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Flecha Dourada - O Guerreiro do Arco Íris - Lauro Lima

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2 
 
INTRODUÇÃO 
 
Era o ano de 1993, em meados de abril. Tinha sido 
uma semana difícil e cansativa, de muito trabalho e pouco sono. No 
sábado à noite cheguei em minha casa em Bragança Paulista, beijei 
meus filhos e minha esposa e tomei um relaxante banho. Jantei e 
depois fui para o meu quarto. Sentei-me na cama apoiado nos 
travesseiros e fiquei esperando por minha mulher. 
Fechei os olhos e respirei devagar e profundamente, 
sem pensar em absolutamente nada. De repente, uma intensa luz 
surgiu aos pés da cama e assim que abri os olhos lá estava ele: um 
índio altíssimo, envolto em uma maravilhosa luz dourada. Sem 
pronunciar uma palavra me perguntou: 
- Você está disposto? 
Entendi a sua pergunta como uma proposta para que 
eu realizasse alguma tarefa, para a qual teria que me preparar 
convenientemente. 
Percebi que ele não se apresentava com todo o brilho 
de sua hierarquia espiritual, talvez para não me assustar, porém, a sua 
energia era tanta, que fiquei profundamente emocionado e, mesmo 
sem saber do que se tratava, mentalmente respondi que sim. 
Então, ele mostrou-me um livro de frontispício 
semelhante ao dessa obra e disse: 
- Você vai escrever sobre a história da minha vida! 
Em seguida, passei a ter uma série de rápidas visões 
que, como slides, mostravam os momentos mais importantes de sua 
última encarnação como indígena, em terras sul-americanas, 
especialmente no território hoje considerado brasileiro. 
Uma das visões que mais me impressionou foi a de 
vê-lo voando, a poucos centímetros acima do solo e a mata se abrindo 
adiante, dando-lhe passagem. 
Tratava-se da saga mística do primeiro herói- 
civilizador do povo tupi, inicialmente denominado de Agnã e que 
recebeu inúmeros outros nomes, entre os quais Flecha Dourada e 
3 
 
Sumé, o mais conhecido. Nesse primeiro livro, retratarei a sua iniciação 
espiritual, passada há 500 anos a.C. 
Como eu não sabia nada a respeito da história 
indígena, mais do que havia aprendido nos bancos das escolas (o que 
não era grande coisa para um estudo mais sério), tive que começar a 
pesquisar. 
Ao mesmo tempo, como sempre fui muito cético com 
todos os tipos de manifestações paranormais, incluindo as minhas 
próprias, mesmo sendo membro e dirigente de uma ordem esotérica, 
buscava muito mais a certeza absoluta da existência concreta desse 
herói indígena. 
Uma tarefa difícil, tendo em vista que são poucas as 
obras de autores nacionais que retratam a vida dos índios brasileiros 
na época pré-colombiana. Em nenhuma encontrei um estudo que 
abordasse o assunto que me interessava. Perdoem-me se cometi 
alguma injustiça. 
Quando já estava quase desistindo, encontrei um 
livro empoeirado na prateleira de uma famosa livraria. O seu título A 
religião dos tupinambás, não me estimulou muito, pois o termo 
tupinambá, de certa forma, é recente, usado pelos colonizadores 
portugueses, muito mais para denominar o povo tupi da costa 
brasileira. 
Sinceramente, virei as costas e ia embora, quando 
aquela coisa, sim, “aquela coisa” que você sente surgir lá dentro, 
dizendo que você vai cometer uma enorme burrice se não voltar atrás, 
obrigou-me a dar uma olhadinha naquele livro meio amarelado. 
Que surpresa maravilhosamente arrepiante! Era uma 
obra de Alfred Métraux, um historiador suíço, que se naturalizou norte-
americano, editada pela Universidade de São Paulo, da época do reitor 
Waldyr Muniz Oliva e da Companhia Editora Nacional. O exemplar era 
da segunda edição. 
O prefácio do tradutor, professor Estêvão Pinto, 
mostra, por si só, a dificuldade que tive: “A vasta obra de Alfred 
Métraux, embora mundialmente conhecida, é pouco divulgada no 
Brasil.” 
Muito bem, logo de cara abro o livro na página 2 e 
vejo que o autor faz uma referência ao estudo de Thevet*, que se 
refere a um herói-civilizador que o povo tupinambá chamava de Maire-
monan: ...um exímio feiticeiro: vivendo num retiro, em jejum e 
4 
 
rodeado de adeptos. E julgavam-no não somente dotado de poderes 
ilimitados, mas ainda senhor da ciência completa dos fenômenos 
naturais e dos mistérios ritual-religiosos. Foi Maire-monan quem 
instaurou várias práticas sagradas ou mágicas Impressionante, 
não é mesmo? 
 
* André Thevet ( 1502 - 1592 ), cosmógrafo e cronista francês. Acompanhou 
Villegaignom ao Brasil ( 1555 ) e, de volta à França, publicou Les singularitez de la 
France Antarctique ( As singularidades da França Antártica, 1558 ), sobre a flora e a 
fauna brasileiras, os índios e seus costumes. ( N. ? ) 
 
 
Ainda segundo Thevet: Fora Maire-monan, diziam os 
índios, quem lhes desaconselhara a comer da carne dos animais 
pesados ou lentos... . Atitude muito comum dos iniciados. 
Na página 3, Alfred é bem claro: Os tupinambás 
sentiam-se ainda devedores a Maire-monan por sua organização social, 
ou seja, conforme a expressão de Thevet, por sua maneira de 
“distribuir o governo”. 
Tais foram, pois, os benefícios que Maire-monan 
espalhou entre os homens. Mas, sua atividade não se limitou só a isso. 
Passava, como já o disse, por um exímio “transformador”, isto é, 
atribuíram-lhe a maior parte das metamorfoses por meio das quais os 
silvícolas explicavam as características de certos animais ou coisas, ou, 
simplesmente, a sua existência. 
Na página 8 o autor estrangeiro cita um escrito do 
conhecido padre Manuel da Nóbrega, que fala a respeito da história de 
um índio que os matos lhe faziam caminho por onde passasse... . 
Bom, para mim foi a gota d’água. Sentei-me em um banco da livraria 
e quase devorei as 224 páginas no mesmo dia. 
Segundo Métraux: A ação civilizadora desse herói 
ter-se-ia manifestado, sobretudo, pelo fato de haver o mesmo 
introduzido a agricultura entre os antepassados dos tupinambás, 
trazendo-lhes todos os vegetais que serviam de base para a 
alimentação de seus descendentes. 
Mais adiante: ...Maire-monan fez mais: ensinou aos 
homens a distinguir os vegetais úteis dos nocivos e mostrou-lhes o uso 
que podiam fazer de suas virtudes medicinais. 
Claro que decidi comprar o livro e tive outra surpresa! 
Ele estava há tanto tempo estocado, embora fosse o único exemplar à 
venda, que ninguém sabia o seu preço. Tive que esperar 
5 
 
que, inutilmente, tentassem entrar em contato com a editora. 
Desistiram e acabaram oferecendo-me o livro por um valor simbólico. 
Você, caro leitor, com isso deve ter deduzido o grande significado 
oculto de tão importante presente. 
As façanhas desse herói-civilizador foram narradas 
pelos índios aos jesuítas, no início da colonização e esses acabaram 
acreditando que, na realidade, se tratava de São Tomé. 
O fato é que o nosso herói-civilizador realmente 
existiu e deu origem a inúmeras lendas, ficando conhecido por nomes 
diferentes, conforme as tribos com que tinha contato: Mair-munhã, Pai 
Solitário; Maire-monan, Pai Transformador; Irin-pajé, Feiticeiro 
Transformador; Maire-pochy, nome recebido nos Andes, especialmente 
na região do Peru; Irin-magé; Zaguaguayu, Coroa de Plumas 
Amarelas, entre os guaraius; Zumi-Topana, para os Omaguas do 
Paraguai; Nanderuvuçu, Nosso Grande Pai, ou Nhaderamoitubixa, 
Nosso Grande Antepassado, ou Nhandejara, Nosso Avô Grande, ou 
ainda Nanderu Mbaecuaá, Nosso Pai Conhecedor de Todas as Coisas, 
para os Apapocuva-guarani; Maira-atá, Feiticeiro Viajante, para os 
Tembé; e muitos outros nomes. 
Na Ordem do Arco-Íris, da qual sou membro, Flecha 
Dourada passou a ser chamado de Sun Paan, um nome místico que o 
identifica como um ser que não mais reencarna na Terra, mas que 
continua a trabalhar por ela e todos os seus filhos. Com essa 
denominação, ele foi citado no livro Todas As Vezes Que Dissemos 
Adeus - ORÉ AWÉ ROIRU'A MA, do Txukarramãe, Kaka Werá Jecupé. 
Por que Flecha Dourada quis que se narrasse a sua 
vida, só nesse fim de século? Acredito que há vários motivos, todos 
importantes. 
Inúmeros acontecimentos marcantes mostram que 
estamos vivendodias muito diferentes, em que a consciência mundial 
está refletindo sobre dogmas até então intocáveis. 
Há alguns anos atrás, seria difícil imaginar fatos como 
a queda do muro de Berlim, a divisão da União Soviética, a 
democratização dos países do chamado bloco socialista, a queda 
democrática de presidentes sul-americanos, um presidente negro na 
África do Sul etc. 
É inquestionável, porém, que vários tipos de 
movimentos têm unido toda a humanidade, especialmente quando se 
busca a preservação de todas as espécies vivas. Existe um consenso 
6 
 
generalizado de que se não defendermos os bens que a natureza nos 
oferece não sobreviveremos. 
No Brasil, as atenções também se voltam contra as 
manifestações raciais e pela preservação dos costumes indígenas, 
quase extintos pela cultura do homem branco, em nome da religião e 
do progresso. 
Não haverá, em lugar nenhum do mundo, um melhor 
ecologista que o primitivo homem da terra. Ninguém a amará tanto 
quanto ele. Talvez seja essa uma das mensagens de Flecha Dourada. 
Está mais do que na hora de voltarmos às nossas origens. 
A sabedoria milenar, que valoriza o homem como um 
ser divino, o faz curvar-se diante da natureza, também divina, uma vez 
que iniciou a sua caminhada evolutiva por meio dela. Ela é a nossa 
verdadeira mãe, que nos gerou e que nos fornece tudo aquilo de que 
precisamos para subsistir. 
Não seria um crime querer destruir quem nos deu a 
vida? Se qualquer pessoa se sente no direito de defender a mãe- terra, 
o esoterista, o estudioso dos assuntos ocultistas, o espiritualista, esses 
têm o dever de tomar alguma atitude para evitar que ela seja vítima 
das atrocidades do progresso. Se a natureza for destruída, nada mais 
poderá ser gerado nesse mundo. 
O nosso herói ao referir-se à Atlântida mostrou como 
o homem-espírito foi esquecido com o progresso inconseqüente, a 
ciência materialista. A poderosa nação seguiu por uma vereda de 
autodestruição. É mais um alerta para que evitemos o mesmo destino! 
A preocupação de Flecha Dourada não é à-toa, pois 
estamos passando por um período evolutivo extremamente delicado 
em que todos os valores estão sendo testados. Assim, através de sua 
própria experiência, ele resgata os antigos ensinamentos despertando-
nos para a Consciência Cósmica. 
Outro ponto interessante é que a iniciação de Agnã 
pode se referir a qualquer um de nós. Certamente, em alguma coisa 
nos identificaremos: os problemas do orgulho, da vaidade, do poder, 
do sexo, dos princípios filosóficos postos à prova diante da vida real. 
Face aos vários ensinamentos esotéricos, facilmente 
passados em quase todos os episódios, o estudante ocultista 
encontrará um farto material de estudo e pesquisa, seja um 
principiante ou um iniciado de longa data. 
7 
 
A par do seu conteúdo mítico, é uma história cheia 
de aventuras e poesia. Você não tem a obrigação de ser um teósofo 
para entendê-la ou aceitá-la. Acredite ou não nos princípios 
espiritualistas, essa obra pode ser encarada simplesmente como a 
descrição de um mundo encantador e exótico que está ao seu alcance. 
Nas páginas desse livro, com certeza, você mesmo 
acabará encontrando as respostas para muitas de suas indagações e 
dúvidas. 
Evidentemente que usei uma linguagem 
contemporânea, não sendo fiel a uma escrita tipicamente indígena, 
nem poderia ser. Primeiro, porque não falo nenhuma língua tribal; 
segundo, penso que o estilo que escolhi, é de mais fácil 
compreensão. De qualquer maneira, acredito que os fundamentos 
foram passados como deveriam ser e da forma mais simples possível. 
Algumas vezes empreguei palavras do tupi arcaico e 
do tupi-guarani mais contemporâneo para ilustrar a história mas, para 
facilitar a leitura, todos os termos se encontram em um glossário em 
anexo, embora a grande maioria das palavras sejam explicadas no 
decorrer da própria narrativa. Convém ressaltar que não se usa o plural 
ao se referir aos povos indígenas. Portanto, não se fala “os homens 
tupis” e sim os “homens tupi”, por exemplo. 
Bem, agora solte-se e relaxe. Respire fundo e deixe 
a sua imaginação fazer viver uma história que não morreu. Será como 
uma linda música dando alma às letras de uma bela poesia. Se assim 
for, você se tornará o principal personagem de uma aventura 
fascinante no mundo da magia... 
8 
 
PARTE I - TRADIÇÕES 
1 - ANTES DO INÍCIO 
O sol nascente parecia mais lindo do que nunca. Eu via os 
seus raios transpassando as alvas nuvens que cobriam o céu, 
matizando-as com um colorido sem igual, anunciando um novo dia. 
Sob a mata pairava uma delicada neblina que se desvanecia 
lentamente diante do astro rei. O despertar de um novo dia surgia 
também no cântico dos pássaros e no movimento divino de cada 
animal. 
 
da criação. 
O tempo foi passando, lentamente lindo em cada detalhe 
 
No entardecer, o sol escondia-se atrás das altas árvores, 
voltando a pintar a natureza com suas cores de vida. 
Pude contemplar um maravilhoso arco-íris que bordava o 
céu entre uma cachoeira no alto de uma chapada e um lago sereno e 
tranqüilo que guardava os segredos de um tesouro inatingível, real e 
imaginário. 
Veio a noite e passei a admirar as estrelas do firmamento. 
Seria a última vez que poderia saboreá-las com tanta liberdade, tocá- 
las com os meus lábios, senti-las dentro de meu coração. Nessa doce 
noite a lua não poderia se ocultar de mim; pelo menos por mais alguns 
minutos eu a veria despida de trevas, vestida apenas por uma luz 
encantada, como uma mulher misteriosa e arrebatadoramente 
sedutora. 
Pensei em todas as coisas que fiz nos anos todos que se 
passaram, período tão longo e distante... Senti medo do que viria, de 
como iria reagir diante de uma outra responsabilidade, no maior 
desafio a mim reservado até então. 
O receio não era apenas de enfrentar o desconhecido mas 
em não errar outra vez. Era também a oportunidade de uma realização 
interior que eu tanto havia desejado. 
Vagavam os meus pensamentos entre as sombras da 
dúvida e a luz da confiança, da necessidade de concluir algo inacabado, 
de alcançar o cume mais alto de onde partem as águas cristalinas em 
busca do lago sereno e translúcido. 
Subitamente, senti como se uma força irresistível 
arrastasse o meu espírito para algum lugar. Perdi a noção do tempo e 
9 
 
do espaço. A sensação desconfortável durou por alguns instantes. Logo 
após, recobrei a consciência. 
Aproximou-se de mim o meu grande amigo e companheiro, 
que naquele momento me dava assistência. Vestido de uma toga 
branca, com o capuz recolhido às costas, fitou-me com seus olhos 
transluzentes e penetrantes. Sem palavras, fez apenas um sinal com a 
cabeça e eu compreendi então que já era hora de partir. O meu coração 
apertou amargurado e minha alma encheu-se de lágrimas na 
despedida derradeira, embora, mais do que nunca, eu soubesse que 
ele e todos aqueles companheiros de tantas jornadas e aventuras, 
permaneceriam sempre ao meu lado. 
Seriam eles a minha fortaleza nos momentos difíceis, a 
mão invisível, porém firme e segura, durante os caminhos incertos do 
desconhecido. Os enviados divinos que sustentariam a minha alma 
aflita e angustiada entregue a uma nova vida de lutas, sacrifícios e 
aprendizados. 
Outra vez... tive a mesma sensação desagradável. Uma 
força descomunal quase me tirava os sentidos mais amplos que 
possuía. Já não havia mais tempo. Vendo os amigos distantes, as 
estrelas sumindo, fui perdendo a consciência e adormecendo 
lentamente... 
Profunda paz... 
10 
 
2 - CHEGANDO EM CASA 
 
Todo o conhecimento acumulado durante os milênios 
permaneceria intacto. A experiência, no percurso das existências da 
alma, emergiria sempre que necessário nos momentos imprescindíveis. 
Não haveria plena consciência do passado, mas no decorrer 
dos acontecimentos eu, de alguma forma, sentiria que muitas coisas 
não seriam tão estranhas e de alguma maneira teria uma certanoção 
de como agir, do que fazer. 
Seria, entretanto, incorreto afirmar que tudo já estivesse 
predestinado e que eu possuisse todo o controle dos acontecimentos 
que adviriam. Não haveria mérito para o aluno se ele soubesse, 
prematuramente, todas as respostas da prova à qual seria submetido. 
A importância do teste está justamente na avaliação da 
capacidade do aprendiz de reter consigo os ensinamentos a ele 
ministrados. Em se tratando da alma, é a aferição de que as qualidades 
e virtudes alcançadas manifestam-se naturalmente, que o 
aprendizado, no decurso das vidas, foi realmente assimilado. 
Repentinamente, quando já supunha estar vivenciando 
uma paz duradoura, passei a sentir uma sufocante compressão como 
se o mundo inteiro estivesse sobre mim. 
A sensação desconfortável se repetia em determinados 
intervalos de calmaria, até que se tornou contínua. Agora, me parecia 
estar no interior de um vulcão prestes a entrar em erupção. E entrou... 
Lá estava eu, novamente no mundo dos homens, limitado 
no interior de um corpinho tão frágil, sentindo muito frio. Logo em 
seguida, o meu pai cortou o cordão umbilical com os seus próprios 
dentes e depois banhou-me em um riacho. Um outro homem 
aproximou-se e achatou o meu nariz com o seu polegar. 
Chorei tudo o que podia chorar mas, quanto mais chorava, 
mais aquelas pessoas estranhas e malucas gritavam, festejando o 
nascimento do novo membro da tribo tupi, uma das primeiras que daria 
origem a uma grande e poderosa nação. 
Finalmente, colocaram-me em uma redezinha, entre dois 
esteios de madeira, chamada de amy. Embora eu preferisse o 
aconchego da minha mãe, ninguém me dava ouvidos. 
11 
 
Como oferenda cerimoniosa de bom presságio, ganhei 
unhas de onça, garras, asas e penas de cauda de gavião, mais um 
pequenino arco com pequeninas flechas. 
Durante muito tempo o meu pai permaneceu ao pé de 
minha mãe ou deitado em sua rede, não fazendo absolutamente nada, 
até o dia em que o meu umbigo secou e caiu. Foi uma grande festa em 
que a tribo toda participou. 
Em homenagem ao meu idoso avô, que havia sido o maior 
de todos os guerreiros e em lembrança dos nossos ancestrais que 
viveram nos Andes, passaram a me chamar de Agnã, que significava 
O Temível, na alusão de que eu herdaria a fama de um terrível 
guerreiro, honrando os meus antepassados. 
12 
 
3 - BULINDO COM SERPENTES 
 
As crianças em nossa tribo eram criadas com muita 
liberdade e nunca eram repreendidas. Todas as mulheres e todos os 
homens se preocupavam com elas, que eram educadas no respeito aos 
mais velhos e na observação das tradições. 
Ainda muito pequeno, eu ficava com minha mãe, que me 
colocava dentro de um cesto que era preso em suas costas, dando- lhe 
liberdade para cuidar das plantações, colher os alimentos e se dedicar 
a outras tarefas domésticas. 
Por volta dos meus quatro anos, dei o primeiro susto em 
minha família e em toda a tribo. Estava sentado no chão de barro de 
nossa oca a brincar sozinho com o meu maracá, quando 
sorrateiramente entrou ali uma jararaca de mais de um metro e meio 
de comprimento. Atenta, observou bem o que eu fazia. Quando vi a 
cobra, larguei o maracá e aproximei-me dela. Olhei bem para os seus 
olhos, apontei-lhe o dedo e disse: 
- Xerimawa! - o que significava animal de estimação. 
A cobra se assustou e ficou em posição de ataque. Não me 
intimidei e disse: 
- Minha xerimawa! 
A jararaca era orgulhosa e não admitiu que eu lhe 
apontasse o pequeno dedinho bem perto do seu nariz. Deu um bote 
em minha direção no exato instante em que a minha irmã mais velha 
entrava na oca. A tribo inteira correu para a palhoça com os frenéticos 
gritos que ela deu. 
Os que adentraram na oca também ficaram assustados. A 
cobra estava toda enrolada em meu corpo e eu segurava o seu 
pescoço. E que pescoço comprido! 
Alguns faziam gestos estranhos, uns falavam baixinho para 
que eu não me movesse e outros gritavam para que eu continuasse a 
segurar a jararaca. Sinceramente eu não entendia o porquê de tanta 
preocupação: pelo menos eu estava me divertindo muito. 
Com uma mão eu segurava a jararaca, com a outra agitava 
o meu maracá. O maracá consistia em uma baga, fruta da cuieira ou 
cabaceira, que na oca servia como cuia. Quando colocávamos suas 
próprias sementes em seu interior e a tampávamos, a baga virava um 
chocalho, que era utilizado como um instrumento musical ou brinquedo 
de criança. 
13 
 
Agitando o maracá, a serpente soltou-me, mas quando o 
meu pai quis aproximar-se com uma vara para abatê-la, ela voltou a 
se enrolar em mim. 
Fiquei preocupado. Não de que ela me ferisse, mas de que 
pudessem machucá-la. Pedi para que não lhe fizessem mal e agitei 
novamente o chocalho. Assim a serpente foi saindo pelo mesmo buraco 
na palhoça pelo qual havia entrado. Minha mãe, em seguida, pegou-
me no colo e todos passaram a me examinar para ver se eu havia sido 
picado. 
Lá fora, a minha xerimawa não teve perdão: os outros 
homens a mataram com medo que assediasse outras crianças. Todo 
mundo começou a chorar. 
Não fui picado, mas fiquei muito triste ao saber que haviam 
matado a minha cobra de estimação. 
No mesmo dia, organizaram uma enorme festa para 
agradecer a Munhã, o grande Deus criador, a proteção ao pequeno 
Agnã. Beberam e dançaram a noite inteira. Eu continuava aborrecido. 
No dia seguinte, todos estavam exaustos e eu 
inconformado pela terrível sorte de minha xerimawa. Fui então para a 
mata com o meu maracá, chacoalhando-o várias vezes, chamando 
uma nova serpente. 
O tempo passou e, óbvio, a minha família deu por minha 
falta. Todos passaram a me procurar com medo de que os maus 
espíritos, como vingança da comemoração, tivessem me raptado. 
Uma das mulheres ouviu o som do maracá no meio da 
mata. Não demorou muito para que me encontrassem em uma 
pequena clareira. 
Novamente ficaram aturdidos a observar agora, não 
apenas uma, mas várias serpentes brincando com o pequeno Agnã. 
Minha mãe e irmãs choravam muito e todos faziam uma cara de 
desespero. Ao ver tanta gente, fiquei com medo que alguém pudesse 
fazer mal às xerimawas e, agitando o maracá, mandei-as embora. 
Ao me encontrarem são e salvo, quiseram fazer uma nova 
festa para comemorar o acontecimento mas, temerosos, consultaram 
o pajé sobre a conveniência da mesma. Claro, não tinham a intenção 
de transformar a tribo toda em um serpentário. 
O pajé era o feiticeiro, o médico, o conselheiro, o chefe 
religioso da tribo. Era um homem bom e sério, que só se descontraía 
quando bebia muito nas festas. Após fazer suas consultas espirituais 
no meio da mata, autorizou a festança e mais bebedeira. 
14 
 
Aliás, todos os acontecimentos eram razão para 
comemorações, como o nascimento, a primeira menstruação, a 
puberdade dos meninos, as guerras etc. Havia muita dança e cauim. 
O cauim era uma bebida fermentada, espécie de vinho, que 
não deixava um único guerreiro sobriamente em pé por muito tempo. 
Podia-se extrair o cauim de diferentes plantas, mas 
normalmente era do aipim, uma espécie de mandioca doce. 
Somente as mulheres preparavam a bebida, mascando o 
aipim com penosa paciência e cuspindo-o no interior de um grande 
pote de barro. A mastigação era necessária para que a saliva ajudasse 
a sacarificação do amido, pelo fermento. Era dessa forma que se fazia 
“ferver” a bebida e não o fogo propriamente dito a que era submetida. 
Esse detalhe é que dava ao cauim um sabor todo especial e um poder 
alcoólico incrível. 
15 
 
4 - DESAFIANDO AS FERAS 
 
Preocupado com as minhas últimas companhias, meu pai 
decidiu que eu deveria acompanhá-lo a todos os lugares que fosse, 
exceto nas campanhas de guerra. Assim, um pouco antes da idade 
necessária, passei a conhecer as montanhas, vales, rios, riachos e 
tantos outros lugares, sempre com o meu maracá. 
Não demorou muito, porém, e, numa breve distração do 
meu pai, em uma de nossas expedições,saí furtivamente pelo mato 
desconhecido. Andei sozinho mais de um quarto de dia, quando pude 
descobrir uma pequena furna escondida entre duas colinas. 
Encontrei ali, dois filhotes de yawara sozinhos e resolvi 
brincar com eles. 
Divertimo-nos muito, até aparecer a mãe deles. Era uma 
yawara pixuna, ou uma onça-preta, realmente enorme que resolvera 
voltar para a sua casa porque certamente sentira o cheiro de gente 
próxima do lar, o que poderia ser perigoso para os seus filhotes, mas 
certamente muito mais para quem ali estivesse. Eu, sinceramente, não 
dei muita importância, mas percebi a preocupação dela com os filhotes. 
Ensurdecedores rugidos... 
A onça-mãe estava disposta a salvá-los de qualquer mal e 
sob qualquer risco. 
Veio em minha direção muito determinada. Fiquei parado, 
permanecendo de cócoras. Chegou bem perto de mim, mostrando suas 
brilhantes presas, cheirou-me com muito cuidado e, quando eu 
realmente não esperava, deu-me uma lavada de lambida na cara, o 
suficiente para que eu caísse de costas e ainda desse mais uma pirueta 
para trás. Ficamos grandes amigos. 
Evidentemente que a essa altura o meu pai e todos os 
guerreiros estavam me procurando. 
- Grande Anuaí, não quero desconsolá-lo, mas com todo 
esse tempo já passado, nessa região e quase anoitecendo, temo que 
seu filho tenha... 
- Grande Surukuá, ele está vivo, tenho certeza! 
- Mas onde ele estaria? Pelo seu tamanho não poderia ir 
tão longe e já nos dispersamos procurando em vários lugares. Agnã 
não deixa rastros e nem mesmo Aguaraxaí consegue achar uma única 
pista. 
16 
 
 
meu pai. 
- Ainda não fomos para as colinas de yawara - disse o 
 
Os guerreiros se entreolharam. 
- Não desacredito que por lá esteja Agnã, porém é onde 
as onças pretas vivem em maior abundância. Seria muito perigoso para 
ele que, além de pequeno, nem sabe se defender. 
- Não resta outra alternativa. Sei que o mais bravo dos 
nossos valorosos homens temem o terrível jaguar, principalmente o 
pixuna. Dispenso a todos e vou sozinho. 
- Anuaí, nós não o deixaremos só. Iremos contigo. Somos 
trinta guerreiros prontos para morrer, mas com a dignidade de um 
bravo destemido - respondeu o altivo Surukuá. 
Ao chegarem na colina mais próxima da gruta, puderam 
escutar o som do meu maracá. Em poucos minutos já estavam me 
observando de longe. Acredito que um tanto petrificados de espanto e 
de medo que nenhum guerreiro tem. Ao final de um tempo tomaram 
coragem e começaram a descer a colina, sempre pelo lado contrário 
do vento. 
A onça-mãe, porém, não era somente boa de faro, mas 
tinha uma audição invejável e percebeu a sorrateira tentativa de 
aproximação. Ela ficou muito agitada e nervosa, dando estrondosos 
urros. 
Os bravos agruparam-se em apenas um lado do caminho 
da furna, para dar espaço suficiente para a onça e os filhotes fugirem. 
Evitariam ao máximo atirar suas flechas. Endeusavam o jaguar porque 
já haviam presenciado uma pixuna matar dois homens depois de 
alvejada por flechas envenenadas. 
A tática estava dando certo: a onça-mãe estava aborrecida 
mas levava consigo os dois filhotes para a mata. Porém, um dos 
guerreiros, ao chegar bem perto de mim, fez com que a temível pixuna 
acreditasse que eu seria atacado. 
A onça deu então um fantástico salto, pulando com as 
patas dianteiras sobre o peito do guerreiro. Ele era o homem mais forte 
dos que ali estavam, mas foi facilmente derrubado e antes que ela, em 
mais um simples golpe, tirasse a sua vida, chacoalhei o maracá. Ela 
parou imediatamente e veio para perto de mim, elegantemente 
mansinha. 
Pedi para que ninguém lançasse flechas. Acariciei a fera e, 
agitando o maracá, mostrei-lhe o mato. Lepidamente ela se foi com os 
pequeninos filhotes. 
17 
 
O meu pai abraçou-me fortemente e quase todos choraram 
muito. Aliás, em minha tribo chorava-se por qualquer coisa. 
- Agnã, você está ferido? 
- Não, meu pai, mas acho que o grande Tapiira está. 
Os outros guerreiros acudiram Tapiira que perdera os 
sentidos e tinha profundos cortes no peito, que sangravam 
abundantemente. 
- Grande desgraça - gritou meu pai. - Maldita yawara 
pixuna! 
- Meu pai, ela não quis machucar Tapiira. 
- Mas ele está ferido e pode morrer. 
Cheguei perto do guerreiro desfalecido e agitei o maracá. 
As feridas pararam de sangrar. Todos entreolharam-se, mas não 
disseram uma só palavra. Pedi para que jogassem água no peito do 
bravo desmaiado e quando fizeram isso notaram que as feridas não 
passavam de ligeiros arranhões. Agitei mais fortemente o maracá e 
disse: 
- Acorda, Tapiira, ela já foi embora e você está bem! - O 
guerreiro abriu os olhos e logo se levantou. Foi uma choradeira geral. 
18 
 
5 - A PAJELANÇA 
 
Quando retornamos à tribo, já era noite e todos estavam 
preocupados que estivéssemos em poder de nossos inimigos. Os 
valorosos guerreiros contaram o que havia acontecido e todos ficaram 
maravilhados. A minha mãe, porém, ficou transtornada. 
- Anuaí, você precisa fazer alguma coisa. Esse menino vai 
acabar morrendo - disse em prantos. 
- Tapiiti, já falei com Agnã, fiz de tudo, eu mesmo procuro 
cuidar dele, mas ele puxou a você: é ligeiro e esperto no mato. 
- Levem-no ao pajé - aconselhou o meu avô. 
- Iremos amanhã - respondeu respeitosamente o meu 
pai. 
No dia seguinte estávamos na oca do pajé. Meu pai, 
minha mãe e eu. 
- Pajé Marapuama, estamos muito preocupados com 
Agnã... 
- Estou sabendo de todos os acontecimentos. Vou fazer 
minhas consultas e depois conversaremos. 
À tarde voltamos à oca do feiticeiro. 
- Decidi chamar os outros pajés para expor o assunto. 
Acredito que Munhã está nos passando uma mensagem que precisa ser 
compreendida. 
- Estou muito preocupada - disse a minha mãe. - As outras 
mães não querem mais que seus filhos se aproximem de Agnã. Acham 
que ele pode trazer perigo ou mau agouro. 
- Aguardem a grande reunião dos pajés - determinou 
Marapuama. 
No final da tarde começaram a chegar os maiores feiticeiros 
das tribos tupi. Mas, face à distância de algumas aldeias, somente no 
final do dia seguinte todos estavam presentes. 
Sentados em círculo, em torno de uma fogueira, fumando 
tabaco em canudos, mais de trinta pajés encontravam-se na palhoça 
de Marapuama. O nosso feiticeiro expôs a situação e foram ouvidas as 
testemunhas dos fatos. Por fim me chamaram. 
Contei a eles o que tinha ocorrido e encheram-me de 
perguntas: 
- Sentiu medo? 
- Não. 
- Teve vontade de fugir? 
19 
 
- Não. 
- Teve a intenção de matar os animais? 
- Não. 
- Invocou Munhã? 
- Não. 
- Pediu socorro? 
- Não. 
- Alguma vez largou o seu maracá? 
- Não. 
Mais algumas perguntas e por fim decidiram dançar e 
invocar os espíritos. Era tanta fumaça do fumo que sopravam em 
minha cabeça que eu não enxergava mais nada e sorria à-toa. 
Gritavam aos berros, invocando as entidades das matas. 
Após algumas horas, me dispensaram e disseram a meus 
pais que eu estava livre dos espíritos que haviam tomado conta do meu 
corpo, mas o maracá deveria ficar com eles. 
Abriram o meu maracá e encontraram no seu interior 
sementes de yamaú. 
Passaram-se mais algumas horas e já íamos noite adentro 
quando convocaram toda a tribo. 
- Munhã - disse Marapuama -, nos mostrou sua grande 
bondade. Fez surgir o maracá da natureza não apenas como um 
simples recipiente, não apenas como algo para carregar água ou para 
servir como instrumento musical, mas como expressão divina de seu 
poder sobre os espíritos. Daqui para a frente, cada guerreiro, cada 
mulher e cada jovem ou criança terá a sua cabaça e sementes 
consagradas em cerimonial. Os maracás serão símbolos religiosos - 
decretou. 
Assim, creditaram aos espíritos ligados ao maracá a minha 
proteção e a dos guerreiros, bem como o domínio sobre os animais. 
Na verdade, havia outro motivo oculto para que 
Marapuama procurasse conduzir os outros pajés e o resto da tribo a 
essa conclusão. Ele mesmo nãoacreditava piamente que fora o maracá 
o responsável pelos feitos incomuns, embora resolvesse mantê-lo em 
seu poder. 
Como já foi dito, o nosso pajé era um bom homem. Mas, o 
fato de ser bom ou ser um pajé não o tornava menos homem e, como 
tal, tinha as suas preocupações pessoais. Caso os feitos fossem 
atribuídos exclusivamente a mim, ele correria o risco de perder a 
20 
 
confortável posição de poder e domínio sobre a tribo para um simples 
mirim, caindo em desgraça e talvez perdendo até a própria vida em 
razão disso. Era motivo mais do que suficiente para que procurasse 
desviar a atenção para o maracá. 
Com a cabaça, agora sagrada, qualquer conseqüência, boa 
ou ruim, poderia ser atribuída aos espíritos. 
Tal decisão influenciaria todas as demais gerações tupi. 
21 
 
6 - O GRANDE PEQUENO FLECHEIRO 
 
Após toda a confusão que acabou por santificar o meu 
maracá, achei que não poderia mais ter xerimbabos. Conformei-me 
com a situação, mas fiquei um pouco tristonho com esses fatos. 
Sem maracá, sem animais, sem amiguinhos para brincar e 
sem poder ir à mata, restava apenas a distração de observar a natureza 
ali mesmo. Gostava especialmente de apreciar o nascer e o pôr-do-sol. 
Adorava, ainda, ver as aves cruzando o céu. Aliás, eu 
queria ser como elas, ter asas e voar. Sentir o prazer da liberdade, indo 
para onde quisesse, olhando o mundo lá de cima... 
- Eu também já quis ser um pássaro - disse meu avô 
surpreendendo-me o pensamento absorto pelo vôo de uma ave de 
rapina. 
Com um olhar voltado para um passado muito distante, o 
velho guerreiro passou a relembrar a sua história de grande valentia: 
- Um dia, ainda pequeno, mas já um excelente arqueiro, 
eu queria participar das campanhas de guerra e vingar a morte de 
nossos antepassados. O meu pai, entretanto, achava que eu ainda não 
estava preparado. Teria que passar antes pelo ritual de iniciação de um 
guerreiro, porém, mesmo assim, eu não tinha a idade necessária. 
Apesar disso, estava convencido de que não havia nenhum 
homem com a minha pontaria e nem com mais coragem do que eu. O 
meu venerável pai tentava consolar-me dizendo que não bastava ser 
bom em arco e flecha e que o verdadeiro guerreiro só é valorizado 
quando vence os seus inimigos com as próprias mãos. 
Na lua seguinte - continuou o meu avô conseguindo cativar 
a minha mais absoluta atenção - os guerreiros saíram para enfrentar 
os inimigos. O nosso povo, há milênios, tem a tradição de seguir em 
longas expedições para novas conquistas e à procura de um lugar 
melhor para viver e naquela época toda a tribo estava em viagem para 
o sul, quando nos deparamos com um povo hostil, primitivo e 
desorganizado, os tapuia. Eles não permitiam o prosseguimento de 
nossa caminhada. O combate seria inevitável. Eram, porém, muito 
mais numerosos e teríamos que confiar na valentia de nossos 
guerreiros somada ao porte físico superior. Cada homem de nossa tribo 
valia por quatro dos nossos oponentes. O meu pai, grande guerreiro, 
era um dos líderes de nossa tribo, sendo muito 
22 
 
respeitado pelo povo. Em campanhas anteriores, lutou bravamente 
matando e capturando muitos inimigos. Alguns dos guerreiros, 
entretanto, estavam preocupados porque um deles havia sonhado com 
uma nuvem de sangue sobre os nossos homens e um sol brilhante 
sobre os nossos inimigos. O feiticeiro, porém, não deu maior 
importância e exaltou os bravos à luta. Assim, após imponente festa e 
com a bênção do pajé, os heróis marcharam destemidos para a glória 
de nossa gente. Nem bem saíram, as mulheres trataram de preparar o 
cauim para comemorar a vitória que certamente adviria. Mas, eu não 
estava contente. Eu, não. Que os nossos ancestrais possam 
eternamente me perdoar, porém, de tão aborrecido que fiquei, era o 
meu desejo que fossem derrotados por não terem permitido que fosse 
com eles. O dia passou e a expectativa era grande. A preocupação 
atravessou a noite inteira... O velho fez uma angustiante pausa e 
depois continuou: ...Passou-se mais um dia e mais uma noite se 
passou...... Os nossos guerreiros nunca haviam perdido um combate e 
sempre retornavam com prisioneiros. As batalhas raramente 
estendiam-se por mais de um ou dois dias. No final da tarde do terceiro 
dia, quando todos já estavam aflitos e temerosos, começaram a chegar 
os primeiros guerreiros. Muitos deles estavam feridos e cansados. As 
mulheres, velhos e nós crianças, corremos ao seu encontro, 
apreensivos e chorosos. 
- Fomos covardemente massacrados! - gritou um deles. - 
Ninguém acreditava. 
- Pegos de surpresa... no estreito do vale... eram 
milhares... - quase sem fala outro guerreiro tentava explicar o que 
havia acontecido. 
- Lutamos corajosamente... cada um de nós conseguia 
derrubar muitos dos deles... mas surgiram mais... muito mais - 
manifestou-se um outro bravo muito ferido. 
- Matamos e ferimos centenas de tapuia... - continuou o 
primeiro chorando copiosamente - ...mas, a luta foi desigual na 
surpresa... 
Os nossos homens estavam acostumados a enfrentar os 
inimigos frente à frente. Procurei o meu pai, mas ele não estava entre 
os que retornaram. Adentramos no mato para acudir os que nem 
conseguiam chegar na aldeia. Perguntei sobre o meu pai, ninguém 
sabia... 
Meu avô continuou, após uma pausa mais prolongada: 
23 
 
Não podia acreditar: eram quase mil homens, fortes, altos. 
Os inimigos mal chegavam à altura do peito do mais baixo dos nossos. 
A minha família começou a entrar em desespero. Minha mãe, meus 
irmãos e eu gritávamos o nome de meu pai por todos os lados, mas 
não havia resposta. Voltaram para a tribo não mais que trezentos 
homens, a maioria deles feridos. Até o dia seguinte ainda chegaram 
alguns guerreiros. Disseram que eram os últimos e meu pai não estava 
entre eles. Entretanto, um dos homens o havia visto: 
- Destemido o teu pai, digno de toda a honra. Quando 
batíamos em retirada, ele e mais vinte homens, apenas vinte, 
decidiram fazer nova frente contra os tapuia que continuavam vindo 
sobre nós. Suas ordens ainda estão soando em meus ouvidos: “Voltem 
para a tribo com os feridos, nós outros iremos retardar os inimigos”. 
Foi a última vez que o vi. 
Fiquei inconformado, não poderia aceitar a possibilidade 
dele ter morrido, mesmo com grande honra. Naquele momento eu não 
via honra nenhuma na morte. 
- Temos que nos preparar, eles vão nos atacar em breve! 
- bradou o único líder de guerra que sobrou. 
- Não teriam tanta coragem - duvidou o incrédulo pajé. 
- Terão muito mais coragem do que você deveria 
descobrir. Nós subestimamos os inimigos no primeiro confronto, 
devemos sabiamente acreditar que estão eufóricos com a nossa 
desgraça e sabem que não representamos o total de nossa gente. Irão 
nos atacar - respondeu o líder com muita firmeza. A observação feita 
pelo bravo tinha fundamento. Não havia tempo suficiente para fugir. 
Tínhamos que nos aprontar para a luta derradeira e assim foi feito. 
Todos em condições de combate foram chamados ao centro da taba. 
Dessa vez não me dispensaram. As instruções de luta foram 
cuidadosamente passadas. Sabíamos bem qual a tática a ser 
empregada. Como eu era reconhecidamente um excelente arqueiro, fui 
escalado para o combate à distância, defendendo justamente o flanco 
mais vulnerável da aldeia. Éramos ao todo oitenta e três curumins, 
jovens arqueiros, e somente mais quatrocentos guerreiros capacitados 
para a luta. Todos, homens, velhos, mulheres e crianças iniciaram os 
preparativos, produzindo as armas de guerra e construindo as caiçaras, 
estacas de proteção, à volta inteira da aldeia. Erguemos três cercas 
espalhando espinhos envenenados entre elas. O veneno era tão forte 
que um homem tombaria a menos de dez passos. Teriam que dar 
quarenta passos para o primeiro 
24 
 
confronto face a face. Ao me preparar vi uma ave de rapina cruzando 
o céu. Foi quando desejei ser uma para ver aonde estava o meu pai.Queria ser intocável no ar para assenhorear-me da terra. Os arqueiros 
foram instruídos a serem muito ligeiros e precisos. Quanto mais tapuia 
pudéssemos abater antes do confronto físico, melhor seria para nós. 
Vendo a ave passando velozmente, disse a mim mesmo: “Serei mais 
certeiro e rápido do que qualquer guerreiro jamais foi”. Em um piscar 
de olhos, armei o arco e disparei impiedosamente uma seta em direção 
da ave que caiu na terra com a flecha atravessada em seu pescoço. Os 
que puderam presenciar a cena gritaram as palavras de ordem dos 
grandes bravos. Retirei a flecha da ave e disse ao vento: “Essa será 
destinada ao primeiro tapuia em memória de meu valoroso pai”. Todas 
as minhas outras setas tiveram suas alhetas preparadas com as penas 
dessa ave. Tomamos posição e aguardamos o inimigo. Era um dia 
bonito e o sol estava a pino quando começamos a ouvir os gritos 
estridentes vindo da mata por todos os lados. Os tapuia queriam nos 
incutir medo antes do enfrentamento. Mas a maioria dos nossos 
homens estava com um grande sentimento de vingança e não viam o 
momento do ajuste. Eu também tinha o mesmo desejo, mas não 
deixava de ter medo. Sabia muito bem que os tapuia não faziam 
prisioneiros. Temia pela minha família, minha mãe e meus irmãos. 
Ouvindo o meu avô contando essa história, eu ficava de 
olhos arregalados e de boca aberta. Em tom dramático ele prosseguiu: 
- Uma sentinela avançada retornou a nossa aldeia, 
passando cuidadosamente pelas armadilhas que preparamos para 
recepcionar os nossos oponentes. 
- São milhares! Provavelmente dez vezes mais do que nós 
todos juntos! - disse, preocupado. 
O chefe de guerra conclamou o povo para que lutasse 
bravamente. Começamos a gritar mais alto do que os inimigos e cada 
vez que eu gritava sentia mais força e coragem. Surgiram os tapuia 
fazendo grande alarido, avançando como animais. Passaram o primeiro 
obstáculo pisoteando aqueles que caíam no chão sob o efeito do 
veneno. Eram muitos, parecia que a mata era feita de tapuia. Quando 
alcançaram o segundo obstáculo recebemos ordens de lançar as 
flechas envenenadas. Procurei rapidamente o mais forte dos tapuia e 
disse ao disparar a seta guardada para aquele momento: “Morrerás 
pela honra do meu pai”. O disparo foi certeiro, bem no meio do 
25 
 
pescoço. O combate foi árduo e penoso e nós, os arqueiros, fizemos 
com que muitos inimigos tombassem antes de alcançar a última cerca 
que nos separava. Lancei quarenta e três flechas e derrubei quarenta 
e três tapuia, com todas as setas invariavelmente atravessadas no 
pescoço de cada um deles. Veio a feroz batalha corpo a corpo. Peguei 
o meu tacape e passei a golpear os inimigos que vinham sobre nós. A 
luta frenética estendeu-se por um tempo que parecia interminável. Os 
tapuia, sentindo que seriam inapelavelmente derrotados, bateram em 
retirada para a nossa alegria. Mas, estávamos tão exaustos que não 
chegamos a persegui-los, deixando-os ir embora. Eu, coberto de 
sangue dos primitivos, caí de joelhos e queria me deitar, mas não havia 
espaço, o chão estava repleto de corpos. Os tapuia mortos e 
gravemente feridos, estavam espalhados por toda a parte. 
O meu avô fez uma pausa para fumar o seu tabaco, o 
suficiente para que eu pudesse piscar novamente e continuou em voz 
mais grave: 
- Ficamos ainda um tempo parados. As mulheres 
socorriam nossos feridos, que eram muitos, mas dessa vez a vitória foi 
inteiramente nossa. Perdemos cerca de quarenta homens, porém, a 
vista do campo de batalha era triunfante... Centenas de corpos dos 
nossos inimigos sobre as cercas e por todos os lados. Os que estavam 
vivos encontravam-se feridos e foram mortos na mesma hora. Dessa 
vez não faríamos prisioneiros. Alguns dos primitivos ostentavam em 
seu pescoço os colares de nossos altivos guerreiros, provavelmente 
mortos no primeiro combate. Com tristeza encontrei o colar de meu 
pai com um deles. Tirei-o com muito cuidado para que não 
arrebentasse e em seguida esmaguei o crânio do miserável a golpes 
de tacape. Após todas as solenidades funerárias, enterramos os nossos 
mortos e festejamos a vitória. Os principais da nossa aldeia acharam 
conveniente que levantássemos acampamento e retornássemos para o 
oeste, aonde nos reagruparíamos com outras tribos para retornarmos 
à luta pela passagem no Vale da Morte. 
Soltei um profundo suspiro. Via no brilho dos olhos do meu 
avô a veracidade da sua história. Era uma entre inúmeras outras. 
- Eu estou muito preocupado com sua segurança, Agnã. A 
qualquer momento você terá que se defender das feras ou dos 
inimigos. Por isso eu mesmo confeccionei um arco e flechas de acordo 
com o seu tamanho. Você aprenderá também como preparar as suas 
próprias armas e como manejá-las. 
26 
 
Assim, passei alguns dias conhecendo os segredos da 
manufatura de um excelente arco e flechas. O meu avô tinha não só a 
fama de ter sido um destemido guerreiro e excepcional flecheiro, mas 
acumulava os feitos com a glória de ser o melhor de todos os artesãos 
na confecção das armas de guerra. 
Diziam que os espíritos dos nossos antepassados haviam 
soprado aos ouvidos do ancião os mistérios da preparação das armas, 
ensinando-lhe nas matas a arte que somente ele passou a dominar tão 
bem. 
O meu avô não confirmava a história, mas também não a 
desmentia. A única coisa que dizia era que o homem que quer usar 
algum instrumento tirado da terra, precisa conversar com os espíritos 
que cuidam dela. 
27 
 
7 - PESCANDO UM ARCO-ÍRIS 
 
Com a orientação do meu avô, não precisei de muito tempo 
para aprender todos os misteriosos detalhes da confecção de arcos e 
flechas. 
O arco era constituído de uma taquara especial, cujo tipo 
não era fácil de ser encontrado. Cortada com cuidadosa conveniência, 
tinha ainda que ser devidamente preparada, ficando de molho em uma 
solução de ervas. Posteriormente, era posta para secar à sombra. O 
processo tinha que ser repetido algumas vezes para assegurar ao arco 
a resistência e a flexibilidade adequadas. 
A corda era feita das fibras de uma planta chamada karawa 
e também exigia um tratamento específico antes de ser usada. 
As flechas eram feitas de uma madeira difícil de encontrar, 
que lhes dava leveza e resistência. Suas pontas podiam ser de ossos 
humanos (dos tapuia, claro), de animais ou da própria madeira. As 
alhetas traseiras eram feitas de penas de águia, não simplesmente 
para embelezá-las, mas cuidadosamente colocadas na correta posição, 
permitiriam que a seta girasse em torno de seu próprio eixo, mantendo 
sua estabilidade de vôo, direção e aumentando sua capacidade de 
perfuração. 
Havia, sem dúvida, o lado místico dos materiais 
empregados. A árvore da qual se retirava a madeira era a morada 
preferida do espírito do fogo. Segundo o meu avô, a flecha feita dessa 
árvore tinha o poder de liberar uma energia extremamente destruidora, 
quando atingia o seu alvo. 
Os ossos humanos utilizados na ponta da flecha eram para 
atingir o espírito dos guerreiros inimigos, que somente eram feridos 
mortalmente, quando se usava a força do espírito de um guerreiro 
morto em batalha. 
As penas de águia eram para permitir que as setas 
ganhassem a velocidade dessas aves e a pontaria certeira, uma vez 
que o espírito da águia estaria dentro da própria flecha. 
A porção de ervas, na qual eram mergulhados as setas, o 
arco e a corda, era uma essência dos espíritos da força e da resistência. 
Todos os membros da nossa tribo consideravam que as 
armas produzidas pelo meu avô eram possuidoras de grande magia, 
28 
 
pelos feitos de outrora. Eu também comecei a acreditar piamente 
nisso. 
Depois de aprender a confeccionar minhas próprias armas, 
o meu avô passou a me ensinar o seu correto manuseio. 
Dominei com facilidade a arte de armar e disparar as setas. 
Já nos primeiros treinamentos, conseguia fazer eficientes disparos e fui 
aprimorando os lançamentos a cada arremesso.Tapiira e mais alguns guerreiros, ao me ver treinando ao 
lado do meu avô, gritou: 
- Grande Agnã, sucessor do maior dos flecheiros! 
O quase setuagenário sorriu com altivez e disse: 
- Agnã será o orgulho de nossa nação e de nossos 
antepassados. 
Com o passar dos dias eu e o meu arco e flechas seríamos 
inseparáveis. Só havia um problema: as pessoas que inicialmente 
achavam graça, começaram a ficar um tanto incomodadas com tantas 
setas cruzando a aldeia. 
Antes que surgissem maiores reclamações, o meu pai 
resolveu levar-me a uma expedição de pesca. Fiquei muito feliz. Desde 
os últimos acontecimentos eu não havia deixado a taba. 
Reuniram-se a nós uns quarenta índios da família do meu 
pai e corremos para as margens de um portentoso rio. Logo colocaram 
as ubás, grandes e pesadas canoas, nas águas e começamos a remar 
rio abaixo. 
O meu pai, Igará, seus dois filhos e eu, fomos à frente dos 
outros dentro de uma yaratim, canoa especialmente feita para o uso 
dos chefes da tribo e que era mais leve e ligeira. 
Depois de um bom tempo paramos em uma determinada 
altura do rio, aonde se formava uma pequena bacia, e Igará, profundo 
conhecedor das águas fluviais e de pescaria, disse: 
- Aqui é um bom lugar para os mirins treinarem. Os 
homens irão comigo mais adiante. 
Igará passou para a outra embarcação, para acompanhar 
e orientar os outros pescadores, permanecendo o meu pai conosco. 
Após uma série de explicações sobre o uso do arco e flecha 
para se atingir os peixes, o meu pai fez algumas demonstrações 
alvejando-os com sucesso. Comecei a sentir aflição ao ver os peixes 
ainda se debatendo dentro da canoa. 
Os filhos de Igará foram os primeiros e não tiveram 
maiores dificuldades. Além de serem mais velhos do que eu, já 
29 
 
tinham ampla experiência no assunto, pois Igará os havia treinado 
anteriormente. 
Chegou a minha vez. Em pé, sobre a yaratim, armei o arco. 
Vendo os peixes enormes ao lado da canoa, fiz o ângulo de correção, 
face a difração da luz na água, mas ao soltar a corda do arco, desviei 
deliberadamente a pontaria, para que o peixe não fosse atingido. 
Disparei várias setas para não desagradar o meu pai. 
Passavam todas de raspão e nenhuma certeira. Os outros meninos 
riam de mim, mas o meu pai mantinha a calma. Em um determinado 
momento, ele jogou pó de timbó na água, que teve um efeito de 
sedativo nos peixes ali próximos, deixando-os paralisados e assim uma 
grande quantidade de peixes começou a boiar do lado da yaratim. 
O meu pai disse: 
- Tente agora, os peixes estão parados e boiando, vai ser 
mais fácil alvejá-los! 
Que situação, eu não queria matá-los e, principalmente, de 
uma forma tão indefesa, entretanto, também não poderia desapontar 
o meu pai, fazendo-o passar vergonha na frente dos filhos de Igará. 
Larguei o arco e a flecha e passei a pegar os peixes com as mãos. 
- O que está fazendo, filho? 
- Estou pescando - respondi sem olhar para ele. 
- Mas com as mãos? 
- É perigoso? - perguntei, fazendo-me de desentendido. 
O tempo começou a mudar e as nuvens negras formaram-
se escurecendo o céu. Igará emitiu um som típico de reagrupamento. 
Nós gostávamos das chuvas, mas a maioria temia aquelas que viessem 
acompanhadas de trovões e raios, pois era a manifestação divina de 
Tupã, um deus temperamental, que poderia ajudar na agricultura ou 
destruí-la com suas tempestades, iluminar um guerreiro ou reduzi-lo a 
cinzas. 
Reunimo-nos à beira do grande rio e recolhemos as ubás, 
canoas de difícil navegação, sem quilha e sem banco, feitas 
normalmente de uma casca inteiriça de um tronco de árvore. 
Vieram os ventos trazendo a chuva, com muitos trovões e 
raios, porém não durou muito tempo. Logo o céu estava limpo, como 
se nada houvesse acontecido. 
30 
 
Era tardezinha e despontava um lindo arco-íris matizando 
o céu de uma beleza sem par. 
Todos se reuniram para voltar à tribo. Tendo que remar rio 
acima, com as canoas repletas de peixes como o pirarucu e o surubim, 
os pescadores queriam se apressar para não chegar de noite na aldeia. 
A pergunta do meu pai aos homens era inevitável: 
- Aonde está Agnã? 
Ninguém acreditava, de novo, não! Passaram a gritar o 
meu nome, procurando-me por todos os cantos da margem em que 
estavam. 
Procuraram no interior das ubás, nos galhos das árvores e 
mais uma vez nem sequer um único rastro. Nada. 
Igará foi até a margem do rio. Olhou bem para os lados e 
ficou pensativo. Adentrou o rio até que as águas chegassem ao nível 
de sua cintura. Olhou para a subida e depois para a descida do rio e 
assim ficou por alguns instantes. Os pescadores e principalmente o 
meu pai ficaram apreensivos, mas absolutamente em silêncio. 
- Desceu o rio, provavelmente a nado, na direção do arco- 
íris - afirmou. 
Os pescadores voltaram para a aldeia com os dois filhos de 
Igará, mais a pesca, remando rio acima. O meu pai e seu grande 
companheiro entraram na yaratim e remaram rapidamente rio abaixo, 
gritando pelo meu nome. 
Todos tinham muita confiança em Igará, que era 
considerado o senhor das águas, face o profundo conhecimento que 
tinha de todos os rios da região. Também era respeitado como o melhor 
jacumaíba, ou seja, um experiente condutor de canoa em pontos onde 
a navegação é arriscada. 
Em um determinado momento Igará parou de remar. 
- O que foi? - perguntou o meu pai. 
- Anuaí, você conhece bem essas bandas... 
O meu pai fechou os olhos e disse: 
- Não é possível! 
- Você sabe que o rio mais à frente divide-se. Seguindo 
adiante está cheio de piraíba... 
- E do lado direito forma um igarapé, próximo de onde as 
pirains vermelhas costumam ficar e Agnã está cheirando peixe bom 
para se comer. 
31 
 
Para os dois, quaisquer das alternativas não seria 
alentadora. O piraíba era um enorme peixe com o comprimento de dois 
homens e pesava o equivalente a cinco, temido por engolir facilmente 
uma criança ou até mesmo um homem pequeno e descuidado. A piraim 
vermelha era bem menor, mas era mais temida que o piraíba, por ser 
uma das mais terríveis piranhas. 
Enquanto isso, eu realmente fui a nado até o igarapé. 
Ajustando o arco em meu corpo e prendendo bem as flechas, nadei 
com muita desenvoltura. Nadar era uma das coisas que eu mais 
gostava de fazer. Às vezes minha mãe dizia que eu era peixe por 
natureza, de tanta água que saiu dela quando a sua bolsa rompeu no 
meu nascimento. 
No igarapé, pude contemplar bem de perto o arco-íris e 
brinquei muito, justamente nas águas onde ele tocava. Muitos peixes 
se aproximaram de mim e nadavam a minha volta. 
Não demorou muito o meu pai e seu fiel amigo logo 
puderam me encontrar. 
Quando os avistei, lembrei que havia me esquecido de dizer 
aonde ia. Também, pudera, era muito raro uma criança ser repreendida 
e todas tinham quase que total liberdade. Mas acho que naquele dia eu 
seria um dos casos raros. 
Mas, ao contrário do que eu esperava, não percebi que os 
dois estivessem bravos. Conforme vinham se aproximando, notei que 
só faltava um pequeno sorriso em seus semblantes. 
Acenei e gritei para eles. Até os peixes pulavam 
constantemente, inclusive sobre mim, e, no entanto, eles não 
respondiam. Comecei a achar que estavam mesmo bravos. 
Quando chegaram bem perto eu disse: 
- Vocês não querem brincar comigo e meus novos 
xerimbabos, bem de baixo do arco-íris? 
Permaneceram mudos e agora estavam também pálidos, 
de olhos estatelados, quase não respiravam e não se mexiam de 
maneira alguma. 
Comecei a achar que haviam comido algum peixe de carne 
ruim e estavam passando mal ou haviam cheirado timbó por acidente. 
Pensei então que talvez o meu pai ficasse mais feliz se eu 
lhe entregasse alguns peixes e joguei-lhe uns dois em sua direção. Que 
susto tomei, parecia que eu havia jogado brasas dentro da 
32 
 
canoa. Os dois começaram a pular tanto que a yaratim acabou virando 
e foram parar n’água. Dei muita risada. 
Quando achei que eles iriambrincar comigo, nadaram 
rapidamente para a margem do rio, deixando a canoa virada. Nunca vi 
alguém nadar tão rápido assim. Tive que levar a yaratim para a 
margem, com muito esforço. 
Os dois guerreiros e pescadores, quase não conseguiam 
falar direito. Estirados no chão, só resmungavam e eu não entendia 
nada. Depois de um tempo Igará perguntou: 
- Anuaí, ainda estamos vivos? 
- Acho que sim - respondeu o meu pai. 
Acho que sim? Lógico que estavam vivos! - pensei eu. 
Os dois examinaram-se cuidadosamente. 
- Há muitas luas passadas perdi dois homens aqui mesmo 
- disse Igará, para o meu espanto. 
- Eu sei - disse o meu pai. 
- Na tentativa de pescar com rede, a canoa deles virou. Eu 
mesmo vi. Eles tinham o cheiro dos peixes que já haviam pescado e 
quando tentavam desvirar a canoa as pirains apareceram em grande 
número. Foram devorados em pouco tempo e nós outros nada 
pudemos fazer. 
- Como pode? - perguntou. - As pirains costumam comer a 
si mesmas e seu filho brinca com elas dessa maneira e nada acontece. 
Como pode? 
- Não sei - respondeu o meu pai ainda sem fôlego e 
perguntando-me em seguida: 
- Você está bem, Agnã? 
- Sim, meu pai. 
- Vamos improvisar outras yacumans - disse Igará, 
referindo-se aos remos - e partir o quanto antes. Tenho receio de 
navegar no escuro. 
Logo estávamos rio acima, mas escureceu bem antes de 
chegarmos na aldeia e Igará disse preocupado: 
- Lembro-me perfeitamente bem da primeira vez que 
remei por esses lados, em um dos afluentes desse rio. Sozinho, 
procurando conhecer melhor os caminhos, fiquei empolgado de tanta 
curiosidade, não me dando conta do tempo e quando decidi voltar à 
aldeia já era noite. A certa altura senti como se algo batesse na ubá. 
Em princípio pensei que fosse algum galho de árvore solto e não me 
preocupei. Mais à frente, a ubá sofreu um forte impacto que quase 
33 
 
me jogou para fora. Achei que tivesse abalroado algum tronco de 
árvore. Não demorou muito e a canoa chacoalhou novamente. Comecei 
a sentir um frio na espinha. Era uma noite muito escura, como essa, 
não conseguia enxergar bem, mas eu tinha certeza de que não havia 
jacarés. Outra sacudida, como se algo tocasse por baixo. A essa altura 
eu rezava a Munhã e pedia sua proteção. Continuei remando, agora 
mais rápido. Eu suava copiosamente. De repente um forte choque e a 
ubá partiu-se ao meio, como se fosse um fino graveto. Fui lançado a 
grande altura e caí na água próximo da margem. Nesse momento, eu 
vi um animal enorme: parecia um peixe gigantesco surgindo das 
profundezas. Suas mandíbulas dilaceraram facilmente parte da ubá. 
Caberia um homem em pé dentro de sua boca aberta. Nadei o mais 
rápido possível, com medo de que ele viesse atrás de mim e quando 
alcancei a margem cheguei a senti-lo quase abocanhando as minhas 
pernas... 
Havia muitas histórias como essa e certamente Igará era o 
campeão delas. 
Continuamos a navegar durante a noite, e, em um 
determinado momento, sentimos que algo havia batido levemente na 
yaratim. 
- Sentiram? - perguntou Igará. 
- Deve ter sido algum pedaço de árvore - disse o meu pai, 
tentando dissimular sua inquietação. 
Fosse ou não fosse eu tinha a nítida impressão de estar 
mais molhado dentro da canoa do que se estivesse na água. 
Sentimos mais um esbarrão, mas todos nós permanecemos 
em silêncio durante um tempo até que Igará começou a falar 
novamente: 
- Outra vez, eu estava... 
- Igará... - interrompeu o meu pai. 
- O que foi Anuaí? Você viu alguma coisa? 
- Não, mas você poderia remar mais rápido e calado? 
Igará fez uma cara de quem não gostou e passou a remar 
ligeiro e em silêncio... 
34 
 
8 - CAÇANDO CURUPIRAS 
 
Chegamos sãos e salvos, mas a tribo já estava preocupada. 
Ao ver a minha mãe, meu pai disse meio conformado: 
- Vou passar outra noite acordado com os choramingos. 
Com o passar dos dias, fui começando a ter uma grande 
habilidade no manuseio do arco e flecha, pois o meu avô continuou a 
instruir-me. - Agnã, você está indo muito bem. Agora quero 
ver como consegue se sair procurando acertar alvos em movimento - 
disse o velho guerreiro. 
Preparando uma grande bola de palha e fazendo-a rolar 
pelo chão, o meu aryiá, o avô, mandou que eu a alvejasse. Não tive 
dificuldades em acertá-la. 
Começou a jogá-la cada vez mais rápido e eu continuava 
acertando. Decidiu então diminuir gradativamente o tamanho da bola 
a cada flechada certeira. Diante do meu sucesso ele sorria largo. 
- Muito bem, meu pequeno! Agora vamos fazer diferente. 
Você ficará de costas e eu jogo a bola. Ao meu grito você vira e tenta 
acertá-la. 
Não tive dificuldades, continuei indo bem. Alguns 
guerreiros passaram a assistir o meu treinamento, gritando a cada 
flechada certeira. 
Eu estava feliz, divertia-me muito e meu avô ficava 
orgulhoso. 
- Esse mirim tem o meu sangue, meu arco e minhas 
flechas - disse vaidoso aos homens que nos observavam. 
- Ele também tem a sua admirável pontaria, destemido 
senhor das flechas encantadas - comentou um deles. 
- Mas minha visão, as minhas mãos e meus braços já não 
me obedecem tanto - respondeu meio tristonho o aryiá. 
- Seus feitos, altivo combatente, jamais serão esquecidos 
e os seus valorosos conhecimentos nos são de grande valia - procurava 
consolá-lo um outro bravo. 
- Seu neto - prosseguiu - será um grande e destemido 
guerreiro e logo honrará nossa gente e nossos antepassados. 
O ancião, olhando-me visionariamente, respondeu: 
- Um bom guerreiro já nasce com o dom do combate. 
Sinto que ele tem qualidades e é abençoado pelos espíritos dos nossos 
antepassados e talvez faça muito mais do que possamos 
35 
 
imaginar. Logo Agnã estará preparado para qualquer confronto. É 
pequeno, mas a sua alma é grande e forte. 
Continuamos o treinamento. Dessa vez ele passou a jogar 
no ar as bolas de palha. Uma a uma. Acertei todas. 
- Fique de novo de costas, Agnã. 
- Já! - Tentando testar a minha agilidade, o velho bravo 
jogou uma bola no ar e outra rolando na terra. 
Virei-me rapidamente e lancei com sucesso uma seta na 
bola que estava rolando e alvejei a outra antes que caísse no chão. 
Muitos gritaram. Mas o aryiá não se contentou. 
- Afastem-se - pediu a todos. 
Pegou as minhas flechas e deixou-as sem pontas para que 
não viessem a ferir alguém por acidente. 
- Vai perder um pouco de velocidade e pontaria, mas 
lançada próxima do alvo ainda poderá ser certeira. 
Vendou-me os olhos e disse: 
- Agnã, o verdadeiro flecheiro segue apenas o seu 
instinto, nunca apenas os seus olhos. Tente acertar a bola que vou 
jogar. 
Arremessou-a e deu um grito. Disparei incontinente. 
- A seta passou cinco palmos à direita - orientou-me. 
Fizemos nova tentativa e errei outra vez. 
- Pequeno Agnã, precisa confiar em seu espírito. Você tem 
que sentir todos os movimentos, inclusive o meu e a trajetória da bola. 
Tem que lançar a seta como se ela fosse a extensão do seu próprio 
braço e acertar o alvo como se o tocasse com a sua própria mão. Tudo 
ao seu redor tem que fazer parte do seu espírito. Só assim você saberá 
onde está o que queira atingir. 
Outra tentativa. 
- Dois palmos abaixo! 
Tentei novamente. 
- Um palmo acima e à direita. 
O meu avô aproximou-se de mim e dessa vez perguntou 
baixinho ao meu ouvido: 
- Agnã, o que está havendo? 
- Há muito barulho, eu não consigo perceber bem o 
movimento da bola - respondi no mesmo tom de voz. 
- Meu neto, um dos segredos está na mente. É necessário 
que se concentre. Esqueça tudo o que não faça parte do que tenha que 
fazer. Não deixe que nenhum outro pensamento lhe perturbe. 
36 
 
Faça de conta que não há mais ninguém ao seu lado. Só você, o arco, 
a flecha e a bola. O outro segredo é se integrar com a natureza. Deixe-
se levar por ela, guiado apenas pelos sentidos do espírito. 
Novo disparo, incrivelmente certeiro. Todos gritaram. 
O meu pai nos observava de longe, juntamente com 
Guaraxaim. 
- Teu filhodará um excelente caçador e guerreiro se 
continuar a atirar flechas assim. 
- Não se entusiasme tanto, o meu pai tem muitos truques 
que pode ter ensinado ao neto. 
- Se o que esse mirim faz é truque, eu não me arriscaria 
a desafiá-lo. 
- Nem será preciso, Guaraxaim. É no campo de batalha 
que se provam os verdadeiros bravos. 
- Agnã é um flecheiro nato, como o avô. 
- Acertar em um alvo que não lhe devolve o ataque é fácil, 
o difícil é continuar a acertar quando as setas envenenadas também 
estão vindo em sua direção. 
- Qual é o problema meu amigo? Você não se orgulha do 
seu filho? 
- Não, não é isso. Estou muito preocupado com as coisas 
que aconteceram com ele e que fogem do nosso modo natural de 
vida. 
- O que quer dizer, Anuaí? 
- Meu filho não tem as mesmas preocupações que nós 
tínhamos e temos, ele age como se desconhecesse o medo. 
- Mas isso não é bom? Já é valente por natureza, corajoso 
como o pai e o avô! 
- Ignorar o medo não o torna mais valente e nem mais 
corajoso. Pode simplesmente transformá-lo em um tolo. 
- Mas nós aprendemos desde pequenos a nunca ter 
medo... 
- Mas também é verdade que não o desconhecemos. O 
que nos faz ter coragem é saber que o medo existe e assim 
procuramos, por honra do orgulho, nunca demonstrá-lo. Agnã olha 
para o fogo e acha-o bonito. O meu receio é que ele aprenda tarde 
demais que ele também queima. 
- Agnã é pequeno e tem a felicidade de poder contar 
contigo e com o avô. Com o tempo essas questões não serão mais 
37 
 
motivo de sua preocupação. Por que não o leva à expedição de caça 
que faremos para a celebração do casamento de sua filha mais velha? 
- Não sei se devo... 
- Por que não? Ele já maneja muito bem o arco e flechas, 
ajudará a abater as caças e será uma oportunidade para ele treinar 
sozinho, sem os truques do avô. 
- Se ele se preocupar apenas em caçar não haverá 
problemas. Você sabe que ultimamente coisas misteriosas têm 
acontecido. 
- Coisas de mirim. Leve-o à caça, do jeito que está tão 
empolgado no manuseio do seu pequeno arco, irá gostar muito de nos 
acompanhar e testar a sua pontaria. Não se aflija, deixe que eu tome 
conta dele. Agnã ficará bem à vontade e nem vai perceber que estarei 
a seu lado para protegê-lo, ajudá-lo e vigiá-lo. 
Meu pai ficou mais tranqüilo com o apoio do grande 
amigo. 
Dois dias após, com a bênção do pajé, partimos bem cedo 
para a selva fechada. Guaraxaim ia à frente. Era chamado de Cachorro-
do-Mato por ser astuto, inteligente e conhecer a mata como ninguém. 
Distinguia os animais e sabia aonde se encontravam apenas pelo odor 
que exalavam ou pelos sons que emitiam. 
Tomamos o rumo noroeste, que já era conhecido e em cuja 
direção iríamos encontrar bons animais para a caça. 
Depois de boa caminhada, chegamos próximos de um lugar 
descampado, ao lado de um rio que descia de uma montanha. 
Percebendo que eu estava com os olhos fixos em uma 
distante e estranha montanha, meu pai disse: 
- Nós a chamamos de montanha dos invencíveis, em 
lembrança do feroz ataque que sofremos quando por lá passamos. A 
luta estendeu-se por vários dias, mas nossos inimigos não puderam 
nos derrotar e acabaram fugindo. 
Na parte baixa de onde nos encontrávamos, havia animais 
de extrema beleza, pássaros de uma plumagem lindíssima. 
Os homens foram divididos em sete grupos de quatro 
caçadores. Guaraxaim recomendou muito silêncio para não 
espantarmos os bichos. 
- Andem com calma e cautela. Logo adiante o rio forma 
uma bacia onde os suaçus costumam beber água - disse referindo-se 
aos veados. 
38 
 
- Vamos encontrar ainda - continuou quase sussurrando - 
as tapiras e capivaras. Cuidado com algum jaguar ou jibóia que 
estejam à espreita para atacar a nossa caça. 
A cada grupo foi designada uma posição para começar o 
avanço, de tal forma que boa parte da área estaria cercada. Eu 
acompanhava o grupo liderado por Guaraxaim. 
Ao sinal, avançamos com cuidado. Chegamos ao local que 
havia sido determinado. Ali realmente havia suaçutingas. Eram oito 
veados-brancos a bebericar e mais algumas tapiras. 
Quando todos se posicionaram, veio a ordem para lançar 
os dardos contra os bichos. Seis foram bem alvejados e caíram, os 
demais conseguiram escapar. Eu não disparei uma única seta. Foi uma 
grande gritaria. 
Os animais mortos tiveram as suas patas amarradas e uma 
vara foi passada entre as pernas de cada bicho, permitindo assim que 
os mesmos fossem carregados de tal maneira que ficassem com os 
pés para cima e de dorso para o chão. 
Quando estava tudo pronto para retornarmos à aldeia, 
Guaraxaim convidou-nos para subirmos a montanha dos invencíveis. 
Assim, os caçadores voltaram para a tribo com as presas e 
nós três seguimos para a montanha. 
Depois de ziguezaguearmos pela mata, chegamos à base 
da grande montanha. A água que formava o rio que havíamos 
atravessado despencava do alto formando uma linda paisagem. 
- Como pode um rio sair de dentro de uma montanha? - 
perguntei. 
- Vamos subir e eu lhe mostrarei - disse Guaraxaim. 
Em uma determinada altura da subida encontramos uma 
caverna, naturalmente iluminada. Algumas fendas permitiam que 
entrasse a luz do sol. 
- Aqui é a nascente - disse Guaraxaim, apontando para 
uma espécie de lagoa. 
- Nesse lugar - prosseguiu - a água brota da terra e 
continua passando por dentro da montanha, seguindo por um canal 
subterrâneo, até sair em uma pequena gruta mais adiante, de onde 
jorra para a mata. 
Aproximamo-nos para beber e, ao agachar-me, vi no 
reflexo da água algo como se fossem os vultos de três meninos bem 
atrás de mim. Virei-me rapidamente, mas não havia ninguém. 
- Alguma coisa, meu filho? 
39 
 
- Não, meu pai, pensei que tivesse visto alguém. 
Após saciarmos a nossa sede, saímos da caverna e 
começamos a dar a volta por fora da montanha em direção à gruta que 
ficava do outro lado. 
Durante a caminhada, em determinado lugar, senti que 
algo me tocou as costas. Parei e ao olhar para trás percebi que algumas 
sombras estranhas se escondiam na mata. 
- O que foi filho? Está vendo algum bicho? 
- Não, pai, acho que é só impressão. 
- Impressão do quê? 
- Que tem gente nos seguindo. 
Ele olhou para Guaraxaim e o guia afirmou: 
- Agnã, se houvesse alguém que nos seguisse ou algum 
animal que fosse, eu saberia. 
Fiz de conta que havia me conformado com a sua 
observação mas, na verdade, continuei cismado. 
Alcançamos o ponto em que o rio voltava a surgir e logo 
em seguida desaguava. Ele vinha do interior de uma apoucada gruta, 
cujas paredes brilhavam como diamantes. Parecia uma pequena 
morada dos deuses. 
Ficamos ali por mais algum tempo, de cócoras, como 
costumávamos descansar. Depois de um tempo, como já era final do 
terceiro quarto do dia, resolvemos voltar. 
Ao levantar-me senti que meu cabelo havia sido puxado 
para trás, mas nada pude ver. 
Na volta, Guaraxaim começou a perceber que certas coisas 
fora do comum estavam acontecendo: galhos de árvores se mexiam 
sem que houvesse vento ou animais que lhes tocassem e que alguns 
frutos caíam exatamente sobre nós, digo, sobre eles. 
- Anuaí - disse o Cachorro-do-Mato. 
- Sim - respondeu meu pai. 
- É melhor sairmos depressa, acho que os espíritos não 
gostaram da nossa companhia. 
- Vamos descer logo, então. Agnã, fique bem perto de 
mim. 
Quando chegamos lá em baixo, Guaraxaim levantou o 
braço e pediu silêncio. Meu pai e eu ficamos como pedras. 
- Há outros homens aqui perto - disse o guia em voz 
rouca e baixa. 
- Aonde? - perguntou o meu pai. 
40 
 
- Trinta passos à frente. 
- Quantos? 
- Talvez mais que dez. 
- Amigos ou inimigos? 
- Não posso dizer, estamos a favor do vento, não estou 
conseguindo sentir o cheiro deles... espere! Acho que são nossos 
homens. 
Avançamos cuidadosamente e constatamos que 
pertenciam mesmo a nossa tribo. Eram quinze homens, a maioria 
deitada no chão e sem fôlego. 
- O que estão fazendo aqui? - perguntoumeu pai. 
- Grande Anuaí... - disse um deles quase sem fala - coisa 
terrível aconteceu... 
- O que foi? Foram atacados por predadores ou inimigos? 
Diga, homem! - gritou Guaraxaim, impaciente. 
- Pior do que isso, com animais e inimigos nós lutaríamos 
até a morte, mas com demônios, o que fazer? 
- Quer nos dizer o que houve? - insistiu meu pai. 
- Quando estávamos a caminho da taba, de repente, 
frutas, pedras e pedaços de árvores foram arremessados contra nós. 
Não era obra de homem e nem de macacos. 
- E o que era então? - perguntou o guia. 
- Não sabemos, mas não havia ninguém por perto. 
Estávamos determinados a seguir em frente, mas foi impossível. 
Surgiram milhares de insetos querendo nos picar. Eram tantos que não 
conseguíamos nem enxergar. Mas quando largamos a caça para fugir, 
eles desapareceram. 
Ao voltarmos a pegar as caças, novamente fomos atacados 
e então decidimos abandoná-las ali mesmo e fugir de novo. 
- E o resto dos homens? - indagou o meu pai. 
- Não sei, talvez tenham conseguido voltar para a aldeia. 
- O que vamos fazer? - perguntou outro caçador. 
Guaraxaim e meu pai olharam para os lados, 
entreolharam-se e perguntaram ao mesmo tempo um para o outro: 
- Aonde está Agnã? 
Pronto, o mirim sumiu novamente. Gritaram o meu nome, 
mas não tiveram resposta. 
- Ele voltou para a montanha - disse o guia. 
- Como você sabe? Está sentindo o cheiro dele? - 
perguntou o meu pai. 
41 
 
- Não, dessa vez é puro palpite. 
- Vocês aguardam aqui, Guaraxaim e eu vamos procurar o 
meu filho. 
Era verdade, eles estavam certos. Encontrava-me 
justamente na fonte d’água, com dezenas de meninos do meu 
tamanho. Davam muita risada e não paravam no lugar. Entravam e 
saíam da furna, pulavam de árvore em árvore, corriam entre elas, 
entravam de novo na caverna e mergulhavam na fonte. Faziam muitas 
estripulias e sorriam para mim. 
Percebi que queriam que eu os acompanhasse até à 
pequena gruta. Fiz como desejavam e quando lá cheguei a vista do 
lugar era bem diferente. Havia um tom dourado no seu interior e as 
águas que de lá saíam tinham a mesma cor brilhante. 
Depois de um tempo brincando nas águas que saíam da 
gruta, escutamos passos de mais alguém se aproximando. No mesmo 
instante os meninos sumiram. 
- Agnã! Agnã! - chamavam-me. 
- Estou aqui, na gruta! 
- Mas o que aconteceu com você? - perguntou meu pai 
bastante assombrado. 
- O que você fez que está pintado desse jeito? - indagou 
Guaraxaim também espantado. 
Só então reparei que eu estava com uma cor dourada por 
todo o corpo, inclusive meu arco e as minhas sete flechas. O brilho da 
cor refletia-se nas paredes da gruta e nas águas. 
Fui banhar-me para tirar a tinta do corpo, mas Guaraxaim 
não deixou. 
- Agnã, coisas muito inexplicáveis ocorreram, diga para 
nós o que foi que aconteceu com você. 
Após eu ter contado tudo o que havia acontecido, meu pai 
e o guia começaram a confabular, quase sussurrando: 
- Anuaí, seu filho viu os curupiras, espíritos da natureza, 
protetores dos animais e florestas que se apresentam sob a forma de 
crianças. 
 
homens. 
- Foram eles que causaram os tais fatos estranhos com os 
 
- Só pode ser e não querem que levemos a caça. 
- Sim, mas o que devemos fazer agora? 
- O seu filho conquistou a simpatia deles a ponto de ser 
pintado. Acredito que se Agnã pedir irão nos deixar partir com a caça. 
42 
 
- Está bem, eu vou falar com ele. 
- Filho... 
- Eu já entendi meu pai - respondi de pronto. 
Falei então em voz alta: 
- Amiguinhos, amiguinhos, venham até aqui! 
Não apareceram. 
- Agnã - disse Guaraxaim -, talvez não queiram aparecer 
por causa de mim e do seu pai, mas certamente estão nos observando. 
Fale normalmente que irão lhe escutar. 
- Amiguinhos da mata, permitam que possamos levar os 
animais abatidos para a nossa aldeia. O meu povo precisa da carne 
para sua alimentação. Prometemos que por um longo tempo não os 
incomodaremos, não caçando mais nenhum outro animal nessa região. 
Os curupiras não se manifestaram. 
- Vamos voltar - disse o guia -, acho que agora não haverá 
mais problemas. 
Descemos a montanha e reencontramos o grupo que nos 
aguardava. Retomamos assim o caminho para a aldeia. 
Olhando para trás, pela última vez, pude ver ainda as águas 
douradas caindo da montanha e os curupiras saltitando entre as 
árvores da mata. 
43 
 
9 - A PRIMEIRA INICIAÇÃO 
 
Na volta à aldeia os homens pegaram a caça que haviam 
abandonado e prosseguimos sem maiores dificuldades. 
Quando chegamos, todos olharam para mim muito curiosos 
querendo saber como que eu havia me pintado. O meu pai, 
antecipando-se, apenas disse que era uma história muito comprida e 
que no momento ele queria descansar. 
Fui lavar-me no riacho. Toda a pintura saiu, mas o meu 
arco e flechas permaneceram dourados, por mais que eu tentasse 
limpá-los. 
 
caçadores. 
Não escapei de outra pajelança, juntamente com todos os 
 
O tempo foi passando e quando eu cheguei aos sete anos, 
meu pai chamou-me para dar uma boa e importante notícia: 
- Filho, já é o momento de você passar pela primeira prova 
para se tornar um guerreiro valente e afamado. Tenho a certeza de 
que você estava ansioso por isso. 
Eu estava ansioso para não passar por isso. Permaneci 
calado, só escutando. 
- Vamos convidar todos os familiares e amigos para a festa 
da colocação do seu tembetá. 
O tembetá era o primeiro significador de virilidade que 
antecedia o período da puberdade. Para a grande maioria dos mirins, 
era um fato extremamente importante: passariam a ser denominados 
curumins, ou seja, meninos próximos da puberdade. Mas, isso não me 
animava o suficiente para ter que me submeter ao ritual. 
Próximo ao dia marcado, já confinado na oca de meus pais, 
recebi a visita de muita gente. Todos me encorajavam a enfrentar o 
meu destino e faziam votos para que eu me tornasse um grande 
guerreiro. Estava conformado, mas não o suficientemente encorajado. 
A única visita que me alegrou mais foi a de Uiramirim. 
- Na sua celebração, eu cantarei em homenagem aos seus 
antepassados e às grandes lutas de seu avô e do seu pai, e cantarei 
também às vitórias destinadas a você - disse animada. 
- O seu canto será a consagração do meu sucesso - 
respondi, procurando não deixar que ela tivesse a impressão de que 
eu estava com medo. 
44 
 
O grande dia chegou depois de uma noite inteira em que 
passei acordado de preocupação e temor. 
A tribo toda estava reunida, os representantes de outras 
aldeias se faziam presentes e usavam os seus mais belos ornamentos 
de plumas. 
Fui todo pintado de preto e vermelho pela minha mãe. A 
tinta preta vinha do suco de jenipapo e a vermelha do artio que envolve 
as sementes do urucum. 
- Tragam o mirim! - bradou um dos índios pertencente ao 
conselho tribal, agora reunido. 
Ah! Se eu pudesse voltar para a barriga da minha mãe... 
Um dos meus tios, que para aquela solenidade seria como 
um padrinho, foi até a minha oca, acompanhado de duas mulheres. 
Começamos a correr por um corredor humano da palhoça até o centro 
da taba e pelo caminho todos procuravam me incentivar. 
Fiquei diante do carbé, o conselho tribal. Um dos bravos se 
levantou e passou a fazer um discurso sobre o passado heróico da 
minha família, que por mim teria continuidade. 
Um outro membro do conselho tribal ficou encarregado da 
operação. Ele pegou uma cuia que continha três pequeninos e 
pontiagudos chifres de cervo imersos em uma substância mágica e 
anti-séptica, preparada pelo feiticeiro, e se aproximou de mim. Eu 
olhava para ele terrivelmente preocupado e nervoso, porém, tendo que 
demonstrar absoluta tranqüilidade. Coisa praticamente impossível. 
Por fim, ele puxou o meu lábio inferior e sem maiores 
rodeios perfurou-o com o chifrezinho, deixando-o no orifício. 
As reações de um garoto, nessas cerimônias, eram 
cuidadosamente estudadas, principalmente as minhas, por eu ser filho 
de um chefe

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