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As Lendas De Dandara

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Prévia do material em texto

AS LENDAS DE DANDARA
Jarid Arraes
 
Com ilustrações de Aline Valek
ÍNDICE
Créditos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 5
Dedicatória • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 6
Introdução • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 7
1. O nascimento de Dandara • • • • • • • • • • • • • • • • 11
2. A cura de Bayô • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 20
3. O cavalo roubado • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 33
4. O encontro com Iansã • • • • • • • • • • • • • • • • • • 42
5. O navio negreiro • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 51
6. Dandara e Zumbi • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 66
7. Fogo na Casa Grande • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 75
8. A Emboscada • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 87
9. Senzalas vazias • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 101
10. A pedreira • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 111
Agradecimentos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 123
A Autora • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 124
 • 5 •
CRÉDITOS
Copyright © 2015 - As Lendas de Dandara
Uma obra independente de Jarid Arraes
aslendasdedandara.com.br
Capa, ilustrações e diagramação do e-book
Aline Valek
Revisão de texto
Leon
• 6 •
Para todas as mulheres negras 
brasileiras. Somos espelho e 
resistência. Juntas, somos Dandara.
 • 7 •
INTRODUÇÃO
Em novembro de 2014, próximo ao dia da Consciência 
Negra, escrevi um texto para minha coluna “Questão de Gênero”. 
O artigo intitulado “E Dandara dos Palmares, você sabe quem 
foi?” tinha o objetivo de denunciar e questionar o machismo 
e o racismo brasileiro, que faz com que heroínas históricas 
como Dandara fiquem quase completamente esquecidas na 
história brasileira. Embora muitas pessoas até ouçam falar de 
Zumbi, líder do quilombo de Palmares e homenageado em 20 
de Novembro, Dandara ainda permanece esquecida e ignorada.
Na minha experiência como feminista negra, só ouvi 
falar de Dandara dos Palmares quando uma companheira de 
ativismo a mencionou em uma de suas falas para uma mesa 
de debates. Até então, eu havia passado por muitos anos de 
escola, ensino médio e Universidade, mas em nenhum momento 
tinha escutado qualquer menção a respeito de Dandara. Fiquei 
curiosa e senti a necessidade de conhecer mulheres negras que 
pudessem servir de inspiração e espelhos para mim. Decidi 
pesquisar mais sobre essa guerreira, mas não me surpreendi 
quando percebi que o material a seu respeito era muito escasso 
e de difícil acesso.
É possível encontrar na internet alguns artigos que falam 
de Dandara, a maioria em portais do movimento negro e 
feminista, mas as informações são bastante resumidas. Um dos 
poucos fatos que realmente sabemos a respeito de Dandara é que 
ela foi uma das líderes do quilombo de Palmares, companheira 
de Zumbi e uma mulher que não se encaixava nos papéis 
femininos estabelecidos em sua época. Aprendi que ninguém 
sabia muito bem onde Dandara nasceu e que, pelo que se conta, 
• 8 •
sua morte aconteceu no momento em que Palmares foi invadido 
com grande repressão; dizem que, para não ser capturada, 
Dandara se jogou do alto de uma pedreira, preferindo a morte 
à escravidão.
Há controvérsias a respeito da real existência de Dandara; 
alguns pesquisadores afirmam que Dandara é confundida com 
outras lideranças quilombolas. No texto que publiquei em minha 
coluna, muitos leitores concordaram com essa perspectiva mais 
cética - entre diversos comentários de apoio e crítica, algumas 
pessoas afirmaram que Dandara dos Palmares não era nada 
mais do que uma lenda.
No momento em que li esses comentários, fiquei ao 
mesmo tempo pensativa e chateada. Achei – e ainda acho – que 
se Dandara não está devidamente registrada na historiografia 
brasileira, o machismo e o racismo tão impregnados na nossa 
cultura certamente tiveram papéis importantes nesse enredo. 
Decidi então encarar a ideia das lendas como uma provocação 
e uma oportunidade. Pensei comigo mesma: se Dandara é uma 
lenda, alguém precisa escrever suas lendas. E foi assim que tive 
a ideia de escrever um livro de ficção, inspirado na história do 
Brasil e naquilo que sabemos sobre a líder quilombola.
Para escrever As Lendas de Dandara, eu trouxe elementos 
de fantasia – meu gênero predileto de ficção – e busquei a 
valorização das religiões de matriz africana, fazendo com que 
Iansã fosse a responsável pela criação de Dandara. Tomei a 
liberdade para criar um nascimento poético e misterioso, algo 
que fizesse total sentido com as poucas informações que temos 
sobre Dandara, já que não se sabe ao certo onde Dandara nasceu 
e como foi parar em Palmares. Essa foi a oportunidade perfeita 
para inserir uma narrativa lendária e mágica.
Iansã foi escolhida como mãe de Dandara porque, entre 
todos os orixás femininos, ela é aquela que melhor representa 
uma líder quilombola como Dandara. Oyá, como também é 
 • 9 •
chamada, é a orixá das tempestades e ventanias, sempre com 
sua espada nas batalhas, adentrando terrenos muitas vezes 
considerados masculinos. Seus elementos e personalidade forte 
fizeram de Iansã a mãe perfeita para Dandara, que, por ser sua 
filha e criação, levaria também as qualidades da orixá.
Além das religiões de matriz africana, também fiz questão 
de dar nomes africanos aos personagens. Quando pessoas 
negras foram trazidas de diversos países africanos para o 
Brasil, uma das formas de violência impostas contra elas era 
a mudança de seus nomes verdadeiros, que eram trocados por 
nomes “cristãos”, como José, Luiza, entre outros. Além disso, 
os escravos recebiam os sobrenomes dos senhores que eram 
seus “donos”. Isso é algo que sempre me incomodou bastante 
- muitos dos meus amigos e conhecidos são de famílias com 
origem europeia e possuem os seus sobrenomes preservados; 
eles sabem de onde vieram, quais eram os costumes de seus 
ancestrais, suas festas e tradições. Mas eu, que tenho pessoas 
de origem africana na minha árvore genealógica, não faço a 
menor ideia da origem dos meus ancestrais; sei apenas que 
foram trazidos do continente africano de maneira cruel, bárbara 
e desumana.
Tive que me resignar a sobrenomes de origem europeia, 
mas passarei toda a vida tentando reviver minha ancestralidade, 
seja por meio do meu ativismo político ou da minha escrita. Em 
cordéis, poesias e agora neste livro, eu tento contribuir com 
algumas pequenas peças nesse imenso quebra-cabeça que é a 
diáspora negra. Por isso, meus personagens possuem nomes de 
origem africana repletos de significados. 
As ilustrações são uma maravilha à parte. Quando convidei 
a Aline Valek para ilustrar meu livro, confiava plenamente em 
seu talento de mostrar Dandara como eu a havia idealizado. 
À medida que ela me mandava as ilustrações prontas, eu caía 
de amores cada vez mais com seus traços e sacadas brilhantes 
• 10 •
sobre as cenas escolhidas. 
A Dandara que imaginei e que quero que as pessoas 
conheçam é uma mulher que rompe muitos paradigmas a 
respeito do que é um corpo de uma guerreira. Fiz questão de que 
a personagem tivesse o tom de pele bastante escuro e que seu 
cabelo crespo fosse visto o tempo inteiro. Além disso, dei a ela 
uma arma muito especial: a Akofena, que simboliza a coragem 
e o heroísmo da guerreira.
Espero que vocês, leitores e leitoras, tenham o interesse 
de pesquisar sobre tudo o que compõe o universo deste livro: 
a Akofena, os orixás, os nomes africanos e, claro, a história do 
quilombo de Palmares. Espero que essa história escrita por mim 
possa despertar a vontade de conhecer mais sobre a população 
negra brasileira, suas origens, glórias e lutas. 
Acima de tudo, ofereço este livrocomo humilde reverência 
a Dandara dos Palmares e sua memória, que está viva e pulsante, 
cheia de fogo e de movimento. Lenda ou realidade, sua história 
é verdadeira e nos serve como inspiração e fortalecimento e 
jamais poderá ser apagada. 
Dandara vive!
 • 11 •
1. O NASCIMENTO DE 
DANDARA
• 12 •
 
Entre calmas nuvens, o céu de todo o continente 
permanecia em silêncio, isolado em seu luto e incredulidade. A 
brisa quieta daquela tarde era a expressão máxima da tristeza 
pesada que África sentia, totalmente exaurida pelo sentimento 
de perda que a dominava. Por causa do seu humor abatido, há 
muitos anos África se mantinha passiva, recusando-se a falar 
com os orixás. Sentia-se traída pela ausência de proteção.
Os orixás sentiam sua dor. Preocupavam-se, tentando 
administrar o continente da melhor maneira possível, auxiliando 
seus filhos e movendo a natureza para mantê-la em harmonia. 
No entanto, percebiam que as coisas já não se mexiam como 
antigamente: os rios não corriam velozes e fortes, as plantas 
não cresciam vigorosas e os animais viviam como se fossem 
forçados a sobreviver; comiam quando precisavam, mas não 
cultivavam as relações entre os seus de sua espécie, tampouco 
se atentavam para a ética no trato com as outras raças e famílias 
de bichos. Por isso, os orixás se culpavam.
"Como devolver aos nossos filhos o equilíbrio de África?", 
questionavam-se. Sabiam que a responsabilidade pelo ocorrido 
era algo que não poderia pesar sobre eles, mas também não 
deveria ser uma carga imposta aos seres humanos. Em suas 
batalhas, vitórias e derrotas, as pessoas se corrompiam e 
agiam com insensatez. As consequências eram reais, parte de 
um imenso ciclo onde cada ação gera uma reação, alterando o 
destino de todos. Mas a ingenuidade de alguns filhos ainda não 
era o suficiente para explicar tamanha tragédia.
 • 13 •
Iansã passava longos períodos refletindo sobre a situação 
de África. Revisitava as cenas do passado, assistindo milhares 
de filhos embarcando forçadamente, como mercadorias, em 
navios que vinham de lugares longínquos. Via o sofrimento em 
seus rostos e voava pelo oceano, acompanhando cada momento 
de tortura profunda. Iansã fechava os olhos quando corpos eram 
jogados ao mar, sem definir o que mais lhe doía: o destino dos 
que sobreviviam nos porões dos barcos enquanto viajavam em 
estado degradante ou os que padeciam no meio do caminho e 
eram descartados sem rituais e sem respeito. 
De vez em quando, a raiva lhe enchia e explodia em 
tempestades que assustavam as águas. Entre raios e ventanias, 
Iansã gritava e sentia seu corpo explodindo em ira. Por mais 
que tentasse encontrar uma saída para aquela situação, não 
conseguia eleger uma única estratégia ou ação que devolvesse 
a esperança para África. Viajava pelo tempo, observando cada 
ser humano que desempenhara algum papel naquela página da 
história. Atentava-se para as pessoas que chegavam a África 
dentro dos navios, suas roupas diferentes, adereços curiosos 
e cores alvas. "Como são claros!", exclamava em pensamento. 
Entendeu que tinham aparência diferente porque vinham de 
outros continentes onde outros deuses exerciam domínio. Mas 
não entendia suas motivações, muito menos por que a diferença 
de pele despertava tantas crueldades.
Iansã precisou viajar algumas vezes ao passado até 
compreender totalmente o que acontecia: quando conseguiu 
engolir a dor dilacerante que a sufocava ao ver o sofrimento 
dos seus filhos, atentou-se para as expressões e intenções mais 
íntimas das pessoas mais claras. Viu em seus corações uma 
imensa camada de ódio e desprezo, tão profundos que criavam 
raízes nas veias de seus corpos e agiam como uma erva venenosa 
em suas mentes. "Eles pensam que são superiores!", concluiu 
espantada. Jamais havia visto algo como aquilo, nem mesmo 
• 14 •
quando povos inimigos guerreavam em África. Era algo pior e 
mais danoso. 
Depois de ter compreendido as causas da tragédia que se 
alastrava por África, Iansã compartilhou suas percepções com 
os outros orixás, que ficaram curiosos e revoltados. Naquela 
tarde, o céu parado e a brisa suave eram sinais de que todos 
estavam sentados, pensando, junto com Iansã, em uma forma 
de mudar o destino do continente e devolver o ímpeto de vida 
aos seus filhos.
- Precisamos encontrar uma saída. - Disse Oxum.
Os orixás estavam há muitos dias em reunião, lamentando 
a situação apática de África. Oxum chorava amargamente, 
sentindo que suas crianças haviam sido sequestradas de seu 
lar, magoada pelos caminhos do acaso e do destino, que tinham 
derrubado sobre África um presságio de tantas desgraças. Suas 
lágrimas escorriam em pequenas gotas brilhantes, doces como 
o seu amor pelo continente. 
- Alguém tem uma sugestão? - Falou novamente.
- Eu tenho! - Exclamou Ogum - Forjarei incontáveis 
espadas e ferramentas para irmos à guerra!
- Não, Ogum! Não podemos interferir dessa forma nesses 
feitos. - Nanã disse com sabedoria.
- Posso enviar os mares até aquela terra. - Sugeriu Iemanjá.
- Não, Iemanjá! Pense nas vidas inocentes e perdidas, nas 
árvores e animais.
Com a segunda intervenção de Nanã, os orixás retornaram 
ao silêncio profundo. Qualquer que fosse a alternativa, não 
poderiam esquecer dos seus próprios princípios e do respeito 
pelo objetivo maior, que era poupar a vida dos seus filhos e 
oferecer-lhes a liberdade plena. Porém, com o tempo correndo 
pelos ares, ficava cada vez mais difícil encontrar uma opção 
que não implicasse na direta intervenção dos orixás. 
- Oyá, há algo mais em sua mente? Alguma lembrança? - 
 • 15 •
Questionou Xangô.
Iansã tinha as mãos fechadas, como se estivesse tentando 
se conter. Vasculhava suas memórias, em busca de detalhes que 
lhe revelassem pistas de como agir. Sua sugestão teria que ser 
poderosa e definitiva. África não suportaria mais decepções.
- É estranho, Xangô, porque vi homens alvos agindo com 
um único propósito de ódio, ganância e dominação. - Disse 
Iansã enquanto refletia.
Como um relâmpago, sua força tomou forma e sua mente 
recebeu um lampejo de energia. 
- É isso! - Exclamou.
Todos os orixás levantaram e ficaram atentos, aguardando 
a revelação de sua descoberta.
- São todos homens! Homens alvos, homens com vestes 
diferentes, homens empunhando armas e comandando os 
navios! Homens!
Xangô entendeu onde Iansã queria chegar. Conhecia muito 
bem o temperamento da amada e sua feminilidade indomável. 
Por isso, não pode conter um sorriso.
- Criarei uma guerreira, filha do meu ser, que libertará 
seus irmãos e irmãs!
• • •
A tarde já caía quando Iansã partiu com tremenda 
velocidade rumo ao ponto mais alto dos céus. Com cortes 
rápidos de espada, o ar era dividido e se transformava em 
blocos de nuvens coloridas, tingindo o céu de rosa e vermelho, 
em incontáveis tons e formas encantadoras. Iansã estava feliz, 
convicta de seu plano.
Havia pensado em tudo com profundidade. Não poderia 
usar as próprias armas e atos para mudar o curso da história de 
todos, mas podia criar uma mulher tão forte quanto ela; uma 
• 16 •
mulher que amasse seu povo e lutasse pela liberdade, tendo a 
espada como íntima companheira e extensão dos seus braços; 
uma mulher de pulsão combativa, de furor rebelde. “Uma filha 
do meu ser”, imaginava e sorria.
A medida que convocava nuvens e ventos para compor 
sua criação, Iansã ordenava que uma tempestade se formasse. 
Canalizando todos os seus sentimentos, Iansã conduzia a revolta 
e a raiva ao encontro da paixão e da vontade selvagem, pois 
queria criar uma filha movida pela ausência de medo. "Minha 
filha será uma extensão de mim", repetia enquanto movimentava 
os braços, orquestrando a tempestade que se formava a ponto 
de explodir.
De repente, trovões. Os sons da natureza ecoavam, 
redemoinhos de vento bailavam em círculos e espirais rosados, 
escuros e perigosos. Da espada de Iansã, uma luz crescia e 
pulsava como a respiração de uma mulher em trabalho de parto, 
até que seu clímax foi atingido. Nos braços dela, estava, enfim, 
umagarotinha de olhos expressivos.
- Seu nome será Dandara e você trará libertação para seus 
irmãos e irmãs. - Disse Iansã sorrindo, olhando a menina com 
ternura.
Tomada por esperança, Iansã dançava com Dandara em 
seus braços, em movimentos mágicos que empurravam as 
correntes de ar quente em todas as direções. Em toda África, 
tempestades bradavam, anunciando o início de uma nova era 
e a abertura de novos caminhos. Os animais se alvoroçavam, 
sentindo novamente o despertar de seus instintos. África estava 
viva, acordada, com olhos bem abertos. A dança de Iansã com 
sua filha recém-criada demarcava uma celebração poderosa 
que durou por dias ininterruptos. 
• • •
 • 17 •
Dandara viajou por todo o oceano nos braços de Iansã, 
até que chegassem ao novo continente aonde os filhos de 
África haviam sido levados. Para a garotinha, tudo era novo e 
fantástico; Dandara ainda não falava, mas percebia atentamente 
os detalhes da natureza e sentia-se aninhada no colo de Iansã, 
sua mãe. 
Quando chegaram à nova terra, Iansã decidiu explorar a 
noite e as florestas para compreender o que acontecia e pensar 
em como colocaria seus planos em prática. Enquanto tudo 
observava do topo de uma serra, percebeu que uma mulher de 
pele escura corria e se emaranhava entre os troncos e matos, 
se escondendo. Mais para trás, viu alguns homens de pele clara 
montados em cavalos, alguns segurando tochas, enquanto 
gritavam de forma ameaçadora.
- Volta aqui, sua escrava sem vergonha! 
A palavra "escrava" fez Iansã se remexer por dentro. 
Deixando-se levar por seus impulsos revoltosos, Iansã ordenou 
que os céus se fechassem e que uma tempestade caísse sobre 
aquela região. Porém, algo despertou o cuidado da orixá, que 
direcionou seu olhar para longe e entendeu que a mulher 
traçava uma rota de fuga para uma espécie de esconderijo, uma 
área onde filhas e filhos de África estavam reunidas. Era um 
quilombo.
Iansã então adiantou-se no caminho que a mulher percorria, 
com a intenção de deixar Dandara para que fosse resgatada pela 
fugitiva. Para se certificar de que a mulher passaria exatamente 
pelo local onde Dandara deveria ser encontrada, Iansã fez com 
que raios atingissem as árvores de todo o território, provocando 
um grande incêndio que se espalhava pela mata, exceto no 
trecho por onde a mulher deveria passar.
Surpresa, a mulher parou por alguns minutos, incrédula, 
olhando para o caminho a sua frente e arregalando os olhos, 
sem compreender o que estava acontecendo. Entre as árvores, 
• 18 •
uma estrada era demarcada pela ausência de fogo, enquanto 
ao redor todas as plantas, troncos e folhas eram queimados 
pelas labaredas ardentes. Mas apesar do estado de choque pelo 
acontecimento inexplicável, ela não podia ficar parada e correr 
o risco de ser capturada pelo capitão do mato. Temia que toda a 
mata fosse tomada pelas chamas e que não tivesse mais tempo 
para escapar. “Preciso continuar”, pensou para si mesma.
Seus pés descalços, machucados por pedras e espinhos, 
se moviam com agilidade. Ainda que toda a mata ardesse 
pelo incêndio misterioso, a mulher sequer sentia o calor lhe 
incomodar. A medida que avançava, traçando o caminho feito 
por Iansã, compreendia que aquele não era um mero acaso. 
Alguém desejava que ela andasse por aquela trilha sem fogo. Por 
isso, decidiu que em nenhum momento se desviaria daqueles 
limites. Sentia-se estranhamente segura.
- Dandara, minha filha, seja sempre corajosa. - Disse 
Iansã com calma, emocionando-se enquanto tocava o rostinho 
da sua mais bela criação. 
As mãozinhas de Dandara pulavam e se esticavam 
tentando agarrar Iansã, que acabara de deixar a menina 
deitada em folhas de bananeira ao chão. O momento não 
era exatamente de despedida, pois Iansã estava certa de que 
sempre acompanharia o crescimento de sua filha e faria de 
tudo para que ela se tornasse uma guerreira impetuosa, pronta 
para livrar seus irmãos da tirania dos homens brancos. Como 
sinal dessa constante companhia, Iansã permitiu que Dandara 
manifestasse, quando necessário, uma fração do seu poder 
sobrenatural. Assim, certamente jamais esqueceria de sua 
missão.
 • 19 •
• 20 •
2. A CURA DE BAYÔ
 • 21 •
Desde que fora encontrada na mata por Bayô, Dandara 
nutria por Palmares um sentimento cada vez mais mágico que 
se intensificava à medida que crescia, dia após dia criando 
raízes no quilombo e espalhando seus braços como galhos que 
abarcavam cada cantinho daquele lugar.
Dandara gostava de conhecer todas as pessoas por seus 
nomes, se interessava por suas vidas e dedicava muitas horas 
para ouvir as histórias que tinham para contar, fossem elas 
histórias de fugas ou pequenos relatos rotineiros. Conhecia 
todos quase tão bem quanto conhecia cada lugar do quilombo, 
os terrenos de plantio e as áreas mais seguras para caçar. 
Ao começar do dia, Dandara esperava que Bayô entrasse 
na palhoça lhe chamando, insistindo para que despertasse, 
mesmo que já estivesse acordada há muitas horas, revirando-
se na esteira e maquinando o que faria naquele dia enquanto 
fingia sonhar. Encontrava uma estranha satisfação nesse ato, 
percebendo que conseguia se desvencilhar das tarefas que 
deveria cumprir ou, pelo menos, atrasar um pouquinho a 
execução das obrigações. 
De todos os afazeres que lhe eram designados, o que 
mais a angustiava era o preparo da comida. Dandara se 
sentia sufocada pelos vapores dos alimentos e entediada pelo 
desfecho sempre previsível daquelas refeições. "Isso é muito 
sem emoção", queixava-se para Bayô, esticando os olhos no 
sentido da clareira, tentando enxergar através das árvores para 
observar os guerreiros em treinamento.
- Você precisa aprender a cozinhar, menina. - Diziam as 
• 22 •
mulheres com olhares de reprovação. 
Dandara revirava os olhos e bufava, coçava as canelas 
e colocava as mãos debaixo do queixo. Quando começava a 
sentir vontade de chorar, atormentada pelos minutos que não 
se passavam, inventava que precisava pegar algo na palhoça 
ou fazer xixi, mas nunca voltava. Depois de muito apresentar 
ideias diferentes para que não precisasse aprender a preparar 
as refeições, as mulheres deixaram de se importar. "Dandara 
não tem jeito", diziam para as outras meninas, como em uma 
fábula de advertência. 
Mas Dandara levava jeito para aprender capoeira e falar 
sobre batalhas. Não era incomum que fosse encontrada na 
espreita, se escondendo atrás de rochas altas, observando os 
homens forjando armas e traçando planos para a libertação de 
pessoas escravizadas.
De tanto insistir com sua presença discreta, os guerreiros 
logo passaram a aceitar a participação de Dandara de forma 
menos disfarçada. Permitiam que a garota assistisse o preparo 
das batalhas e lhe ensinavam, pouco a pouco, tudo o que sabiam. 
Bayô, no entanto, se preocupava com a menina da mesma forma 
que uma mãe se preocuparia com sua filha.
- Veja, Bayô! – Dandara entrou na palhoça com a respiração 
disparada e os olhos brilhantes. Nas mãos, exibia duas espadas 
de formato curvado.
- O que é isso, Dandara? 
Bayô olhava atentamente para as espadas nas mãos da 
menina. Em sua mente, mil cenas de guerra e morte já tomavam 
seus sentidos. Não queria ver Dandara em uma situação similar.
- São minhas, Bayô! Fiz na forja, deu um trabalho danado. 
Mas veja como são bonitas! Eu sonhei com elas, sabia? – Disse 
Dandara, orgulhosa.
- Você sonhou? Deixe de conversa, Dandara. Quem te deu 
isso?
 • 23 •
- Já falei, Bayô. Eu que fiz, inspirada em meu sonho. 
Dandara já não estava com o sorriso reluzente de quando 
entrara na palhoça. Desejava profundamente que Bayô aceitasse 
sua vontade de lutar, mas entendia sua preocupação com os 
desfechos cruéis das batalhas. Ela sabia que Bayô temia a derrota 
e a captura, pois não suportaria vê-la escravizada, vendida para 
algum homem branco para viver em uma senzala, amontoada 
com outras pessoas, como se todas fossem bichos doentes. 
Apesar disso, Dandara tentava provar para Bayô que era 
forte o suficiente e que já sabia muitosobre as lutas. Imaginava 
que assim, quando chegasse a idade certa, poderia se juntar aos 
líderes e defender o quilombo enquanto buscavam a liberdade 
de todos os irmãos e irmãs naquela terra. 
- Então tá, Dandara. Então tá. – Bayô finalizou o assunto 
tentando não recair, mais uma vez, em uma discussão sobre os 
papéis que a menina deveria desempenhar naquele momento, 
ao invés de forjar espadas e se intrometer nas estratégias dos 
guerreiros.
Dandara respeitava as orientações de Bayô, mas não existia 
ninguém que pudesse ordená-la a algo, muito menos a uma vida 
de preparação de alimentos e cuidados com crianças. Quando 
não conseguia escapulir pelas matas e era impedida de explorar 
todos os arredores do quilombo, Dandara acabava se resignando 
e ajudando Bayô a trançar palhas. No fundo, apreciava esses 
momentos de conversa e extraía o máximo de conhecimento 
e sabedoria que podia, fazendo muitas indagações e pedindo 
explicações minuciosas de todos os fatos contados por Bayô.
Dandara sabia tudo sobre como tinha sido encontrada. Não 
chamava Bayô de mãe por pura racionalidade, já que pensava 
na memória da mulher que a havia parido. Antes de dormir, 
era comum ficar deitada por muitas horas, tentando desenhar 
em sua mente as feições do rosto de sua mãe e o que poderia 
ter acontecido para justificar seu abandono no meio da mata. 
• 24 •
Pensava que a mulher fugia com ela nos braços, mas ao ouvir 
a aproximação de um capitão do mato, teve a ideia de deixá-la 
adiante e se entregar, pois assim pouparia ao menos a vida de sua 
criança. Na imaginação de Dandara, sua mãe não cogitava que 
ao cair da noite um incêndio fosse tomar conta da mata, então, ao 
saber das notícias do fogo, teria pensado que todo o seu esforço 
fora em vão, sem saber que Bayô encontrara sua filha. Não que 
isso lhe fosse de algum conforto – o sofrimento de sua mãe pelo 
seu suposto fracasso lhe trazia um sentimento de pesar –, mas 
sua criatividade era muito realista e, naquelas circunstâncias, 
essa possibilidade lhe parecia bastante convincente.
Ainda assim, Bayô tratava Dandara como sua filha. 
Jamais poderia esquecer o caminho perfeitamente demarcado 
por onde correra com a garotinha em seu colo, olhando para 
trás a cada três passos que dava. Sempre parava para pensar na 
peculiaridade de Dandara, que nem mesmo naquele momento 
se debulhava em lágrimas; pelo contrário, olhava ao redor com 
interesse e tranquilidade. Não havia dúvidas de que a menina 
era muito especial e de que algo encantado tinha acontecido 
naquele momento; até mesmo a escolha de seu nome parecia 
orientada por algo sobrenatural, pois a palavra simplesmente 
veio à boca de Bayô no momento em que lhe perguntaram como 
se chamaria a menina. Mas era exatamente por isso que Bayô 
desejava manter Dandara por perto: queria desfrutar de todos 
os momentos que tivessem juntas e mantê-la em segurança, 
sempre saudável e feliz, como havia sido encontrada. 
- Dandara, vai ao rio comigo? Preciso apanhar umas ervas 
lá na beirada. – Convidou Bayô, fingindo que o assunto das 
espadas jamais havia sido levantado.
- Prefiro ir praticar capoeira! – Respondeu Dandara.
- Vamos comigo, não quero ir só, o tempo custa a passar 
e o rio é distante.
Mas Dandara saiu correndo palhoça afora, aos risos, 
 • 25 •
escapando do convite. 
• • •
Depois de ter preparado os alimentos na companhia de 
outras mulheres do quilombo, Bayô partiu em busca das ervas 
que só poderia encontrar na beira do rio. Precisava de um bom 
punhado delas para o preparo de chás curativos – em poucos 
dias, vários grupos do quilombo levariam mercadorias para 
trocar por armas com alguns comerciantes de um vilarejo 
próximo, mas a troca era sempre muito arriscada e, por isso, 
não era incomum que algumas pessoas voltassem feridas ou até 
mesmo fossem capturadas. Sabendo disso, Bayô queria deixar 
o máximo de ervas a disposição, para que qualquer tratamento 
que fosse necessário pudesse ser feito com rapidez.
Enquanto descia a serra, Bayô se mantinha atenta para 
qualquer som incomum. Já conhecia os barulhos da natureza, 
os sons dos animais e do vento balançando as plantas, mas 
qualquer estralar diferente era o suficiente para que se 
escondesse, temendo a presença de homens brancos armados. 
Dentro do território do quilombo, Bayô não precisava 
sentir medo. Em cada entrada, centenas de guerreiros faziam 
a segurança do local, revezando-se na vigília pelas fronteiras. 
No entanto, se Bayô fosse caminhar na direção do rio somente 
pelo território protegido, levaria mais de dois dias para chegar 
até uma margem onde existissem as ervas necessárias. Bayô 
conhecia outro caminho bem mais curto, mas que ficava em 
um local vulnerável, escondido por grandes pedras e árvores 
altas. Apesar de temerosa, Bayô nunca tinha passado por uma 
situação de perigo naquele lugar e o tempo poupado lhe parecia 
valer a pena. 
Quando finalmente acabou de descer a serra com pressa, 
evitando pisar onde o solo poderia desmoronar, Bayô chegou 
• 26 •
na beira do rio, onde se agachou para lavar o rosto. Sentia 
calor e seus olhos ardiam por causa do suor. “Vou só pegar as 
ervas e sair daqui”, pensava repetidamente, como se pudesse 
se esquecer dos próximos passos. Se Dandara estivesse com 
ela, seria mais fácil desempenhar aquela tarefa, já que a garota 
ficaria alerta, olhando para todos os lados, pronta para avisar 
Bayô sobre qualquer movimento suspeito. Como estava sozinha, 
precisava dividir sua atenção.
Mas, a cerca de cem metros, um capitão do mato se 
aproximava vagarosamente, com a arma carregada, pronto 
para atacá-la. Sua intenção, como uma fera preparada para dar 
o bote, era surpreendê-la no momento em que se virasse para 
o outro lado, onde as ervas cresciam vigorosas. Por descuido, 
no entanto, o homem acabou tropeçando; o som de seu corpo 
caindo ao chão atraiu o olhar assustado de Bayô, que logo 
começou a correr.
- Não adianta fugir! – Gritou o capitão do mato.
Por reflexo, apontou a arma carregada para Bayô, que 
fugia desesperada. O estrondo do tiro espantou vários pássaros 
e ecoou pelo rio. 
- Aaaaahhh! – Bayô sentiu a bala invadir seu corpo, 
rasgando sua carne.
A dor era tão forte que penumbrava seus sentidos. 
Subitamente, Bayô não conseguia enxergar, escutar direito ou 
sequer murmurar outro gemido de sofrimento. Cada vez que um 
dos seus pés encostava no chão, enquanto tentava correr o mais 
rápido que podia, a dor latejava ainda mais intensa. Naquela 
situação, não fugir não era uma opção; sabia que se deixasse o 
ferimento lhe dominar, acabaria capturada e seria levada para 
a senzala mais próxima - isso se conseguisse sobreviver! Tinha 
que correr, mesmo que gastasse tudo o que lhe restava de força, 
pois somente no quilombo teria alguma esperança.
O capitão o mato não conhecia aquela terra e não sabia 
 • 27 •
de seus atalhos. Mesmo estando em vantagem, por não ter 
nenhum buraco de bala provocando dores agudas, o homem 
tinha dificuldade para acompanhar Bayô, que se enfiava por 
espaços de difícil acesso e usava árvores como aliadas, não 
como obstáculos a transpor. Se não estivesse baleada, Bayô 
certamente conseguiria fugir com destreza, mas nem seu 
ferimento lhe impedia de provar sua habilidade e familiaridade 
com a mata, que conhecia detalhadamente. A intimidade com a 
natureza foi, afinal, a salvação de Bayô – o homem havia ficado 
para trás. 
• • •
Bayô conseguiu chegar até a fronteira guardada pelos 
guerreiros fazendo um esforço para além de suas capacidades 
humanas. Desabou no chão no exato momento em que conseguiu 
atrair o olhar dos seus companheiros de quilombo e logo foi 
socorrida, carregada até a sua palhoça, onde Dandara admirava 
suas espadas recém forjadas.
- Bayô! 
O grito da menina saiu estridente. Bayô debilitada, com 
todas as roupas molhadas de sangue, foi uma imagem muito 
mais chocante do que poderia explicar. A medida que ouvia 
os murmúrios da mulher, que tentava contar o ocorrido com 
extrema dificuldade, Dandara se sentiapesada pela culpa. 
As mulheres se misturavam em mil atos diferentes, 
limpando a ferida, trocando as roupas de Bayô, fazendo de sua 
esteira o mais confortável possível e trazendo água para que 
ela pudesse beber. Dandara, por outro lado, permanecia em pé, 
congelada, com a boca imóvel após gritar o nome de Bayô. 
- Não consigo achar a bala! Está perdida dentro dela! - 
Exclamou uma das mulheres, com expressão de agonia.
- E não temos a erva curativa, foi exatamente para buscá-
• 28 •
la que Bayô foi ao rio. – Disse outra, em tom de lamento.
- O que fazemos agora? Aquele porco pode ainda estar 
lá! Não podemos ir neste momento, é muito arriscado. – Falou 
uma terceira, mordendo os lábios de raiva.
- E mesmo com a erva as chances seriam poucas, a não 
ser que consigamos retirar a bala.
- Temos que começar com alguma coisa. Vamos ao 
amanhecer pegar a erva. Que nossa irmã tenha força até lá.
As mulheres saíram cabisbaixas da palhoça. Já tinham feito 
por Bayô tudo o que poderiam; somente a erva proporcionaria 
a próxima etapa dos cuidados, mas naquele momento ninguém 
poderia colher um punhado que fosse. Ainda que os guerreiros 
se deslocassem até o rio, no exato local onde Bayô havia sido 
atacada, todos temiam uma armadilha e desconfiavam de planos 
de invasão. Pelo caminho mais seguro, dois dias de viagem 
seriam necessários. A única opção seria aguardar o amanhecer, 
espalhar a guarda por toda a fronteira e contar com o auxílio 
de outros guerreiros para apanhar as ervas pelo caminho mais 
curto e desassistido. 
Dandara estava sozinha na palhoça com Bayô; tinha se 
voluntariado para ficar alerta, cuidando da mulher que havia 
lhe resgatado mesmo num momento de tanto temor. A noite 
caía e Bayô parecia piorar a cada minuto, ardendo em febre e 
revirando os olhos. Preocupada, Dandara não conseguia dormir, 
se remexia no chão e levantava insistentemente para averiguar 
o estado de Bayô. Aos prantos, a menina dizia para si mesma 
que tudo aquilo era sua culpa; chorava para que as horas fossem 
adiantadas e pela sobrevivência de Bayô. A manhã precisava 
chegar, mas havia ainda muitas horas até que o sol iluminasse 
o céu de Palmares.
- Bayô, me perdoe. Se eu tivesse te acompanhado isso não 
teria acontecido...
Sentindo seu corpo pesado e seus olhos se fecharem, a 
 • 29 •
garota caiu para trás, como em um desmaio abrupto. Sua 
cabeça fez um barulho grave no chão de terra batida e sua mente 
foi preenchida por raios vermelhos, que pouco a pouco iam 
diminuindo e revelando uma cena de um sonho; nele, Dandara 
saia da palhoça e corria pela serra, traçando um caminho seguro, 
porém escuro. Ao final da caminhada, a menina avistava uma 
grande quantidade de ervas que cresciam na beira do rio. “São 
elas!”, gritou em seu pensamento.
• • •
Dandara se sentia determinada e corajosa. Sabia do risco 
que corria ao se aventurar, sozinha, em uma área desprotegida 
e que há pouco tempo contava com a presença de um capitão do 
mato. Concordava com as demais pessoas do quilombo: ir até lá 
sem o reforço dos guerreiros e sem um plano de proteção para 
as fronteiras era uma imprudência; mas, ao mesmo tempo, se 
questionava se não era exagerado demais o crédito que davam ao 
capitão do mato – afinal, ele poderia estar sozinho, poderia ter 
aparecido naquela região somente para beber água e descansar 
e talvez nem soubesse que serra acima estava Palmares. Para 
ela, essa possibilidade já era bastante encorajadora.
No entanto, para conseguir chegar até o rio, precisava 
despistar também os guerreiros que montavam guarda em 
todas as saídas do quilombo. As imagens de sua visão ainda 
estavam vivas em sua mente e indicavam trechos por onde 
deveria passar, de modo que não chamasse qualquer atenção. 
Dandara conseguiu ultrapassar todas as etapas de seu caminho 
e logo descia a serra a passos largos.
Cada folhinha que estralava debaixo dos seus pés lhe 
provocava um calafrio. Pensava em Bayô e no estado triste em 
que se encontrava. “Como deve doer ter uma bala cravada nas 
costas”, lamentava. Além disso, Dandara se preocupava com 
• 30 •
o tempo que Bayô tinha restante. “O ferimento é bem fundo e 
ela perdeu bastante sangue”, pensava. Por mais que estivesse 
convicta de que as ervas ajudariam, a garota questionava 
a eficácia das plantas numa situação daquela gravidade. Já 
tinha visto muitos guerreiros padecendo após serem atingidos 
nas batalhas e muitas dessas enfermidades eram menos 
ameaçadoras do que o ferimento de Bayô – em seu caso, nem 
sequer conseguiam localizar a bala.
- Estão ali! – Dandara deixou a voz escapar e imediatamente 
tapou a boca com as mãos.
As ervas repousavam tranquilas na margem do rio. 
Naquele momento, essa era a missão que Dandara precisava 
completar. Ajudaria Bayô e jamais rejeitaria um pedido de ajuda 
seu; agora, sempre que Bayô chamasse, ela iria cumprir tarefas 
pelas matas, buscar água e ervas e preparar os alimentos do dia. 
Daria um jeito de unir esses afazeres com seu desejo de batalha, 
encontraria uma forma de treinar capoeira, aprender a forjar e 
manusear armas e participar das reuniões dos guerreiros. “Eu 
dou um jeito”, tentava se convencer, enquanto subia a serra o 
mais rápido que podia, agarrando firmemente em suas mãos 
um punhado da planta curativa, como se sua vida dependesse 
disso.
Quando chegou na fronteira, quase foi atacada por um 
dos guerreiros que estava alerta a qualquer barulho estranho. 
Dandara se jogou ao chão.
- Sou eu, Dandara! Eu fui pegar a erva para salvar Bayô!
As pessoas do quilombo mal conseguiam acreditar que 
uma garotinha de nove anos tinha realizado aquele feito – 
ainda mais com a escuridão da noite. Todos seguiam Dandara 
curiosamente até a palhoça, onde Bayô se debatia em sofrimento.
A menina preparava as ervas e sussurrava palavras 
sagradas, assim como tinha aprendido com Bayô. Pressionando 
a massa verde na ferida das costas da mulher, Dandara mantinha 
 • 31 •
os olhos fechados, sentindo seu rosto molhado pelas lágrimas 
salgadas que escorriam sem parar. No meio de sua pouca 
esperança, uma nova imagem foi se formando em sua mente: 
dessa vez, Dandara via seus próprios dedos, pequeninos, finos 
e ágeis, tocando ao redor do buraco da bala e arriscando um 
mergulho na carne de Bayô. 
Para o choque daqueles que assistiam a cena dentro da 
palhoça – e interesse dos que estavam do lado de fora – Dandara 
estava, de fato, movendo suas mãos e reproduzindo tudo aquilo 
que via nas imagens misteriosas de sua mente. Bayô urrava 
de dor, no máximo desespero que conseguia expressar em seu 
estado inconsciente, enquanto Dandara enfiava seu dedinho 
indicador bem fundo na carne machucada. 
- Ela encontrou a bala! – Gritou um dos homens presentes, 
completamente impressionado.
Muitos exultaram com satisfação e expectativa. Dandara 
continuava em seu transe, agora lavando a ferida com o líquido 
que pingava das ervas amassadas. 
- Meus olhos estão vendo coisas ou o buraco está mesmo 
menor?! – Indagou uma mulher. 
Todos falavam ao mesmo tempo e diziam que aquilo 
não era natural, só podia ser obra de algum ser espiritual. 
Lentamente, Dandara abria os olhos e se dava conta do que 
estava acontecendo. Tão impressionada quanto as outras 
pessoas, a menina levou a mão até a testa de Bayô e constatou 
que já não tinha mais febre. Emocionada, suspirou de alívio.
• 32 •
 • 33 •
3. O CAVALO ROUBADO
• 34 •
Após Bayô chegar tão perto da morte, Dandara passou 
a acompanhá-la nos afazeres para além do quilombo. Não 
gostava da maioria das tarefas que desempenhava, mas havia 
atingido um grau de resignação que a ajudava a encontrar 
diversão e aventura em muitos desses trabalhos. Aproveitava 
especialmente o dia de levar os alimentos para as matas.
Uma vez por semana, Dandara caminhava com Bayô e 
algumas outras mulheres deixando refeições espalhadas por 
locais estratégicos da floresta; cada porção que era presa nos 
altos galhos das árvores era uma forma de auxiliar as pessoas que 
fugiam da escravidão, seja porqueo alimento lhes restauraria 
alguma energia e ajudaria seus corpos a correr e fugir, seja 
porque a presença das refeições indicaria que o quilombo não 
estava tão longe assim. 
Dandara tinha aprendido que cada papel tinha a sua 
importância na manutenção e defesa de Palmares. Sem que 
alguém cozinhasse alimentos fortes, os guerreiros não poderiam 
lutar; e sem que alguém fosse buscar as ervas na beira do rio, uma 
quantidade muito maior de pessoas acabaria morrendo. Além 
disso, a menina havia entendido que essas tarefas não eram 
fáceis ou livres de perigo – o risco de morte que Bayô correra e 
a cautela que todo o quilombo mostrara antes de voltar ao local 
do ataque eram provas de que os papéis designados às mulheres 
não eram frívolos. Embora Dandara preferisse empunhar suas 
espadas, lutar capoeira e sonhar com a liderança das batalhas, 
alguma maturidade já fazia morada em sua mente. 
 • 35 •
- Bayô, vamos! As outras estão saindo! 
Dandara estava apressada, plantada na entrada da palhoça 
cheia de ansiedade; naquele dia, levariam os alimentos para 
uma área mais próxima das fazendas onde muitos irmãos e 
irmãs escravizados eram forçados a viver. Seria o mais próximo 
que Dandara poderia chegar naquela idade. 
- Você precisa se comportar, ouviu? – Bayô tinha olhos 
desconfiados.
A empolgação de Dandara era motivo de preocupação para 
Bayô, que conhecia a menina tão bem. Por mais que soubesse 
dos feitos incríveis realizados por Dandara, como o fato de ter 
ido buscar as ervas sozinha na escuridão da noite, Bayô não 
podia deixar de pensar que tudo era questão de sorte. 
- Você pegou as cordas? – Perguntou Bayô, saindo da 
palhoça.
- Peguei, estão aqui. – Respondeu a menina sorrindo.
Assim que saíram do quilombo, Dandara começou a 
explorar todos os cantos da mata com seus olhos em busca de 
algo interessante, de algum objeto caído ou indício de que alguém 
tinha passado por ali. Gostava de criar histórias em sua mente, 
imaginando quem poderia ter pisado naquele monte de folhas 
e o que fazia naquele lugar; talvez uma mulher despistando um 
capitão do mato, pisando levemente no chão coberto de folhas 
ainda verdes. “E se ela tivesse uma arma?”, Dandara fantasiava. 
Queria que todas as mulheres fossem guerreiras, assim como 
ela almejava ser. 
Dandara vivia na constante expectativa de provar sua 
coragem e valor para as batalhas. Tinha a sensação de que os 
guerreiros a aceitavam por perto somente porque era criança 
e não podia, de fato, se arriscar nas lutas pesadas. Mas não 
parava de se questionar se, quando crescesse e tivesse idade 
suficiente, ainda poderia se juntar a eles. 
A menina tinha percebido que algo havia mudado depois 
• 36 •
do acontecimento com Bayô: as pessoas olhavam para ela 
de maneira diferente, parecendo intrigadas. Os homens que 
guardavam as fronteiras perguntavam muitas vezes como ela 
havia conseguido passar despercebida e sem produzir qualquer 
som suspeito; ela os ajudou mostrando o caminho que fez, 
revelando uma pequena deficiência na guarda de Palmares – o 
suficiente para que escapulisse. 
Dandara praticava o manejo das espadas diariamente. 
Às vezes acabava derrubando-as no chão e prontamente as 
apanhava, olhando para os lados, com medo de que alguém 
tivesse percebido. Porém, gostava de pensar que tinha apenas 
nove anos e que, com essa idade, nem mesmo os garotos que já 
eram treinados desde cedo possuíam tanto talento para a luta. 
Quando Dandara saía com as mulheres do quilombo, 
encarava a atividade como uma oportunidade para criar 
cenários e situações diversas, onde ela sempre se tornava a 
heroína vencedora.
Naquele dia, Dandara andava com as mãos livres, 
balançando os braços alegremente, pouco a pouco caminhando 
mais à frente das demais mulheres. Bayô já estava acostumada 
com isso, apenas lhe recomendava que não se afastasse muito 
e fosse cuidadosa para não fazer barulho. No entanto, Dandara 
sempre se distanciava um pouco mais do que deveria.
• • •
“Vou subir na árvore para ver a mata de cima”, pensou 
Dandara enquanto corria. Precisou de pouco impulso para se 
agarrar ao tronco e fazer as pernas de alavanca, alcançando o 
galho mais grosso e alto que estava disponível.
Já estava longe das mulheres há muitos minutos, mas 
não se atentava para a distância ou para o tempo que passava 
sozinha conhecendo aquela nova área da floresta. Nem mesmo 
 • 37 •
pensava em Bayô, se estaria preocupada ou em segurança; sua 
vontade de desbravar era imensa, como um instinto animal 
que não pode ser reprimido. A coragem crescia junto com seu 
ímpeto de conhecer e encontrar alguma coisa interessante, algo 
que pudesse levar consigo de volta para Palmares como uma 
recompensa por sua ousadia.
Do alto da árvore, seus olhos reluziam como duas pedras 
preciosas. Conseguia ver um pedaço do rio a poucos metros 
dali, além de trechos onde a terra parecia formar uma trilha 
muito pisada por pessoas. Sentou-se balançando as pernas e 
voltou a imaginar situações emocionantes para aquele cenário, 
quando foi surpreendida pelo barulho de um cavalo trotando. 
- Quem será?! – Disse baixinho, curiosa.
Logo um homem apareceu na margem do rio, amarrando 
o animal no tronco fino de uma árvore. “Um capitão do mato!”, 
exclamou a garota em pensamento. Dandara conhecia os capitães 
do mato pelas roupas que usavam e pela postura pretensiosa que 
exibiam. Nutria por eles uma profunda revolta; não entendia 
como alguém poderia fazer tanta questão de capturar seres 
humanos e dá-los para senhores cruéis, como se fossem objetos 
perdidos durante uma viagem. 
Dandara percebia que capitães do mato estavam presentes 
em muitos relatos das pessoas que chegavam a Palmares, muitas 
vezes agindo com brutalidade e maldade, amarrando homens 
e mulheres e os obrigando a acompanhar o ritmo acelerado 
do cavalo sem nenhum descanso e nem sequer um pouco de 
água. Seu desejo era de se vingar em nome de Bayô e de todos 
os outros irmãos do quilombo que já tinham sido surrados e 
xingados por um homem daqueles.
- Ah, eu vou mostrar só uma coisa! – Murmurou a menina, 
descendo agilmente da árvore de onde observava a floresta.
Dandara quase flutuava pelo chão da mata. No seu peito, 
o coração pulava e batia como um tambor furioso e ritualístico, 
• 38 •
perfeitamente sincronizado com seus passos, em harmonia com 
os movimentos do seu corpo. Tinha deixado suas espadas na 
palhoça, mas para desenrolar o que imaginava, não precisaria 
se aproximar demais. 
Por trás das árvores que emolduravam o rio, Dandara se 
escondia e observava os movimentos do homem com atenção. 
Primeiro, esperou que ele se afastasse um pouco do cavalo, 
chegando mais próximo da água. Dandara calculou a distância 
e concluiu que precisaria de velocidade. “É agora!”, decidiu. 
- Epa! – Gritou Dandara.
Seu grito fez com que o homem se assustasse e se 
desequilibrasse, caindo sentado na beira do rio. Antes que 
pudesse se levantar, a menina já estava montada no cavalo, que 
reagia com tranquilidade sem que Dandara precisasse acalmá-
lo. Apenas bateu com os calcanhares nas laterais do corpo do 
animal e saiu galopando apressada, sem olhar para trás. 
Controlava o cavalo puxando as rédeas rapidamente 
para os lados, como se ensinasse um caminho mais seguro, 
em movimentos alternados; se o capitão do mato tentasse 
atirar, desse modo tinha mais chances de não ser atingida. Seu 
pensamento corria tão veloz quanto as pernas do cavalo e, por 
dentro, Dandara se sentia gloriosa. Por sua causa, o homem teria 
que caminhar a pé, certamente com prejuízo por ter perdido o 
animal. Era pouco, mas ensinava uma lição: gente ruim deve 
ficar alerta. 
• • •
O retorno de Dandara foi um alívio para Bayô, mas 
sua presença trazia um novo elemento surpreendente: uma 
montaria.
- Dandara! Menina! – Bayô mal conseguia falar – Onde 
 • 39 •
você pegou esse cavalo?! 
Dandara sorria e olhava para as outras mulheres como 
quem prova sua audácia e valentia. Estava triunfante e orgulhosa. 
Tinha vivido uma verdadeiraaventura e, agora, depois de ter 
deixado o capitão do mato para trás, achava que não havia se 
arriscado tanto assim. “Foi fácil”, pensava cheia de si. 
- Menina, responde! Onde você conseguiu esse cavalo?! – 
Bayô insistiu.
- Eu roubei de um capitão do mato. Vocês tinham que ver 
a cara dele!
A risada de Dandara perfumava o ar, enquanto a menina 
contava, com riqueza de detalhes, tudo o que havia feito. As 
mulheres escutavam impressionadas, assentindo com a cabeça 
e acompanhando Dandara em suas risadas. Bayô, por outro lado, 
permanecia séria, num misto de preocupação e choque. “Como 
essa menina conseguiu isso?”, perguntava a si em silêncio. 
Aquele episódio parecia lhe esfregar na cara que Dandara 
não era mais um bebê e que ela tinha suas próprias vontades 
e fazia suas próprias loucuras – até o momento, loucuras que 
compensavam, que davam certo. Talvez o destino daquela 
garotinha fosse mesmo a batalha pela liberdade. Mesmo ainda 
tão pequena, já detinha uma postura heroica e imponente. 
- Vamos, temos que voltar. Ninguém sabe se esse homem 
esperava companhia de outros. Não queremos que eles venham 
atrás de nós. 
A interrupção de Bayô surpreendeu Dandara, que preferiu 
permanecer em silêncio. Mas, para mostrar que acatava sua 
direção, a menina desceu do cavalo e foi caminhando um pouco 
atrás, chutando pedrinhas e alisando a crina do animal com 
carinho. Dandara sabia que, quando chegasse ao quilombo, 
seria rodeada por curiosos e, mais uma vez, explicaria seu 
feito vaidosamente, respondendo às perguntas dos guerreiros e 
ouvindo palavras de admiração das outras crianças. Estava tão 
• 40 •
absorta em seus pensamentos satisfeitos, que não ouviu Bayô 
falando.
- Dandara?! Ei!
Foram necessários três chamados para que Dandara 
reagisse.
- Sim, Bayô? 
- Você é uma menina especial... não se esqueça disso.
As duas trocaram olhares sorridentes.
 • 41 •
• 42 •
4. O ENCONTRO COM 
IANSÃ
 • 43 •
Alguns raios de sol entravam pela palhoça quando 
Dandara abriu os olhos. Deitada em sua esteira, a menina se 
esticava e rolava para os lados com preguiça de se levantar. 
Bayô já estava de pé, reunindo alguns utensílios para cozinhar, 
enquanto cantarolava baixinho. 
- Bayô, hoje os guerreiros vão sair em viagem, sabia?
A voz de Dandara assustou Bayô, que não esperava por 
aquelas palavras, justamente aquelas, nos primeiros momentos 
da manhã. Ela sabia que naquele dia alguns guerreiros viajariam 
até a cidade do litoral e que tinham sido convocados para uma 
espécie de negociação com os homens brancos, mas não tinha 
certeza de que aquela era uma boa ideia. No fundo, achava 
que nada de bom poderia vir dos homens brancos; eles não se 
interessavam realmente pela luta de Palmares, não respeitavam 
o seu povo e nem tinham qualquer intenção de libertar quem 
estava escravizado. Tudo o que queriam era que os guerreiros 
entregassem as armas de fogo.
- Sim, Dandara. Eu sei. – A resposta de Bayô saiu 
desanimada.
- Eu queria ir junto! Queria aprender também fora do 
quilombo!
Dandara entendia que ainda não podia se juntar aos 
guerreiros. Em breve, sim. Já tinha mais confiança de que 
seria aceita para batalhar e somar na defesa de Palmares. Já 
se imaginava como líder de muitos, colocando em prática suas 
ideias elaboradas, mostrando sua coragem impetuosa. Somente 
por isso, por essa certeza, conseguia esperar pelo momento 
• 44 •
certo. 
- Bayô, hoje eu não tenho tarefas e quero passear pela 
mata. – Disse Dandara em tom de pedido.
- Desde que você não ultrapasse as fronteiras. – Permitiu 
Bayô. 
Num pulo, a garota se levantou e correu para lhe dar 
um abraço. A relação entre elas estava cada vez melhor e mais 
tranquila; já não discutiam pelos mesmos motivos e nem se 
incomodavam com as diferenças que cultivavam. Bayô havia 
compreendido que a menina tinha uma missão e que jamais 
poderia aprisionar seu espírito livre e rebelde. Dandara, por sua 
vez, sentia gratidão e amor pela mulher que era sua cuidadora. 
No fundo, sentia medo do dia em que a velhice próxima levaria 
Bayô para o mundo das boas almas. Percebia suas rugas e seu 
cansaço diário, sabendo que o dia se aproximava. O coração de 
Dandara então pesava.
- Vou te ajudar a preparar a comida e depois eu saio.
Bayô concordou, satisfeita.
• • •
A natureza de Palmares era mais vigorosa e deslumbrante 
do que em qualquer outra área daquela região. Dandara se 
convencia de que isso acontecia porque em Palmares existia 
felicidade verdadeira, algo que só era possível com a presença 
da liberdade plena. Embora todas as pessoas tivessem funções a 
desempenhar e responsabilidades a cumprir, o trabalho que era 
realizado não se tratava de uma imposição tirânica que geraria 
riquezas para poucos; tudo era compartilhado e cultivado em 
harmonia. A natureza, então, agradecia.
Quanto mais Dandara passeava pelo quilombo, mais 
sentia um renovo de suas energias. Dandara amava conhecer 
minuciosamente as redondezas e até elegeu seus lugares 
 • 45 •
favoritos: a clareira onde praticava capoeira e a pedreira que 
ficava próxima de um dos lados da fronteira. Na clareira, 
Dandara gostava da companhia, dos momentos de cumplicidade 
e da ajuda mútua que ofereciam uns aos outros para aperfeiçoar 
a luta de modo eficiente; mas, na pedreira, o seu maior prazer 
era a solidão. Lá, bem alto, podia conversar consigo e sentir 
uma ligação profunda com Palmares. A pedreira era seu cordão 
umbilical com o quilombo.
O sol já estava no meio do céu, muito quente, mas Dandara 
não se importava com o calor. Quando caía uma tempestade, ela 
se sentia pertencente aos céus revoltosos, muito embora tivesse 
aprendido a valorizar o sol como parte necessária da vida. Era 
o sol que garantia boas colheitas e, apesar de admirar muito 
mais a natureza rebelde, notava a beleza das cores ressaltadas 
pela luz estridente. 
Quando chegou à pedreira, o vento soprava leve e 
melodioso. Dandara sentou-se com as pernas separadas e 
esticadas, jogando o peso do corpo nos seus braços, que lhe 
serviam de apoio atrás. Com os olhos fechados, aproveitava cada 
segundo da brisa intercalada com uma ventania refrescante. 
Perguntava-se o que poderia acontecer naquele dia, quando os 
guerreiros partiriam para longe e, quem sabe, aceitariam um 
acordo indicado pela liderança. Ouvia o que Bayô comentava 
com outras mulheres e se esforçava para compreender todas 
as circunstâncias, mas não conseguia deixar de pensar que 
qualquer acordo seria um enorme erro.
- Se lutamos por liberdade, por que vamos manter a paz 
com as pessoas que fazem nossos irmãos de escravos? Ou todos 
são livres ou ninguém é. – Questionou Dandara, apreciando o 
eco que fez ondas de sua voz abismo abaixo.
Achava que estava sozinha. Tinha até mesmo um pouco 
de ciúmes daquele lugar que havia escolhido como seu refúgio, 
porque raramente recebia visitas. Afinal, muitas pessoas sentem 
• 46 •
medo quando ficam diante de grandes alturas. Apenas Bayô 
sempre dava um jeitinho de aparecer sorrateiramente pelas 
redondezas da pedreira, só para ter certeza de que Dandara 
estava por lá e não tinha se metido em nenhum perigo. Aquele 
dia não foi exceção; Bayô acabava de chegar quando Dandara 
externou seus pensamentos. Ao escutar, sentiu uma ponta de 
orgulho. 
Bayô sempre procurava por sinais que apontassem algo 
de mais extraordinário sobre Dandara. Teimosa como era, 
esquecia do contexto em que a menina apareceu, do caminho 
magicamente separado do fogo e da forma sobrenatural com a 
qual tinha sido curada pelas mãozinhas inocentes da menina. 
No fundo, a confirmação de que precisava era a de que Dandara 
sobreviveria, de que saberia como guerrear e não acabaria 
morrendo em uma senzala cheia de correntes e tristezas. Bayô 
nutria pela garota um amor muito profundo e jamais teria paz 
sem saber que ela estaria segura. “Se eu ao menos tivesse uma 
confirmação”, suplicou em pensamento, desejando que Dandara 
lhe desse mais uma prova grandiosa de suas habilidades.
Um pedido sincero é uma energiarara, pois muitas vezes 
não é verbalizado da forma como deveria. Mas a intenção do 
coração que almeja pode ser o suficiente para concretizar o 
pedido exatamente da maneira necessária. Naquele dia, o pedido 
de Bayô havia sido ouvido por Iansã, que a tudo observava. 
Desde que deixara Dandara na mata para ser encontrada 
por Bayô, Iansã assistia o crescimento de sua filha e guiava seus 
caminhos com cuidado. Enviava-lhe sonhos, ideias mirabolantes 
e soluções inteligentes para os problemas do cotidiano; 
alimentava sua imaginação com cenários maravilhosos e 
batalhas épicas de onde Dandara saía triunfante, segurando 
nas mãos os grilhões de centenas de pessoas que por ela eram 
libertas. Em momentos de necessidade extrema, como no dia 
em que Bayô fora gravemente ferida, Iansã indicava o caminho 
 • 47 •
e concedia poderes especiais na medida certa. Tudo isso podia 
fazer porque Dandara era ainda uma criança, precisava crescer 
com a convicção de que era capaz e de alguém olharia por 
ela. Certamente o cuidado de Bayô era o suficiente, mas Iansã 
desejava dispensar sobre ambas um presente que durasse por 
muitos anos, apaziguando os corações de Dandara e de Bayô ao 
mesmo tempo.
Antes que Bayô pudesse se virar para retornar ao convívio 
no quilombo, uma poderosa ventania marcou presença na 
pedreira. Todas as árvores balançavam, enquanto dezenas de 
pequenos redemoinhos iam se formando em lugares diferentes, 
levantando um pouco de terra, levando folhas e galhinhos nos 
espirais de poeira. 
Sem demora, o céu começou a mostrar cores vivas em tons 
rosados e avermelhados, que se misturavam e se separavam 
no jogo da ventania. Era um espetáculo maravilhoso. Bayô 
e Dandara estavam atentas, completamente envolvidas. A 
garota, que ficou de pé, abria os braços para sentir na pele a 
sensação penetrante que a natureza lhe ofertava; Bayô, ainda 
discretamente escondida por trás de uma árvore, se agarrava 
ao tronco como se temesse ser levada pelos redemoinhos. De 
repente, uma voz feminina pôde ser ouvida:
- Minha filha, Dandara...
A menina olhou ao redor atônita. “Filha?!”, ela pensou. 
“Ninguém me chama de filha, nem mesmo Bayô!”, disse a si 
mesma. Do outro lado, Bayô enfiava os dedos nos ouvidos, 
tentando limpá-los para escutar novamente a voz misteriosa.
- Dandara, filha do meu ser. Eu sou a sua mãe.
Bayô pensava que aquela voz conseguia ser suave na mesma 
medida em que era dramática. Como um mergulho em águas 
calmas, como o sentimento de se importar verdadeiramente com 
alguém. Seu timbre era encantador, mas imponente. Quem quer 
que fosse a dona daquela voz, deveria ser uma mulher poderosa, 
• 48 •
mas consciente de seu poder – e das responsabilidades que 
coexistem com ele. 
A confusão em que se encontravam Dandara e Bayô logo 
foi interrompida. Em poucos segundos, a imagem de Iansã foi 
se formando na frente da pedreira, um pouco acima de onde 
Dandara estava. As cores vivas e os ventos intensos formavam as 
roupas vermelhas, os cabelos e a espada da orixá, que logo havia 
se tornado tão física e palpável quanto qualquer ser humano 
que vivia em Palmares. Mas sua infinita beleza e majestade 
deixavam evidentes que não era somente uma pessoa: era uma 
deusa.
- Eu sou Iansã, deusa das tempestades. Dandara, você é 
minha criação. Eu te criei do meu ser e te enviei para esta terra, 
para que traga liberdade aos meus filhos. 
Dandara tinha os olhos arregalados de tal maneira que não 
conseguia piscar. Tinha a impressão de que seu coração poderia 
sair pela boca a qualquer momento; suas pernas tremiam, suas 
mãos suavam. Não sabia se sentia temor ou encantamento. 
Deveria falar? Existiria alguma resposta apropriada para uma 
deusa daquela magnitude? Sua mente rodopiava num turbilhão 
de dúvidas e exclamações.
- Você me criou? Você é a minha mãe? – As palavras 
escaparam atropeladas e gaguejadas.
- Sou a sua mãe porque te criei de mim, de uma forma 
divina. Bayô também é sua mãe. – Disse Iansã com um sorriso 
nos lábios.
Bayô foi surpreendida pela afirmação da orixá. Sentia-
se mãe de Dandara, isso era um fato inegável e de total 
conhecimento de todas as pessoas em Palmares, mas ouvir seu 
nome sendo dito por uma deusa, em circunstâncias tão únicas, 
era imensamente acalentador. Alegrava-se por ser mãe daquela 
garotinha tempestuosa. “Tão tempestuosa quanto a deusa que 
lhe criou”, pensou e achou graça de sua constatação repentina.
 • 49 •
- Estou aqui para dizer que guio seus passos a todo 
instante. Criei-te com uma missão, a mesma missão que arde 
em seu peito e arrebata seus pensamentos desde tão cedo. – 
Iansã continuou.
- A missão de ser guerreira? – Perguntou Dandara, 
contraindo todos os músculos de seu corpo.
- Sim, Dandara. Você será a maior guerreira de quem já 
se teve notícia. Libertará muitas pessoas. O seu nome será uma 
lenda para todas as gerações futuras. 
Naquele instante, Dandara sentia um calor reconfortante 
preenchendo seu peito. Sonhar com as batalhas e com as 
conquistas era algo que lhe trazia felicidade, mas ouvir aquelas 
palavras era muito mais do que podia fantasiar. A presença de 
Iansã estava além de todos os seus desejos mais altos. 
- Minha filha, jamais deixe que o medo, a dúvida ou a 
falta de esperança te dominem. Lembre-se de me chamar em 
momentos de necessidade. Eu estarei com você até o fim.
Pouco a pouco, Iansã foi se dissipando no ar, como folhas 
levadas pelo vento. O céu voltou ao seu azul intenso e a brisa 
fina tomou o lugar da ventania orquestrada. Dandara caiu de 
joelhos, digerindo o que acabara de acontecer. 
- Iansã... – Repetiu o nome, como se tentasse lembrar de 
cada letra em particular.
Bayô corria pela mata com lágrimas de felicidade. Para ela, 
Iansã era uma deusa cheia de bondade que escolhera aparecer 
justo no momento em que mais precisava de uma mensagem 
de segurança. Naquele momento, já não tinha mais dúvidas de 
que Dandara ficaria bem; entendia que até mesmo sua humilde 
existência fazia parte de um plano maior. Agora, sim, podia 
confiar na liberdade vindoura.
• 50 •
 • 51 •
5. O NAVIO NEGREIRO
• 52 •
Com o passar dos anos e o acúmulo de episódios em que 
provara sua coragem, Dandara percebia que era quase uma 
unanimidade em Palmares: as crianças das novas gerações 
cresciam ouvindo histórias de seus feitos, que embalavam suas 
noites e marcavam presença nas conversas empolgadas de quem 
se deslumbrava com seus causos. Os mais velhos não poupavam 
elogios, estavam sempre observando o quanto ela havia crescido 
e como sua transformação em mulher acontecera de maneira 
impressionante. 
De repente, Dandara já não se sentia como aquela garotinha 
que criava situações embaralhadas e vivia se aventurando pela 
mata. Agora Dandara exibia um semblante sério e uma postura 
altiva. Sentia-se segura, consciente de suas capacidades e 
profundamente determinada, focada em sua causa maior.
- Posicione o pé direito mais à frente. 
Dandara ensinava aos guerreiros posições melhores para a 
luta enquanto aguardavam que a reunião da tarde começasse. A 
guerreira exibia os músculos rígidos de sua panturrilha quando 
colocava o peso do seu corpo sobre uma das pernas. 
- E o que posso fazer para não sentir tanta dor durante o 
treino? - Perguntou um dos homens.
- Não há como evitar totalmente a dor, mas se você puxar 
os dedos dos pés para trás, ela vai passar mais rápido. - Dandara 
respondeu.
As recomendações da guerreira logo foram interrompidas 
pela chegada de Zumbi, líder do exército palmarino, que se 
aproximava lentamente, arrastando os pés no chão e levantando 
 • 53 •
um pouco de poeira com seus passos. Por causa de sua presença, 
Dandara cruzou os braços e separou as pernas. Sua expressão 
se tornou fechada, coroada com o queixo levantando em posição 
de questionamento. 
- Temos que discutir nossa guarda. Vamos reposicionar a 
vigilância nas fronteiras.
Zumbi falava sobre estratégias de defesa e maneiras de 
garantir a resistência do quilombo para as próximas tentativas 
de invasão.Os guerreiros se mantinham atentos, mas Dandara 
ouvia a voz de Zumbi como se estivesse debaixo d'água. Não 
queria prestar atenção, se sentia incomodada pelas recorrentes 
conversas a respeito de como garantir a salvaguarda de Palmares, 
sem que nenhuma proposta mais ofensiva fosse colocada em 
discussão.
Dandara queria tirar o exército palmarino da relação difícil 
em que se encontrava contra os homens brancos e suas forças 
bélicas. Na sua percepção, o quilombo era atacado, construía 
sua defesa e resistia; não era invadido nem destruído, mas não 
conseguia avançar. Viviam cercados, sem que conseguissem 
executar planos de libertação efetiva. Algumas dezenas de 
pessoas fugiam das senzalas e outras poucas eram resgatadas 
pelos guerreiros, mas Dandara queria mais. 
Por isso, a reunião daquela tarde estava especialmente 
incômoda. Só mais um monte de estratégias de defesa e 
treinamentos que não se desenrolariam para nenhuma ação 
diferente. Dandara se sentia cansada e almejava mudanças. 
- Vamos ao litoral! – Disse ela em voz alta, ignorando o 
que quer que tivesse sido dito anteriormente.
Zumbi voltou seu olhar para Dandara, aguardando o 
complemento de sua sugestão. Naquele momento seria difícil 
deslocar todos os homens para o litoral da região, pois ainda 
estavam se recuperando de uma última tentativa de invasão. 
Poderiam sofrer uma emboscada no caminho, perder ainda 
• 54 •
mais guerreiros em batalhas e, por isso, talvez nenhum plano 
fosse bom o suficiente para justificar o deslocamento. 
- Podemos invadir um navio e libertar quem vem como 
prisioneiro. – Dandara concluiu.
- Não podemos nos arriscar neste momento. – Zumbi 
tinha uma expressão dura em seu rosto. – Olhe em volta, ainda 
temos homens com ferimentos em recuperação.
- Se enviarmos alguns guerreiros, eu posso assumir a 
liderança nessa missão! 
A insistência de Dandara causava desconforto em Zumbi. 
Para ele, aquele não era o momento de assumir riscos; na última 
batalha contra os soldados brancos, muitos homens palmarinos 
faleceram e muito tempo havia sido necessário para recuperar a 
saúde dos feridos. Zumbi não se sentia preparado para exigir dos 
seus guerreiros que se aventurassem em um plano repentino.
- Não podemos. Não há discussão.
Dandara fechou as mãos e apertou as unhas com força 
em sua carne. Tinha a impressão de que Zumbi agia daquela 
maneira para tentar disfarçar o envolvimento crescente que 
vinham construindo. Há dois dias, conversaram na beira do rio 
e Zumbi confessara sua preocupação com a visão que os outros 
guerreiros poderiam ter da relação entre os dois. “Podem achar 
que lhe dou espaço porque lhe tenho sentimentos”, disse entre 
os dentes, baixinho, quase como se estivesse envergonhado de 
algo. E, para Dandara, deveria realmente se envergonhar! 
 - Quer dizer que não sou uma guerreira boa o suficiente?! 
Só me tornaria líder por seus favores?! – Dandara abandonou a 
conversa explodindo de revolta, sentindo-se ofendida, como se 
sua única função no mundo fosse ser a companheira de Zumbi - 
companheira que jamais seria assumida enquanto se atravesse 
a guerrear. 
Naquela reunião, depois de ter seus planos rejeitados 
com tanta secura, Dandara se sentia mais nervosa do que em 
 • 55 •
qualquer outra situação de sua vida. Sentia-se injustiçada, já 
que sua competência para as batalhas era de conhecimento 
comum; até mesmo Bayô aguardava com imensa expectativa 
pelo dia em que Dandara assumiria a liderança do quilombo. 
As crianças já lhe reverenciavam como se liderasse todas as 
batalhas, enquanto, na realidade, ainda não tinha assumido 
o comando de nenhuma. “Eu não entendo porque Zumbi quer 
impedir minhas estratégias. Como vamos libertar nossos irmãos 
se não ousarmos?”, pensava aborrecida. 
Então, três dias depois de sua explosão de ira e de ter 
seu plano rejeitado sem muitas explicações, Dandara correu 
pelas matas paralelas às estradas, a caminho do litoral. 
Estava completamente sozinha. Nem mesmo o seu cavalo lhe 
fazia companhia; decidira deixá-lo em Palmares, para que 
pudesse sair do quilombo rumo a sua missão sem despertar 
questionamentos. 
Com pressa, preferia correr até chegar perto da exaustão 
e só então parava para repor as energias. A comida era pouca, 
mas o suficiente para a viagem de volta. Bayô, a única que sabia 
de seu objetivo, havia preparado alimentos fortes, que dessem 
a Dandara a sustentação e energia das quais necessitaria
O maior problema da viagem era o seu pensamento inquieto. 
Mesmo quando pegava no sono, tinha sonhos incômodos com 
Zumbi e os outros guerreiros; em seu íntimo, temia que seu 
retorno a Palmares não fosse motivo de celebração, mas uma 
oportunidade para que a removessem das batalhas. Dandara 
não queria assistir o seu maior sonho escorrendo por suas mãos. 
Porém, quanto mais se perturbava com esses pensamentos e 
possibilidades, mais sentia seu corpo esfomeado pela liberdade 
dos que apodreciam nos porões das caravelas. “Preciso que dê 
certo”, confessava em pensamento. 
Dandara teve que correr por muitos dias, pois para chegar 
até o litoral, precisaria arrodear a floresta de modo que não 
• 56 •
saísse da mata até se aproximar do porto. Não podia entrar 
pela cidade, pois algum soldado poderia reconhecê-la; tinha 
que agir com discrição e muito cuidado. A paciência, que sabia 
não ser uma de suas virtudes, seria a maior exigência.
Ao chegar ao porto, percebeu o quanto aquele era um 
lugar imundo e que lhe gerava calafrios. Imaginar que ali eram 
despejados seres humanos à venda trazia um gosto amargo na 
boca; o ácido do estômago borbulhava e voltava pela garganta, 
junto com uma vontade quase incontrolável de vomitar. Dandara 
pensava no terror daquelas pessoas, arrastadas de suas casas, 
empilhadas em navios onde suas vidas eram descartadas como 
lixo. Quando desembarcavam no porto, eram exibidas como 
produtos, avaliadas pelas funções que poderiam desempenhar 
como escravas para as pessoas brancas. Esse terror era algo que 
Dandara fazia questão de nunca esquecer, para que seu ímpeto 
de libertação também não adormecesse. 
• • •
Dandara estava à espreita há pelo menos duas horas, 
escondida atrás de centenas de barris. De vez em quando 
cochilava, mas despertava alarmada quando sua cabeça 
pendia para a frente. Cansada da posição desconfortável, já 
pensava em retornar para a mata, depois tentaria conseguir 
informações sobre as embarcações que poderiam chegar ainda 
naquela semana. Quando levantava para ir embora, avistou 
um navio se aproximando. “Que sorte”, pensou. Um navio que 
chegava no período da noite seria muito mais fácil de invadir, 
já que a escuridão seria sua aliada. No entanto, o pensamento 
de que tudo não passara de sorte não durou muito tempo em 
sua mente, pois a imagem de Iansã pairando acima da pedreira 
de Palmares invadiu suas lembranças. “Nada é somente uma 
questão de sorte”, corrigiu-se.
 • 57 •
Enquanto se aproximava vagarosamente do local onde o 
navio afundaria suas âncoras, Dandara revisava seu plano e as 
diversas variações de sua execução. Já se imaginava vitoriosa, 
retornando para o quilombo com algo que provasse sua 
história, criando assim a inspiração que todos os palmarinos 
necessitavam para se arriscarem, junto com ela, em planos 
mais complexos de libertação. Indignava-se quando pensava 
que em momento algum havia insinuado a derrubada de 
Zumbi; tão somente queria assumir o comando em batalhas e 
localidades separadas, assim, teriam muito mais sucesso em 
suas lutas e objetivos. “Como algo tão fácil de entender pode ser 
tão complicado?”, questionava-se. 
Seus conflitos internos foram obstruídos pela voz rouca 
de um homem branco que gritava autoritariamente na proa do 
navio. Junto a ele, mais três homens desciam para o cais, com 
os braços cheios de sacos pesados, barris e caixotes com armas 
de fogo. Dandara observava atentamente cada movimento, 
ouvindo as instruções repassadas pelo homem que se portava 
como um general. Aos poucos, todos foram se distanciandodo navio, procurando lugares onde pudessem pagar por uma 
refeição. Na entrada, somente um soldado fazia guarda. “Estão 
confiando na madrugada”, Dandara compreendeu.
Rapidamente, Dandara deixou suas coisas escondidas 
entre os barris, decidindo enfrentar sua tarefa apenas com as 
espadas que carregava presas na cintura. Segurando-as com 
firmeza, surpreendeu o soldado por trás, pressionando as duas 
pontas cortantes contra sua nuca.
- Calado. Me leve até o porão. 
O homem olhava para os lados procurando pelo reforço 
distante do qual necessitava naquele momento. Porém, o 
caminho do cais até o porão não era tão longo e Dandara logo 
estava descendo as escadas que a levavam a um local onde 
dezenas de pessoas se amontoavam como sacos de coisas 
• 58 •
apodrecidas. O fedor era insuportável e ardia nas narinas; 
olhando ao redor, Dandara percebeu que todo o chão do porão 
estava abarrotado de excrementos amassados e de sangue. 
Algumas pessoas gemiam, doentes, com seus corpos cobertos 
por feridas inchadas e latejantes de pus. Outras estavam de pé, 
assustadas. 
- Sou Dandara dos Palmares, vim aqui para lhes trazer 
libertação. – Sua voz era grave e pesada, como a tristeza que 
sentia naquele momento.
Embora aquelas pessoas não pudessem entender as 
palavras ditas por Dandara, todas compreenderam que suas 
intenções eram boas. O fato de que a guerreira empurrava o 
soldado e acabava de apanhar cordas ao chão para amarrá-lo, 
também reforçava a impressão favorável. Aproveitando-se da 
situação, um homem deu um passo à frente.
- Sou Kambo. Venho de outro porto, era fugido e fui 
capturado, entregue para o capitão deste navio para que me 
devolvesse ao senhor dessas terras. Por que você está aqui? 
Kambo era um jovem magro e carregava uma expressão 
desolada de desistência. Parecia alguém derrotado, alguém que 
já não queria tentar. Suas palavras foram rápidas, mas tocaram 
Dandara profundamente.
- Eu sou guerreira do quilombo de Palmares. Vim aqui 
para entregar o controle deste navio nas mãos de alguém capaz 
de guiá-lo de volta ao porto de onde saiu. Você fala a língua 
deles? – Perguntou Dandara.
- Apenas um pouco; era a língua de minha mãe. – Kambo 
respondeu.
- Diga-lhes que darei o comando do navio e poderão 
retornar aos seus lares. Pergunte se estão dispostos a tentar, se 
alguém assumirá o comando. 
Kambo levou vários minutos para conseguir expressar 
todas as palavras, mas ouviu algumas respostas em retorno. 
 • 59 •
- Eles perguntam se há armas para que se defendam.
- Sim, alguns caixotes no cais. Solte todos enquanto vou 
buscar.
Dandara se sentiu aliviada quando chegou na superfície 
no navio e viu que o silêncio ainda imperava. Tinha pressa 
para concluir sua missão, pois a qualquer momento os outros 
soldados poderiam retornar. “São muito pesadas, só consigo 
carregar uma por vez”, pensou decepcionada, erguendo uma 
caixa e caminhando o mais rápido que podia de volta ao porão.
- Venham comigo! – Exclamou gesticulando para as 
pessoas que já estavam soltas.
Além de Kambo, dois homens e uma mulher a seguiram, 
lutando contra a desconfiança e o medo que sentiam. Logo 
perceberam que mais ninguém os esperava e que, de fato, 
poderiam se apossar de mais algumas armas, além de caixotes 
com mantimentos e alguns barris de água. 
Dandara estava ardendo em energia, passando seu olhar 
por todo o porto, pedindo a Iansã que lhe ajudasse a liberar o 
navio antes que os brancos retornassem. Como não podia se 
comunicar com aquelas pessoas de outra forma além de gestos, 
apontou para o timão do navio, chacoalhando o braço. Kambo 
interviu, usando as palavras necessárias, enquanto Dandara 
puxava as âncoras. 
Muito tempo já havia corrido e o sol começava a nascer, mas 
o navio finalmente iniciava seus movimentos. Agora, Dandara 
precisava descer, apanhar seus pertences escondidos entre os 
barris empilhados e correr incansavelmente para a mata. Fugir 
em plena luz do dia seria um desafio tremendo, mas àquela 
altura não havia outra escolha. 
- Você vai com eles ou vem comigo, Kambo? – Dandara 
estava ofegante.
- Para Palmares?! 
- Sim! Você vem?!
• 60 •
Kambo pulou do navio como resposta e caiu sonoramente 
no cais, provocando um barulho oco de ossos contra a madeira. 
Dandara veio logo atrás, tirando as espadas da cintura – seu 
temor estava se concretizando: os homens brancos já corriam 
na sua direção.
- Fuja, Kambo. Me espere na mata! – Gritou em alerta.
O rapaz saiu desesperado, tropeçando nos próprios 
pés e derrubando tudo o que estava pela frente. Em nenhum 
momento pensou que poderia ficar e lutar ao lado de Dandara, 
apenas obedeceu ao comando da guerreira e se sentiu grato; 
sua esperança de liberdade poderia durar mais do que alguns 
segundos embalados pelo som da palavra “Palmares”.
No cais, Dandara estava em posição de enfrentamento, 
com uma espada em cada mão e joelhos flexionados. Assim 
que Kambo sumiu de vista, a guerreira correu ao encontro 
dos homens brancos; sua lógica sempre fora a do ataque: não 
esperava que o primeiro golpe viesse, fazia questão de que suas 
ações fossem a abertura de qualquer luta. 
Os quatro homens sentiam que estavam verdadeiramente 
perdidos. Toda a viagem para África, todos os gastos e 
mercadorias que trocaram para que pudessem encher de 
escravos o porão do navio, tudo se desperdiçava e ia embora, se 
distanciando cada vez mais do porto. 
- Sua escrava insolente! – Esbravejou o homem mais velho.
- Meu nome é Dandara, sou guerreira dos Palmares e sou 
uma mulher livre! – Gritou orgulhosa, ganhando todo o porto 
com sua voz.
A perplexidade dos homens brancos era a vantagem 
que Dandara queria para desarmá-los. Apenas dois portavam 
armas de fogo enquanto os demais seguravam armas brancas. 
Então Dandara começou a saltar, realizando movimentos de 
capoeira. Com uma perna, derrubou a arma de um dos soldados, 
chutando-a para a ponta do cais antes que o homem pudesse se 
 • 61 •
abaixar para apanhá-la. Com um golpe de espada, Dandara fez 
um corte em um dos braços do outro soldado e o empurrou – o 
suficiente para que rompesse o suporte de sua arma. 
Essa foi a deixa para que a guerreira desse alguns passos 
para trás e se abaixasse, aproveitando a mudança no foco de 
atenção dos soldados e desviando das lâminas que zuniam no ar. 
Dandara apanhou uma das armas de fogo do chão e rapidamente 
apontou a mão armada na direção dos homens, que assistiam 
surpresos. 
- Joguem as espadas no chão! Agora! – Ela gritou, cerrando 
os dentes com impaciência.
Segurando suas espadas em uma mão e ameaçando os 
soldados com a arma de fogo, Dandara chutou o revólver caído 
no cais, fazendo com que ele mergulhasse pesadamente no mar. 
Sentia-se acuada e nervosa.
- Saiam da minha frente! – Tornou a ordenar, dessa vez 
colocando o dedo no gatilho.
Os homens se afastaram com as mãos separadas, em sinal 
de súplica silenciosa, pedindo que a guerreira não atirasse. 
Sem pestanejar, Dandara saiu correndo, deixando suas 
coisas para trás. Não tinha tempo de fazer outra parada, precisava 
partir para a mata, onde Kambo deveria estar esperando. Temeu 
pelo rapaz, mas a preocupação não poderia ajudá-los naquele 
instante. Tinha que fugir e alcançar a floresta.
Escondido atrás de algumas árvores, Kambo se sentia 
apreensivo, imaginando o que poderia estar acontecendo com 
Dandara. “Será que ela já está vindo? E se conseguiram parar 
o navio? E se Dandara estiver ferida?”, repetia em pensamento. 
Tinha medo até de se mexer, pois não queria que a esperança 
da liberdade fosse novamente arrancada de suas mãos. 
Desde criança ouvia falar de Palmares, o refúgio dos 
oprimidos, o reino da liberdade, onde pessoas como ele e sua 
mãe poderiam viver em paz. Quando pequeno, escutava que 
• 62 •
em Palmares centenas de guerreiros faziam a guarda das 
entradas do quilombo, que lá eles próprios caçavam, plantavam, 
cultivavam e colhiam seus alimentos, sem que em nenhum 
momento tivessem que entregar os produtos da natureza para 
um senhor cruel

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