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2 INTRODUÇÃO Era o ano de 1993, em meados de abril. Tinha sido uma semana difícil e cansativa, de muito trabalho e pouco sono. No sábado à noite cheguei em minha casa em Bragança Paulista, beijei meus filhos e minha esposa e tomei um relaxante banho. Jantei e depois fui para o meu quarto. Sentei-me na cama apoiado nos travesseiros e fiquei esperando por minha mulher. Fechei os olhos e respirei devagar e profundamente, sem pensar em absolutamente nada. De repente, uma intensa luz surgiu aos pés da cama e assim que abri os olhos lá estava ele: um índio altíssimo, envolto em uma maravilhosa luz dourada. Sem pronunciar uma palavra me perguntou: - Você está disposto? Entendi a sua pergunta como uma proposta para que eu realizasse alguma tarefa, para a qual teria que me preparar convenientemente. Percebi que ele não se apresentava com todo o brilho de sua hierarquia espiritual, talvez para não me assustar, porém, a sua energia era tanta, que fiquei profundamente emocionado e, mesmo sem saber do que se tratava, mentalmente respondi que sim. Então, ele mostrou-me um livro de frontispício semelhante ao dessa obra e disse: - Você vai escrever sobre a história da minha vida! Em seguida, passei a ter uma série de rápidas visões que, como slides, mostravam os momentos mais importantes de sua última encarnação como indígena, em terras sul-americanas, especialmente no território hoje considerado brasileiro. Uma das visões que mais me impressionou foi a de vê-lo voando, a poucos centímetros acima do solo e a mata se abrindo adiante, dando-lhe passagem. Tratava-se da saga mística do primeiro herói- civilizador do povo tupi, inicialmente denominado de Agnã e que recebeu inúmeros outros nomes, entre os quais Flecha Dourada e 3 Sumé, o mais conhecido. Nesse primeiro livro, retratarei a sua iniciação espiritual, passada há 500 anos a.C. Como eu não sabia nada a respeito da história indígena, mais do que havia aprendido nos bancos das escolas (o que não era grande coisa para um estudo mais sério), tive que começar a pesquisar. Ao mesmo tempo, como sempre fui muito cético com todos os tipos de manifestações paranormais, incluindo as minhas próprias, mesmo sendo membro e dirigente de uma ordem esotérica, buscava muito mais a certeza absoluta da existência concreta desse herói indígena. Uma tarefa difícil, tendo em vista que são poucas as obras de autores nacionais que retratam a vida dos índios brasileiros na época pré-colombiana. Em nenhuma encontrei um estudo que abordasse o assunto que me interessava. Perdoem-me se cometi alguma injustiça. Quando já estava quase desistindo, encontrei um livro empoeirado na prateleira de uma famosa livraria. O seu título A religião dos tupinambás, não me estimulou muito, pois o termo tupinambá, de certa forma, é recente, usado pelos colonizadores portugueses, muito mais para denominar o povo tupi da costa brasileira. Sinceramente, virei as costas e ia embora, quando aquela coisa, sim, “aquela coisa” que você sente surgir lá dentro, dizendo que você vai cometer uma enorme burrice se não voltar atrás, obrigou-me a dar uma olhadinha naquele livro meio amarelado. Que surpresa maravilhosamente arrepiante! Era uma obra de Alfred Métraux, um historiador suíço, que se naturalizou norte- americano, editada pela Universidade de São Paulo, da época do reitor Waldyr Muniz Oliva e da Companhia Editora Nacional. O exemplar era da segunda edição. O prefácio do tradutor, professor Estêvão Pinto, mostra, por si só, a dificuldade que tive: “A vasta obra de Alfred Métraux, embora mundialmente conhecida, é pouco divulgada no Brasil.” Muito bem, logo de cara abro o livro na página 2 e vejo que o autor faz uma referência ao estudo de Thevet*, que se refere a um herói-civilizador que o povo tupinambá chamava de Maire- monan: ...um exímio feiticeiro: vivendo num retiro, em jejum e 4 rodeado de adeptos. E julgavam-no não somente dotado de poderes ilimitados, mas ainda senhor da ciência completa dos fenômenos naturais e dos mistérios ritual-religiosos. Foi Maire-monan quem instaurou várias práticas sagradas ou mágicas Impressionante, não é mesmo? * André Thevet ( 1502 - 1592 ), cosmógrafo e cronista francês. Acompanhou Villegaignom ao Brasil ( 1555 ) e, de volta à França, publicou Les singularitez de la France Antarctique ( As singularidades da França Antártica, 1558 ), sobre a flora e a fauna brasileiras, os índios e seus costumes. ( N. ? ) Ainda segundo Thevet: Fora Maire-monan, diziam os índios, quem lhes desaconselhara a comer da carne dos animais pesados ou lentos... . Atitude muito comum dos iniciados. Na página 3, Alfred é bem claro: Os tupinambás sentiam-se ainda devedores a Maire-monan por sua organização social, ou seja, conforme a expressão de Thevet, por sua maneira de “distribuir o governo”. Tais foram, pois, os benefícios que Maire-monan espalhou entre os homens. Mas, sua atividade não se limitou só a isso. Passava, como já o disse, por um exímio “transformador”, isto é, atribuíram-lhe a maior parte das metamorfoses por meio das quais os silvícolas explicavam as características de certos animais ou coisas, ou, simplesmente, a sua existência. Na página 8 o autor estrangeiro cita um escrito do conhecido padre Manuel da Nóbrega, que fala a respeito da história de um índio que os matos lhe faziam caminho por onde passasse... . Bom, para mim foi a gota d’água. Sentei-me em um banco da livraria e quase devorei as 224 páginas no mesmo dia. Segundo Métraux: A ação civilizadora desse herói ter-se-ia manifestado, sobretudo, pelo fato de haver o mesmo introduzido a agricultura entre os antepassados dos tupinambás, trazendo-lhes todos os vegetais que serviam de base para a alimentação de seus descendentes. Mais adiante: ...Maire-monan fez mais: ensinou aos homens a distinguir os vegetais úteis dos nocivos e mostrou-lhes o uso que podiam fazer de suas virtudes medicinais. Claro que decidi comprar o livro e tive outra surpresa! Ele estava há tanto tempo estocado, embora fosse o único exemplar à venda, que ninguém sabia o seu preço. Tive que esperar 5 que, inutilmente, tentassem entrar em contato com a editora. Desistiram e acabaram oferecendo-me o livro por um valor simbólico. Você, caro leitor, com isso deve ter deduzido o grande significado oculto de tão importante presente. As façanhas desse herói-civilizador foram narradas pelos índios aos jesuítas, no início da colonização e esses acabaram acreditando que, na realidade, se tratava de São Tomé. O fato é que o nosso herói-civilizador realmente existiu e deu origem a inúmeras lendas, ficando conhecido por nomes diferentes, conforme as tribos com que tinha contato: Mair-munhã, Pai Solitário; Maire-monan, Pai Transformador; Irin-pajé, Feiticeiro Transformador; Maire-pochy, nome recebido nos Andes, especialmente na região do Peru; Irin-magé; Zaguaguayu, Coroa de Plumas Amarelas, entre os guaraius; Zumi-Topana, para os Omaguas do Paraguai; Nanderuvuçu, Nosso Grande Pai, ou Nhaderamoitubixa, Nosso Grande Antepassado, ou Nhandejara, Nosso Avô Grande, ou ainda Nanderu Mbaecuaá, Nosso Pai Conhecedor de Todas as Coisas, para os Apapocuva-guarani; Maira-atá, Feiticeiro Viajante, para os Tembé; e muitos outros nomes. Na Ordem do Arco-Íris, da qual sou membro, Flecha Dourada passou a ser chamado de Sun Paan, um nome místico que o identifica como um ser que não mais reencarna na Terra, mas que continua a trabalhar por ela e todos os seus filhos. Com essa denominação, ele foi citado no livro Todas As Vezes Que Dissemos Adeus - ORÉ AWÉ ROIRU'A MA, do Txukarramãe, Kaka Werá Jecupé. Por que Flecha Dourada quis que se narrasse a sua vida, só nesse fim de século? Acredito que há vários motivos, todos importantes. Inúmeros acontecimentos marcantes mostram que estamos vivendodias muito diferentes, em que a consciência mundial está refletindo sobre dogmas até então intocáveis. Há alguns anos atrás, seria difícil imaginar fatos como a queda do muro de Berlim, a divisão da União Soviética, a democratização dos países do chamado bloco socialista, a queda democrática de presidentes sul-americanos, um presidente negro na África do Sul etc. É inquestionável, porém, que vários tipos de movimentos têm unido toda a humanidade, especialmente quando se busca a preservação de todas as espécies vivas. Existe um consenso 6 generalizado de que se não defendermos os bens que a natureza nos oferece não sobreviveremos. No Brasil, as atenções também se voltam contra as manifestações raciais e pela preservação dos costumes indígenas, quase extintos pela cultura do homem branco, em nome da religião e do progresso. Não haverá, em lugar nenhum do mundo, um melhor ecologista que o primitivo homem da terra. Ninguém a amará tanto quanto ele. Talvez seja essa uma das mensagens de Flecha Dourada. Está mais do que na hora de voltarmos às nossas origens. A sabedoria milenar, que valoriza o homem como um ser divino, o faz curvar-se diante da natureza, também divina, uma vez que iniciou a sua caminhada evolutiva por meio dela. Ela é a nossa verdadeira mãe, que nos gerou e que nos fornece tudo aquilo de que precisamos para subsistir. Não seria um crime querer destruir quem nos deu a vida? Se qualquer pessoa se sente no direito de defender a mãe- terra, o esoterista, o estudioso dos assuntos ocultistas, o espiritualista, esses têm o dever de tomar alguma atitude para evitar que ela seja vítima das atrocidades do progresso. Se a natureza for destruída, nada mais poderá ser gerado nesse mundo. O nosso herói ao referir-se à Atlântida mostrou como o homem-espírito foi esquecido com o progresso inconseqüente, a ciência materialista. A poderosa nação seguiu por uma vereda de autodestruição. É mais um alerta para que evitemos o mesmo destino! A preocupação de Flecha Dourada não é à-toa, pois estamos passando por um período evolutivo extremamente delicado em que todos os valores estão sendo testados. Assim, através de sua própria experiência, ele resgata os antigos ensinamentos despertando- nos para a Consciência Cósmica. Outro ponto interessante é que a iniciação de Agnã pode se referir a qualquer um de nós. Certamente, em alguma coisa nos identificaremos: os problemas do orgulho, da vaidade, do poder, do sexo, dos princípios filosóficos postos à prova diante da vida real. Face aos vários ensinamentos esotéricos, facilmente passados em quase todos os episódios, o estudante ocultista encontrará um farto material de estudo e pesquisa, seja um principiante ou um iniciado de longa data. 7 A par do seu conteúdo mítico, é uma história cheia de aventuras e poesia. Você não tem a obrigação de ser um teósofo para entendê-la ou aceitá-la. Acredite ou não nos princípios espiritualistas, essa obra pode ser encarada simplesmente como a descrição de um mundo encantador e exótico que está ao seu alcance. Nas páginas desse livro, com certeza, você mesmo acabará encontrando as respostas para muitas de suas indagações e dúvidas. Evidentemente que usei uma linguagem contemporânea, não sendo fiel a uma escrita tipicamente indígena, nem poderia ser. Primeiro, porque não falo nenhuma língua tribal; segundo, penso que o estilo que escolhi, é de mais fácil compreensão. De qualquer maneira, acredito que os fundamentos foram passados como deveriam ser e da forma mais simples possível. Algumas vezes empreguei palavras do tupi arcaico e do tupi-guarani mais contemporâneo para ilustrar a história mas, para facilitar a leitura, todos os termos se encontram em um glossário em anexo, embora a grande maioria das palavras sejam explicadas no decorrer da própria narrativa. Convém ressaltar que não se usa o plural ao se referir aos povos indígenas. Portanto, não se fala “os homens tupis” e sim os “homens tupi”, por exemplo. Bem, agora solte-se e relaxe. Respire fundo e deixe a sua imaginação fazer viver uma história que não morreu. Será como uma linda música dando alma às letras de uma bela poesia. Se assim for, você se tornará o principal personagem de uma aventura fascinante no mundo da magia... 8 PARTE I - TRADIÇÕES 1 - ANTES DO INÍCIO O sol nascente parecia mais lindo do que nunca. Eu via os seus raios transpassando as alvas nuvens que cobriam o céu, matizando-as com um colorido sem igual, anunciando um novo dia. Sob a mata pairava uma delicada neblina que se desvanecia lentamente diante do astro rei. O despertar de um novo dia surgia também no cântico dos pássaros e no movimento divino de cada animal. da criação. O tempo foi passando, lentamente lindo em cada detalhe No entardecer, o sol escondia-se atrás das altas árvores, voltando a pintar a natureza com suas cores de vida. Pude contemplar um maravilhoso arco-íris que bordava o céu entre uma cachoeira no alto de uma chapada e um lago sereno e tranqüilo que guardava os segredos de um tesouro inatingível, real e imaginário. Veio a noite e passei a admirar as estrelas do firmamento. Seria a última vez que poderia saboreá-las com tanta liberdade, tocá- las com os meus lábios, senti-las dentro de meu coração. Nessa doce noite a lua não poderia se ocultar de mim; pelo menos por mais alguns minutos eu a veria despida de trevas, vestida apenas por uma luz encantada, como uma mulher misteriosa e arrebatadoramente sedutora. Pensei em todas as coisas que fiz nos anos todos que se passaram, período tão longo e distante... Senti medo do que viria, de como iria reagir diante de uma outra responsabilidade, no maior desafio a mim reservado até então. O receio não era apenas de enfrentar o desconhecido mas em não errar outra vez. Era também a oportunidade de uma realização interior que eu tanto havia desejado. Vagavam os meus pensamentos entre as sombras da dúvida e a luz da confiança, da necessidade de concluir algo inacabado, de alcançar o cume mais alto de onde partem as águas cristalinas em busca do lago sereno e translúcido. Subitamente, senti como se uma força irresistível arrastasse o meu espírito para algum lugar. Perdi a noção do tempo e 9 do espaço. A sensação desconfortável durou por alguns instantes. Logo após, recobrei a consciência. Aproximou-se de mim o meu grande amigo e companheiro, que naquele momento me dava assistência. Vestido de uma toga branca, com o capuz recolhido às costas, fitou-me com seus olhos transluzentes e penetrantes. Sem palavras, fez apenas um sinal com a cabeça e eu compreendi então que já era hora de partir. O meu coração apertou amargurado e minha alma encheu-se de lágrimas na despedida derradeira, embora, mais do que nunca, eu soubesse que ele e todos aqueles companheiros de tantas jornadas e aventuras, permaneceriam sempre ao meu lado. Seriam eles a minha fortaleza nos momentos difíceis, a mão invisível, porém firme e segura, durante os caminhos incertos do desconhecido. Os enviados divinos que sustentariam a minha alma aflita e angustiada entregue a uma nova vida de lutas, sacrifícios e aprendizados. Outra vez... tive a mesma sensação desagradável. Uma força descomunal quase me tirava os sentidos mais amplos que possuía. Já não havia mais tempo. Vendo os amigos distantes, as estrelas sumindo, fui perdendo a consciência e adormecendo lentamente... Profunda paz... 10 2 - CHEGANDO EM CASA Todo o conhecimento acumulado durante os milênios permaneceria intacto. A experiência, no percurso das existências da alma, emergiria sempre que necessário nos momentos imprescindíveis. Não haveria plena consciência do passado, mas no decorrer dos acontecimentos eu, de alguma forma, sentiria que muitas coisas não seriam tão estranhas e de alguma maneira teria uma certanoção de como agir, do que fazer. Seria, entretanto, incorreto afirmar que tudo já estivesse predestinado e que eu possuisse todo o controle dos acontecimentos que adviriam. Não haveria mérito para o aluno se ele soubesse, prematuramente, todas as respostas da prova à qual seria submetido. A importância do teste está justamente na avaliação da capacidade do aprendiz de reter consigo os ensinamentos a ele ministrados. Em se tratando da alma, é a aferição de que as qualidades e virtudes alcançadas manifestam-se naturalmente, que o aprendizado, no decurso das vidas, foi realmente assimilado. Repentinamente, quando já supunha estar vivenciando uma paz duradoura, passei a sentir uma sufocante compressão como se o mundo inteiro estivesse sobre mim. A sensação desconfortável se repetia em determinados intervalos de calmaria, até que se tornou contínua. Agora, me parecia estar no interior de um vulcão prestes a entrar em erupção. E entrou... Lá estava eu, novamente no mundo dos homens, limitado no interior de um corpinho tão frágil, sentindo muito frio. Logo em seguida, o meu pai cortou o cordão umbilical com os seus próprios dentes e depois banhou-me em um riacho. Um outro homem aproximou-se e achatou o meu nariz com o seu polegar. Chorei tudo o que podia chorar mas, quanto mais chorava, mais aquelas pessoas estranhas e malucas gritavam, festejando o nascimento do novo membro da tribo tupi, uma das primeiras que daria origem a uma grande e poderosa nação. Finalmente, colocaram-me em uma redezinha, entre dois esteios de madeira, chamada de amy. Embora eu preferisse o aconchego da minha mãe, ninguém me dava ouvidos. 11 Como oferenda cerimoniosa de bom presságio, ganhei unhas de onça, garras, asas e penas de cauda de gavião, mais um pequenino arco com pequeninas flechas. Durante muito tempo o meu pai permaneceu ao pé de minha mãe ou deitado em sua rede, não fazendo absolutamente nada, até o dia em que o meu umbigo secou e caiu. Foi uma grande festa em que a tribo toda participou. Em homenagem ao meu idoso avô, que havia sido o maior de todos os guerreiros e em lembrança dos nossos ancestrais que viveram nos Andes, passaram a me chamar de Agnã, que significava O Temível, na alusão de que eu herdaria a fama de um terrível guerreiro, honrando os meus antepassados. 12 3 - BULINDO COM SERPENTES As crianças em nossa tribo eram criadas com muita liberdade e nunca eram repreendidas. Todas as mulheres e todos os homens se preocupavam com elas, que eram educadas no respeito aos mais velhos e na observação das tradições. Ainda muito pequeno, eu ficava com minha mãe, que me colocava dentro de um cesto que era preso em suas costas, dando- lhe liberdade para cuidar das plantações, colher os alimentos e se dedicar a outras tarefas domésticas. Por volta dos meus quatro anos, dei o primeiro susto em minha família e em toda a tribo. Estava sentado no chão de barro de nossa oca a brincar sozinho com o meu maracá, quando sorrateiramente entrou ali uma jararaca de mais de um metro e meio de comprimento. Atenta, observou bem o que eu fazia. Quando vi a cobra, larguei o maracá e aproximei-me dela. Olhei bem para os seus olhos, apontei-lhe o dedo e disse: - Xerimawa! - o que significava animal de estimação. A cobra se assustou e ficou em posição de ataque. Não me intimidei e disse: - Minha xerimawa! A jararaca era orgulhosa e não admitiu que eu lhe apontasse o pequeno dedinho bem perto do seu nariz. Deu um bote em minha direção no exato instante em que a minha irmã mais velha entrava na oca. A tribo inteira correu para a palhoça com os frenéticos gritos que ela deu. Os que adentraram na oca também ficaram assustados. A cobra estava toda enrolada em meu corpo e eu segurava o seu pescoço. E que pescoço comprido! Alguns faziam gestos estranhos, uns falavam baixinho para que eu não me movesse e outros gritavam para que eu continuasse a segurar a jararaca. Sinceramente eu não entendia o porquê de tanta preocupação: pelo menos eu estava me divertindo muito. Com uma mão eu segurava a jararaca, com a outra agitava o meu maracá. O maracá consistia em uma baga, fruta da cuieira ou cabaceira, que na oca servia como cuia. Quando colocávamos suas próprias sementes em seu interior e a tampávamos, a baga virava um chocalho, que era utilizado como um instrumento musical ou brinquedo de criança. 13 Agitando o maracá, a serpente soltou-me, mas quando o meu pai quis aproximar-se com uma vara para abatê-la, ela voltou a se enrolar em mim. Fiquei preocupado. Não de que ela me ferisse, mas de que pudessem machucá-la. Pedi para que não lhe fizessem mal e agitei novamente o chocalho. Assim a serpente foi saindo pelo mesmo buraco na palhoça pelo qual havia entrado. Minha mãe, em seguida, pegou- me no colo e todos passaram a me examinar para ver se eu havia sido picado. Lá fora, a minha xerimawa não teve perdão: os outros homens a mataram com medo que assediasse outras crianças. Todo mundo começou a chorar. Não fui picado, mas fiquei muito triste ao saber que haviam matado a minha cobra de estimação. No mesmo dia, organizaram uma enorme festa para agradecer a Munhã, o grande Deus criador, a proteção ao pequeno Agnã. Beberam e dançaram a noite inteira. Eu continuava aborrecido. No dia seguinte, todos estavam exaustos e eu inconformado pela terrível sorte de minha xerimawa. Fui então para a mata com o meu maracá, chacoalhando-o várias vezes, chamando uma nova serpente. O tempo passou e, óbvio, a minha família deu por minha falta. Todos passaram a me procurar com medo de que os maus espíritos, como vingança da comemoração, tivessem me raptado. Uma das mulheres ouviu o som do maracá no meio da mata. Não demorou muito para que me encontrassem em uma pequena clareira. Novamente ficaram aturdidos a observar agora, não apenas uma, mas várias serpentes brincando com o pequeno Agnã. Minha mãe e irmãs choravam muito e todos faziam uma cara de desespero. Ao ver tanta gente, fiquei com medo que alguém pudesse fazer mal às xerimawas e, agitando o maracá, mandei-as embora. Ao me encontrarem são e salvo, quiseram fazer uma nova festa para comemorar o acontecimento mas, temerosos, consultaram o pajé sobre a conveniência da mesma. Claro, não tinham a intenção de transformar a tribo toda em um serpentário. O pajé era o feiticeiro, o médico, o conselheiro, o chefe religioso da tribo. Era um homem bom e sério, que só se descontraía quando bebia muito nas festas. Após fazer suas consultas espirituais no meio da mata, autorizou a festança e mais bebedeira. 14 Aliás, todos os acontecimentos eram razão para comemorações, como o nascimento, a primeira menstruação, a puberdade dos meninos, as guerras etc. Havia muita dança e cauim. O cauim era uma bebida fermentada, espécie de vinho, que não deixava um único guerreiro sobriamente em pé por muito tempo. Podia-se extrair o cauim de diferentes plantas, mas normalmente era do aipim, uma espécie de mandioca doce. Somente as mulheres preparavam a bebida, mascando o aipim com penosa paciência e cuspindo-o no interior de um grande pote de barro. A mastigação era necessária para que a saliva ajudasse a sacarificação do amido, pelo fermento. Era dessa forma que se fazia “ferver” a bebida e não o fogo propriamente dito a que era submetida. Esse detalhe é que dava ao cauim um sabor todo especial e um poder alcoólico incrível. 15 4 - DESAFIANDO AS FERAS Preocupado com as minhas últimas companhias, meu pai decidiu que eu deveria acompanhá-lo a todos os lugares que fosse, exceto nas campanhas de guerra. Assim, um pouco antes da idade necessária, passei a conhecer as montanhas, vales, rios, riachos e tantos outros lugares, sempre com o meu maracá. Não demorou muito, porém, e, numa breve distração do meu pai, em uma de nossas expedições,saí furtivamente pelo mato desconhecido. Andei sozinho mais de um quarto de dia, quando pude descobrir uma pequena furna escondida entre duas colinas. Encontrei ali, dois filhotes de yawara sozinhos e resolvi brincar com eles. Divertimo-nos muito, até aparecer a mãe deles. Era uma yawara pixuna, ou uma onça-preta, realmente enorme que resolvera voltar para a sua casa porque certamente sentira o cheiro de gente próxima do lar, o que poderia ser perigoso para os seus filhotes, mas certamente muito mais para quem ali estivesse. Eu, sinceramente, não dei muita importância, mas percebi a preocupação dela com os filhotes. Ensurdecedores rugidos... A onça-mãe estava disposta a salvá-los de qualquer mal e sob qualquer risco. Veio em minha direção muito determinada. Fiquei parado, permanecendo de cócoras. Chegou bem perto de mim, mostrando suas brilhantes presas, cheirou-me com muito cuidado e, quando eu realmente não esperava, deu-me uma lavada de lambida na cara, o suficiente para que eu caísse de costas e ainda desse mais uma pirueta para trás. Ficamos grandes amigos. Evidentemente que a essa altura o meu pai e todos os guerreiros estavam me procurando. - Grande Anuaí, não quero desconsolá-lo, mas com todo esse tempo já passado, nessa região e quase anoitecendo, temo que seu filho tenha... - Grande Surukuá, ele está vivo, tenho certeza! - Mas onde ele estaria? Pelo seu tamanho não poderia ir tão longe e já nos dispersamos procurando em vários lugares. Agnã não deixa rastros e nem mesmo Aguaraxaí consegue achar uma única pista. 16 meu pai. - Ainda não fomos para as colinas de yawara - disse o Os guerreiros se entreolharam. - Não desacredito que por lá esteja Agnã, porém é onde as onças pretas vivem em maior abundância. Seria muito perigoso para ele que, além de pequeno, nem sabe se defender. - Não resta outra alternativa. Sei que o mais bravo dos nossos valorosos homens temem o terrível jaguar, principalmente o pixuna. Dispenso a todos e vou sozinho. - Anuaí, nós não o deixaremos só. Iremos contigo. Somos trinta guerreiros prontos para morrer, mas com a dignidade de um bravo destemido - respondeu o altivo Surukuá. Ao chegarem na colina mais próxima da gruta, puderam escutar o som do meu maracá. Em poucos minutos já estavam me observando de longe. Acredito que um tanto petrificados de espanto e de medo que nenhum guerreiro tem. Ao final de um tempo tomaram coragem e começaram a descer a colina, sempre pelo lado contrário do vento. A onça-mãe, porém, não era somente boa de faro, mas tinha uma audição invejável e percebeu a sorrateira tentativa de aproximação. Ela ficou muito agitada e nervosa, dando estrondosos urros. Os bravos agruparam-se em apenas um lado do caminho da furna, para dar espaço suficiente para a onça e os filhotes fugirem. Evitariam ao máximo atirar suas flechas. Endeusavam o jaguar porque já haviam presenciado uma pixuna matar dois homens depois de alvejada por flechas envenenadas. A tática estava dando certo: a onça-mãe estava aborrecida mas levava consigo os dois filhotes para a mata. Porém, um dos guerreiros, ao chegar bem perto de mim, fez com que a temível pixuna acreditasse que eu seria atacado. A onça deu então um fantástico salto, pulando com as patas dianteiras sobre o peito do guerreiro. Ele era o homem mais forte dos que ali estavam, mas foi facilmente derrubado e antes que ela, em mais um simples golpe, tirasse a sua vida, chacoalhei o maracá. Ela parou imediatamente e veio para perto de mim, elegantemente mansinha. Pedi para que ninguém lançasse flechas. Acariciei a fera e, agitando o maracá, mostrei-lhe o mato. Lepidamente ela se foi com os pequeninos filhotes. 17 O meu pai abraçou-me fortemente e quase todos choraram muito. Aliás, em minha tribo chorava-se por qualquer coisa. - Agnã, você está ferido? - Não, meu pai, mas acho que o grande Tapiira está. Os outros guerreiros acudiram Tapiira que perdera os sentidos e tinha profundos cortes no peito, que sangravam abundantemente. - Grande desgraça - gritou meu pai. - Maldita yawara pixuna! - Meu pai, ela não quis machucar Tapiira. - Mas ele está ferido e pode morrer. Cheguei perto do guerreiro desfalecido e agitei o maracá. As feridas pararam de sangrar. Todos entreolharam-se, mas não disseram uma só palavra. Pedi para que jogassem água no peito do bravo desmaiado e quando fizeram isso notaram que as feridas não passavam de ligeiros arranhões. Agitei mais fortemente o maracá e disse: - Acorda, Tapiira, ela já foi embora e você está bem! - O guerreiro abriu os olhos e logo se levantou. Foi uma choradeira geral. 18 5 - A PAJELANÇA Quando retornamos à tribo, já era noite e todos estavam preocupados que estivéssemos em poder de nossos inimigos. Os valorosos guerreiros contaram o que havia acontecido e todos ficaram maravilhados. A minha mãe, porém, ficou transtornada. - Anuaí, você precisa fazer alguma coisa. Esse menino vai acabar morrendo - disse em prantos. - Tapiiti, já falei com Agnã, fiz de tudo, eu mesmo procuro cuidar dele, mas ele puxou a você: é ligeiro e esperto no mato. - Levem-no ao pajé - aconselhou o meu avô. - Iremos amanhã - respondeu respeitosamente o meu pai. No dia seguinte estávamos na oca do pajé. Meu pai, minha mãe e eu. - Pajé Marapuama, estamos muito preocupados com Agnã... - Estou sabendo de todos os acontecimentos. Vou fazer minhas consultas e depois conversaremos. À tarde voltamos à oca do feiticeiro. - Decidi chamar os outros pajés para expor o assunto. Acredito que Munhã está nos passando uma mensagem que precisa ser compreendida. - Estou muito preocupada - disse a minha mãe. - As outras mães não querem mais que seus filhos se aproximem de Agnã. Acham que ele pode trazer perigo ou mau agouro. - Aguardem a grande reunião dos pajés - determinou Marapuama. No final da tarde começaram a chegar os maiores feiticeiros das tribos tupi. Mas, face à distância de algumas aldeias, somente no final do dia seguinte todos estavam presentes. Sentados em círculo, em torno de uma fogueira, fumando tabaco em canudos, mais de trinta pajés encontravam-se na palhoça de Marapuama. O nosso feiticeiro expôs a situação e foram ouvidas as testemunhas dos fatos. Por fim me chamaram. Contei a eles o que tinha ocorrido e encheram-me de perguntas: - Sentiu medo? - Não. - Teve vontade de fugir? 19 - Não. - Teve a intenção de matar os animais? - Não. - Invocou Munhã? - Não. - Pediu socorro? - Não. - Alguma vez largou o seu maracá? - Não. Mais algumas perguntas e por fim decidiram dançar e invocar os espíritos. Era tanta fumaça do fumo que sopravam em minha cabeça que eu não enxergava mais nada e sorria à-toa. Gritavam aos berros, invocando as entidades das matas. Após algumas horas, me dispensaram e disseram a meus pais que eu estava livre dos espíritos que haviam tomado conta do meu corpo, mas o maracá deveria ficar com eles. Abriram o meu maracá e encontraram no seu interior sementes de yamaú. Passaram-se mais algumas horas e já íamos noite adentro quando convocaram toda a tribo. - Munhã - disse Marapuama -, nos mostrou sua grande bondade. Fez surgir o maracá da natureza não apenas como um simples recipiente, não apenas como algo para carregar água ou para servir como instrumento musical, mas como expressão divina de seu poder sobre os espíritos. Daqui para a frente, cada guerreiro, cada mulher e cada jovem ou criança terá a sua cabaça e sementes consagradas em cerimonial. Os maracás serão símbolos religiosos - decretou. Assim, creditaram aos espíritos ligados ao maracá a minha proteção e a dos guerreiros, bem como o domínio sobre os animais. Na verdade, havia outro motivo oculto para que Marapuama procurasse conduzir os outros pajés e o resto da tribo a essa conclusão. Ele mesmo nãoacreditava piamente que fora o maracá o responsável pelos feitos incomuns, embora resolvesse mantê-lo em seu poder. Como já foi dito, o nosso pajé era um bom homem. Mas, o fato de ser bom ou ser um pajé não o tornava menos homem e, como tal, tinha as suas preocupações pessoais. Caso os feitos fossem atribuídos exclusivamente a mim, ele correria o risco de perder a 20 confortável posição de poder e domínio sobre a tribo para um simples mirim, caindo em desgraça e talvez perdendo até a própria vida em razão disso. Era motivo mais do que suficiente para que procurasse desviar a atenção para o maracá. Com a cabaça, agora sagrada, qualquer conseqüência, boa ou ruim, poderia ser atribuída aos espíritos. Tal decisão influenciaria todas as demais gerações tupi. 21 6 - O GRANDE PEQUENO FLECHEIRO Após toda a confusão que acabou por santificar o meu maracá, achei que não poderia mais ter xerimbabos. Conformei-me com a situação, mas fiquei um pouco tristonho com esses fatos. Sem maracá, sem animais, sem amiguinhos para brincar e sem poder ir à mata, restava apenas a distração de observar a natureza ali mesmo. Gostava especialmente de apreciar o nascer e o pôr-do-sol. Adorava, ainda, ver as aves cruzando o céu. Aliás, eu queria ser como elas, ter asas e voar. Sentir o prazer da liberdade, indo para onde quisesse, olhando o mundo lá de cima... - Eu também já quis ser um pássaro - disse meu avô surpreendendo-me o pensamento absorto pelo vôo de uma ave de rapina. Com um olhar voltado para um passado muito distante, o velho guerreiro passou a relembrar a sua história de grande valentia: - Um dia, ainda pequeno, mas já um excelente arqueiro, eu queria participar das campanhas de guerra e vingar a morte de nossos antepassados. O meu pai, entretanto, achava que eu ainda não estava preparado. Teria que passar antes pelo ritual de iniciação de um guerreiro, porém, mesmo assim, eu não tinha a idade necessária. Apesar disso, estava convencido de que não havia nenhum homem com a minha pontaria e nem com mais coragem do que eu. O meu venerável pai tentava consolar-me dizendo que não bastava ser bom em arco e flecha e que o verdadeiro guerreiro só é valorizado quando vence os seus inimigos com as próprias mãos. Na lua seguinte - continuou o meu avô conseguindo cativar a minha mais absoluta atenção - os guerreiros saíram para enfrentar os inimigos. O nosso povo, há milênios, tem a tradição de seguir em longas expedições para novas conquistas e à procura de um lugar melhor para viver e naquela época toda a tribo estava em viagem para o sul, quando nos deparamos com um povo hostil, primitivo e desorganizado, os tapuia. Eles não permitiam o prosseguimento de nossa caminhada. O combate seria inevitável. Eram, porém, muito mais numerosos e teríamos que confiar na valentia de nossos guerreiros somada ao porte físico superior. Cada homem de nossa tribo valia por quatro dos nossos oponentes. O meu pai, grande guerreiro, era um dos líderes de nossa tribo, sendo muito 22 respeitado pelo povo. Em campanhas anteriores, lutou bravamente matando e capturando muitos inimigos. Alguns dos guerreiros, entretanto, estavam preocupados porque um deles havia sonhado com uma nuvem de sangue sobre os nossos homens e um sol brilhante sobre os nossos inimigos. O feiticeiro, porém, não deu maior importância e exaltou os bravos à luta. Assim, após imponente festa e com a bênção do pajé, os heróis marcharam destemidos para a glória de nossa gente. Nem bem saíram, as mulheres trataram de preparar o cauim para comemorar a vitória que certamente adviria. Mas, eu não estava contente. Eu, não. Que os nossos ancestrais possam eternamente me perdoar, porém, de tão aborrecido que fiquei, era o meu desejo que fossem derrotados por não terem permitido que fosse com eles. O dia passou e a expectativa era grande. A preocupação atravessou a noite inteira... O velho fez uma angustiante pausa e depois continuou: ...Passou-se mais um dia e mais uma noite se passou...... Os nossos guerreiros nunca haviam perdido um combate e sempre retornavam com prisioneiros. As batalhas raramente estendiam-se por mais de um ou dois dias. No final da tarde do terceiro dia, quando todos já estavam aflitos e temerosos, começaram a chegar os primeiros guerreiros. Muitos deles estavam feridos e cansados. As mulheres, velhos e nós crianças, corremos ao seu encontro, apreensivos e chorosos. - Fomos covardemente massacrados! - gritou um deles. - Ninguém acreditava. - Pegos de surpresa... no estreito do vale... eram milhares... - quase sem fala outro guerreiro tentava explicar o que havia acontecido. - Lutamos corajosamente... cada um de nós conseguia derrubar muitos dos deles... mas surgiram mais... muito mais - manifestou-se um outro bravo muito ferido. - Matamos e ferimos centenas de tapuia... - continuou o primeiro chorando copiosamente - ...mas, a luta foi desigual na surpresa... Os nossos homens estavam acostumados a enfrentar os inimigos frente à frente. Procurei o meu pai, mas ele não estava entre os que retornaram. Adentramos no mato para acudir os que nem conseguiam chegar na aldeia. Perguntei sobre o meu pai, ninguém sabia... Meu avô continuou, após uma pausa mais prolongada: 23 Não podia acreditar: eram quase mil homens, fortes, altos. Os inimigos mal chegavam à altura do peito do mais baixo dos nossos. A minha família começou a entrar em desespero. Minha mãe, meus irmãos e eu gritávamos o nome de meu pai por todos os lados, mas não havia resposta. Voltaram para a tribo não mais que trezentos homens, a maioria deles feridos. Até o dia seguinte ainda chegaram alguns guerreiros. Disseram que eram os últimos e meu pai não estava entre eles. Entretanto, um dos homens o havia visto: - Destemido o teu pai, digno de toda a honra. Quando batíamos em retirada, ele e mais vinte homens, apenas vinte, decidiram fazer nova frente contra os tapuia que continuavam vindo sobre nós. Suas ordens ainda estão soando em meus ouvidos: “Voltem para a tribo com os feridos, nós outros iremos retardar os inimigos”. Foi a última vez que o vi. Fiquei inconformado, não poderia aceitar a possibilidade dele ter morrido, mesmo com grande honra. Naquele momento eu não via honra nenhuma na morte. - Temos que nos preparar, eles vão nos atacar em breve! - bradou o único líder de guerra que sobrou. - Não teriam tanta coragem - duvidou o incrédulo pajé. - Terão muito mais coragem do que você deveria descobrir. Nós subestimamos os inimigos no primeiro confronto, devemos sabiamente acreditar que estão eufóricos com a nossa desgraça e sabem que não representamos o total de nossa gente. Irão nos atacar - respondeu o líder com muita firmeza. A observação feita pelo bravo tinha fundamento. Não havia tempo suficiente para fugir. Tínhamos que nos aprontar para a luta derradeira e assim foi feito. Todos em condições de combate foram chamados ao centro da taba. Dessa vez não me dispensaram. As instruções de luta foram cuidadosamente passadas. Sabíamos bem qual a tática a ser empregada. Como eu era reconhecidamente um excelente arqueiro, fui escalado para o combate à distância, defendendo justamente o flanco mais vulnerável da aldeia. Éramos ao todo oitenta e três curumins, jovens arqueiros, e somente mais quatrocentos guerreiros capacitados para a luta. Todos, homens, velhos, mulheres e crianças iniciaram os preparativos, produzindo as armas de guerra e construindo as caiçaras, estacas de proteção, à volta inteira da aldeia. Erguemos três cercas espalhando espinhos envenenados entre elas. O veneno era tão forte que um homem tombaria a menos de dez passos. Teriam que dar quarenta passos para o primeiro 24 confronto face a face. Ao me preparar vi uma ave de rapina cruzando o céu. Foi quando desejei ser uma para ver aonde estava o meu pai.Queria ser intocável no ar para assenhorear-me da terra. Os arqueiros foram instruídos a serem muito ligeiros e precisos. Quanto mais tapuia pudéssemos abater antes do confronto físico, melhor seria para nós. Vendo a ave passando velozmente, disse a mim mesmo: “Serei mais certeiro e rápido do que qualquer guerreiro jamais foi”. Em um piscar de olhos, armei o arco e disparei impiedosamente uma seta em direção da ave que caiu na terra com a flecha atravessada em seu pescoço. Os que puderam presenciar a cena gritaram as palavras de ordem dos grandes bravos. Retirei a flecha da ave e disse ao vento: “Essa será destinada ao primeiro tapuia em memória de meu valoroso pai”. Todas as minhas outras setas tiveram suas alhetas preparadas com as penas dessa ave. Tomamos posição e aguardamos o inimigo. Era um dia bonito e o sol estava a pino quando começamos a ouvir os gritos estridentes vindo da mata por todos os lados. Os tapuia queriam nos incutir medo antes do enfrentamento. Mas a maioria dos nossos homens estava com um grande sentimento de vingança e não viam o momento do ajuste. Eu também tinha o mesmo desejo, mas não deixava de ter medo. Sabia muito bem que os tapuia não faziam prisioneiros. Temia pela minha família, minha mãe e meus irmãos. Ouvindo o meu avô contando essa história, eu ficava de olhos arregalados e de boca aberta. Em tom dramático ele prosseguiu: - Uma sentinela avançada retornou a nossa aldeia, passando cuidadosamente pelas armadilhas que preparamos para recepcionar os nossos oponentes. - São milhares! Provavelmente dez vezes mais do que nós todos juntos! - disse, preocupado. O chefe de guerra conclamou o povo para que lutasse bravamente. Começamos a gritar mais alto do que os inimigos e cada vez que eu gritava sentia mais força e coragem. Surgiram os tapuia fazendo grande alarido, avançando como animais. Passaram o primeiro obstáculo pisoteando aqueles que caíam no chão sob o efeito do veneno. Eram muitos, parecia que a mata era feita de tapuia. Quando alcançaram o segundo obstáculo recebemos ordens de lançar as flechas envenenadas. Procurei rapidamente o mais forte dos tapuia e disse ao disparar a seta guardada para aquele momento: “Morrerás pela honra do meu pai”. O disparo foi certeiro, bem no meio do 25 pescoço. O combate foi árduo e penoso e nós, os arqueiros, fizemos com que muitos inimigos tombassem antes de alcançar a última cerca que nos separava. Lancei quarenta e três flechas e derrubei quarenta e três tapuia, com todas as setas invariavelmente atravessadas no pescoço de cada um deles. Veio a feroz batalha corpo a corpo. Peguei o meu tacape e passei a golpear os inimigos que vinham sobre nós. A luta frenética estendeu-se por um tempo que parecia interminável. Os tapuia, sentindo que seriam inapelavelmente derrotados, bateram em retirada para a nossa alegria. Mas, estávamos tão exaustos que não chegamos a persegui-los, deixando-os ir embora. Eu, coberto de sangue dos primitivos, caí de joelhos e queria me deitar, mas não havia espaço, o chão estava repleto de corpos. Os tapuia mortos e gravemente feridos, estavam espalhados por toda a parte. O meu avô fez uma pausa para fumar o seu tabaco, o suficiente para que eu pudesse piscar novamente e continuou em voz mais grave: - Ficamos ainda um tempo parados. As mulheres socorriam nossos feridos, que eram muitos, mas dessa vez a vitória foi inteiramente nossa. Perdemos cerca de quarenta homens, porém, a vista do campo de batalha era triunfante... Centenas de corpos dos nossos inimigos sobre as cercas e por todos os lados. Os que estavam vivos encontravam-se feridos e foram mortos na mesma hora. Dessa vez não faríamos prisioneiros. Alguns dos primitivos ostentavam em seu pescoço os colares de nossos altivos guerreiros, provavelmente mortos no primeiro combate. Com tristeza encontrei o colar de meu pai com um deles. Tirei-o com muito cuidado para que não arrebentasse e em seguida esmaguei o crânio do miserável a golpes de tacape. Após todas as solenidades funerárias, enterramos os nossos mortos e festejamos a vitória. Os principais da nossa aldeia acharam conveniente que levantássemos acampamento e retornássemos para o oeste, aonde nos reagruparíamos com outras tribos para retornarmos à luta pela passagem no Vale da Morte. Soltei um profundo suspiro. Via no brilho dos olhos do meu avô a veracidade da sua história. Era uma entre inúmeras outras. - Eu estou muito preocupado com sua segurança, Agnã. A qualquer momento você terá que se defender das feras ou dos inimigos. Por isso eu mesmo confeccionei um arco e flechas de acordo com o seu tamanho. Você aprenderá também como preparar as suas próprias armas e como manejá-las. 26 Assim, passei alguns dias conhecendo os segredos da manufatura de um excelente arco e flechas. O meu avô tinha não só a fama de ter sido um destemido guerreiro e excepcional flecheiro, mas acumulava os feitos com a glória de ser o melhor de todos os artesãos na confecção das armas de guerra. Diziam que os espíritos dos nossos antepassados haviam soprado aos ouvidos do ancião os mistérios da preparação das armas, ensinando-lhe nas matas a arte que somente ele passou a dominar tão bem. O meu avô não confirmava a história, mas também não a desmentia. A única coisa que dizia era que o homem que quer usar algum instrumento tirado da terra, precisa conversar com os espíritos que cuidam dela. 27 7 - PESCANDO UM ARCO-ÍRIS Com a orientação do meu avô, não precisei de muito tempo para aprender todos os misteriosos detalhes da confecção de arcos e flechas. O arco era constituído de uma taquara especial, cujo tipo não era fácil de ser encontrado. Cortada com cuidadosa conveniência, tinha ainda que ser devidamente preparada, ficando de molho em uma solução de ervas. Posteriormente, era posta para secar à sombra. O processo tinha que ser repetido algumas vezes para assegurar ao arco a resistência e a flexibilidade adequadas. A corda era feita das fibras de uma planta chamada karawa e também exigia um tratamento específico antes de ser usada. As flechas eram feitas de uma madeira difícil de encontrar, que lhes dava leveza e resistência. Suas pontas podiam ser de ossos humanos (dos tapuia, claro), de animais ou da própria madeira. As alhetas traseiras eram feitas de penas de águia, não simplesmente para embelezá-las, mas cuidadosamente colocadas na correta posição, permitiriam que a seta girasse em torno de seu próprio eixo, mantendo sua estabilidade de vôo, direção e aumentando sua capacidade de perfuração. Havia, sem dúvida, o lado místico dos materiais empregados. A árvore da qual se retirava a madeira era a morada preferida do espírito do fogo. Segundo o meu avô, a flecha feita dessa árvore tinha o poder de liberar uma energia extremamente destruidora, quando atingia o seu alvo. Os ossos humanos utilizados na ponta da flecha eram para atingir o espírito dos guerreiros inimigos, que somente eram feridos mortalmente, quando se usava a força do espírito de um guerreiro morto em batalha. As penas de águia eram para permitir que as setas ganhassem a velocidade dessas aves e a pontaria certeira, uma vez que o espírito da águia estaria dentro da própria flecha. A porção de ervas, na qual eram mergulhados as setas, o arco e a corda, era uma essência dos espíritos da força e da resistência. Todos os membros da nossa tribo consideravam que as armas produzidas pelo meu avô eram possuidoras de grande magia, 28 pelos feitos de outrora. Eu também comecei a acreditar piamente nisso. Depois de aprender a confeccionar minhas próprias armas, o meu avô passou a me ensinar o seu correto manuseio. Dominei com facilidade a arte de armar e disparar as setas. Já nos primeiros treinamentos, conseguia fazer eficientes disparos e fui aprimorando os lançamentos a cada arremesso.Tapiira e mais alguns guerreiros, ao me ver treinando ao lado do meu avô, gritou: - Grande Agnã, sucessor do maior dos flecheiros! O quase setuagenário sorriu com altivez e disse: - Agnã será o orgulho de nossa nação e de nossos antepassados. Com o passar dos dias eu e o meu arco e flechas seríamos inseparáveis. Só havia um problema: as pessoas que inicialmente achavam graça, começaram a ficar um tanto incomodadas com tantas setas cruzando a aldeia. Antes que surgissem maiores reclamações, o meu pai resolveu levar-me a uma expedição de pesca. Fiquei muito feliz. Desde os últimos acontecimentos eu não havia deixado a taba. Reuniram-se a nós uns quarenta índios da família do meu pai e corremos para as margens de um portentoso rio. Logo colocaram as ubás, grandes e pesadas canoas, nas águas e começamos a remar rio abaixo. O meu pai, Igará, seus dois filhos e eu, fomos à frente dos outros dentro de uma yaratim, canoa especialmente feita para o uso dos chefes da tribo e que era mais leve e ligeira. Depois de um bom tempo paramos em uma determinada altura do rio, aonde se formava uma pequena bacia, e Igará, profundo conhecedor das águas fluviais e de pescaria, disse: - Aqui é um bom lugar para os mirins treinarem. Os homens irão comigo mais adiante. Igará passou para a outra embarcação, para acompanhar e orientar os outros pescadores, permanecendo o meu pai conosco. Após uma série de explicações sobre o uso do arco e flecha para se atingir os peixes, o meu pai fez algumas demonstrações alvejando-os com sucesso. Comecei a sentir aflição ao ver os peixes ainda se debatendo dentro da canoa. Os filhos de Igará foram os primeiros e não tiveram maiores dificuldades. Além de serem mais velhos do que eu, já 29 tinham ampla experiência no assunto, pois Igará os havia treinado anteriormente. Chegou a minha vez. Em pé, sobre a yaratim, armei o arco. Vendo os peixes enormes ao lado da canoa, fiz o ângulo de correção, face a difração da luz na água, mas ao soltar a corda do arco, desviei deliberadamente a pontaria, para que o peixe não fosse atingido. Disparei várias setas para não desagradar o meu pai. Passavam todas de raspão e nenhuma certeira. Os outros meninos riam de mim, mas o meu pai mantinha a calma. Em um determinado momento, ele jogou pó de timbó na água, que teve um efeito de sedativo nos peixes ali próximos, deixando-os paralisados e assim uma grande quantidade de peixes começou a boiar do lado da yaratim. O meu pai disse: - Tente agora, os peixes estão parados e boiando, vai ser mais fácil alvejá-los! Que situação, eu não queria matá-los e, principalmente, de uma forma tão indefesa, entretanto, também não poderia desapontar o meu pai, fazendo-o passar vergonha na frente dos filhos de Igará. Larguei o arco e a flecha e passei a pegar os peixes com as mãos. - O que está fazendo, filho? - Estou pescando - respondi sem olhar para ele. - Mas com as mãos? - É perigoso? - perguntei, fazendo-me de desentendido. O tempo começou a mudar e as nuvens negras formaram- se escurecendo o céu. Igará emitiu um som típico de reagrupamento. Nós gostávamos das chuvas, mas a maioria temia aquelas que viessem acompanhadas de trovões e raios, pois era a manifestação divina de Tupã, um deus temperamental, que poderia ajudar na agricultura ou destruí-la com suas tempestades, iluminar um guerreiro ou reduzi-lo a cinzas. Reunimo-nos à beira do grande rio e recolhemos as ubás, canoas de difícil navegação, sem quilha e sem banco, feitas normalmente de uma casca inteiriça de um tronco de árvore. Vieram os ventos trazendo a chuva, com muitos trovões e raios, porém não durou muito tempo. Logo o céu estava limpo, como se nada houvesse acontecido. 30 Era tardezinha e despontava um lindo arco-íris matizando o céu de uma beleza sem par. Todos se reuniram para voltar à tribo. Tendo que remar rio acima, com as canoas repletas de peixes como o pirarucu e o surubim, os pescadores queriam se apressar para não chegar de noite na aldeia. A pergunta do meu pai aos homens era inevitável: - Aonde está Agnã? Ninguém acreditava, de novo, não! Passaram a gritar o meu nome, procurando-me por todos os cantos da margem em que estavam. Procuraram no interior das ubás, nos galhos das árvores e mais uma vez nem sequer um único rastro. Nada. Igará foi até a margem do rio. Olhou bem para os lados e ficou pensativo. Adentrou o rio até que as águas chegassem ao nível de sua cintura. Olhou para a subida e depois para a descida do rio e assim ficou por alguns instantes. Os pescadores e principalmente o meu pai ficaram apreensivos, mas absolutamente em silêncio. - Desceu o rio, provavelmente a nado, na direção do arco- íris - afirmou. Os pescadores voltaram para a aldeia com os dois filhos de Igará, mais a pesca, remando rio acima. O meu pai e seu grande companheiro entraram na yaratim e remaram rapidamente rio abaixo, gritando pelo meu nome. Todos tinham muita confiança em Igará, que era considerado o senhor das águas, face o profundo conhecimento que tinha de todos os rios da região. Também era respeitado como o melhor jacumaíba, ou seja, um experiente condutor de canoa em pontos onde a navegação é arriscada. Em um determinado momento Igará parou de remar. - O que foi? - perguntou o meu pai. - Anuaí, você conhece bem essas bandas... O meu pai fechou os olhos e disse: - Não é possível! - Você sabe que o rio mais à frente divide-se. Seguindo adiante está cheio de piraíba... - E do lado direito forma um igarapé, próximo de onde as pirains vermelhas costumam ficar e Agnã está cheirando peixe bom para se comer. 31 Para os dois, quaisquer das alternativas não seria alentadora. O piraíba era um enorme peixe com o comprimento de dois homens e pesava o equivalente a cinco, temido por engolir facilmente uma criança ou até mesmo um homem pequeno e descuidado. A piraim vermelha era bem menor, mas era mais temida que o piraíba, por ser uma das mais terríveis piranhas. Enquanto isso, eu realmente fui a nado até o igarapé. Ajustando o arco em meu corpo e prendendo bem as flechas, nadei com muita desenvoltura. Nadar era uma das coisas que eu mais gostava de fazer. Às vezes minha mãe dizia que eu era peixe por natureza, de tanta água que saiu dela quando a sua bolsa rompeu no meu nascimento. No igarapé, pude contemplar bem de perto o arco-íris e brinquei muito, justamente nas águas onde ele tocava. Muitos peixes se aproximaram de mim e nadavam a minha volta. Não demorou muito o meu pai e seu fiel amigo logo puderam me encontrar. Quando os avistei, lembrei que havia me esquecido de dizer aonde ia. Também, pudera, era muito raro uma criança ser repreendida e todas tinham quase que total liberdade. Mas acho que naquele dia eu seria um dos casos raros. Mas, ao contrário do que eu esperava, não percebi que os dois estivessem bravos. Conforme vinham se aproximando, notei que só faltava um pequeno sorriso em seus semblantes. Acenei e gritei para eles. Até os peixes pulavam constantemente, inclusive sobre mim, e, no entanto, eles não respondiam. Comecei a achar que estavam mesmo bravos. Quando chegaram bem perto eu disse: - Vocês não querem brincar comigo e meus novos xerimbabos, bem de baixo do arco-íris? Permaneceram mudos e agora estavam também pálidos, de olhos estatelados, quase não respiravam e não se mexiam de maneira alguma. Comecei a achar que haviam comido algum peixe de carne ruim e estavam passando mal ou haviam cheirado timbó por acidente. Pensei então que talvez o meu pai ficasse mais feliz se eu lhe entregasse alguns peixes e joguei-lhe uns dois em sua direção. Que susto tomei, parecia que eu havia jogado brasas dentro da 32 canoa. Os dois começaram a pular tanto que a yaratim acabou virando e foram parar n’água. Dei muita risada. Quando achei que eles iriambrincar comigo, nadaram rapidamente para a margem do rio, deixando a canoa virada. Nunca vi alguém nadar tão rápido assim. Tive que levar a yaratim para a margem, com muito esforço. Os dois guerreiros e pescadores, quase não conseguiam falar direito. Estirados no chão, só resmungavam e eu não entendia nada. Depois de um tempo Igará perguntou: - Anuaí, ainda estamos vivos? - Acho que sim - respondeu o meu pai. Acho que sim? Lógico que estavam vivos! - pensei eu. Os dois examinaram-se cuidadosamente. - Há muitas luas passadas perdi dois homens aqui mesmo - disse Igará, para o meu espanto. - Eu sei - disse o meu pai. - Na tentativa de pescar com rede, a canoa deles virou. Eu mesmo vi. Eles tinham o cheiro dos peixes que já haviam pescado e quando tentavam desvirar a canoa as pirains apareceram em grande número. Foram devorados em pouco tempo e nós outros nada pudemos fazer. - Como pode? - perguntou. - As pirains costumam comer a si mesmas e seu filho brinca com elas dessa maneira e nada acontece. Como pode? - Não sei - respondeu o meu pai ainda sem fôlego e perguntando-me em seguida: - Você está bem, Agnã? - Sim, meu pai. - Vamos improvisar outras yacumans - disse Igará, referindo-se aos remos - e partir o quanto antes. Tenho receio de navegar no escuro. Logo estávamos rio acima, mas escureceu bem antes de chegarmos na aldeia e Igará disse preocupado: - Lembro-me perfeitamente bem da primeira vez que remei por esses lados, em um dos afluentes desse rio. Sozinho, procurando conhecer melhor os caminhos, fiquei empolgado de tanta curiosidade, não me dando conta do tempo e quando decidi voltar à aldeia já era noite. A certa altura senti como se algo batesse na ubá. Em princípio pensei que fosse algum galho de árvore solto e não me preocupei. Mais à frente, a ubá sofreu um forte impacto que quase 33 me jogou para fora. Achei que tivesse abalroado algum tronco de árvore. Não demorou muito e a canoa chacoalhou novamente. Comecei a sentir um frio na espinha. Era uma noite muito escura, como essa, não conseguia enxergar bem, mas eu tinha certeza de que não havia jacarés. Outra sacudida, como se algo tocasse por baixo. A essa altura eu rezava a Munhã e pedia sua proteção. Continuei remando, agora mais rápido. Eu suava copiosamente. De repente um forte choque e a ubá partiu-se ao meio, como se fosse um fino graveto. Fui lançado a grande altura e caí na água próximo da margem. Nesse momento, eu vi um animal enorme: parecia um peixe gigantesco surgindo das profundezas. Suas mandíbulas dilaceraram facilmente parte da ubá. Caberia um homem em pé dentro de sua boca aberta. Nadei o mais rápido possível, com medo de que ele viesse atrás de mim e quando alcancei a margem cheguei a senti-lo quase abocanhando as minhas pernas... Havia muitas histórias como essa e certamente Igará era o campeão delas. Continuamos a navegar durante a noite, e, em um determinado momento, sentimos que algo havia batido levemente na yaratim. - Sentiram? - perguntou Igará. - Deve ter sido algum pedaço de árvore - disse o meu pai, tentando dissimular sua inquietação. Fosse ou não fosse eu tinha a nítida impressão de estar mais molhado dentro da canoa do que se estivesse na água. Sentimos mais um esbarrão, mas todos nós permanecemos em silêncio durante um tempo até que Igará começou a falar novamente: - Outra vez, eu estava... - Igará... - interrompeu o meu pai. - O que foi Anuaí? Você viu alguma coisa? - Não, mas você poderia remar mais rápido e calado? Igará fez uma cara de quem não gostou e passou a remar ligeiro e em silêncio... 34 8 - CAÇANDO CURUPIRAS Chegamos sãos e salvos, mas a tribo já estava preocupada. Ao ver a minha mãe, meu pai disse meio conformado: - Vou passar outra noite acordado com os choramingos. Com o passar dos dias, fui começando a ter uma grande habilidade no manuseio do arco e flecha, pois o meu avô continuou a instruir-me. - Agnã, você está indo muito bem. Agora quero ver como consegue se sair procurando acertar alvos em movimento - disse o velho guerreiro. Preparando uma grande bola de palha e fazendo-a rolar pelo chão, o meu aryiá, o avô, mandou que eu a alvejasse. Não tive dificuldades em acertá-la. Começou a jogá-la cada vez mais rápido e eu continuava acertando. Decidiu então diminuir gradativamente o tamanho da bola a cada flechada certeira. Diante do meu sucesso ele sorria largo. - Muito bem, meu pequeno! Agora vamos fazer diferente. Você ficará de costas e eu jogo a bola. Ao meu grito você vira e tenta acertá-la. Não tive dificuldades, continuei indo bem. Alguns guerreiros passaram a assistir o meu treinamento, gritando a cada flechada certeira. Eu estava feliz, divertia-me muito e meu avô ficava orgulhoso. - Esse mirim tem o meu sangue, meu arco e minhas flechas - disse vaidoso aos homens que nos observavam. - Ele também tem a sua admirável pontaria, destemido senhor das flechas encantadas - comentou um deles. - Mas minha visão, as minhas mãos e meus braços já não me obedecem tanto - respondeu meio tristonho o aryiá. - Seus feitos, altivo combatente, jamais serão esquecidos e os seus valorosos conhecimentos nos são de grande valia - procurava consolá-lo um outro bravo. - Seu neto - prosseguiu - será um grande e destemido guerreiro e logo honrará nossa gente e nossos antepassados. O ancião, olhando-me visionariamente, respondeu: - Um bom guerreiro já nasce com o dom do combate. Sinto que ele tem qualidades e é abençoado pelos espíritos dos nossos antepassados e talvez faça muito mais do que possamos 35 imaginar. Logo Agnã estará preparado para qualquer confronto. É pequeno, mas a sua alma é grande e forte. Continuamos o treinamento. Dessa vez ele passou a jogar no ar as bolas de palha. Uma a uma. Acertei todas. - Fique de novo de costas, Agnã. - Já! - Tentando testar a minha agilidade, o velho bravo jogou uma bola no ar e outra rolando na terra. Virei-me rapidamente e lancei com sucesso uma seta na bola que estava rolando e alvejei a outra antes que caísse no chão. Muitos gritaram. Mas o aryiá não se contentou. - Afastem-se - pediu a todos. Pegou as minhas flechas e deixou-as sem pontas para que não viessem a ferir alguém por acidente. - Vai perder um pouco de velocidade e pontaria, mas lançada próxima do alvo ainda poderá ser certeira. Vendou-me os olhos e disse: - Agnã, o verdadeiro flecheiro segue apenas o seu instinto, nunca apenas os seus olhos. Tente acertar a bola que vou jogar. Arremessou-a e deu um grito. Disparei incontinente. - A seta passou cinco palmos à direita - orientou-me. Fizemos nova tentativa e errei outra vez. - Pequeno Agnã, precisa confiar em seu espírito. Você tem que sentir todos os movimentos, inclusive o meu e a trajetória da bola. Tem que lançar a seta como se ela fosse a extensão do seu próprio braço e acertar o alvo como se o tocasse com a sua própria mão. Tudo ao seu redor tem que fazer parte do seu espírito. Só assim você saberá onde está o que queira atingir. Outra tentativa. - Dois palmos abaixo! Tentei novamente. - Um palmo acima e à direita. O meu avô aproximou-se de mim e dessa vez perguntou baixinho ao meu ouvido: - Agnã, o que está havendo? - Há muito barulho, eu não consigo perceber bem o movimento da bola - respondi no mesmo tom de voz. - Meu neto, um dos segredos está na mente. É necessário que se concentre. Esqueça tudo o que não faça parte do que tenha que fazer. Não deixe que nenhum outro pensamento lhe perturbe. 36 Faça de conta que não há mais ninguém ao seu lado. Só você, o arco, a flecha e a bola. O outro segredo é se integrar com a natureza. Deixe- se levar por ela, guiado apenas pelos sentidos do espírito. Novo disparo, incrivelmente certeiro. Todos gritaram. O meu pai nos observava de longe, juntamente com Guaraxaim. - Teu filhodará um excelente caçador e guerreiro se continuar a atirar flechas assim. - Não se entusiasme tanto, o meu pai tem muitos truques que pode ter ensinado ao neto. - Se o que esse mirim faz é truque, eu não me arriscaria a desafiá-lo. - Nem será preciso, Guaraxaim. É no campo de batalha que se provam os verdadeiros bravos. - Agnã é um flecheiro nato, como o avô. - Acertar em um alvo que não lhe devolve o ataque é fácil, o difícil é continuar a acertar quando as setas envenenadas também estão vindo em sua direção. - Qual é o problema meu amigo? Você não se orgulha do seu filho? - Não, não é isso. Estou muito preocupado com as coisas que aconteceram com ele e que fogem do nosso modo natural de vida. - O que quer dizer, Anuaí? - Meu filho não tem as mesmas preocupações que nós tínhamos e temos, ele age como se desconhecesse o medo. - Mas isso não é bom? Já é valente por natureza, corajoso como o pai e o avô! - Ignorar o medo não o torna mais valente e nem mais corajoso. Pode simplesmente transformá-lo em um tolo. - Mas nós aprendemos desde pequenos a nunca ter medo... - Mas também é verdade que não o desconhecemos. O que nos faz ter coragem é saber que o medo existe e assim procuramos, por honra do orgulho, nunca demonstrá-lo. Agnã olha para o fogo e acha-o bonito. O meu receio é que ele aprenda tarde demais que ele também queima. - Agnã é pequeno e tem a felicidade de poder contar contigo e com o avô. Com o tempo essas questões não serão mais 37 motivo de sua preocupação. Por que não o leva à expedição de caça que faremos para a celebração do casamento de sua filha mais velha? - Não sei se devo... - Por que não? Ele já maneja muito bem o arco e flechas, ajudará a abater as caças e será uma oportunidade para ele treinar sozinho, sem os truques do avô. - Se ele se preocupar apenas em caçar não haverá problemas. Você sabe que ultimamente coisas misteriosas têm acontecido. - Coisas de mirim. Leve-o à caça, do jeito que está tão empolgado no manuseio do seu pequeno arco, irá gostar muito de nos acompanhar e testar a sua pontaria. Não se aflija, deixe que eu tome conta dele. Agnã ficará bem à vontade e nem vai perceber que estarei a seu lado para protegê-lo, ajudá-lo e vigiá-lo. Meu pai ficou mais tranqüilo com o apoio do grande amigo. Dois dias após, com a bênção do pajé, partimos bem cedo para a selva fechada. Guaraxaim ia à frente. Era chamado de Cachorro- do-Mato por ser astuto, inteligente e conhecer a mata como ninguém. Distinguia os animais e sabia aonde se encontravam apenas pelo odor que exalavam ou pelos sons que emitiam. Tomamos o rumo noroeste, que já era conhecido e em cuja direção iríamos encontrar bons animais para a caça. Depois de boa caminhada, chegamos próximos de um lugar descampado, ao lado de um rio que descia de uma montanha. Percebendo que eu estava com os olhos fixos em uma distante e estranha montanha, meu pai disse: - Nós a chamamos de montanha dos invencíveis, em lembrança do feroz ataque que sofremos quando por lá passamos. A luta estendeu-se por vários dias, mas nossos inimigos não puderam nos derrotar e acabaram fugindo. Na parte baixa de onde nos encontrávamos, havia animais de extrema beleza, pássaros de uma plumagem lindíssima. Os homens foram divididos em sete grupos de quatro caçadores. Guaraxaim recomendou muito silêncio para não espantarmos os bichos. - Andem com calma e cautela. Logo adiante o rio forma uma bacia onde os suaçus costumam beber água - disse referindo-se aos veados. 38 - Vamos encontrar ainda - continuou quase sussurrando - as tapiras e capivaras. Cuidado com algum jaguar ou jibóia que estejam à espreita para atacar a nossa caça. A cada grupo foi designada uma posição para começar o avanço, de tal forma que boa parte da área estaria cercada. Eu acompanhava o grupo liderado por Guaraxaim. Ao sinal, avançamos com cuidado. Chegamos ao local que havia sido determinado. Ali realmente havia suaçutingas. Eram oito veados-brancos a bebericar e mais algumas tapiras. Quando todos se posicionaram, veio a ordem para lançar os dardos contra os bichos. Seis foram bem alvejados e caíram, os demais conseguiram escapar. Eu não disparei uma única seta. Foi uma grande gritaria. Os animais mortos tiveram as suas patas amarradas e uma vara foi passada entre as pernas de cada bicho, permitindo assim que os mesmos fossem carregados de tal maneira que ficassem com os pés para cima e de dorso para o chão. Quando estava tudo pronto para retornarmos à aldeia, Guaraxaim convidou-nos para subirmos a montanha dos invencíveis. Assim, os caçadores voltaram para a tribo com as presas e nós três seguimos para a montanha. Depois de ziguezaguearmos pela mata, chegamos à base da grande montanha. A água que formava o rio que havíamos atravessado despencava do alto formando uma linda paisagem. - Como pode um rio sair de dentro de uma montanha? - perguntei. - Vamos subir e eu lhe mostrarei - disse Guaraxaim. Em uma determinada altura da subida encontramos uma caverna, naturalmente iluminada. Algumas fendas permitiam que entrasse a luz do sol. - Aqui é a nascente - disse Guaraxaim, apontando para uma espécie de lagoa. - Nesse lugar - prosseguiu - a água brota da terra e continua passando por dentro da montanha, seguindo por um canal subterrâneo, até sair em uma pequena gruta mais adiante, de onde jorra para a mata. Aproximamo-nos para beber e, ao agachar-me, vi no reflexo da água algo como se fossem os vultos de três meninos bem atrás de mim. Virei-me rapidamente, mas não havia ninguém. - Alguma coisa, meu filho? 39 - Não, meu pai, pensei que tivesse visto alguém. Após saciarmos a nossa sede, saímos da caverna e começamos a dar a volta por fora da montanha em direção à gruta que ficava do outro lado. Durante a caminhada, em determinado lugar, senti que algo me tocou as costas. Parei e ao olhar para trás percebi que algumas sombras estranhas se escondiam na mata. - O que foi filho? Está vendo algum bicho? - Não, pai, acho que é só impressão. - Impressão do quê? - Que tem gente nos seguindo. Ele olhou para Guaraxaim e o guia afirmou: - Agnã, se houvesse alguém que nos seguisse ou algum animal que fosse, eu saberia. Fiz de conta que havia me conformado com a sua observação mas, na verdade, continuei cismado. Alcançamos o ponto em que o rio voltava a surgir e logo em seguida desaguava. Ele vinha do interior de uma apoucada gruta, cujas paredes brilhavam como diamantes. Parecia uma pequena morada dos deuses. Ficamos ali por mais algum tempo, de cócoras, como costumávamos descansar. Depois de um tempo, como já era final do terceiro quarto do dia, resolvemos voltar. Ao levantar-me senti que meu cabelo havia sido puxado para trás, mas nada pude ver. Na volta, Guaraxaim começou a perceber que certas coisas fora do comum estavam acontecendo: galhos de árvores se mexiam sem que houvesse vento ou animais que lhes tocassem e que alguns frutos caíam exatamente sobre nós, digo, sobre eles. - Anuaí - disse o Cachorro-do-Mato. - Sim - respondeu meu pai. - É melhor sairmos depressa, acho que os espíritos não gostaram da nossa companhia. - Vamos descer logo, então. Agnã, fique bem perto de mim. Quando chegamos lá em baixo, Guaraxaim levantou o braço e pediu silêncio. Meu pai e eu ficamos como pedras. - Há outros homens aqui perto - disse o guia em voz rouca e baixa. - Aonde? - perguntou o meu pai. 40 - Trinta passos à frente. - Quantos? - Talvez mais que dez. - Amigos ou inimigos? - Não posso dizer, estamos a favor do vento, não estou conseguindo sentir o cheiro deles... espere! Acho que são nossos homens. Avançamos cuidadosamente e constatamos que pertenciam mesmo a nossa tribo. Eram quinze homens, a maioria deitada no chão e sem fôlego. - O que estão fazendo aqui? - perguntoumeu pai. - Grande Anuaí... - disse um deles quase sem fala - coisa terrível aconteceu... - O que foi? Foram atacados por predadores ou inimigos? Diga, homem! - gritou Guaraxaim, impaciente. - Pior do que isso, com animais e inimigos nós lutaríamos até a morte, mas com demônios, o que fazer? - Quer nos dizer o que houve? - insistiu meu pai. - Quando estávamos a caminho da taba, de repente, frutas, pedras e pedaços de árvores foram arremessados contra nós. Não era obra de homem e nem de macacos. - E o que era então? - perguntou o guia. - Não sabemos, mas não havia ninguém por perto. Estávamos determinados a seguir em frente, mas foi impossível. Surgiram milhares de insetos querendo nos picar. Eram tantos que não conseguíamos nem enxergar. Mas quando largamos a caça para fugir, eles desapareceram. Ao voltarmos a pegar as caças, novamente fomos atacados e então decidimos abandoná-las ali mesmo e fugir de novo. - E o resto dos homens? - indagou o meu pai. - Não sei, talvez tenham conseguido voltar para a aldeia. - O que vamos fazer? - perguntou outro caçador. Guaraxaim e meu pai olharam para os lados, entreolharam-se e perguntaram ao mesmo tempo um para o outro: - Aonde está Agnã? Pronto, o mirim sumiu novamente. Gritaram o meu nome, mas não tiveram resposta. - Ele voltou para a montanha - disse o guia. - Como você sabe? Está sentindo o cheiro dele? - perguntou o meu pai. 41 - Não, dessa vez é puro palpite. - Vocês aguardam aqui, Guaraxaim e eu vamos procurar o meu filho. Era verdade, eles estavam certos. Encontrava-me justamente na fonte d’água, com dezenas de meninos do meu tamanho. Davam muita risada e não paravam no lugar. Entravam e saíam da furna, pulavam de árvore em árvore, corriam entre elas, entravam de novo na caverna e mergulhavam na fonte. Faziam muitas estripulias e sorriam para mim. Percebi que queriam que eu os acompanhasse até à pequena gruta. Fiz como desejavam e quando lá cheguei a vista do lugar era bem diferente. Havia um tom dourado no seu interior e as águas que de lá saíam tinham a mesma cor brilhante. Depois de um tempo brincando nas águas que saíam da gruta, escutamos passos de mais alguém se aproximando. No mesmo instante os meninos sumiram. - Agnã! Agnã! - chamavam-me. - Estou aqui, na gruta! - Mas o que aconteceu com você? - perguntou meu pai bastante assombrado. - O que você fez que está pintado desse jeito? - indagou Guaraxaim também espantado. Só então reparei que eu estava com uma cor dourada por todo o corpo, inclusive meu arco e as minhas sete flechas. O brilho da cor refletia-se nas paredes da gruta e nas águas. Fui banhar-me para tirar a tinta do corpo, mas Guaraxaim não deixou. - Agnã, coisas muito inexplicáveis ocorreram, diga para nós o que foi que aconteceu com você. Após eu ter contado tudo o que havia acontecido, meu pai e o guia começaram a confabular, quase sussurrando: - Anuaí, seu filho viu os curupiras, espíritos da natureza, protetores dos animais e florestas que se apresentam sob a forma de crianças. homens. - Foram eles que causaram os tais fatos estranhos com os - Só pode ser e não querem que levemos a caça. - Sim, mas o que devemos fazer agora? - O seu filho conquistou a simpatia deles a ponto de ser pintado. Acredito que se Agnã pedir irão nos deixar partir com a caça. 42 - Está bem, eu vou falar com ele. - Filho... - Eu já entendi meu pai - respondi de pronto. Falei então em voz alta: - Amiguinhos, amiguinhos, venham até aqui! Não apareceram. - Agnã - disse Guaraxaim -, talvez não queiram aparecer por causa de mim e do seu pai, mas certamente estão nos observando. Fale normalmente que irão lhe escutar. - Amiguinhos da mata, permitam que possamos levar os animais abatidos para a nossa aldeia. O meu povo precisa da carne para sua alimentação. Prometemos que por um longo tempo não os incomodaremos, não caçando mais nenhum outro animal nessa região. Os curupiras não se manifestaram. - Vamos voltar - disse o guia -, acho que agora não haverá mais problemas. Descemos a montanha e reencontramos o grupo que nos aguardava. Retomamos assim o caminho para a aldeia. Olhando para trás, pela última vez, pude ver ainda as águas douradas caindo da montanha e os curupiras saltitando entre as árvores da mata. 43 9 - A PRIMEIRA INICIAÇÃO Na volta à aldeia os homens pegaram a caça que haviam abandonado e prosseguimos sem maiores dificuldades. Quando chegamos, todos olharam para mim muito curiosos querendo saber como que eu havia me pintado. O meu pai, antecipando-se, apenas disse que era uma história muito comprida e que no momento ele queria descansar. Fui lavar-me no riacho. Toda a pintura saiu, mas o meu arco e flechas permaneceram dourados, por mais que eu tentasse limpá-los. caçadores. Não escapei de outra pajelança, juntamente com todos os O tempo foi passando e quando eu cheguei aos sete anos, meu pai chamou-me para dar uma boa e importante notícia: - Filho, já é o momento de você passar pela primeira prova para se tornar um guerreiro valente e afamado. Tenho a certeza de que você estava ansioso por isso. Eu estava ansioso para não passar por isso. Permaneci calado, só escutando. - Vamos convidar todos os familiares e amigos para a festa da colocação do seu tembetá. O tembetá era o primeiro significador de virilidade que antecedia o período da puberdade. Para a grande maioria dos mirins, era um fato extremamente importante: passariam a ser denominados curumins, ou seja, meninos próximos da puberdade. Mas, isso não me animava o suficiente para ter que me submeter ao ritual. Próximo ao dia marcado, já confinado na oca de meus pais, recebi a visita de muita gente. Todos me encorajavam a enfrentar o meu destino e faziam votos para que eu me tornasse um grande guerreiro. Estava conformado, mas não o suficientemente encorajado. A única visita que me alegrou mais foi a de Uiramirim. - Na sua celebração, eu cantarei em homenagem aos seus antepassados e às grandes lutas de seu avô e do seu pai, e cantarei também às vitórias destinadas a você - disse animada. - O seu canto será a consagração do meu sucesso - respondi, procurando não deixar que ela tivesse a impressão de que eu estava com medo. 44 O grande dia chegou depois de uma noite inteira em que passei acordado de preocupação e temor. A tribo toda estava reunida, os representantes de outras aldeias se faziam presentes e usavam os seus mais belos ornamentos de plumas. Fui todo pintado de preto e vermelho pela minha mãe. A tinta preta vinha do suco de jenipapo e a vermelha do artio que envolve as sementes do urucum. - Tragam o mirim! - bradou um dos índios pertencente ao conselho tribal, agora reunido. Ah! Se eu pudesse voltar para a barriga da minha mãe... Um dos meus tios, que para aquela solenidade seria como um padrinho, foi até a minha oca, acompanhado de duas mulheres. Começamos a correr por um corredor humano da palhoça até o centro da taba e pelo caminho todos procuravam me incentivar. Fiquei diante do carbé, o conselho tribal. Um dos bravos se levantou e passou a fazer um discurso sobre o passado heróico da minha família, que por mim teria continuidade. Um outro membro do conselho tribal ficou encarregado da operação. Ele pegou uma cuia que continha três pequeninos e pontiagudos chifres de cervo imersos em uma substância mágica e anti-séptica, preparada pelo feiticeiro, e se aproximou de mim. Eu olhava para ele terrivelmente preocupado e nervoso, porém, tendo que demonstrar absoluta tranqüilidade. Coisa praticamente impossível. Por fim, ele puxou o meu lábio inferior e sem maiores rodeios perfurou-o com o chifrezinho, deixando-o no orifício. As reações de um garoto, nessas cerimônias, eram cuidadosamente estudadas, principalmente as minhas, por eu ser filho de um chefe
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