliográficas 223 14 Introdução O ator é um “encenador de incidências”, um encenador de excitabilidades; mostrador das reverberações dos materiais no seu corpo: palavras, imagens, movimentos, sons, objetos. Estas reverberações, ele precisa enquadra-las (organiza-las no tempo-espaço), constituindo uma plasticidade do desenho corporal e da voz, e a visualidade de ações que implicam a plasticidade de um universo ficcional. A primeira questão que surge é a singularidade das experiências, pois a criação cênica se apresenta como objeto em sua diferença, que não se repete. Talvez devêssemos pensar, com Josette Feral, que não existe “o” Teatro e sim teatros. Qualquer teoria da criação, ao invés de trazer à tona uma verdade (que refutaria as outras), seria tal como um texto. Um texto do qual aquela cena específica é efeito. Pois na prática da pesquisa, o que percebemos é que: a teoria modifica o seu objeto. Os conceitos são, também, materiais de criação. É o que observamos nas descrições de encenadores que, ao longo do XX, dedicaram-se às investigações sobre o ator, como Stanislavski, Grotowski e Barba. Ao formular a noção de “impulso de dentro para fora”, designando, no corpo, o centro como um “dentro” (e as extremidades como um “fora”) – ou seja, definindo um vetor, uma relação espaço-temporal para a inscrição da ação física em cena – Grotowski criou uma grafia, um enquadramento plástico na cena do ator. A poética do ator em Grotowski implica, portanto, a sua teoria do impulso, diferente da teoria do impulso de Stanislavski, fundamentada em outra modalidade de ação física1 e gerando outras resultantes. Seguindo este argumento, diríamos que as articulações com outros campos do saber (como as ciências naturais, a física e a biologia ou, ainda, a filosofia e a psicanálise) servem para os artistas como materiais textuais na consolidação de diferentes poéticas. É possível perceber que o modo como cada pesquisador anuncia a verdade do seu processo está intimamente articulado a sua criação. Da mesma maneira que, nas Artes Plásticas, temos o Método Paranóico Criativo de Salvador Dalí, nas Artes Cênicas temos o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, a Antropologia Teatral de Eugênio Barba, o Teatro Épico de Bertold Brecht, o Método das Ações Físicas de Stanislavski, a Mímica Corporal Dramática de Decroux, o Teatro Pobre de Grotowski. São modos diferentes de enunciação sobre a atuação e, para além da pretensão 1 Ação física é o termo tradicionalmente utilizado no campo da pedagogia e teoria do ator. O termo partiu de Stanislavski e assumiu diferentes conotações ao longo da pesquisa de outros diretores-pedagogos, como Jerzy Grotowski e Eugênio Barba. 15 científica (ou seja, de formalizar uma verdade) estes discursos estão implicados como material para a encenação. Chegaríamos à impossibilidade do pensamento científico nas Artes Cênicas? Outro campo, cuja formalização da experiência singular exigiu uma série de problematizações, é a psicanálise. Freud e Lacan pretenderam elevar a psicanálise ao estatuto de ciência para afastá-la da via do misticismo (esta que também tantas vezes se apresentou como o ponto de chegada das pesquisas em teatro). No entanto, se por um lado, os instrumentos dos quais dispunha Freud implicavam conceitos da biologia e da neurologia, por outro, o pai da psicanálise declarou que esta inaugurava uma nova ciência. Quando Lacan propôs o seu “retorno a Freud”, se apoiou principalmente em noções da antropologia e da linguística, formalizando o inconsciente a partir de duas operações que Freud propôs como via régia sonho: o deslocamento e a condensação. Tomando o deslocamento como a metonímia e a condensação como a metáfora (as duas operações fundamentais da linguagem), Lacan propõe o inconsciente estruturado como uma linguagem. Linguagem que não se sustenta em relações unívocas entre significantes e significados, mas em infinitas articulações entre os significantes, materiais isoláveis que se deslocam e se empilham (ou se condensam), em torno do que seria um objeto causa do desejo: justamente a falta-a-ser do sujeito, o locus de um vazio estrutural (que é efeito da linguagem). Também nas Artes Cênicas creio que seja importante deslocar os campos de onde extraímos conceitos. Muitas vezes, são as dicotomias advindas da tradição filosófica (como a compartimentação em corpo, mente e alma ou a oposição dentro e fora) que nos fundamentam. E se, por exemplo, trocamos a noção de memória “da célula” (ou “do músculo”), pela noção de memória de um corpo atravessado por linguagem (e sujeito às reverberações dos deslocamentos e condensações do significante), o que acontece? Qual é a consequência para uma prática, já que a teoria a transforma? Ou, ainda se, no lugar da oposição “dentro-fora”, instalamos outra oposição: entre a função do enquadramento e da incidência de um material oculto – sendo que tanto este quanto aquele podem igualmente causar a excitabilidade? E, ainda, se utilizamos a noção de cadeia de impulsos como sucessivas substituições entre os materiais, tanto os ocultos quanto aqueles que estão expostos ao olhar do espectador? O que acontece com a prática se trocamos o discurso teórico? Para Lacan, o sujeito do inconsciente freudiano é o sujeito da ciência moderna. Na psicanálise está em jogo a elaboração de um saber que é sempre singular. O falasser2 (o falante que deita no divã) implica um corpo individual e certa bateria de significantes da qual é efeito. 2 Neologismo proposto por Lacan. 16 O seu lugar, como sujeito, é constituído como diferença radical. Ele não encontra, nodiscurso corrente, a verdade que possa ser designada como sua: “o que eu sou não tem resposta”. É como se o discurso mentisse de saída. De maneira que o analisando se torna um subversivo do discurso corrente, cavando outros; assim como os artistas e os cientistas. Segundo Gilson Iannini é entre Montaigne e Descartes que o sujeito da ciência moderna se constituiu; a partir de um corte na cosmologia do mundo fechado aristotélico e medieval, que abre, em seu lugar, “a imensidão sem fronteiras de um espaço ilimitado”, ontologicamente indiferenciado. “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”, diz Pascal (Iannini, 2012, p. 219). É sob a égide da indeterminação que surge o método científico como uma metalinguagem que deveria ser “capaz de impor uma forma inteligível ao campo dos fenômenos (...) e estabelecer as condições de verdade das proposições teóricas” (idem, p. 220). Para Lacan, o mundo não é uma realidade empírica separada do sujeito que o observa. Ao tentar a metalinguagem que traduza os fenômenos, a ciência moderna teria desconsiderado a diferença radical do sujeito, implicada como desejo de um saber singular. Fico tentada a dizer que, no caso da experiência cênica, a verdade da criação também não é passível de designação. Tal como na psicanálise, esta se encontraria articulada a saberes singularizados. Mas, se não existe o universal capaz de designar uma verdade da criação (e a teoria é material textual que implica a diferença entre as poéticas), a questão passa a ser como chegar a algo que adquire valor de conhecimento – passível de transmissão no campo da pedagogia do ator e do teatro. Como dar “o pulo do gato” da arte para a ciência? Acredito que a questão que se apresenta é como universalizar uma estrutura que possa ser representativa da diferença. Existem culturas diversas do fazer artístico, com seu savoir faire e as suas técnicas. No entanto, não me parece ser a técnica o que garante o estatuto da arte. Digamos que é mesmo quando algo a subverte, ou seja, quando há o espaço do desejo (que por princípio é subversivo) que a arte aparece. Um desejo que não é o querer, mas que trai o querer. De maneira que uma teoria das Artes Cênicas deveria reconhecer a operação de subversão de um suposto. Para Lacan, a catarse é o centro do que ocorre na experiência do teatro – que deverá lidar com as formas do vazio e da anamorfose: “Enquanto mecanismo do inconsciente, o teatro seria o lugar de uma falação em torno do Buraco, do Vazio” estrutural do sujeito (Pizarro, 2008, p. 05). O espectador é levado a uma posição de escuta deste vazio. A cena produz um lugar para que este se exiba. No caso do ator, enquanto artista, poderíamos dizer que a sua poética dá a ver este buraco que, por princípio, é efeito da linguagem. Como resultante encarnada, a sua criação (figura) implica os atravessamentos das cadeias de significantes, que se deslocam e condensam, de maneira que o vazio estrutural seja apontado. E, por estar o ator sujeito as reverberações 17 destas cadeias, os seus precipitados aparecem na cena do corpo, tal como as imagens encarnadas do sonho. Vejamos um exemplo da prática: quando um ator trabalha com uma partitura física como material, ou seja, com uma cadeia de formas e movimentos de transição, ao extrair, por exemplo, das Artes Plásticas, formas para realiza-las corporalmente, estas formas funcionam tal como significantes, se deslocando e se condensando junto a outros materiais. Por exemplo, no jogo de improvisação com a visualidade de uma situação ficcional, estas formas reaparecem atualizadas (em reverberações corporais) e transformadas; condensadas à visualidade das ações que o ator descobre durante a experiência do improviso. O fato desta criação de improviso não nascer da intencionalidade do ator, mas de rearranjamentos na tessitura da sua memória corporal, abriu caminho para que Stanislavski a atribuísse ao inconsciente3 (mesmo que, segundo ele, não estivesse utilizando este termo com precisão). Poderíamos dizer que as ações físicas (que compõem a figura do ator em cena) são como os precipitados de deslocamentos e condensações; tal como as imagens do sonho, que implicam esta espécie de objeto causa do desejo, locuo Vazio – falta-a-ser do sujeito e por isso desejo. A hipótese é que, como a verdade do sujeito não pode ser dita, tal como no sonho, a arte seria uma forma de “meio dizê-la”. Haveria um efeito de verdade na cena que valida o discurso científico a esta articulado. Ao invés da prática cênica como objeto de conhecimento a anteriori (cuja verdade deveria ser designada), teríamos uma prática que articula aquele pedaço de discurso (que a inventa) e engendra “um efeito” de verdade, graças à inscrição no dispositivo cênico (que por princípio coloca o Vazio em questão). O que garante a ciência do ator seria o dispositivo de encenação através do qual uma resposta é endereçada ao outro. Tal como Grotowski respondeu a Stanislavski sobre a questão do impulso, engendrando a diferença que o marcou como sujeito na história do conhecimento. Uma verdade se constitui como efeito da obra, no lidar com a indeterminação que destitui o saber anteriormente constituído. No caso do ator, é a própria tessitura corporal que se desloca para que, dos restos das reverberações, um desejo advenha (e legitime a nova forma discursiva). 3 Ver STANISLAVSKI, A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. PARTE I CORPO, LINGUAGEM, ENQUADRAMENTO 19 1. Outro conceito de corpo A psicanálise surge com Freud na virada do Século XIX para o XX, centrada na ideia de inconsciente; e se revela enquanto um campo de saber, com objetos e hipóteses próprios. Principalmente a psicanálise lacaniana acusa uma articulação entre verbo e corpo, a linguagem e o inconsciente. Lacan vai de encontro a Freud, construindo novos conceitos na medida em que dialoga com outros campos, como a Antropologia, a Matemática (Teoria dos Conjuntos), a Filosofia, a Lingüística. Com o neologismo falasser, ele se refere à sustentação do sujeito no ser que fala (usa a linguagem). Aparece uma relação problemática com o “ter” um corpo, abrindo a perspectiva de se pensar outras noções de corpo: “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante (...)” (LACAN, 2007, p. 64). O corpo aparece como “conjunto vazio” – ou “um a mais” (e não como a identidade do sujeito). O corpo é para Aristóteles, aponta Lacan em Mais, ainda, o modelo do um. Mas esse um é o indivíduo, isto é, o um-todo-só. E cabe a Lacan interrogar então sobre a origem verdadeira do significante Um (p. 196-7; ed. fr. p. 130- 1). (...) o corpo poderia ser o modelo, ou seja, a origem imaginária, não do um-todo-só, que é significante, marca, traço, corte, mas do um-a-mais que é o conjunto vazio (MILLER, 2007, p. 213-214). É como se o corpo estivesse a mais ao sujeito, só que este a mais é vazio e, tal como uma lata vazia, faz eco. “Trata-se de dizer, simplesmente, que o corpo existe como um saco de pele, vazio, fora e ao lado de seus órgãos. (...) Sua ex-sistência aos elementos que ele contém, sua consistência de continente é a do conjunto vazio na fórmula: {1, Ǿ}” (MILLER, 2007, p. 213-214). 20 Na psicanálise, o corpo é o suporte do inconsciente na medida em que é nele que “a linguagem copula”: “(...) o sentido como tal, definido pela copulação da linguagem, posto que é a partir dela que dou suporte ao inconsciente, com nosso próprio corpo” (LACAN, 2007, p. 118). Corpo que, imaginariamente, dá unidade a uma imagem de si, saco vazio onde ecos são percorridos, implicados como “modo de gozo” irredutíveldaquele corpo. Corpo como lugar onde “a fala goza”: “na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a certo gozo” (LACAN, 2007, p. 55). Gozo como excesso; gozo como repetição; gozo como estilo; gozo como escrita; gozo como êxtase; gozo que seria puro na morte; gozo como angústia; como contato com um real indizível; traumático gozo como sem-sentido: são diversas as figurações do gozo que aparecem na obra de Lacan. Aventuramo-nos a trazer estas ideias para a investigação sobre o ator em cena. Pode- se dizer que ele treme, tal como um ser apaixonado; pode-se dizer que o saco vazio é encharcado, sujeito às contingências dos encontros entre os diversos materiais que compõem a especificidade da sua memória, articulados à forma de gozo daquele corpo. É como se não fosse possível escapar da especificidade da própria história, fantasia e pessoalidade (apesar das paixões de Artaud, Craig, Meyerhold, pela impessoalidade). É necessária a morte da pessoalidade para que a poética surja? E quando se advoga a impressão do “humano” – sendo este um dos paradoxos da poética cênica – postulando-se um humano- morto? E quando se fala de “realismo” ou “cotidianidade” e do seu automatismo, pode-se trabalhar certa impessoalidade, também? Ainda que cada sujeito implique as marcas inerentes ao seu corpo-linguagem, as letras de uma história de afetos? Ainda que, para além de uma estrutura que o determina às avessas, esteja a contingência do “fora-do-sentido” com o qual o sujeito se enlaça (este tal gozo, do qual o ator tenta se defender ou que vive em sua fantasia)? Tal como um Genet, quando coloca a paixão pela morte em cena; como Kantor, Craig, Meyerhold, quando colocam o boneco (morto do homem) em cena, o ator vive uma fantasia de morte. Quando trabalha a fé cênica (Stanislavski, 2005) para dar lugar a outro, é de si que (imaginariamente) abre mão. O “dentro de si” é constituído em nome do “pensamento da personagem” enquanto “fora de si” ele produz o “corpo da personagem”. Nesta fantasia de ser outro, ele joga com toda a sua estrutura: linguagem, corpo, memória. Algo do verbo que escapa à linguagem A paixão de Artaud pelo som em detrimento do sentido pode expressar algo da alingua, tecido de pedaços de som a nível a-estrutural, caos: “Alíngua é o nível a-estrutural do aparelho verbal, ao passo que a linguagem e o discurso são ordenações” (COLER, 2010, p. 16-17). Lalação vem do latim “lallare”, que designa o fato de cantar “lá, lá...” para adormecer as crianças, dizem os dicionários. Designa o balbucio da criança que ainda não fala, mas que já produz sons. A lalação é o som separado do sentido, mas como se sabe, entretanto, não separado do estado de contentamento. (...) Os efeitos dessa alíngua ultrapassam, e muito, tudo aquilo que dela podemos apreender. Esses efeitos são os afetos, no sentido em que é a alíngua que afeta primariamente o gozo. (...) Que se possa gozar da matéria verbal, é algo assegurado pela existência do poeta (LACAN, 2007, p. 118) Como o ator brinca com a corporeidade dos sons, dos cacos, dos saltos? Também a fantasia une e dá unidade a alguma ordem pulsional, fazendo do outro um objeto do gozo da sua fala. As imagens das pessoas são tecidos de onde o ator recorta significantes, que entram no seu discurso e arranjo, fazendo ressonar, no “saco vazio”, o “singular” do qual é efeito. A produção atoral é resultante destes ecos (sujeito partido e um corpo vazio), encharcados do gozo da alingua e do tecido de cicatrizes da linguagem, sob a chancela da fantasia que diz da sua verdade. Se a criação é singular, estruturalmente traz consigo algo que não amarra diretamente o sentido da cena (representação), mas se revela enquanto estilo (próprio). Assim, se é artista; tem-se, sempre, uma versão própria do personagem e ações físicas determinadas pelas repetições de um modo-de-gozo. A linguagem, do que é feita? Cada material encontra-se em relação de diferença com outros. A linguagem é um sistema de diferenças organizado em dois eixos: o eixo horizontal (sucessão) e o eixo vertical (empilhamentos) – tal como uma pauta musical. Pauta Musical 8 A estrutura da relação entre as notas está em jogo; a ausência daquelas que não aparecem na escrita musical, mas estão “na escala” do dó ou do si também. Quando colocada em funcionamento, significantes (notas, materiais) podem deslizar de um empilhamento para o eixo horizontal, formando a melodia, em sucessão com outros. O eixo vertical denota uma relação metafórica: uma coisa no lugar de outra. O horizontal indica metonímia: deslizamento, uma escorregada. Os elementos deslizam na linha melódica; vão de um lugar a outro. Assim, as operações de sustentação da linguagem são: metáfora e metonímia (substituição e deslocamento) – e não (como se a linguagem fosse um dicionário) relações diretas entre significantes e significados. Nos anos sessenta, a noção de escritura cênica enquanto um “amontoado de signos” (onde cada elemento significa algo) entrou em colapso. Fato importante para a práxis da “posta em cena”, pois nos ensinou a não reduzirmos a criação aos “significados” do texto. Construímos “outra escrita”, onde o texto dramático está como um dos materiais. O texto falado se organiza com as ações físicas – outros materiais, outras notas. A noção de “enquadramento” nos permite pensar esta relação como um jogo, complexo e difícil, entre a presença da palavra e a visualidade das ações físicas, ambas evocando ações distintas. As visualidades (das ações), evocadas pela palavra e pelo corpo, se justapõem, opõem, compõem. A organização espaço-temporal entra em jogo: em oposição ou justaposição, em síntese, harmonia ou dissonância (composição). A lei do arranjo é também lei da composição. Materiais cuja incidência banha o corpo (e atualiza o seu modo de gozo) são utilizados para trazer à tona o tecido ressonante e o estilo do ator (o que não se aplica à equação ainda assim faz efeito aos olhos). A incidência do material Encontra-se o termo “incidência” em Lacan, denotando um efeito de inscrição do significante no corpo. Trazemos da Física o termo “ângulo de incidência”, junto à imagem de um raio de sol “incidindo” na pele, tocando, fazendo-se inscrever, ou seja, entrar, afetar, marcar. Ângulo de Incidência Para Lacan, o gozo marca o significante no corpo, pois faz significar “aquela parte”: “(...) uma parte que, do corpo, é significada nesse depósito. (...) Nisso que ele é termo, o significante é aquilo que faz alto ao gozo” (LACAN, 1996, p. 36). Esta proposição aponta a perspectiva de construirmos um corpo cênico com a linguagem, na medida em que cada parte é “significada” e se constitui como diferença – quando se recorta, isola, monta (incidindo). O material que incide é da ordem do simbólico: “Por que é que damos tanta ênfase à função do significante? Porque é o fundamento da dimensão do simbólico” (LACAN, 1996, p. 32). O “material” – algo que pode ser nomeado (está na linguagem) – incide, construindo corpo (cênico, expressivo). Na práxis teatral, os materiais do ator são chamados por Stanislavski (2005) de “estímulos”. No entanto, não se trata da resposta (a um estímulo), tal como um órgão (estimulado) “responde” ao tratamento – ou como a reação de fechar as pálpebras frente a uma ameaça (estímulo) de algo entrar nos olhos. Neste caso, todos reagem da mesma maneira: fechando os olhos. Na criação atoral não se sabe da ação resultante, porque há o modo de gozo de cada um, que produz algo específico diante do estímulo/material. Reconhece-se a imprevisibilidade e contingência do processo. A ação física implica um indizível (do real do gozo) junto a materiais que (enquanto diferenças articuladas) fazem eco. É como se o material fosse “acachapado” nocorpo (tal como uma bola de basquete na rede) bem no ponto de incidência. Substituímos, assim, a ideia de reação ao “estímulo” pela ideia de uma incidência (contingente) do “material” no corpo que produz cena. O recorte do olhar Na estrutura do trabalho do ator, há também encadeamento: materiais “deitados” no tempo (horizontal) da cena. O que cabe no seu olhar? O seu olhar desliza entre os materiais que vai recortando – agilmente, tal como uma câmera de cinema, que se abre e transita pela superfície da cena? É o que se percebe na proposição de Grotowski: (...) eu penso no canto dos olhos, a mão tem um certo ritmo, vejo minha mão com meus olhos, do lado dos meus olhos quando falo minha mão faz um certo ritmo, procuro concentrar-me e não olhar para o grande movimento de leques (referência às pessoas se abanando no auditório) e num certo ponto olho para certos rostos, isto é uma ação. Quando disse olho, identifico uma pessoa, não para vocês, mas para mim mesmo, porque eu a estou observando e me perguntando onde já a encontrei. Vejam a posição da cabeça e da mão mudou, porque fazemos uma projeção da imagem no espaço; primeiro esta pessoa aqui, onde a encontrei, em qualquer lugar a encontrei, qualquer parte do espaço e agora capto o olhar (...) (GROTOWSKI, 1998, p. 1) Os materiais que o olhar do ator recorta são significantes (diferenças) se substituindo – e o movimento do olhar os coloca horizontalmente no tempo. Enquanto uma ponta do foco de atenção do ator desliza em sucessão (horizontalidade da cena), a outra ponta está situada em uma pequena parte da ação física (bordas do próprio corpo) que apenas entrevê (o restante, não pode capturar). O foco é uma função na medida em que algo dele sempre escapa. O que se recorta se torna material, mas a ação física é, em grande parte, inapreensível através deste olhar-linguagem que recorta uma superfície. Segundo Spolin, (2010) é graças à divisão-de-foco que “o espontâneo acontece”. O brotar (espontaneamente) da ação só pode se realizar porque o ator está concentrado (com o foco grudado) em outro lugar: a regra-de-jogo, a instrução-de-jogo. Por isso, o importante não é que a regra seja cumprida, mas que o ator se mantenha em relação com a sua presença, para que o foco permaneça dividido. A espontaneidade acontece na medida em que a produção corporal “sai do foco”. O corpo estufa, preenche o espaço-tempo delimitado pelo enquadramento. O que interessa no ateliê da criação atoral é a perspectiva de se despertar ecos impregnados na tessitura do corpo (uma malha de atravessamentos), na medida em que este é vacúolo vibrante, atualizando o singular e, ao mesmo tempo, desenhando-o. A ação física oferece as bordas (os limites) para os efeitos diversos de reverberação. A hipótese do arranjo de materiais e do jogo de enquadramentos ganha força ao se ler a teoria o ator. Certas descrições mostram uma incidência insistente de significantes, como “preciso” (houve uma época em que a ode a precisão imperou). A palavra pode ser marcada como instrução de jogo (“ser preciso”). E o ator acostuma-se a realizar a partitura física de maneira precisa, criando uma “segunda natureza” (Stanislavski, 2009); a sua natureza cênica. 2. Função do arranjo Segundo Sausurre, a imagem acústica é o significante4, a parte material do signo, em relação de arbitrariedade com o significado (conceito) e em relação de diferença e negatividade com outros significantes. O significante é um significante por diferenciar-se de todos os outros, por “não” ser todos os outros. O termo é retomado por Lacan em sua análise do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, com a primazia do significante sobre o significado (barrado). Em Lacan, o significante não significa nada, e sempre se remete a outro significante. O jogo com a imagem acústica (palavra em escuta silenciosa) como instância isolável, é estrutural no trabalho do ator. Seja a nomeação de um subtexto (Stanislavski) ou de uma qualidade física (Barba), uma instrução de jogo (Spolin) ou a voz do diretor (rememorada, cuja incidência reverbera), o lugar da imagem acústica é estrutural. Esta proposição vai contra o postulado de que a ação física pressupõe o material interno. Ao contrário, o material acústico interno é algo diferente e posto em relação com a ação física. Esta proposição implica a hipótese do trabalho do ator como um arranjo, um “acorde” cujas “notas” são testadas e experimentadas juntas. Assim, a mesma ação física pode contar com diferentes materiais acústicos internos (produzidos por associação instantânea na cena ou postos em jogo intencionalmente, antecipadamente). Tanto a imagem acústica, quanto a imagem visual (o que Kusnet chama “visualização” e Barba “paisagem interna”) pode ser intencionalmente produzida, para atuar de forma conjunta com as associações instantâneas a partir da escuta em cena. 4 Ver SAUSSURRE, F: Curso de Lingüística Geral e LACAN, J: Discurso de Roma. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998. Silva chama de “impressão digital” a inscrição do corpo do ator em cena. O termo “impressão” designa certa aderência, no corpo, dos materiais que estimulam o ator. É como se o seu efeito da incidência reverberasse e despertasse os ecos da memória corporal, imprimindo um jeito particular de produzir uma cena. O termo “digital” designa o que não tem justificativa, que é daquele corpo em específico. De maneira que, se extraímos a impressão digital da cena para repeti-la (há uma mudança de estatuto) esta se torna material, cuja reverberação entra em arranjo com outras para que nova impressão digital seja construída (a impressão digital é sempre única). Existe um vetor, constituído por materiais empilhados, que implica a verticalidade (sem intervalo de tempo): as reverberações dos materiais e a impressão digital estão presentes a um só tempo. Ao escutarmos “a cena do corpo”, o que se escuta é material, pois elemento isolável, que causa excitabilidade. Tudo o que pode ser recortado com a linguagem (e estimula) é material (significante). De maneira que, apesar da ação física estar implicada, ela é apenas uma das notas que ressoa em um acorde complexo. Mas o que acontece entre a impressão digital e o arranjo de materiais? Quais operações implicadas neste vetor “material – impressão digital”? Como os arranjos se constituem? O ator utiliza materiais expostos: objetos e músicas oferecem limite às bordas corporais (temporal ou espacial). Um limite que contorna (desenha) efeitos de incidência (reverberações) daqueles (visuais e acústicos) que estão ocultos (internos). Enquanto um material incide promovendo certo caos, outro incide organizando o tempo e o espaço daquele corpo. Tal como o enquadramento de uma câmera de cinema (implicando tempo-espaço), o desenho corporal aparece como bordas de uma superfície. As reverberações na tessitura corporal são delimitadas por estas bordas (limites) do desenho corporal, organização espacial e temporal. A incidência dos materiais ocultos tende a romper os limites dos enquadramentos, “dilatando” a impressão digital, borrando-a, estufando-a. Estrutura do arranjo de materiais do ator O que propomos como “materiais de enquadramento” não são somente objetos, projeções e músicas (materiais externos), mas tudo o que situa um tempo-espaço: também a fala (que exige um tempo de enunciação), o desenho corporal (cujo movimento implica relações espaciais e temporais) e a visualidade da situação fabular, que implica imagens de um tempo- espaço outro (o tempo-espaço ficcional). Até a visualidade de uma relação enquadra. Trata-se de um enquadramento específico, que pode se chocar com outros, absorvê-los e articula-los. Uma voz sonorizada também se comporta como enquadramento.Mais precisamente, como uma “régua sonora”, pois marca, no tempo cronológico, limites para os efeitos das reverberações de materiais de incidência (que vão até certa marca, momento da fala sonorizada) de todo um arranjo. Os fragmentos de uma voz sonorizada podem representar os pontos de troca entre os acordes dos materiais do ator, cujas reverberações implicam impressões digitais novas que se desenvolvem nos intervalos, entre uma marca e a outra: os seus efeitos se desdobram até chegar a próxima marca (quando o arranjo é trocado). A ação inscrita em uma situação fabular é uma modalidade de enquadramento porque situa as impressões digitais em um tempo-espaço outro (que se dá por associação na imaginação do espectador). A visualidade da ação da fábula pode ser evocada com o desenho do corpo, ou pela palavra, de maneira que há jogos de articulação, justaposição, absorção. Quando, em um espetáculo, pedaços de histórias são narrados, aparece a “distância” (a diferença) entre o contexto da instância narradora e o contexto da estória (e aparece também a visualidade da relação entre os dois). Testemunha-se, ainda, o olhar do espectador como uma modalidade de enquadramento. Isso na medida em que as associações que este produz situam a impressão digital na visualidade do seu mundo. Se todos podem ler a mesma ação, isto implica que uma modalidade de enquadramento foi constituída (e não “o significado” da impressão digital que evoca esta ação). Este ponto é importante. Reconhecer que o olhar produz a visualidade de uma ação associada no “instante-já” da cena, não quer dizer que o espectador atribui um significado estável para a impressão digital (quer dizer que ele cria um enquadramento). Da mesma forma, o ator pode jogar com uma interpretação (pois, estruturalmente, não sabe como esta vai ressoar nos ecos da sua tessitura corporal e produzir a impressão digital junto a outras reverberações). O “não saber” está implicado na criação. O fato de o ator utilizar uma interpretação não quer dizer que o espectador vai escutar aquilo que foi por ele (pelo ator) interpretado. O lugar da escuta do espectador (que produz um enquadramento) é diferente do lugar do material que estimula o ator (de incidência) extraído da sua interpretação: “O ciclo das associações pessoais do ator pode ser uma coisa e a lógica, que aparece na percepção do espectador, outra.” (GROTOWSKI, 2012, p. 233). Por parte do espectador, percebe-se uma montagem, que implica as cadeias significantes que cada um engendra (e a plasticidade de cada olhar). O que o ator associa (ou recorta com a linguagem) – por exemplo, o que ele produz ao responder “O que você quer?” Perguntar é uma das estratégias de Stanislavski. A resposta é um material que pode reverberar; fazer incidência. Pontuar isso tem importância porque é comum vermos atores engajarem-se em certa defesa da indeterminação como garantia de uma fruição da cena (porque a escolha do “significado” fecharia a leitura do espectador). Existem poéticas que se utilizam da coincidência entre o material de estímulo do ator e aquele da escuta do espectador (porque precisa da escuta de certo desenrolar das ações em cena). É o que propõe, por exemplo, Eugênio Kusnet. Mas, ainda assim, trata-se de evocar um enquadre (neste caso coincidente) e não o significado. Na medida em que a poética do corpo do ator, na cena contemporânea, é designada como uma “escrita”, as impressões digitais podem ser designadas como letras. Esta designação tem um sentido bastante preciso. A escrita do corpo não é a escuta dos significantes (que aquela escrita permite). Cada um escuta de um jeito uma mesma escrita (cena) do corpo (da mesma maneira que cada um escuta de um jeito um texto escrito no papel) – ainda que vejam as mesmas ações dramáticas. Ao operarmos com a noção de impressão digital enquanto letra, estamos considerando que algo escapa a sua leitura e causa enigma. Ainda que a linguagem esteja implicada, bem como a visualidade de uma ação, algo resta à leitura desta mesma ação. Plasticidade corporal Há implicação mútua dos materiais em uma espécie de eixo vertical. Estes materiais não estão dispostos, em sucessão, na horizontalidade da cena, mas a um só tempo (através da sua reverberação), em um mesmo instante. A precipitação da impressão digital ocorre como espécie de combustão, a “química” de uma cena do corpo; espécie de montagem que foge ao controle do eu porque se dá na tessitura da memória corporal. Alguns materiais organizam os efeitos da reverberação de outros, implicando um desenho ou movimento no corpo. O fato da reverberação dos materiais poder ser atualizada (tornada presente) sem que o ator situe seu foco de atenção, testemunha que um eco foi impregnado. Através deste eco, o material se instala sem que o ator se dê conta. A tarefa do ator é deixar-se atravessar. Ele escuta a impressão digital, recortando-a com o olhar. O seu foco de atenção se divide com esta escuta. Imagens (figuras), extraídas das Artes Plásticas, Cinema ou outros campos, podem ser repentinamente (e repetidamente) instaladas quando o ator está em improviso, nas bordas do corpo, o desenhando. Imagens Não necessariamente precisam ser figurativas. Uma imagem abstrata, um quadro no Pollock, por exemplo – como se cria impressão digital a partir dela? Jackson Pollock: Number 32, 1950 Ao incorporá-la, o desenho do corpo (que encarnou esta imagem) evoca uma ação. Quando se instalam nas impressões digitais, as imagens configuram um enquadramento plástico-corporal cuja visualidade é filtrada: elas se transformam. No processo de incorporação, ao evocar ações, a abstração anterior é absorvida. Surge outra visualidade: a da situação, da relação, do endereçamento, da ação, da ficção. Por exemplo, na pintura abaixo, está implicada a visualidade de uma ação (da mulher, sozinha, tomando um chá ou café, talvez à espera de alguém) inscrita em uma situação que esta pintura evoca (e que poderia ser evocada de outra maneira, inclusive por palavras). A visualidade plástica da tessitura da pintura é específica e diferente da visualidade das ações que ela evoca, portanto. Edward Hopper - Automat, 1927 Há cenas onde a plasticidade do corpo se desprende completamente da visualidade da ação. Como em algumas peças de Bob Wilson, por exemplo, o desenho do corpo nada tem a ver com as ações que as falas evocam – causando uma espécie de defasagem, de fissura entre duas camadas. A pintura do corpo evoca associações que podem articular uma fabula ou dela se distanciar, implicando outras camadas de associações. A parte da plasticidade corporal que não encontra o enquadramento de uma situação pode implicar estranhamento5. O mesmo acontece com a sonoridade da voz e da palavra. A operação de absorção da abstração (na visualidade de uma ação) implica gradações. Há poéticas que contam com uma absorção intensa, quase total, de maneira que a visualidade da situação encobre a abstração, testemunhando que se nomeia “mimese da realidade”. Mas também uma atividade perfeitamente inscrita na visualidade do cotidiano, como cortar cebolas, estender a toalha ou acender a lareira (para utilizarmos um exemplo de Stanislavski), pode ser um enquadramento plástico-corporal abstrato (quando ainda não inscrita no sentido da ficção). A plasticidade6 corporal e a plasticidade ficcional são camadas diferentes e evocam associações diferentes. Abre-se um campo de experimentação para a inscrição do corpo na poética da cena e se observa a necessidade de se criar repertório plástico-corporal, para que este seja atualizado (reapresentado) durante o jogo com os outros enquadramentos. A imagem do próprio corpo como campo de extração Por conta de um projeto de intercâmbio do “Centro de Pesquisaem Experimentação Cênica do Ator”7 em 2013, ministrei um curso em Portugal, na “Escola Superior de Teatro e Cinema” de Lisboa. Nesta ocasião, criei uma espécie de treinamento. Figuras extraídas das artes plásticas são projetadas e o ator brinca de incorporá-las (e variá-las) junto a outros estímulos (músicas e palavras que a própria figura provoca de estalo ou anteriormente produzidas a partir de fragmentos de texto dramático). Chamei esta oficina de “Plasticidade do Corpo Dramático”. O ator improvisa, experimentando as ações que as figuras evocam; desdobrando um fluxo de improviso a partir de associações, quando em jogo com outros materiais. A imagem de uma cena do corpo, já constituída, também pode se apresentar como um campo de extração de materiais, que descrevemos, nomeamos, rememoramos, repetimos. É um momento em que o ator desloca-se da posição de dentro da cena para exercitar o olhar sobre ela. Assim, monta-se a preparação do jogo seguinte. O ator também pode filmar as cenas (ao invés de apenas contar com a sua rememoração para tentar visualizar a imagem do seu corpo cênico). O que interessa é que, tanto de dentro, quanto de fora (da cena), cadeias de associações se desdobram: um material leva a outro, que leva a outro, que se junta com outro, formando 5 A palavra estranhamento é utilizada por Brecht. Há momentos em que Brecht diz que a estilização basta para provocar o estranhamento. Em outros, ele postula a crítica, quando expõe a distância entre um conflito individual (do personagem no caso) e o contexto social que o extrapola (com as suas relações de poder e determinação social). De maneira que se opera com a ideia de contradição (Ver BORNHEIM, G. Brecht: A Estética do Teatro: São Paulo: Graal, 1992). 6 Estou tomando aqui a palavra “plasticidade” como “capacidade de transformação”. 7 Grupo de pesquisa registrado no diretório do CNPQ e sediado na Universidade de São Paulo, onde desenvolvi mestrado e doutorado. arranjos. E a produção cênica entra nesta cadeia. Materiais “estalam” (em associações) quando caminhamos pela rua. Trata-se de olhar internamente para uma cena do corpo. Pode ser que esta associação reconfigure todo o arranjo (tal como um caleidoscópio, quando as pecinhas de cristal colorido formam nova imagem). Por um lado, esta multiplicidade de associações ajuda na criação: o arranjo “engorda”. Novos materiais são introduzidos e as associações anteriores implicam resíduo. Uma complexa tessitura é bordada, com pedaços de camadas anteriores. Por outro lado, é necessário um “corte”, para que novas associações não nos desloquem infinitamente. Não são todas as associações que servem. Muitas delas devem se manter apenas como material de incidência (sem aparecer em cena). Quando estou atuando como diretora, assumo este papel: cortar. Mas, também o diálogo com o outro, a poética (que nos antecede), o projeto estético (e metodológico) pode implicar limites e operar os cortes. O diálogo com a cultura cênica que nos antecede abre a perspectiva do ator utiliza-la como campo de extração. Um movimento da cena performativa de Pina Bausch, por exemplo, pode torna-se material a ser transformado (e absorvido) no jogo de enquadramentos com a fala de um texto. Imagens de movimentos utilizadas em treinamento O discurso como material Sobre as imagens, o ator elabora (não o discurso que traduz a cena, mas) a sua inscrição na poética (que o antecedeu e que descobre), seja se valendo da recusa de outras e de sucessivas tentativas de experimentação, ou ainda na medida em que tenta se inscrever, mas não consegue e, assim, acaba por criar uma nova poética: a sua impressão digital (isto na medida em que esta poética está sustentada por um discurso que implica efeitos). Campos teóricos são também utilizados como campos de extração de materiais. Por exemplo, “esquadrinhamento disciplinar” é um termo de Foucault. Este termo pode articular uma imagem na qual o ator se engaja (e resulta visivelmente implicada nas impressões digitais). Assim, o discurso teórico se configura como um material de criação junto a outros. Durante um ato de criação partilhado, existe um texto que se recorta, junta, desdobra – onde o ator está imerso. Uma espécie de rede de sustentação, uma malha, para a tessitura das impressões digitais, na medida em que a sua reverberação se prolonga. 3. Enquadre, incidência e atualização A hipótese do arranjo implica diferentes funções: a.) a “incidência” (a excitabilidade), dos materiais que apenas o ator vê, que invadem ou situam o seu foco; b.) o “enquadramento” (no tempo-espaço da cena ou no tempo-espaço ficcional, pois na medida em que uma situação é visualizada, o enquadre acontece); c.) a “vulnerabilidade”, quando a atualização das reverberações que transpassam a memória corporal acordam os ecos antigos, provocando uma combustão (que não controlamos, mas manejamos nas escolhas e nos procedimentos preparatórios). Em Exposição, primeiro jogo descrito no Fichário de Viola Spolin (2000), pede-se para que o ator se mantenha, em pé, diante da plateia “sem fazer nada” durante um minuto. Utiliza-se este jogo para se transmitir a importância do foco. Primeiramente, “desfocado”, o ator deixa-se assolapar pela timidez. Em um segundo momento, ao instalar um material no foco (“contar as cadeiras do auditório”), o corpo se acalma e ele consegue parar de rir, tremer, se contorcer, etc. Com a “voz de jogo”, o instrutor instala um material: “Conte as cadeiras do auditório” (uma instância verbal, uma frase). Com a instalação desta frase, o ator se organiza; melhor dizendo, é “enquadrado” na relação com a sua voz, que conta: “uma, duas, três cadeiras no auditório”. Uma cadeia verbal, acústica, é capaz de organizar o tempo, pois situa um trilho de elementos diferenciais (no caso “um, dois, três”) em sequencia. Assim, consegue-se sustentar a cena do corpo para o olhar do outro. O material “voz interna” pode instalar um enquadramento. O trilho (acústico) entra no foco, organizando as ressonâncias no corpo, que são atualizadas. O corpo presentifica certo tempo-ritmo (Stanislavski, 2009). A tessitura corporal com seus ecos, vibrações e afetos é contornada (enquadrada), desenhada, enquanto o ator sofre a incidência desta voz. Uma partitura física já constituída pode, também, enquadrar, enquanto outro material a pressiona, desorganizando o seu espaço-tempo (e fazendo-a dilatar). A partitura física é apenas um dos materiais do arranjo, no entanto. Existem outras plasticidades, outros enquadramentos. Da parte do espectador, o olhar enquadra (situa) a produção corporal do ator. Considerando as associações que a produção atoral pode suscitar neste espectador, o seu olhar organiza, situa, em um mundo seu, a produção cênica. Quando se lida com a “posta em cena” (Pavis, 1999) exige-se, do ator, um manejo dos enquadramentos. A fala do texto dramático causa uma excitabilidade e a identificação imediata com ações – que, no entanto, através da Análise Ativa (Knebel, 2005) podem ser alteradas ou subvertidas, a partir de um novo olhar. É preciso constituir uma poética (da cena) – que não se restrinja à representação destas ações interpretadas na escuta do texto. Para não representar ações A plasticidade de materiais extraída das Artes Plásticas pode significar uma maneira de treinar os atores para se tornarem extra-cotidianos. A figura extraída media a criação corporal, oferecendo um enquadramento possível (organização no espaço e tempo) para que se produza a poética do desenho. O ator não apenas interpreta o texto, mas atua em direção a uma plástica estranhada que tantos defenderam: Craig, Kantor, Meyehold, Barba, Wilson. São desenhos mais ou menos precisos, disformes, mais ou menos abstratos (conforme a poética,que aposta no que não é familiar, tornando-se também uma poética do estranho). O trabalho com o material “iconográfico” (extraído da obra de um pintor, revista, fotografia, filme, etc) deixa clara a função do enquadramento plástico-corporal que, no entanto, pode, também, ser exercida pela “cotidianidade”. Esta que, em sua simplicidade, se faz poética. Quando, no entanto, algo se introduz como perturbação, aparece um segundo enquadramento: a visualidade de um pensamento e olhar (“do personagem”). Assim, além da fala advinda do texto, temos pelo menos mais três suportes para a escuta: plasticidade corporal, cotidianidade e visualidade do pensamento, portando-se como linhas paralelas em jogo (e não enquanto representação uma da outra). O personagem como enquadramento O “personagem” pode ser tomado, enquanto “figura” inscrita na ficção que se evoca, ou seja, como “efeito de enquadramento”. Assim, pode-se conceber uma atuação dramático- realista (com a mimese da cotidianidade enquadrada pela visualidade da ficção “como se fosse real”) também como uma modalidade possível de poética. Esta modalidade se dá pelo jogo entre enquadramentos diferentes: a visualidade do pensamento, a cotidianidade e a ficção que, entre si, implicam fissuras. Uma das camadas da visualidade é composta pelas ações da personagem. Não as ações físicas, mas as ações dramáticas, situadas na diegese, que podem coincidir ou não com as ações físicas (elas também podem se descolar, produzindo estranhamento). O personagem escutado no texto faz incidência no ator, mas o que o espectador está lendo não é o texto e sim a cena (a escrita da encenação): outro discurso (o cênico), que implica os próprios desenhos e, também, o que o ator atualiza (sem querer). Sobre o quê o ator atualiza sem querer: entre a percepção do quê o foco do ator recorta e o enquadramento (que o organiza), a memória corporal ressona e se abre. A excitabilidade é acionada por caminhos invisíveis dentro da tessitura de memória pelo simples fato do ator “ser” para o olhar do outro. O que recorta e desenha esta “massa” amorfa, sem forma, são os materiais de enquadramento, que recortam (isolam) aos efeitos de incidência. Enquadre temporal A música não implica, de antemão, limites para as bordas (desenhos) corporais. Mas incide, sobre o ator, organizando o tempo. No caso do enquadre constituído a partir do som, o ator estará livre para constituir os desenhos através das atualizações da tessitura interna de sua memória corporal, que “acorda” (e atualiza as formas marcadas anteriormente). Na medida em que a memória corporal é atualizada, esta se constitui com desenhos mais ou menos precisos – pois sujeitos ao jogo de enquadramento do momento. Além da incidência do material que situa o foco (escuta), estão, no arranjo, reverberações revividas que fazem parte da história daquele corpo. A música não enquadra o espaço (apenas o tempo); outros materiais não enquadram, nem tempo nem espaço. Ao contrário, bagunçam. O que se conclui é que se trata de um arranjo complexo: enquanto um material enquadra o tempo, outro enquadra o espaço, outro faz ressonar a memória do corpo atualizando ecos sem que o ator se dê conta (e bagunçando). O uso de materiais diferentes deixa entrever funções diferentes: incidência, enquadramento e a memória corporal, que carrega o ator (função que da “vulnerabilidade”). Absorção de figuras Encontramos a palavra (a fala externa) e o movimento como dois enquadramentos que disputam a superfície do corpo; como se a impureza (ou deformação) de um fosse necessária para se “caber” no outro (ou para que estes dois caibam em um terceiro). Um enquadramento enquadra outro Deparamo-nos com a perspectiva de um enquadramento enquadrar o outro. No caso da utilização de figuras para enquadrar o corpo (desenhar as bordas), se estas não estiverem presentes em cena, podem ser consideradas como um material oculto. O “pulo do gato” é quando estas são atualizadas via tessitura interna. A forma se adequa (é absorvida por outros enquadramentos). O foco não está mais na figura e sim nos materiais de absorção: a relação com o outro, por exemplo. Produção corporal em potência Ao invés da figura estar na área verde (propositadamente), como forma que organiza o corpo ela retorna na área rosa (“dentro”) enquanto temos outra coisa enquadrando. O que ocupa a área verde é a relação. É a “ação sobre o outro”, que situa o foco. A imagem marcada no corpo retorna moldando-se a este outro enquadre. Algo novo se captura neste instante. O enquadramento situado na área verde pode ser os limites espaciais ou oferecidos por FOCO Pressão ÁREA DE VULNERABILIDADE/MEMÓRIA Pressão ENQUADRAMENTO um figurino, objeto, pela relação (ficcional) imaginária (do personagem) ou contexto de jogo, a relação com um material utilizado como substituição (Hagen, 2010) ou mesmo com a imagem acústica que funciona da instrução de jogo: pequeno, grande, lento, rápido, etc. A partitura física já desenhada (e marcada) deverá retornar (sozinha, “sem pensar”). Entre citação e diluição Além das Artes Plásticas para a extração de figuras, pode-se utilizar o Cinema, a Fotografia, a História em Quadrinhos, o Teatro Performativo (movimentos de Bausch, por exemplo), imagens de animais, pessoas conhecidas ou desconhecidas. A citação é uma das operações presentes na Arte Contemporânea (e também no Teatro Pós-dramático). Glenn Brown utiliza-se da pintura de outros como material determinante. A visualidade do original é exposta, no entanto, a nova produção é autoral. Mantendo-se o desenho intacto, este funciona como citação (se é reconhecido), mas, se borrado, é transformado, diluído. Obra de Glenn Brown No caso deste pintor, a produção não está impressa no corpo, como acontece com o ator, quando a carne é uma tela que traz protuberâncias, marcas, ecos, estilo. No caso do ator, a tendência é, na medida da incorporação, transformar e absorver a imagem de partida. Cotidianidade e abstração na articulação com a diegese Em treinamentos barbianos8, começa-se pela atividade abstrata. São ações de puxar, lançar, empurrar (que chamamos “primárias”) e que, ainda descontextualizadas, formam uma coreografia abstrata. De repente, se absorve a forma corporal em outro enquadramento. Enquadramento pela diegese O princípio do uso da abstração para se chegar ao sentido da ação abre possibilidades para o jogo com as frases (internas ou externas) auxiliares (que ajudam a absorver aquelas formas). Assim, constituem-se as ações dramáticas. O desenho corporal é enquadramento em sua diferença; é “outra coisa” em relação a diegese. Há espaço entre os enquadres, composição. Nas fissuras, o espectador cria, trabalha, preenche. Surgem associações em diferentes direções, cadeias associativas diversas. O exercício de associar é múltiplo. A operação de absorção da abstração do movimento na visualidade de uma ação, ou da sonoridade da voz na visualidade da ação vocal, implica gradações. 8 Atores do Odin Teatret, companhia de Eugênio Barba, espalham modalidades de treinamento de ações físicas pelo mundo, trabalhando com grupos de teatro diversos. Articulação entre dois enquadramentos Há poéticas que contam com uma absorção intensa (quase total), de maneira que a visualidade da situação encobre a abstração, implicando o que se nomeia “mimese da realidade”. Absorção quase total de um enquadramento no outro Dijunção e estranhamento A dramaturgia dramática enquadra a produção do ator na visualidade do mundo do personagem, com a sua lógica. Mas a ficção não está morta; ela se mexe. As circunstâncias imaginárias permanecem em ebulição. Plástico, o imaginário é bordado
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