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AS LENDAS DE DANDARA Jarid Arraes Com ilustrações de Aline Valek ÍNDICE Créditos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 5 Dedicatória • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 6 Introdução • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 7 1. O nascimento de Dandara • • • • • • • • • • • • • • • • 11 2. A cura de Bayô • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 20 3. O cavalo roubado • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 33 4. O encontro com Iansã • • • • • • • • • • • • • • • • • • 42 5. O navio negreiro • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 51 6. Dandara e Zumbi • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 66 7. Fogo na Casa Grande • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 75 8. A Emboscada • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 87 9. Senzalas vazias • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 101 10. A pedreira • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 111 Agradecimentos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 123 A Autora • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 124 • 5 • CRÉDITOS Copyright © 2015 - As Lendas de Dandara Uma obra independente de Jarid Arraes aslendasdedandara.com.br Capa, ilustrações e diagramação do e-book Aline Valek Revisão de texto Leon • 6 • Para todas as mulheres negras brasileiras. Somos espelho e resistência. Juntas, somos Dandara. • 7 • INTRODUÇÃO Em novembro de 2014, próximo ao dia da Consciência Negra, escrevi um texto para minha coluna “Questão de Gênero”. O artigo intitulado “E Dandara dos Palmares, você sabe quem foi?” tinha o objetivo de denunciar e questionar o machismo e o racismo brasileiro, que faz com que heroínas históricas como Dandara fiquem quase completamente esquecidas na história brasileira. Embora muitas pessoas até ouçam falar de Zumbi, líder do quilombo de Palmares e homenageado em 20 de Novembro, Dandara ainda permanece esquecida e ignorada. Na minha experiência como feminista negra, só ouvi falar de Dandara dos Palmares quando uma companheira de ativismo a mencionou em uma de suas falas para uma mesa de debates. Até então, eu havia passado por muitos anos de escola, ensino médio e Universidade, mas em nenhum momento tinha escutado qualquer menção a respeito de Dandara. Fiquei curiosa e senti a necessidade de conhecer mulheres negras que pudessem servir de inspiração e espelhos para mim. Decidi pesquisar mais sobre essa guerreira, mas não me surpreendi quando percebi que o material a seu respeito era muito escasso e de difícil acesso. É possível encontrar na internet alguns artigos que falam de Dandara, a maioria em portais do movimento negro e feminista, mas as informações são bastante resumidas. Um dos poucos fatos que realmente sabemos a respeito de Dandara é que ela foi uma das líderes do quilombo de Palmares, companheira de Zumbi e uma mulher que não se encaixava nos papéis femininos estabelecidos em sua época. Aprendi que ninguém sabia muito bem onde Dandara nasceu e que, pelo que se conta, • 8 • sua morte aconteceu no momento em que Palmares foi invadido com grande repressão; dizem que, para não ser capturada, Dandara se jogou do alto de uma pedreira, preferindo a morte à escravidão. Há controvérsias a respeito da real existência de Dandara; alguns pesquisadores afirmam que Dandara é confundida com outras lideranças quilombolas. No texto que publiquei em minha coluna, muitos leitores concordaram com essa perspectiva mais cética - entre diversos comentários de apoio e crítica, algumas pessoas afirmaram que Dandara dos Palmares não era nada mais do que uma lenda. No momento em que li esses comentários, fiquei ao mesmo tempo pensativa e chateada. Achei – e ainda acho – que se Dandara não está devidamente registrada na historiografia brasileira, o machismo e o racismo tão impregnados na nossa cultura certamente tiveram papéis importantes nesse enredo. Decidi então encarar a ideia das lendas como uma provocação e uma oportunidade. Pensei comigo mesma: se Dandara é uma lenda, alguém precisa escrever suas lendas. E foi assim que tive a ideia de escrever um livro de ficção, inspirado na história do Brasil e naquilo que sabemos sobre a líder quilombola. Para escrever As Lendas de Dandara, eu trouxe elementos de fantasia – meu gênero predileto de ficção – e busquei a valorização das religiões de matriz africana, fazendo com que Iansã fosse a responsável pela criação de Dandara. Tomei a liberdade para criar um nascimento poético e misterioso, algo que fizesse total sentido com as poucas informações que temos sobre Dandara, já que não se sabe ao certo onde Dandara nasceu e como foi parar em Palmares. Essa foi a oportunidade perfeita para inserir uma narrativa lendária e mágica. Iansã foi escolhida como mãe de Dandara porque, entre todos os orixás femininos, ela é aquela que melhor representa uma líder quilombola como Dandara. Oyá, como também é • 9 • chamada, é a orixá das tempestades e ventanias, sempre com sua espada nas batalhas, adentrando terrenos muitas vezes considerados masculinos. Seus elementos e personalidade forte fizeram de Iansã a mãe perfeita para Dandara, que, por ser sua filha e criação, levaria também as qualidades da orixá. Além das religiões de matriz africana, também fiz questão de dar nomes africanos aos personagens. Quando pessoas negras foram trazidas de diversos países africanos para o Brasil, uma das formas de violência impostas contra elas era a mudança de seus nomes verdadeiros, que eram trocados por nomes “cristãos”, como José, Luiza, entre outros. Além disso, os escravos recebiam os sobrenomes dos senhores que eram seus “donos”. Isso é algo que sempre me incomodou bastante - muitos dos meus amigos e conhecidos são de famílias com origem europeia e possuem os seus sobrenomes preservados; eles sabem de onde vieram, quais eram os costumes de seus ancestrais, suas festas e tradições. Mas eu, que tenho pessoas de origem africana na minha árvore genealógica, não faço a menor ideia da origem dos meus ancestrais; sei apenas que foram trazidos do continente africano de maneira cruel, bárbara e desumana. Tive que me resignar a sobrenomes de origem europeia, mas passarei toda a vida tentando reviver minha ancestralidade, seja por meio do meu ativismo político ou da minha escrita. Em cordéis, poesias e agora neste livro, eu tento contribuir com algumas pequenas peças nesse imenso quebra-cabeça que é a diáspora negra. Por isso, meus personagens possuem nomes de origem africana repletos de significados. As ilustrações são uma maravilha à parte. Quando convidei a Aline Valek para ilustrar meu livro, confiava plenamente em seu talento de mostrar Dandara como eu a havia idealizado. À medida que ela me mandava as ilustrações prontas, eu caía de amores cada vez mais com seus traços e sacadas brilhantes • 10 • sobre as cenas escolhidas. A Dandara que imaginei e que quero que as pessoas conheçam é uma mulher que rompe muitos paradigmas a respeito do que é um corpo de uma guerreira. Fiz questão de que a personagem tivesse o tom de pele bastante escuro e que seu cabelo crespo fosse visto o tempo inteiro. Além disso, dei a ela uma arma muito especial: a Akofena, que simboliza a coragem e o heroísmo da guerreira. Espero que vocês, leitores e leitoras, tenham o interesse de pesquisar sobre tudo o que compõe o universo deste livro: a Akofena, os orixás, os nomes africanos e, claro, a história do quilombo de Palmares. Espero que essa história escrita por mim possa despertar a vontade de conhecer mais sobre a população negra brasileira, suas origens, glórias e lutas. Acima de tudo, ofereço este livrocomo humilde reverência a Dandara dos Palmares e sua memória, que está viva e pulsante, cheia de fogo e de movimento. Lenda ou realidade, sua história é verdadeira e nos serve como inspiração e fortalecimento e jamais poderá ser apagada. Dandara vive! • 11 • 1. O NASCIMENTO DE DANDARA • 12 • Entre calmas nuvens, o céu de todo o continente permanecia em silêncio, isolado em seu luto e incredulidade. A brisa quieta daquela tarde era a expressão máxima da tristeza pesada que África sentia, totalmente exaurida pelo sentimento de perda que a dominava. Por causa do seu humor abatido, há muitos anos África se mantinha passiva, recusando-se a falar com os orixás. Sentia-se traída pela ausência de proteção. Os orixás sentiam sua dor. Preocupavam-se, tentando administrar o continente da melhor maneira possível, auxiliando seus filhos e movendo a natureza para mantê-la em harmonia. No entanto, percebiam que as coisas já não se mexiam como antigamente: os rios não corriam velozes e fortes, as plantas não cresciam vigorosas e os animais viviam como se fossem forçados a sobreviver; comiam quando precisavam, mas não cultivavam as relações entre os seus de sua espécie, tampouco se atentavam para a ética no trato com as outras raças e famílias de bichos. Por isso, os orixás se culpavam. "Como devolver aos nossos filhos o equilíbrio de África?", questionavam-se. Sabiam que a responsabilidade pelo ocorrido era algo que não poderia pesar sobre eles, mas também não deveria ser uma carga imposta aos seres humanos. Em suas batalhas, vitórias e derrotas, as pessoas se corrompiam e agiam com insensatez. As consequências eram reais, parte de um imenso ciclo onde cada ação gera uma reação, alterando o destino de todos. Mas a ingenuidade de alguns filhos ainda não era o suficiente para explicar tamanha tragédia. • 13 • Iansã passava longos períodos refletindo sobre a situação de África. Revisitava as cenas do passado, assistindo milhares de filhos embarcando forçadamente, como mercadorias, em navios que vinham de lugares longínquos. Via o sofrimento em seus rostos e voava pelo oceano, acompanhando cada momento de tortura profunda. Iansã fechava os olhos quando corpos eram jogados ao mar, sem definir o que mais lhe doía: o destino dos que sobreviviam nos porões dos barcos enquanto viajavam em estado degradante ou os que padeciam no meio do caminho e eram descartados sem rituais e sem respeito. De vez em quando, a raiva lhe enchia e explodia em tempestades que assustavam as águas. Entre raios e ventanias, Iansã gritava e sentia seu corpo explodindo em ira. Por mais que tentasse encontrar uma saída para aquela situação, não conseguia eleger uma única estratégia ou ação que devolvesse a esperança para África. Viajava pelo tempo, observando cada ser humano que desempenhara algum papel naquela página da história. Atentava-se para as pessoas que chegavam a África dentro dos navios, suas roupas diferentes, adereços curiosos e cores alvas. "Como são claros!", exclamava em pensamento. Entendeu que tinham aparência diferente porque vinham de outros continentes onde outros deuses exerciam domínio. Mas não entendia suas motivações, muito menos por que a diferença de pele despertava tantas crueldades. Iansã precisou viajar algumas vezes ao passado até compreender totalmente o que acontecia: quando conseguiu engolir a dor dilacerante que a sufocava ao ver o sofrimento dos seus filhos, atentou-se para as expressões e intenções mais íntimas das pessoas mais claras. Viu em seus corações uma imensa camada de ódio e desprezo, tão profundos que criavam raízes nas veias de seus corpos e agiam como uma erva venenosa em suas mentes. "Eles pensam que são superiores!", concluiu espantada. Jamais havia visto algo como aquilo, nem mesmo • 14 • quando povos inimigos guerreavam em África. Era algo pior e mais danoso. Depois de ter compreendido as causas da tragédia que se alastrava por África, Iansã compartilhou suas percepções com os outros orixás, que ficaram curiosos e revoltados. Naquela tarde, o céu parado e a brisa suave eram sinais de que todos estavam sentados, pensando, junto com Iansã, em uma forma de mudar o destino do continente e devolver o ímpeto de vida aos seus filhos. - Precisamos encontrar uma saída. - Disse Oxum. Os orixás estavam há muitos dias em reunião, lamentando a situação apática de África. Oxum chorava amargamente, sentindo que suas crianças haviam sido sequestradas de seu lar, magoada pelos caminhos do acaso e do destino, que tinham derrubado sobre África um presságio de tantas desgraças. Suas lágrimas escorriam em pequenas gotas brilhantes, doces como o seu amor pelo continente. - Alguém tem uma sugestão? - Falou novamente. - Eu tenho! - Exclamou Ogum - Forjarei incontáveis espadas e ferramentas para irmos à guerra! - Não, Ogum! Não podemos interferir dessa forma nesses feitos. - Nanã disse com sabedoria. - Posso enviar os mares até aquela terra. - Sugeriu Iemanjá. - Não, Iemanjá! Pense nas vidas inocentes e perdidas, nas árvores e animais. Com a segunda intervenção de Nanã, os orixás retornaram ao silêncio profundo. Qualquer que fosse a alternativa, não poderiam esquecer dos seus próprios princípios e do respeito pelo objetivo maior, que era poupar a vida dos seus filhos e oferecer-lhes a liberdade plena. Porém, com o tempo correndo pelos ares, ficava cada vez mais difícil encontrar uma opção que não implicasse na direta intervenção dos orixás. - Oyá, há algo mais em sua mente? Alguma lembrança? - • 15 • Questionou Xangô. Iansã tinha as mãos fechadas, como se estivesse tentando se conter. Vasculhava suas memórias, em busca de detalhes que lhe revelassem pistas de como agir. Sua sugestão teria que ser poderosa e definitiva. África não suportaria mais decepções. - É estranho, Xangô, porque vi homens alvos agindo com um único propósito de ódio, ganância e dominação. - Disse Iansã enquanto refletia. Como um relâmpago, sua força tomou forma e sua mente recebeu um lampejo de energia. - É isso! - Exclamou. Todos os orixás levantaram e ficaram atentos, aguardando a revelação de sua descoberta. - São todos homens! Homens alvos, homens com vestes diferentes, homens empunhando armas e comandando os navios! Homens! Xangô entendeu onde Iansã queria chegar. Conhecia muito bem o temperamento da amada e sua feminilidade indomável. Por isso, não pode conter um sorriso. - Criarei uma guerreira, filha do meu ser, que libertará seus irmãos e irmãs! • • • A tarde já caía quando Iansã partiu com tremenda velocidade rumo ao ponto mais alto dos céus. Com cortes rápidos de espada, o ar era dividido e se transformava em blocos de nuvens coloridas, tingindo o céu de rosa e vermelho, em incontáveis tons e formas encantadoras. Iansã estava feliz, convicta de seu plano. Havia pensado em tudo com profundidade. Não poderia usar as próprias armas e atos para mudar o curso da história de todos, mas podia criar uma mulher tão forte quanto ela; uma • 16 • mulher que amasse seu povo e lutasse pela liberdade, tendo a espada como íntima companheira e extensão dos seus braços; uma mulher de pulsão combativa, de furor rebelde. “Uma filha do meu ser”, imaginava e sorria. A medida que convocava nuvens e ventos para compor sua criação, Iansã ordenava que uma tempestade se formasse. Canalizando todos os seus sentimentos, Iansã conduzia a revolta e a raiva ao encontro da paixão e da vontade selvagem, pois queria criar uma filha movida pela ausência de medo. "Minha filha será uma extensão de mim", repetia enquanto movimentava os braços, orquestrando a tempestade que se formava a ponto de explodir. De repente, trovões. Os sons da natureza ecoavam, redemoinhos de vento bailavam em círculos e espirais rosados, escuros e perigosos. Da espada de Iansã, uma luz crescia e pulsava como a respiração de uma mulher em trabalho de parto, até que seu clímax foi atingido. Nos braços dela, estava, enfim, umagarotinha de olhos expressivos. - Seu nome será Dandara e você trará libertação para seus irmãos e irmãs. - Disse Iansã sorrindo, olhando a menina com ternura. Tomada por esperança, Iansã dançava com Dandara em seus braços, em movimentos mágicos que empurravam as correntes de ar quente em todas as direções. Em toda África, tempestades bradavam, anunciando o início de uma nova era e a abertura de novos caminhos. Os animais se alvoroçavam, sentindo novamente o despertar de seus instintos. África estava viva, acordada, com olhos bem abertos. A dança de Iansã com sua filha recém-criada demarcava uma celebração poderosa que durou por dias ininterruptos. • • • • 17 • Dandara viajou por todo o oceano nos braços de Iansã, até que chegassem ao novo continente aonde os filhos de África haviam sido levados. Para a garotinha, tudo era novo e fantástico; Dandara ainda não falava, mas percebia atentamente os detalhes da natureza e sentia-se aninhada no colo de Iansã, sua mãe. Quando chegaram à nova terra, Iansã decidiu explorar a noite e as florestas para compreender o que acontecia e pensar em como colocaria seus planos em prática. Enquanto tudo observava do topo de uma serra, percebeu que uma mulher de pele escura corria e se emaranhava entre os troncos e matos, se escondendo. Mais para trás, viu alguns homens de pele clara montados em cavalos, alguns segurando tochas, enquanto gritavam de forma ameaçadora. - Volta aqui, sua escrava sem vergonha! A palavra "escrava" fez Iansã se remexer por dentro. Deixando-se levar por seus impulsos revoltosos, Iansã ordenou que os céus se fechassem e que uma tempestade caísse sobre aquela região. Porém, algo despertou o cuidado da orixá, que direcionou seu olhar para longe e entendeu que a mulher traçava uma rota de fuga para uma espécie de esconderijo, uma área onde filhas e filhos de África estavam reunidas. Era um quilombo. Iansã então adiantou-se no caminho que a mulher percorria, com a intenção de deixar Dandara para que fosse resgatada pela fugitiva. Para se certificar de que a mulher passaria exatamente pelo local onde Dandara deveria ser encontrada, Iansã fez com que raios atingissem as árvores de todo o território, provocando um grande incêndio que se espalhava pela mata, exceto no trecho por onde a mulher deveria passar. Surpresa, a mulher parou por alguns minutos, incrédula, olhando para o caminho a sua frente e arregalando os olhos, sem compreender o que estava acontecendo. Entre as árvores, • 18 • uma estrada era demarcada pela ausência de fogo, enquanto ao redor todas as plantas, troncos e folhas eram queimados pelas labaredas ardentes. Mas apesar do estado de choque pelo acontecimento inexplicável, ela não podia ficar parada e correr o risco de ser capturada pelo capitão do mato. Temia que toda a mata fosse tomada pelas chamas e que não tivesse mais tempo para escapar. “Preciso continuar”, pensou para si mesma. Seus pés descalços, machucados por pedras e espinhos, se moviam com agilidade. Ainda que toda a mata ardesse pelo incêndio misterioso, a mulher sequer sentia o calor lhe incomodar. A medida que avançava, traçando o caminho feito por Iansã, compreendia que aquele não era um mero acaso. Alguém desejava que ela andasse por aquela trilha sem fogo. Por isso, decidiu que em nenhum momento se desviaria daqueles limites. Sentia-se estranhamente segura. - Dandara, minha filha, seja sempre corajosa. - Disse Iansã com calma, emocionando-se enquanto tocava o rostinho da sua mais bela criação. As mãozinhas de Dandara pulavam e se esticavam tentando agarrar Iansã, que acabara de deixar a menina deitada em folhas de bananeira ao chão. O momento não era exatamente de despedida, pois Iansã estava certa de que sempre acompanharia o crescimento de sua filha e faria de tudo para que ela se tornasse uma guerreira impetuosa, pronta para livrar seus irmãos da tirania dos homens brancos. Como sinal dessa constante companhia, Iansã permitiu que Dandara manifestasse, quando necessário, uma fração do seu poder sobrenatural. Assim, certamente jamais esqueceria de sua missão. • 19 • • 20 • 2. A CURA DE BAYÔ • 21 • Desde que fora encontrada na mata por Bayô, Dandara nutria por Palmares um sentimento cada vez mais mágico que se intensificava à medida que crescia, dia após dia criando raízes no quilombo e espalhando seus braços como galhos que abarcavam cada cantinho daquele lugar. Dandara gostava de conhecer todas as pessoas por seus nomes, se interessava por suas vidas e dedicava muitas horas para ouvir as histórias que tinham para contar, fossem elas histórias de fugas ou pequenos relatos rotineiros. Conhecia todos quase tão bem quanto conhecia cada lugar do quilombo, os terrenos de plantio e as áreas mais seguras para caçar. Ao começar do dia, Dandara esperava que Bayô entrasse na palhoça lhe chamando, insistindo para que despertasse, mesmo que já estivesse acordada há muitas horas, revirando- se na esteira e maquinando o que faria naquele dia enquanto fingia sonhar. Encontrava uma estranha satisfação nesse ato, percebendo que conseguia se desvencilhar das tarefas que deveria cumprir ou, pelo menos, atrasar um pouquinho a execução das obrigações. De todos os afazeres que lhe eram designados, o que mais a angustiava era o preparo da comida. Dandara se sentia sufocada pelos vapores dos alimentos e entediada pelo desfecho sempre previsível daquelas refeições. "Isso é muito sem emoção", queixava-se para Bayô, esticando os olhos no sentido da clareira, tentando enxergar através das árvores para observar os guerreiros em treinamento. - Você precisa aprender a cozinhar, menina. - Diziam as • 22 • mulheres com olhares de reprovação. Dandara revirava os olhos e bufava, coçava as canelas e colocava as mãos debaixo do queixo. Quando começava a sentir vontade de chorar, atormentada pelos minutos que não se passavam, inventava que precisava pegar algo na palhoça ou fazer xixi, mas nunca voltava. Depois de muito apresentar ideias diferentes para que não precisasse aprender a preparar as refeições, as mulheres deixaram de se importar. "Dandara não tem jeito", diziam para as outras meninas, como em uma fábula de advertência. Mas Dandara levava jeito para aprender capoeira e falar sobre batalhas. Não era incomum que fosse encontrada na espreita, se escondendo atrás de rochas altas, observando os homens forjando armas e traçando planos para a libertação de pessoas escravizadas. De tanto insistir com sua presença discreta, os guerreiros logo passaram a aceitar a participação de Dandara de forma menos disfarçada. Permitiam que a garota assistisse o preparo das batalhas e lhe ensinavam, pouco a pouco, tudo o que sabiam. Bayô, no entanto, se preocupava com a menina da mesma forma que uma mãe se preocuparia com sua filha. - Veja, Bayô! – Dandara entrou na palhoça com a respiração disparada e os olhos brilhantes. Nas mãos, exibia duas espadas de formato curvado. - O que é isso, Dandara? Bayô olhava atentamente para as espadas nas mãos da menina. Em sua mente, mil cenas de guerra e morte já tomavam seus sentidos. Não queria ver Dandara em uma situação similar. - São minhas, Bayô! Fiz na forja, deu um trabalho danado. Mas veja como são bonitas! Eu sonhei com elas, sabia? – Disse Dandara, orgulhosa. - Você sonhou? Deixe de conversa, Dandara. Quem te deu isso? • 23 • - Já falei, Bayô. Eu que fiz, inspirada em meu sonho. Dandara já não estava com o sorriso reluzente de quando entrara na palhoça. Desejava profundamente que Bayô aceitasse sua vontade de lutar, mas entendia sua preocupação com os desfechos cruéis das batalhas. Ela sabia que Bayô temia a derrota e a captura, pois não suportaria vê-la escravizada, vendida para algum homem branco para viver em uma senzala, amontoada com outras pessoas, como se todas fossem bichos doentes. Apesar disso, Dandara tentava provar para Bayô que era forte o suficiente e que já sabia muitosobre as lutas. Imaginava que assim, quando chegasse a idade certa, poderia se juntar aos líderes e defender o quilombo enquanto buscavam a liberdade de todos os irmãos e irmãs naquela terra. - Então tá, Dandara. Então tá. – Bayô finalizou o assunto tentando não recair, mais uma vez, em uma discussão sobre os papéis que a menina deveria desempenhar naquele momento, ao invés de forjar espadas e se intrometer nas estratégias dos guerreiros. Dandara respeitava as orientações de Bayô, mas não existia ninguém que pudesse ordená-la a algo, muito menos a uma vida de preparação de alimentos e cuidados com crianças. Quando não conseguia escapulir pelas matas e era impedida de explorar todos os arredores do quilombo, Dandara acabava se resignando e ajudando Bayô a trançar palhas. No fundo, apreciava esses momentos de conversa e extraía o máximo de conhecimento e sabedoria que podia, fazendo muitas indagações e pedindo explicações minuciosas de todos os fatos contados por Bayô. Dandara sabia tudo sobre como tinha sido encontrada. Não chamava Bayô de mãe por pura racionalidade, já que pensava na memória da mulher que a havia parido. Antes de dormir, era comum ficar deitada por muitas horas, tentando desenhar em sua mente as feições do rosto de sua mãe e o que poderia ter acontecido para justificar seu abandono no meio da mata. • 24 • Pensava que a mulher fugia com ela nos braços, mas ao ouvir a aproximação de um capitão do mato, teve a ideia de deixá-la adiante e se entregar, pois assim pouparia ao menos a vida de sua criança. Na imaginação de Dandara, sua mãe não cogitava que ao cair da noite um incêndio fosse tomar conta da mata, então, ao saber das notícias do fogo, teria pensado que todo o seu esforço fora em vão, sem saber que Bayô encontrara sua filha. Não que isso lhe fosse de algum conforto – o sofrimento de sua mãe pelo seu suposto fracasso lhe trazia um sentimento de pesar –, mas sua criatividade era muito realista e, naquelas circunstâncias, essa possibilidade lhe parecia bastante convincente. Ainda assim, Bayô tratava Dandara como sua filha. Jamais poderia esquecer o caminho perfeitamente demarcado por onde correra com a garotinha em seu colo, olhando para trás a cada três passos que dava. Sempre parava para pensar na peculiaridade de Dandara, que nem mesmo naquele momento se debulhava em lágrimas; pelo contrário, olhava ao redor com interesse e tranquilidade. Não havia dúvidas de que a menina era muito especial e de que algo encantado tinha acontecido naquele momento; até mesmo a escolha de seu nome parecia orientada por algo sobrenatural, pois a palavra simplesmente veio à boca de Bayô no momento em que lhe perguntaram como se chamaria a menina. Mas era exatamente por isso que Bayô desejava manter Dandara por perto: queria desfrutar de todos os momentos que tivessem juntas e mantê-la em segurança, sempre saudável e feliz, como havia sido encontrada. - Dandara, vai ao rio comigo? Preciso apanhar umas ervas lá na beirada. – Convidou Bayô, fingindo que o assunto das espadas jamais havia sido levantado. - Prefiro ir praticar capoeira! – Respondeu Dandara. - Vamos comigo, não quero ir só, o tempo custa a passar e o rio é distante. Mas Dandara saiu correndo palhoça afora, aos risos, • 25 • escapando do convite. • • • Depois de ter preparado os alimentos na companhia de outras mulheres do quilombo, Bayô partiu em busca das ervas que só poderia encontrar na beira do rio. Precisava de um bom punhado delas para o preparo de chás curativos – em poucos dias, vários grupos do quilombo levariam mercadorias para trocar por armas com alguns comerciantes de um vilarejo próximo, mas a troca era sempre muito arriscada e, por isso, não era incomum que algumas pessoas voltassem feridas ou até mesmo fossem capturadas. Sabendo disso, Bayô queria deixar o máximo de ervas a disposição, para que qualquer tratamento que fosse necessário pudesse ser feito com rapidez. Enquanto descia a serra, Bayô se mantinha atenta para qualquer som incomum. Já conhecia os barulhos da natureza, os sons dos animais e do vento balançando as plantas, mas qualquer estralar diferente era o suficiente para que se escondesse, temendo a presença de homens brancos armados. Dentro do território do quilombo, Bayô não precisava sentir medo. Em cada entrada, centenas de guerreiros faziam a segurança do local, revezando-se na vigília pelas fronteiras. No entanto, se Bayô fosse caminhar na direção do rio somente pelo território protegido, levaria mais de dois dias para chegar até uma margem onde existissem as ervas necessárias. Bayô conhecia outro caminho bem mais curto, mas que ficava em um local vulnerável, escondido por grandes pedras e árvores altas. Apesar de temerosa, Bayô nunca tinha passado por uma situação de perigo naquele lugar e o tempo poupado lhe parecia valer a pena. Quando finalmente acabou de descer a serra com pressa, evitando pisar onde o solo poderia desmoronar, Bayô chegou • 26 • na beira do rio, onde se agachou para lavar o rosto. Sentia calor e seus olhos ardiam por causa do suor. “Vou só pegar as ervas e sair daqui”, pensava repetidamente, como se pudesse se esquecer dos próximos passos. Se Dandara estivesse com ela, seria mais fácil desempenhar aquela tarefa, já que a garota ficaria alerta, olhando para todos os lados, pronta para avisar Bayô sobre qualquer movimento suspeito. Como estava sozinha, precisava dividir sua atenção. Mas, a cerca de cem metros, um capitão do mato se aproximava vagarosamente, com a arma carregada, pronto para atacá-la. Sua intenção, como uma fera preparada para dar o bote, era surpreendê-la no momento em que se virasse para o outro lado, onde as ervas cresciam vigorosas. Por descuido, no entanto, o homem acabou tropeçando; o som de seu corpo caindo ao chão atraiu o olhar assustado de Bayô, que logo começou a correr. - Não adianta fugir! – Gritou o capitão do mato. Por reflexo, apontou a arma carregada para Bayô, que fugia desesperada. O estrondo do tiro espantou vários pássaros e ecoou pelo rio. - Aaaaahhh! – Bayô sentiu a bala invadir seu corpo, rasgando sua carne. A dor era tão forte que penumbrava seus sentidos. Subitamente, Bayô não conseguia enxergar, escutar direito ou sequer murmurar outro gemido de sofrimento. Cada vez que um dos seus pés encostava no chão, enquanto tentava correr o mais rápido que podia, a dor latejava ainda mais intensa. Naquela situação, não fugir não era uma opção; sabia que se deixasse o ferimento lhe dominar, acabaria capturada e seria levada para a senzala mais próxima - isso se conseguisse sobreviver! Tinha que correr, mesmo que gastasse tudo o que lhe restava de força, pois somente no quilombo teria alguma esperança. O capitão o mato não conhecia aquela terra e não sabia • 27 • de seus atalhos. Mesmo estando em vantagem, por não ter nenhum buraco de bala provocando dores agudas, o homem tinha dificuldade para acompanhar Bayô, que se enfiava por espaços de difícil acesso e usava árvores como aliadas, não como obstáculos a transpor. Se não estivesse baleada, Bayô certamente conseguiria fugir com destreza, mas nem seu ferimento lhe impedia de provar sua habilidade e familiaridade com a mata, que conhecia detalhadamente. A intimidade com a natureza foi, afinal, a salvação de Bayô – o homem havia ficado para trás. • • • Bayô conseguiu chegar até a fronteira guardada pelos guerreiros fazendo um esforço para além de suas capacidades humanas. Desabou no chão no exato momento em que conseguiu atrair o olhar dos seus companheiros de quilombo e logo foi socorrida, carregada até a sua palhoça, onde Dandara admirava suas espadas recém forjadas. - Bayô! O grito da menina saiu estridente. Bayô debilitada, com todas as roupas molhadas de sangue, foi uma imagem muito mais chocante do que poderia explicar. A medida que ouvia os murmúrios da mulher, que tentava contar o ocorrido com extrema dificuldade, Dandara se sentiapesada pela culpa. As mulheres se misturavam em mil atos diferentes, limpando a ferida, trocando as roupas de Bayô, fazendo de sua esteira o mais confortável possível e trazendo água para que ela pudesse beber. Dandara, por outro lado, permanecia em pé, congelada, com a boca imóvel após gritar o nome de Bayô. - Não consigo achar a bala! Está perdida dentro dela! - Exclamou uma das mulheres, com expressão de agonia. - E não temos a erva curativa, foi exatamente para buscá- • 28 • la que Bayô foi ao rio. – Disse outra, em tom de lamento. - O que fazemos agora? Aquele porco pode ainda estar lá! Não podemos ir neste momento, é muito arriscado. – Falou uma terceira, mordendo os lábios de raiva. - E mesmo com a erva as chances seriam poucas, a não ser que consigamos retirar a bala. - Temos que começar com alguma coisa. Vamos ao amanhecer pegar a erva. Que nossa irmã tenha força até lá. As mulheres saíram cabisbaixas da palhoça. Já tinham feito por Bayô tudo o que poderiam; somente a erva proporcionaria a próxima etapa dos cuidados, mas naquele momento ninguém poderia colher um punhado que fosse. Ainda que os guerreiros se deslocassem até o rio, no exato local onde Bayô havia sido atacada, todos temiam uma armadilha e desconfiavam de planos de invasão. Pelo caminho mais seguro, dois dias de viagem seriam necessários. A única opção seria aguardar o amanhecer, espalhar a guarda por toda a fronteira e contar com o auxílio de outros guerreiros para apanhar as ervas pelo caminho mais curto e desassistido. Dandara estava sozinha na palhoça com Bayô; tinha se voluntariado para ficar alerta, cuidando da mulher que havia lhe resgatado mesmo num momento de tanto temor. A noite caía e Bayô parecia piorar a cada minuto, ardendo em febre e revirando os olhos. Preocupada, Dandara não conseguia dormir, se remexia no chão e levantava insistentemente para averiguar o estado de Bayô. Aos prantos, a menina dizia para si mesma que tudo aquilo era sua culpa; chorava para que as horas fossem adiantadas e pela sobrevivência de Bayô. A manhã precisava chegar, mas havia ainda muitas horas até que o sol iluminasse o céu de Palmares. - Bayô, me perdoe. Se eu tivesse te acompanhado isso não teria acontecido... Sentindo seu corpo pesado e seus olhos se fecharem, a • 29 • garota caiu para trás, como em um desmaio abrupto. Sua cabeça fez um barulho grave no chão de terra batida e sua mente foi preenchida por raios vermelhos, que pouco a pouco iam diminuindo e revelando uma cena de um sonho; nele, Dandara saia da palhoça e corria pela serra, traçando um caminho seguro, porém escuro. Ao final da caminhada, a menina avistava uma grande quantidade de ervas que cresciam na beira do rio. “São elas!”, gritou em seu pensamento. • • • Dandara se sentia determinada e corajosa. Sabia do risco que corria ao se aventurar, sozinha, em uma área desprotegida e que há pouco tempo contava com a presença de um capitão do mato. Concordava com as demais pessoas do quilombo: ir até lá sem o reforço dos guerreiros e sem um plano de proteção para as fronteiras era uma imprudência; mas, ao mesmo tempo, se questionava se não era exagerado demais o crédito que davam ao capitão do mato – afinal, ele poderia estar sozinho, poderia ter aparecido naquela região somente para beber água e descansar e talvez nem soubesse que serra acima estava Palmares. Para ela, essa possibilidade já era bastante encorajadora. No entanto, para conseguir chegar até o rio, precisava despistar também os guerreiros que montavam guarda em todas as saídas do quilombo. As imagens de sua visão ainda estavam vivas em sua mente e indicavam trechos por onde deveria passar, de modo que não chamasse qualquer atenção. Dandara conseguiu ultrapassar todas as etapas de seu caminho e logo descia a serra a passos largos. Cada folhinha que estralava debaixo dos seus pés lhe provocava um calafrio. Pensava em Bayô e no estado triste em que se encontrava. “Como deve doer ter uma bala cravada nas costas”, lamentava. Além disso, Dandara se preocupava com • 30 • o tempo que Bayô tinha restante. “O ferimento é bem fundo e ela perdeu bastante sangue”, pensava. Por mais que estivesse convicta de que as ervas ajudariam, a garota questionava a eficácia das plantas numa situação daquela gravidade. Já tinha visto muitos guerreiros padecendo após serem atingidos nas batalhas e muitas dessas enfermidades eram menos ameaçadoras do que o ferimento de Bayô – em seu caso, nem sequer conseguiam localizar a bala. - Estão ali! – Dandara deixou a voz escapar e imediatamente tapou a boca com as mãos. As ervas repousavam tranquilas na margem do rio. Naquele momento, essa era a missão que Dandara precisava completar. Ajudaria Bayô e jamais rejeitaria um pedido de ajuda seu; agora, sempre que Bayô chamasse, ela iria cumprir tarefas pelas matas, buscar água e ervas e preparar os alimentos do dia. Daria um jeito de unir esses afazeres com seu desejo de batalha, encontraria uma forma de treinar capoeira, aprender a forjar e manusear armas e participar das reuniões dos guerreiros. “Eu dou um jeito”, tentava se convencer, enquanto subia a serra o mais rápido que podia, agarrando firmemente em suas mãos um punhado da planta curativa, como se sua vida dependesse disso. Quando chegou na fronteira, quase foi atacada por um dos guerreiros que estava alerta a qualquer barulho estranho. Dandara se jogou ao chão. - Sou eu, Dandara! Eu fui pegar a erva para salvar Bayô! As pessoas do quilombo mal conseguiam acreditar que uma garotinha de nove anos tinha realizado aquele feito – ainda mais com a escuridão da noite. Todos seguiam Dandara curiosamente até a palhoça, onde Bayô se debatia em sofrimento. A menina preparava as ervas e sussurrava palavras sagradas, assim como tinha aprendido com Bayô. Pressionando a massa verde na ferida das costas da mulher, Dandara mantinha • 31 • os olhos fechados, sentindo seu rosto molhado pelas lágrimas salgadas que escorriam sem parar. No meio de sua pouca esperança, uma nova imagem foi se formando em sua mente: dessa vez, Dandara via seus próprios dedos, pequeninos, finos e ágeis, tocando ao redor do buraco da bala e arriscando um mergulho na carne de Bayô. Para o choque daqueles que assistiam a cena dentro da palhoça – e interesse dos que estavam do lado de fora – Dandara estava, de fato, movendo suas mãos e reproduzindo tudo aquilo que via nas imagens misteriosas de sua mente. Bayô urrava de dor, no máximo desespero que conseguia expressar em seu estado inconsciente, enquanto Dandara enfiava seu dedinho indicador bem fundo na carne machucada. - Ela encontrou a bala! – Gritou um dos homens presentes, completamente impressionado. Muitos exultaram com satisfação e expectativa. Dandara continuava em seu transe, agora lavando a ferida com o líquido que pingava das ervas amassadas. - Meus olhos estão vendo coisas ou o buraco está mesmo menor?! – Indagou uma mulher. Todos falavam ao mesmo tempo e diziam que aquilo não era natural, só podia ser obra de algum ser espiritual. Lentamente, Dandara abria os olhos e se dava conta do que estava acontecendo. Tão impressionada quanto as outras pessoas, a menina levou a mão até a testa de Bayô e constatou que já não tinha mais febre. Emocionada, suspirou de alívio. • 32 • • 33 • 3. O CAVALO ROUBADO • 34 • Após Bayô chegar tão perto da morte, Dandara passou a acompanhá-la nos afazeres para além do quilombo. Não gostava da maioria das tarefas que desempenhava, mas havia atingido um grau de resignação que a ajudava a encontrar diversão e aventura em muitos desses trabalhos. Aproveitava especialmente o dia de levar os alimentos para as matas. Uma vez por semana, Dandara caminhava com Bayô e algumas outras mulheres deixando refeições espalhadas por locais estratégicos da floresta; cada porção que era presa nos altos galhos das árvores era uma forma de auxiliar as pessoas que fugiam da escravidão, seja porqueo alimento lhes restauraria alguma energia e ajudaria seus corpos a correr e fugir, seja porque a presença das refeições indicaria que o quilombo não estava tão longe assim. Dandara tinha aprendido que cada papel tinha a sua importância na manutenção e defesa de Palmares. Sem que alguém cozinhasse alimentos fortes, os guerreiros não poderiam lutar; e sem que alguém fosse buscar as ervas na beira do rio, uma quantidade muito maior de pessoas acabaria morrendo. Além disso, a menina havia entendido que essas tarefas não eram fáceis ou livres de perigo – o risco de morte que Bayô correra e a cautela que todo o quilombo mostrara antes de voltar ao local do ataque eram provas de que os papéis designados às mulheres não eram frívolos. Embora Dandara preferisse empunhar suas espadas, lutar capoeira e sonhar com a liderança das batalhas, alguma maturidade já fazia morada em sua mente. • 35 • - Bayô, vamos! As outras estão saindo! Dandara estava apressada, plantada na entrada da palhoça cheia de ansiedade; naquele dia, levariam os alimentos para uma área mais próxima das fazendas onde muitos irmãos e irmãs escravizados eram forçados a viver. Seria o mais próximo que Dandara poderia chegar naquela idade. - Você precisa se comportar, ouviu? – Bayô tinha olhos desconfiados. A empolgação de Dandara era motivo de preocupação para Bayô, que conhecia a menina tão bem. Por mais que soubesse dos feitos incríveis realizados por Dandara, como o fato de ter ido buscar as ervas sozinha na escuridão da noite, Bayô não podia deixar de pensar que tudo era questão de sorte. - Você pegou as cordas? – Perguntou Bayô, saindo da palhoça. - Peguei, estão aqui. – Respondeu a menina sorrindo. Assim que saíram do quilombo, Dandara começou a explorar todos os cantos da mata com seus olhos em busca de algo interessante, de algum objeto caído ou indício de que alguém tinha passado por ali. Gostava de criar histórias em sua mente, imaginando quem poderia ter pisado naquele monte de folhas e o que fazia naquele lugar; talvez uma mulher despistando um capitão do mato, pisando levemente no chão coberto de folhas ainda verdes. “E se ela tivesse uma arma?”, Dandara fantasiava. Queria que todas as mulheres fossem guerreiras, assim como ela almejava ser. Dandara vivia na constante expectativa de provar sua coragem e valor para as batalhas. Tinha a sensação de que os guerreiros a aceitavam por perto somente porque era criança e não podia, de fato, se arriscar nas lutas pesadas. Mas não parava de se questionar se, quando crescesse e tivesse idade suficiente, ainda poderia se juntar a eles. A menina tinha percebido que algo havia mudado depois • 36 • do acontecimento com Bayô: as pessoas olhavam para ela de maneira diferente, parecendo intrigadas. Os homens que guardavam as fronteiras perguntavam muitas vezes como ela havia conseguido passar despercebida e sem produzir qualquer som suspeito; ela os ajudou mostrando o caminho que fez, revelando uma pequena deficiência na guarda de Palmares – o suficiente para que escapulisse. Dandara praticava o manejo das espadas diariamente. Às vezes acabava derrubando-as no chão e prontamente as apanhava, olhando para os lados, com medo de que alguém tivesse percebido. Porém, gostava de pensar que tinha apenas nove anos e que, com essa idade, nem mesmo os garotos que já eram treinados desde cedo possuíam tanto talento para a luta. Quando Dandara saía com as mulheres do quilombo, encarava a atividade como uma oportunidade para criar cenários e situações diversas, onde ela sempre se tornava a heroína vencedora. Naquele dia, Dandara andava com as mãos livres, balançando os braços alegremente, pouco a pouco caminhando mais à frente das demais mulheres. Bayô já estava acostumada com isso, apenas lhe recomendava que não se afastasse muito e fosse cuidadosa para não fazer barulho. No entanto, Dandara sempre se distanciava um pouco mais do que deveria. • • • “Vou subir na árvore para ver a mata de cima”, pensou Dandara enquanto corria. Precisou de pouco impulso para se agarrar ao tronco e fazer as pernas de alavanca, alcançando o galho mais grosso e alto que estava disponível. Já estava longe das mulheres há muitos minutos, mas não se atentava para a distância ou para o tempo que passava sozinha conhecendo aquela nova área da floresta. Nem mesmo • 37 • pensava em Bayô, se estaria preocupada ou em segurança; sua vontade de desbravar era imensa, como um instinto animal que não pode ser reprimido. A coragem crescia junto com seu ímpeto de conhecer e encontrar alguma coisa interessante, algo que pudesse levar consigo de volta para Palmares como uma recompensa por sua ousadia. Do alto da árvore, seus olhos reluziam como duas pedras preciosas. Conseguia ver um pedaço do rio a poucos metros dali, além de trechos onde a terra parecia formar uma trilha muito pisada por pessoas. Sentou-se balançando as pernas e voltou a imaginar situações emocionantes para aquele cenário, quando foi surpreendida pelo barulho de um cavalo trotando. - Quem será?! – Disse baixinho, curiosa. Logo um homem apareceu na margem do rio, amarrando o animal no tronco fino de uma árvore. “Um capitão do mato!”, exclamou a garota em pensamento. Dandara conhecia os capitães do mato pelas roupas que usavam e pela postura pretensiosa que exibiam. Nutria por eles uma profunda revolta; não entendia como alguém poderia fazer tanta questão de capturar seres humanos e dá-los para senhores cruéis, como se fossem objetos perdidos durante uma viagem. Dandara percebia que capitães do mato estavam presentes em muitos relatos das pessoas que chegavam a Palmares, muitas vezes agindo com brutalidade e maldade, amarrando homens e mulheres e os obrigando a acompanhar o ritmo acelerado do cavalo sem nenhum descanso e nem sequer um pouco de água. Seu desejo era de se vingar em nome de Bayô e de todos os outros irmãos do quilombo que já tinham sido surrados e xingados por um homem daqueles. - Ah, eu vou mostrar só uma coisa! – Murmurou a menina, descendo agilmente da árvore de onde observava a floresta. Dandara quase flutuava pelo chão da mata. No seu peito, o coração pulava e batia como um tambor furioso e ritualístico, • 38 • perfeitamente sincronizado com seus passos, em harmonia com os movimentos do seu corpo. Tinha deixado suas espadas na palhoça, mas para desenrolar o que imaginava, não precisaria se aproximar demais. Por trás das árvores que emolduravam o rio, Dandara se escondia e observava os movimentos do homem com atenção. Primeiro, esperou que ele se afastasse um pouco do cavalo, chegando mais próximo da água. Dandara calculou a distância e concluiu que precisaria de velocidade. “É agora!”, decidiu. - Epa! – Gritou Dandara. Seu grito fez com que o homem se assustasse e se desequilibrasse, caindo sentado na beira do rio. Antes que pudesse se levantar, a menina já estava montada no cavalo, que reagia com tranquilidade sem que Dandara precisasse acalmá- lo. Apenas bateu com os calcanhares nas laterais do corpo do animal e saiu galopando apressada, sem olhar para trás. Controlava o cavalo puxando as rédeas rapidamente para os lados, como se ensinasse um caminho mais seguro, em movimentos alternados; se o capitão do mato tentasse atirar, desse modo tinha mais chances de não ser atingida. Seu pensamento corria tão veloz quanto as pernas do cavalo e, por dentro, Dandara se sentia gloriosa. Por sua causa, o homem teria que caminhar a pé, certamente com prejuízo por ter perdido o animal. Era pouco, mas ensinava uma lição: gente ruim deve ficar alerta. • • • O retorno de Dandara foi um alívio para Bayô, mas sua presença trazia um novo elemento surpreendente: uma montaria. - Dandara! Menina! – Bayô mal conseguia falar – Onde • 39 • você pegou esse cavalo?! Dandara sorria e olhava para as outras mulheres como quem prova sua audácia e valentia. Estava triunfante e orgulhosa. Tinha vivido uma verdadeiraaventura e, agora, depois de ter deixado o capitão do mato para trás, achava que não havia se arriscado tanto assim. “Foi fácil”, pensava cheia de si. - Menina, responde! Onde você conseguiu esse cavalo?! – Bayô insistiu. - Eu roubei de um capitão do mato. Vocês tinham que ver a cara dele! A risada de Dandara perfumava o ar, enquanto a menina contava, com riqueza de detalhes, tudo o que havia feito. As mulheres escutavam impressionadas, assentindo com a cabeça e acompanhando Dandara em suas risadas. Bayô, por outro lado, permanecia séria, num misto de preocupação e choque. “Como essa menina conseguiu isso?”, perguntava a si em silêncio. Aquele episódio parecia lhe esfregar na cara que Dandara não era mais um bebê e que ela tinha suas próprias vontades e fazia suas próprias loucuras – até o momento, loucuras que compensavam, que davam certo. Talvez o destino daquela garotinha fosse mesmo a batalha pela liberdade. Mesmo ainda tão pequena, já detinha uma postura heroica e imponente. - Vamos, temos que voltar. Ninguém sabe se esse homem esperava companhia de outros. Não queremos que eles venham atrás de nós. A interrupção de Bayô surpreendeu Dandara, que preferiu permanecer em silêncio. Mas, para mostrar que acatava sua direção, a menina desceu do cavalo e foi caminhando um pouco atrás, chutando pedrinhas e alisando a crina do animal com carinho. Dandara sabia que, quando chegasse ao quilombo, seria rodeada por curiosos e, mais uma vez, explicaria seu feito vaidosamente, respondendo às perguntas dos guerreiros e ouvindo palavras de admiração das outras crianças. Estava tão • 40 • absorta em seus pensamentos satisfeitos, que não ouviu Bayô falando. - Dandara?! Ei! Foram necessários três chamados para que Dandara reagisse. - Sim, Bayô? - Você é uma menina especial... não se esqueça disso. As duas trocaram olhares sorridentes. • 41 • • 42 • 4. O ENCONTRO COM IANSÃ • 43 • Alguns raios de sol entravam pela palhoça quando Dandara abriu os olhos. Deitada em sua esteira, a menina se esticava e rolava para os lados com preguiça de se levantar. Bayô já estava de pé, reunindo alguns utensílios para cozinhar, enquanto cantarolava baixinho. - Bayô, hoje os guerreiros vão sair em viagem, sabia? A voz de Dandara assustou Bayô, que não esperava por aquelas palavras, justamente aquelas, nos primeiros momentos da manhã. Ela sabia que naquele dia alguns guerreiros viajariam até a cidade do litoral e que tinham sido convocados para uma espécie de negociação com os homens brancos, mas não tinha certeza de que aquela era uma boa ideia. No fundo, achava que nada de bom poderia vir dos homens brancos; eles não se interessavam realmente pela luta de Palmares, não respeitavam o seu povo e nem tinham qualquer intenção de libertar quem estava escravizado. Tudo o que queriam era que os guerreiros entregassem as armas de fogo. - Sim, Dandara. Eu sei. – A resposta de Bayô saiu desanimada. - Eu queria ir junto! Queria aprender também fora do quilombo! Dandara entendia que ainda não podia se juntar aos guerreiros. Em breve, sim. Já tinha mais confiança de que seria aceita para batalhar e somar na defesa de Palmares. Já se imaginava como líder de muitos, colocando em prática suas ideias elaboradas, mostrando sua coragem impetuosa. Somente por isso, por essa certeza, conseguia esperar pelo momento • 44 • certo. - Bayô, hoje eu não tenho tarefas e quero passear pela mata. – Disse Dandara em tom de pedido. - Desde que você não ultrapasse as fronteiras. – Permitiu Bayô. Num pulo, a garota se levantou e correu para lhe dar um abraço. A relação entre elas estava cada vez melhor e mais tranquila; já não discutiam pelos mesmos motivos e nem se incomodavam com as diferenças que cultivavam. Bayô havia compreendido que a menina tinha uma missão e que jamais poderia aprisionar seu espírito livre e rebelde. Dandara, por sua vez, sentia gratidão e amor pela mulher que era sua cuidadora. No fundo, sentia medo do dia em que a velhice próxima levaria Bayô para o mundo das boas almas. Percebia suas rugas e seu cansaço diário, sabendo que o dia se aproximava. O coração de Dandara então pesava. - Vou te ajudar a preparar a comida e depois eu saio. Bayô concordou, satisfeita. • • • A natureza de Palmares era mais vigorosa e deslumbrante do que em qualquer outra área daquela região. Dandara se convencia de que isso acontecia porque em Palmares existia felicidade verdadeira, algo que só era possível com a presença da liberdade plena. Embora todas as pessoas tivessem funções a desempenhar e responsabilidades a cumprir, o trabalho que era realizado não se tratava de uma imposição tirânica que geraria riquezas para poucos; tudo era compartilhado e cultivado em harmonia. A natureza, então, agradecia. Quanto mais Dandara passeava pelo quilombo, mais sentia um renovo de suas energias. Dandara amava conhecer minuciosamente as redondezas e até elegeu seus lugares • 45 • favoritos: a clareira onde praticava capoeira e a pedreira que ficava próxima de um dos lados da fronteira. Na clareira, Dandara gostava da companhia, dos momentos de cumplicidade e da ajuda mútua que ofereciam uns aos outros para aperfeiçoar a luta de modo eficiente; mas, na pedreira, o seu maior prazer era a solidão. Lá, bem alto, podia conversar consigo e sentir uma ligação profunda com Palmares. A pedreira era seu cordão umbilical com o quilombo. O sol já estava no meio do céu, muito quente, mas Dandara não se importava com o calor. Quando caía uma tempestade, ela se sentia pertencente aos céus revoltosos, muito embora tivesse aprendido a valorizar o sol como parte necessária da vida. Era o sol que garantia boas colheitas e, apesar de admirar muito mais a natureza rebelde, notava a beleza das cores ressaltadas pela luz estridente. Quando chegou à pedreira, o vento soprava leve e melodioso. Dandara sentou-se com as pernas separadas e esticadas, jogando o peso do corpo nos seus braços, que lhe serviam de apoio atrás. Com os olhos fechados, aproveitava cada segundo da brisa intercalada com uma ventania refrescante. Perguntava-se o que poderia acontecer naquele dia, quando os guerreiros partiriam para longe e, quem sabe, aceitariam um acordo indicado pela liderança. Ouvia o que Bayô comentava com outras mulheres e se esforçava para compreender todas as circunstâncias, mas não conseguia deixar de pensar que qualquer acordo seria um enorme erro. - Se lutamos por liberdade, por que vamos manter a paz com as pessoas que fazem nossos irmãos de escravos? Ou todos são livres ou ninguém é. – Questionou Dandara, apreciando o eco que fez ondas de sua voz abismo abaixo. Achava que estava sozinha. Tinha até mesmo um pouco de ciúmes daquele lugar que havia escolhido como seu refúgio, porque raramente recebia visitas. Afinal, muitas pessoas sentem • 46 • medo quando ficam diante de grandes alturas. Apenas Bayô sempre dava um jeitinho de aparecer sorrateiramente pelas redondezas da pedreira, só para ter certeza de que Dandara estava por lá e não tinha se metido em nenhum perigo. Aquele dia não foi exceção; Bayô acabava de chegar quando Dandara externou seus pensamentos. Ao escutar, sentiu uma ponta de orgulho. Bayô sempre procurava por sinais que apontassem algo de mais extraordinário sobre Dandara. Teimosa como era, esquecia do contexto em que a menina apareceu, do caminho magicamente separado do fogo e da forma sobrenatural com a qual tinha sido curada pelas mãozinhas inocentes da menina. No fundo, a confirmação de que precisava era a de que Dandara sobreviveria, de que saberia como guerrear e não acabaria morrendo em uma senzala cheia de correntes e tristezas. Bayô nutria pela garota um amor muito profundo e jamais teria paz sem saber que ela estaria segura. “Se eu ao menos tivesse uma confirmação”, suplicou em pensamento, desejando que Dandara lhe desse mais uma prova grandiosa de suas habilidades. Um pedido sincero é uma energiarara, pois muitas vezes não é verbalizado da forma como deveria. Mas a intenção do coração que almeja pode ser o suficiente para concretizar o pedido exatamente da maneira necessária. Naquele dia, o pedido de Bayô havia sido ouvido por Iansã, que a tudo observava. Desde que deixara Dandara na mata para ser encontrada por Bayô, Iansã assistia o crescimento de sua filha e guiava seus caminhos com cuidado. Enviava-lhe sonhos, ideias mirabolantes e soluções inteligentes para os problemas do cotidiano; alimentava sua imaginação com cenários maravilhosos e batalhas épicas de onde Dandara saía triunfante, segurando nas mãos os grilhões de centenas de pessoas que por ela eram libertas. Em momentos de necessidade extrema, como no dia em que Bayô fora gravemente ferida, Iansã indicava o caminho • 47 • e concedia poderes especiais na medida certa. Tudo isso podia fazer porque Dandara era ainda uma criança, precisava crescer com a convicção de que era capaz e de alguém olharia por ela. Certamente o cuidado de Bayô era o suficiente, mas Iansã desejava dispensar sobre ambas um presente que durasse por muitos anos, apaziguando os corações de Dandara e de Bayô ao mesmo tempo. Antes que Bayô pudesse se virar para retornar ao convívio no quilombo, uma poderosa ventania marcou presença na pedreira. Todas as árvores balançavam, enquanto dezenas de pequenos redemoinhos iam se formando em lugares diferentes, levantando um pouco de terra, levando folhas e galhinhos nos espirais de poeira. Sem demora, o céu começou a mostrar cores vivas em tons rosados e avermelhados, que se misturavam e se separavam no jogo da ventania. Era um espetáculo maravilhoso. Bayô e Dandara estavam atentas, completamente envolvidas. A garota, que ficou de pé, abria os braços para sentir na pele a sensação penetrante que a natureza lhe ofertava; Bayô, ainda discretamente escondida por trás de uma árvore, se agarrava ao tronco como se temesse ser levada pelos redemoinhos. De repente, uma voz feminina pôde ser ouvida: - Minha filha, Dandara... A menina olhou ao redor atônita. “Filha?!”, ela pensou. “Ninguém me chama de filha, nem mesmo Bayô!”, disse a si mesma. Do outro lado, Bayô enfiava os dedos nos ouvidos, tentando limpá-los para escutar novamente a voz misteriosa. - Dandara, filha do meu ser. Eu sou a sua mãe. Bayô pensava que aquela voz conseguia ser suave na mesma medida em que era dramática. Como um mergulho em águas calmas, como o sentimento de se importar verdadeiramente com alguém. Seu timbre era encantador, mas imponente. Quem quer que fosse a dona daquela voz, deveria ser uma mulher poderosa, • 48 • mas consciente de seu poder – e das responsabilidades que coexistem com ele. A confusão em que se encontravam Dandara e Bayô logo foi interrompida. Em poucos segundos, a imagem de Iansã foi se formando na frente da pedreira, um pouco acima de onde Dandara estava. As cores vivas e os ventos intensos formavam as roupas vermelhas, os cabelos e a espada da orixá, que logo havia se tornado tão física e palpável quanto qualquer ser humano que vivia em Palmares. Mas sua infinita beleza e majestade deixavam evidentes que não era somente uma pessoa: era uma deusa. - Eu sou Iansã, deusa das tempestades. Dandara, você é minha criação. Eu te criei do meu ser e te enviei para esta terra, para que traga liberdade aos meus filhos. Dandara tinha os olhos arregalados de tal maneira que não conseguia piscar. Tinha a impressão de que seu coração poderia sair pela boca a qualquer momento; suas pernas tremiam, suas mãos suavam. Não sabia se sentia temor ou encantamento. Deveria falar? Existiria alguma resposta apropriada para uma deusa daquela magnitude? Sua mente rodopiava num turbilhão de dúvidas e exclamações. - Você me criou? Você é a minha mãe? – As palavras escaparam atropeladas e gaguejadas. - Sou a sua mãe porque te criei de mim, de uma forma divina. Bayô também é sua mãe. – Disse Iansã com um sorriso nos lábios. Bayô foi surpreendida pela afirmação da orixá. Sentia- se mãe de Dandara, isso era um fato inegável e de total conhecimento de todas as pessoas em Palmares, mas ouvir seu nome sendo dito por uma deusa, em circunstâncias tão únicas, era imensamente acalentador. Alegrava-se por ser mãe daquela garotinha tempestuosa. “Tão tempestuosa quanto a deusa que lhe criou”, pensou e achou graça de sua constatação repentina. • 49 • - Estou aqui para dizer que guio seus passos a todo instante. Criei-te com uma missão, a mesma missão que arde em seu peito e arrebata seus pensamentos desde tão cedo. – Iansã continuou. - A missão de ser guerreira? – Perguntou Dandara, contraindo todos os músculos de seu corpo. - Sim, Dandara. Você será a maior guerreira de quem já se teve notícia. Libertará muitas pessoas. O seu nome será uma lenda para todas as gerações futuras. Naquele instante, Dandara sentia um calor reconfortante preenchendo seu peito. Sonhar com as batalhas e com as conquistas era algo que lhe trazia felicidade, mas ouvir aquelas palavras era muito mais do que podia fantasiar. A presença de Iansã estava além de todos os seus desejos mais altos. - Minha filha, jamais deixe que o medo, a dúvida ou a falta de esperança te dominem. Lembre-se de me chamar em momentos de necessidade. Eu estarei com você até o fim. Pouco a pouco, Iansã foi se dissipando no ar, como folhas levadas pelo vento. O céu voltou ao seu azul intenso e a brisa fina tomou o lugar da ventania orquestrada. Dandara caiu de joelhos, digerindo o que acabara de acontecer. - Iansã... – Repetiu o nome, como se tentasse lembrar de cada letra em particular. Bayô corria pela mata com lágrimas de felicidade. Para ela, Iansã era uma deusa cheia de bondade que escolhera aparecer justo no momento em que mais precisava de uma mensagem de segurança. Naquele momento, já não tinha mais dúvidas de que Dandara ficaria bem; entendia que até mesmo sua humilde existência fazia parte de um plano maior. Agora, sim, podia confiar na liberdade vindoura. • 50 • • 51 • 5. O NAVIO NEGREIRO • 52 • Com o passar dos anos e o acúmulo de episódios em que provara sua coragem, Dandara percebia que era quase uma unanimidade em Palmares: as crianças das novas gerações cresciam ouvindo histórias de seus feitos, que embalavam suas noites e marcavam presença nas conversas empolgadas de quem se deslumbrava com seus causos. Os mais velhos não poupavam elogios, estavam sempre observando o quanto ela havia crescido e como sua transformação em mulher acontecera de maneira impressionante. De repente, Dandara já não se sentia como aquela garotinha que criava situações embaralhadas e vivia se aventurando pela mata. Agora Dandara exibia um semblante sério e uma postura altiva. Sentia-se segura, consciente de suas capacidades e profundamente determinada, focada em sua causa maior. - Posicione o pé direito mais à frente. Dandara ensinava aos guerreiros posições melhores para a luta enquanto aguardavam que a reunião da tarde começasse. A guerreira exibia os músculos rígidos de sua panturrilha quando colocava o peso do seu corpo sobre uma das pernas. - E o que posso fazer para não sentir tanta dor durante o treino? - Perguntou um dos homens. - Não há como evitar totalmente a dor, mas se você puxar os dedos dos pés para trás, ela vai passar mais rápido. - Dandara respondeu. As recomendações da guerreira logo foram interrompidas pela chegada de Zumbi, líder do exército palmarino, que se aproximava lentamente, arrastando os pés no chão e levantando • 53 • um pouco de poeira com seus passos. Por causa de sua presença, Dandara cruzou os braços e separou as pernas. Sua expressão se tornou fechada, coroada com o queixo levantando em posição de questionamento. - Temos que discutir nossa guarda. Vamos reposicionar a vigilância nas fronteiras. Zumbi falava sobre estratégias de defesa e maneiras de garantir a resistência do quilombo para as próximas tentativas de invasão.Os guerreiros se mantinham atentos, mas Dandara ouvia a voz de Zumbi como se estivesse debaixo d'água. Não queria prestar atenção, se sentia incomodada pelas recorrentes conversas a respeito de como garantir a salvaguarda de Palmares, sem que nenhuma proposta mais ofensiva fosse colocada em discussão. Dandara queria tirar o exército palmarino da relação difícil em que se encontrava contra os homens brancos e suas forças bélicas. Na sua percepção, o quilombo era atacado, construía sua defesa e resistia; não era invadido nem destruído, mas não conseguia avançar. Viviam cercados, sem que conseguissem executar planos de libertação efetiva. Algumas dezenas de pessoas fugiam das senzalas e outras poucas eram resgatadas pelos guerreiros, mas Dandara queria mais. Por isso, a reunião daquela tarde estava especialmente incômoda. Só mais um monte de estratégias de defesa e treinamentos que não se desenrolariam para nenhuma ação diferente. Dandara se sentia cansada e almejava mudanças. - Vamos ao litoral! – Disse ela em voz alta, ignorando o que quer que tivesse sido dito anteriormente. Zumbi voltou seu olhar para Dandara, aguardando o complemento de sua sugestão. Naquele momento seria difícil deslocar todos os homens para o litoral da região, pois ainda estavam se recuperando de uma última tentativa de invasão. Poderiam sofrer uma emboscada no caminho, perder ainda • 54 • mais guerreiros em batalhas e, por isso, talvez nenhum plano fosse bom o suficiente para justificar o deslocamento. - Podemos invadir um navio e libertar quem vem como prisioneiro. – Dandara concluiu. - Não podemos nos arriscar neste momento. – Zumbi tinha uma expressão dura em seu rosto. – Olhe em volta, ainda temos homens com ferimentos em recuperação. - Se enviarmos alguns guerreiros, eu posso assumir a liderança nessa missão! A insistência de Dandara causava desconforto em Zumbi. Para ele, aquele não era o momento de assumir riscos; na última batalha contra os soldados brancos, muitos homens palmarinos faleceram e muito tempo havia sido necessário para recuperar a saúde dos feridos. Zumbi não se sentia preparado para exigir dos seus guerreiros que se aventurassem em um plano repentino. - Não podemos. Não há discussão. Dandara fechou as mãos e apertou as unhas com força em sua carne. Tinha a impressão de que Zumbi agia daquela maneira para tentar disfarçar o envolvimento crescente que vinham construindo. Há dois dias, conversaram na beira do rio e Zumbi confessara sua preocupação com a visão que os outros guerreiros poderiam ter da relação entre os dois. “Podem achar que lhe dou espaço porque lhe tenho sentimentos”, disse entre os dentes, baixinho, quase como se estivesse envergonhado de algo. E, para Dandara, deveria realmente se envergonhar! - Quer dizer que não sou uma guerreira boa o suficiente?! Só me tornaria líder por seus favores?! – Dandara abandonou a conversa explodindo de revolta, sentindo-se ofendida, como se sua única função no mundo fosse ser a companheira de Zumbi - companheira que jamais seria assumida enquanto se atravesse a guerrear. Naquela reunião, depois de ter seus planos rejeitados com tanta secura, Dandara se sentia mais nervosa do que em • 55 • qualquer outra situação de sua vida. Sentia-se injustiçada, já que sua competência para as batalhas era de conhecimento comum; até mesmo Bayô aguardava com imensa expectativa pelo dia em que Dandara assumiria a liderança do quilombo. As crianças já lhe reverenciavam como se liderasse todas as batalhas, enquanto, na realidade, ainda não tinha assumido o comando de nenhuma. “Eu não entendo porque Zumbi quer impedir minhas estratégias. Como vamos libertar nossos irmãos se não ousarmos?”, pensava aborrecida. Então, três dias depois de sua explosão de ira e de ter seu plano rejeitado sem muitas explicações, Dandara correu pelas matas paralelas às estradas, a caminho do litoral. Estava completamente sozinha. Nem mesmo o seu cavalo lhe fazia companhia; decidira deixá-lo em Palmares, para que pudesse sair do quilombo rumo a sua missão sem despertar questionamentos. Com pressa, preferia correr até chegar perto da exaustão e só então parava para repor as energias. A comida era pouca, mas o suficiente para a viagem de volta. Bayô, a única que sabia de seu objetivo, havia preparado alimentos fortes, que dessem a Dandara a sustentação e energia das quais necessitaria O maior problema da viagem era o seu pensamento inquieto. Mesmo quando pegava no sono, tinha sonhos incômodos com Zumbi e os outros guerreiros; em seu íntimo, temia que seu retorno a Palmares não fosse motivo de celebração, mas uma oportunidade para que a removessem das batalhas. Dandara não queria assistir o seu maior sonho escorrendo por suas mãos. Porém, quanto mais se perturbava com esses pensamentos e possibilidades, mais sentia seu corpo esfomeado pela liberdade dos que apodreciam nos porões das caravelas. “Preciso que dê certo”, confessava em pensamento. Dandara teve que correr por muitos dias, pois para chegar até o litoral, precisaria arrodear a floresta de modo que não • 56 • saísse da mata até se aproximar do porto. Não podia entrar pela cidade, pois algum soldado poderia reconhecê-la; tinha que agir com discrição e muito cuidado. A paciência, que sabia não ser uma de suas virtudes, seria a maior exigência. Ao chegar ao porto, percebeu o quanto aquele era um lugar imundo e que lhe gerava calafrios. Imaginar que ali eram despejados seres humanos à venda trazia um gosto amargo na boca; o ácido do estômago borbulhava e voltava pela garganta, junto com uma vontade quase incontrolável de vomitar. Dandara pensava no terror daquelas pessoas, arrastadas de suas casas, empilhadas em navios onde suas vidas eram descartadas como lixo. Quando desembarcavam no porto, eram exibidas como produtos, avaliadas pelas funções que poderiam desempenhar como escravas para as pessoas brancas. Esse terror era algo que Dandara fazia questão de nunca esquecer, para que seu ímpeto de libertação também não adormecesse. • • • Dandara estava à espreita há pelo menos duas horas, escondida atrás de centenas de barris. De vez em quando cochilava, mas despertava alarmada quando sua cabeça pendia para a frente. Cansada da posição desconfortável, já pensava em retornar para a mata, depois tentaria conseguir informações sobre as embarcações que poderiam chegar ainda naquela semana. Quando levantava para ir embora, avistou um navio se aproximando. “Que sorte”, pensou. Um navio que chegava no período da noite seria muito mais fácil de invadir, já que a escuridão seria sua aliada. No entanto, o pensamento de que tudo não passara de sorte não durou muito tempo em sua mente, pois a imagem de Iansã pairando acima da pedreira de Palmares invadiu suas lembranças. “Nada é somente uma questão de sorte”, corrigiu-se. • 57 • Enquanto se aproximava vagarosamente do local onde o navio afundaria suas âncoras, Dandara revisava seu plano e as diversas variações de sua execução. Já se imaginava vitoriosa, retornando para o quilombo com algo que provasse sua história, criando assim a inspiração que todos os palmarinos necessitavam para se arriscarem, junto com ela, em planos mais complexos de libertação. Indignava-se quando pensava que em momento algum havia insinuado a derrubada de Zumbi; tão somente queria assumir o comando em batalhas e localidades separadas, assim, teriam muito mais sucesso em suas lutas e objetivos. “Como algo tão fácil de entender pode ser tão complicado?”, questionava-se. Seus conflitos internos foram obstruídos pela voz rouca de um homem branco que gritava autoritariamente na proa do navio. Junto a ele, mais três homens desciam para o cais, com os braços cheios de sacos pesados, barris e caixotes com armas de fogo. Dandara observava atentamente cada movimento, ouvindo as instruções repassadas pelo homem que se portava como um general. Aos poucos, todos foram se distanciandodo navio, procurando lugares onde pudessem pagar por uma refeição. Na entrada, somente um soldado fazia guarda. “Estão confiando na madrugada”, Dandara compreendeu. Rapidamente, Dandara deixou suas coisas escondidas entre os barris, decidindo enfrentar sua tarefa apenas com as espadas que carregava presas na cintura. Segurando-as com firmeza, surpreendeu o soldado por trás, pressionando as duas pontas cortantes contra sua nuca. - Calado. Me leve até o porão. O homem olhava para os lados procurando pelo reforço distante do qual necessitava naquele momento. Porém, o caminho do cais até o porão não era tão longo e Dandara logo estava descendo as escadas que a levavam a um local onde dezenas de pessoas se amontoavam como sacos de coisas • 58 • apodrecidas. O fedor era insuportável e ardia nas narinas; olhando ao redor, Dandara percebeu que todo o chão do porão estava abarrotado de excrementos amassados e de sangue. Algumas pessoas gemiam, doentes, com seus corpos cobertos por feridas inchadas e latejantes de pus. Outras estavam de pé, assustadas. - Sou Dandara dos Palmares, vim aqui para lhes trazer libertação. – Sua voz era grave e pesada, como a tristeza que sentia naquele momento. Embora aquelas pessoas não pudessem entender as palavras ditas por Dandara, todas compreenderam que suas intenções eram boas. O fato de que a guerreira empurrava o soldado e acabava de apanhar cordas ao chão para amarrá-lo, também reforçava a impressão favorável. Aproveitando-se da situação, um homem deu um passo à frente. - Sou Kambo. Venho de outro porto, era fugido e fui capturado, entregue para o capitão deste navio para que me devolvesse ao senhor dessas terras. Por que você está aqui? Kambo era um jovem magro e carregava uma expressão desolada de desistência. Parecia alguém derrotado, alguém que já não queria tentar. Suas palavras foram rápidas, mas tocaram Dandara profundamente. - Eu sou guerreira do quilombo de Palmares. Vim aqui para entregar o controle deste navio nas mãos de alguém capaz de guiá-lo de volta ao porto de onde saiu. Você fala a língua deles? – Perguntou Dandara. - Apenas um pouco; era a língua de minha mãe. – Kambo respondeu. - Diga-lhes que darei o comando do navio e poderão retornar aos seus lares. Pergunte se estão dispostos a tentar, se alguém assumirá o comando. Kambo levou vários minutos para conseguir expressar todas as palavras, mas ouviu algumas respostas em retorno. • 59 • - Eles perguntam se há armas para que se defendam. - Sim, alguns caixotes no cais. Solte todos enquanto vou buscar. Dandara se sentiu aliviada quando chegou na superfície no navio e viu que o silêncio ainda imperava. Tinha pressa para concluir sua missão, pois a qualquer momento os outros soldados poderiam retornar. “São muito pesadas, só consigo carregar uma por vez”, pensou decepcionada, erguendo uma caixa e caminhando o mais rápido que podia de volta ao porão. - Venham comigo! – Exclamou gesticulando para as pessoas que já estavam soltas. Além de Kambo, dois homens e uma mulher a seguiram, lutando contra a desconfiança e o medo que sentiam. Logo perceberam que mais ninguém os esperava e que, de fato, poderiam se apossar de mais algumas armas, além de caixotes com mantimentos e alguns barris de água. Dandara estava ardendo em energia, passando seu olhar por todo o porto, pedindo a Iansã que lhe ajudasse a liberar o navio antes que os brancos retornassem. Como não podia se comunicar com aquelas pessoas de outra forma além de gestos, apontou para o timão do navio, chacoalhando o braço. Kambo interviu, usando as palavras necessárias, enquanto Dandara puxava as âncoras. Muito tempo já havia corrido e o sol começava a nascer, mas o navio finalmente iniciava seus movimentos. Agora, Dandara precisava descer, apanhar seus pertences escondidos entre os barris empilhados e correr incansavelmente para a mata. Fugir em plena luz do dia seria um desafio tremendo, mas àquela altura não havia outra escolha. - Você vai com eles ou vem comigo, Kambo? – Dandara estava ofegante. - Para Palmares?! - Sim! Você vem?! • 60 • Kambo pulou do navio como resposta e caiu sonoramente no cais, provocando um barulho oco de ossos contra a madeira. Dandara veio logo atrás, tirando as espadas da cintura – seu temor estava se concretizando: os homens brancos já corriam na sua direção. - Fuja, Kambo. Me espere na mata! – Gritou em alerta. O rapaz saiu desesperado, tropeçando nos próprios pés e derrubando tudo o que estava pela frente. Em nenhum momento pensou que poderia ficar e lutar ao lado de Dandara, apenas obedeceu ao comando da guerreira e se sentiu grato; sua esperança de liberdade poderia durar mais do que alguns segundos embalados pelo som da palavra “Palmares”. No cais, Dandara estava em posição de enfrentamento, com uma espada em cada mão e joelhos flexionados. Assim que Kambo sumiu de vista, a guerreira correu ao encontro dos homens brancos; sua lógica sempre fora a do ataque: não esperava que o primeiro golpe viesse, fazia questão de que suas ações fossem a abertura de qualquer luta. Os quatro homens sentiam que estavam verdadeiramente perdidos. Toda a viagem para África, todos os gastos e mercadorias que trocaram para que pudessem encher de escravos o porão do navio, tudo se desperdiçava e ia embora, se distanciando cada vez mais do porto. - Sua escrava insolente! – Esbravejou o homem mais velho. - Meu nome é Dandara, sou guerreira dos Palmares e sou uma mulher livre! – Gritou orgulhosa, ganhando todo o porto com sua voz. A perplexidade dos homens brancos era a vantagem que Dandara queria para desarmá-los. Apenas dois portavam armas de fogo enquanto os demais seguravam armas brancas. Então Dandara começou a saltar, realizando movimentos de capoeira. Com uma perna, derrubou a arma de um dos soldados, chutando-a para a ponta do cais antes que o homem pudesse se • 61 • abaixar para apanhá-la. Com um golpe de espada, Dandara fez um corte em um dos braços do outro soldado e o empurrou – o suficiente para que rompesse o suporte de sua arma. Essa foi a deixa para que a guerreira desse alguns passos para trás e se abaixasse, aproveitando a mudança no foco de atenção dos soldados e desviando das lâminas que zuniam no ar. Dandara apanhou uma das armas de fogo do chão e rapidamente apontou a mão armada na direção dos homens, que assistiam surpresos. - Joguem as espadas no chão! Agora! – Ela gritou, cerrando os dentes com impaciência. Segurando suas espadas em uma mão e ameaçando os soldados com a arma de fogo, Dandara chutou o revólver caído no cais, fazendo com que ele mergulhasse pesadamente no mar. Sentia-se acuada e nervosa. - Saiam da minha frente! – Tornou a ordenar, dessa vez colocando o dedo no gatilho. Os homens se afastaram com as mãos separadas, em sinal de súplica silenciosa, pedindo que a guerreira não atirasse. Sem pestanejar, Dandara saiu correndo, deixando suas coisas para trás. Não tinha tempo de fazer outra parada, precisava partir para a mata, onde Kambo deveria estar esperando. Temeu pelo rapaz, mas a preocupação não poderia ajudá-los naquele instante. Tinha que fugir e alcançar a floresta. Escondido atrás de algumas árvores, Kambo se sentia apreensivo, imaginando o que poderia estar acontecendo com Dandara. “Será que ela já está vindo? E se conseguiram parar o navio? E se Dandara estiver ferida?”, repetia em pensamento. Tinha medo até de se mexer, pois não queria que a esperança da liberdade fosse novamente arrancada de suas mãos. Desde criança ouvia falar de Palmares, o refúgio dos oprimidos, o reino da liberdade, onde pessoas como ele e sua mãe poderiam viver em paz. Quando pequeno, escutava que • 62 • em Palmares centenas de guerreiros faziam a guarda das entradas do quilombo, que lá eles próprios caçavam, plantavam, cultivavam e colhiam seus alimentos, sem que em nenhum momento tivessem que entregar os produtos da natureza para um senhor cruel
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